Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
21/16.1GBSEI.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOSÉ NOGUEIRA
Descritores: INJÚRIA
Data do Acordão: 10/17/2018
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: GUARDA (JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DE SEIA – J1)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART. 181.º DO CP
Sumário:
A expressão “na rua andas em cadeira de rodas mas dentro de casa andas de pé e até vais à cave fazer buracos”, dirigida a quem está impossibilitado de caminhar, tendo de se deslocar com o auxílio do referido meio, embora revele insensibilidade, desrespeito, grosseria, e mereça repulsa social, não atinge o núcleo essencial das qualidades inerentes à dignidade da pessoa humana, e, consequentemente, não justifica tutela jurídico-penal.
Decisão Texto Integral:
Acordam em conferência os juízes na 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

I. Relatório
1. No âmbito do processo comum singular n.º 21/16.1GBSEI do Tribunal Judicial da Guarda, Seia – Juízo C. Genérica – Juiz 1, mediante acusação do assistente A., acompanhada pelo Ministério Público, foi o arguido B., melhor identificado nos autos, submetido a julgamento, sendo-lhe então imputada a prática de um crime de injúria, p. e p. pelo artigo 181.º do C. Penal.

2. Realizada a audiência de discussão e julgamento o tribunal decidiu [transcrição do dispositivo]:
Nos termos e pelos fundamentos expostos, o Tribunal julga a acusação improcedente, por não provada e, em consequência, decide-se:
a) Absolver o arguido B. da acusação da prática de um crime de injúria, p. e p. pelo artigo 181.º do Código Penal;
b) Julgar improcedente o pedido de indemnização civil formulado pelo demandante A. e, em consequência, absolver o demandado B. do pedido;
c) Condenar o assistente nas custas da acusação particular, fixando-se a taxa de justiça em 2 UC – artigo 515.º, n.º 1 do Código de Processo Penal e artigo 8.º, n.º 1 e 5 do Regulamento das Custas processuais e Tabela III anexa ao referido diploma, sem prejuízo do benefício do apoio judiciário;
d) Condenar o demandante nas ustas do pedido de indemnização civil – artigo 527.º, do C. P. Penal, sem prejuízo do benefício do apoio judiciário.

3. Inconformada com a decisão recorreu a Exma. Magistrada do Ministério Público, formulando as seguintes conclusões:
1.º - A expressão proferida pelo arguido “na rua andas de cadeira de rodas mas dentro de casa andas de pé e até vais à cave fazer buracos”, dirigindo-se ao assistente, traduz a imputação de um comportamento desonesto e indigno, por falsear a sua própria incapacidade, insuscetível de ser objetivamente ofensivo da sua honra e consideração.
2.º - O arguido agiu com o intuito de atingir o bom nome, honra e consideração do assistente, sabendo que o assistente é uma pessoa doente, impossibilitada de se deslocar pelo seu próprio pé, tendo de o fazer com o auxílio de uma cadeira de rodas.
3.º) Mobilizando o critério objetivo-individual, há que concluir que qualquer homem médio colocado na posição do assistente, considerando as suas particulares circunstâncias, igualmente se sentiria vexado e humilhado com aquelas expressões, que põem em causa a sua retidão e honorabilidade, afetando sobremaneira a consideração de que é merecedor pela sociedade.
4.º) Assim, em face dos factos provados – que cabalmente integram, objetiva e subjetivamente, o tipo legal de crime em análise -, é indiscutível, pois, que cometeu o arguido, em autoria material e na forma consumada, um crime de injúria, previsto e punível no artigo 181.º, n.º 1, do Código Penal, pelo que, revogando-se a decisão recorrida, deve ser condenado pela prática deste ilícito criminal, na pena de 60 dias de multa à taxa diária de € 6,00.
Porém, V.ªs Exas., Senhores Juízes Desembargadores, decidirão, como sempre, fazendo justiça.

4. Por despacho exarado a 07.05.2018 foi o recurso admitido.

5. Nenhum dos sujeitos processuais interessados respondeu ao recurso.

6. Na Relação a Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer, pronunciando-se no sentido da improcedência do recurso.

7. Cumprido o disposto no n.º 2 do artigo 417.º do CPP, não houve reação.

8. Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos foram os autos à conferência, cumprindo, pois, decidir.

II. Fundamentação
1. Delimitação do objeto do recurso
Tendo presente as conclusões, as quais, independentemente do conhecimento das questões de natureza oficiosa, definem/delimitam o objeto do recurso, no caso em apreço importa decidir se a expressão dirigida pelo arguido ao assistente é idónea a integrar o ilícito típico prevenido no artigo 181.º do C. Penal.

2. A decisão recorrida
Ficou a constar da sentença [transcrição parcial]:
FACTOS PROVADOS
Da discussão da causa e produção da prova vieram a resultar provados os seguintes factos com interesse para a decisão:
1 - No dia 19 de Dezembro de 2016, cerca das 10 horas, o assistente A. encontrava-se à porta da casa onde reside no Bairro das (…), Lote (..), (…).
2 - Estava acompanhado pela testemunha (…) que a seu pedido procedia à instalação de uma chapa metálica, facilitadora da entrada do assistente em sua casa, uma vez que se desloca em cadeira de rodas.
3 - Na casa ao lado da sua, a essa hora, encontrava-se o arguido B..
4 - O arguido estava ao lado de uma mota que se encontrava a trabalhar e a deitar muito fumo que envolvia o assistente e o Sr. (…).
5 - De seguida, retirou o seu veículo automóvel da garagem e com uma máquina de lavar à pressão, o arguido, começou a lavar o automóvel projetando água em direção ao assistente e ao Sr. (…), molhando-os.
6 - O assistente dirigiu-se ao arguido e pediu-lhe para não os molhar, ser civilizado e respeitar as pessoas que estavam a trabalhar.
7 - O arguido respondeu que “já lá estava”.
8 - Ato contínuo e sem que nada o justificasse ou fizesse prever, o arguido, dirigindo-se ao assistente, em voz alta, começou a proferir as seguintes expressões: “na rua andas em cadeira de rodas mas dentro de casa andas de pé e até vais à cave fazer buracos”, “Tu proibias a tua mulher de falar com a família”.
9 - Estas expressões, proferidas pelo arguido, foram ouvidas pelo Sr. (…).
10 - Ao proferir tais expressões, o arguido pretendeu atingir o bom nome, a honra e consideração do assistente, encontrando-se desavindo com este.
11 - O assistente sentiu-se ofendido e vexado com as expressões proferidas pelo arguido.
12 – O assistente é uma pessoa doente, impossibilitada de se deslocar pelo seu próprio pé, tendo de o fazer com o auxílio de uma cadeira de rodas.
13 - O arguido agiu livre, voluntariamente e conscientemente.
14 - O assistente sentiu-se desgostoso, triste, humilhado e perturbado com as expressões proferidas, sofreu e ainda sofre com as mesmas.
15 - O arguido é cunhado do assistente e conhece a doença do mesmo e sabe que as imputações são falsas.
Mais se provou que:
16 - O arguido B. é casado e vive em casa própria com a mulher.
17 - É serralheiro de profissão e aufere um salário de 600,00€ por mês.
18 - A esposa do arguido é assistente num lar e aufere um salário de 580,00€.
19 - O arguido tem como habilitações literárias o 5.º ano de escolaridade.
20 - O arguido não tem antecedentes criminais.

FACTOS NÃO PROVADOS
Nada mais se provou, designadamente não se provou que:
a) Nas circunstâncias de tempo, modo e lugar descritas na acusação o arguido dirigiu ao arguido as seguintes expressões: “paga a quem deves”, “andas cheio de fome”, “a tua mulher foi vítima de violência doméstica enquanto foi viva”, “tu devias estar numa casa de malucos”.
b) O assistente é pessoa séria, considerado e goza de boa reputação no meio em que vive onde é estimado e respeitado.
c) O arguido é uma pessoa conflituosa.
d) A esposa do assistente faleceu em Maio de 2016, vítima de doença prolongada e a quem, não obstante as suas evidentes dificuldades físicas, aquele prestou todos os cuidados até ao seu falecimento.

IV – MOTIVAÇÃO DA DECISÃO DE FACTO
(…)

3. Apreciação
Em causa está a idoneidade das expressões, no contexto da factualidade apurada (de desavença), dirigidas pelo arguido ao assistente, para integrar o ilícito típico de injúria, prevenido no artigo 181.º do Código Penal, a saber: “na rua andas em cadeira de rodas mas dentro de casa andas de pé e até vais à cave fazer buracos”, sendo certo que não desconhecia o primeiro (cunhado do assistente) o problema físico que afetava o segundo, impossibilitando-o de se deslocar pelo seu próprio pé, contando para tanto com o auxílio de uma cadeira de rodas.
Independentemente da (apurada) inveracidade da afirmação «dentro de casas andas de pé e até vais à cave fazer buracos», da falta de sensibilidade para a diminuição física do assistente que a mesma encerra; revelando-se, como tantas outras que elegem as incapacidades de cada um para os atingir, desrespeitadora das suas limitações, cruel porque desprovida de compreensão, falha de solidariedade por uma condição que ultrapassa e simultaneamente diminui o próprio, tal como o tribunal a quo não comungamos do entendimento do recorrente enquanto vê nelas uma ofensa à honra/consideração do assistente capaz de fazer desencadear a intervenção do direito penal, a qual, dirigindo-se à tutela dos bens jurídicos constitucionais, em consequência do princípio constitucional da proporcionalidade (artigo 18.º, n.º 2 da CRP) é meramente subsidiária e fragmentária, voltada para os ataques mais graves a esses mesmos bens. De facto, a ofensa à honra e consideração a demandar tutela penal não é confundível com uma conduta insensível, desrespeitosa ainda que determinante de repulsa social, com é o caso. Com bem nota a Ilustre Procuradora-Geral Adjunta no seu parecer «a expressão proferida é indelicada e revela insensibilidade e mesmo falta de solidariedade, grosseria mesmo, mas afigura-se-nos que mesmo no contexto em que foi proferida e a fragilidade física do assistente, o comportamento do arguido não justifica a tutela jurídico-penal, porque não atingiu o núcleo de valores essenciais, no caso a honra e consideração. Na verdade e tal como se refere na decisão recorrida “a expressão utilizada pelo arguido será, antes sim, apta a qualificá-lo (a ele arguido) pejorativamente, mas inapta a atingir a honorabilidade do assistente».
Em suma, não merece censura a sentença em crise enquanto defende não contenderem as expressões dirigidas ao assistente com o conteúdo ético da sua personalidade moral, tão pouco se revelando de modo a atingir o núcleo essencial das qualidades inerentes à dignidade da pessoa humana.

III. Dispositivo
Termos em que acordam os juízes que compõem este tribunal em negar provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público.
Sem tributação.

Coimbra, 17 de Outubro de 2018
[Processado e revisto pela relatora]

Maria José Nogueira (relatora)

Isabel Valongo (adjunto)