Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1098/10.9TBVNO-B.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CARLOS GIL
Descritores: INSOLVÊNCIA
PESSOA SINGULAR
PLANO DE PAGAMENTO
EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
NULIDADE PROCESSUAL
Data do Acordão: 01/24/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VILA NOVA DE OURÉM
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS.14, 249, 255, 258, 259, 263 CIRE, 201, 205 CPC
Sumário: 1. O recurso de apelação é um meio processualmente inadequado para suscitar o conhecimento de nulidade processual atípica alegadamente cometida perante o tribunal a quo e que, ao menos, não se ache implicitamente coberta por decisão judicial, pelo que, não sendo viável a convolação do recurso em reclamação da nulidade em virtude daquele ter sido interposto para além do prazo em que deve ser suscitada a reclamação da nulidade, existe um obstáculo de ordem processual ao conhecimento do objecto do recurso.

2. O recurso não é o meio próprio para sindicar a actuação processual do tribunal a quo que na assembleia de credores admitiu a apresentação de um plano de pagamentos por parte do Sr. Administrador da Insolvência e que submeteu à votação dos presentes essa proposta, pois devia ter sido deduzida reclamação nessa assembleia de credores contra tal procedimento do tribunal.

3. É ilegal a decisão que aprova plano de pagamentos que apenas obteve o voto favorável de credor que representa 42,055 % dos créditos relacionados pelos devedores.

4. Aos insolventes pessoas singulares que não sejam titulares de empresa, não lhes é aplicável, em caso algum, o instituto do plano de insolvência.

5. O incidente de exoneração do passivo restante não pode ser deduzido em cumulação com o incidente de plano de pagamentos, apenas podendo ser deduzido a título subsidiário, para a eventualidade do incidente de plano de pagamentos não ser aprovado.

6. Enferma de ilegalidade a decisão judicial que decidiu pela aprovação de incidente de exoneração do passivo restante com base em deliberação aprovada por maioria e sem facultar aos credores a possibilidade de se pronunciarem sobre essa pretensão dos insolventes.

Decisão Texto Integral:             Acordam, em audiência, os juízes abaixo-assinados da segunda secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

            1. Relatório

            Em requerimento inicial registado a 02 de Agosto de 2010, no Tribunal Judicial da Comarca de Ourém, D (…) e O (…) vieram apresentar-se à insolvência, em coligação, requerendo:

a) a admissão do plano de pagamentos proposto por ambos, tendo em vista a aprovação pelos credores e sua consequente homologação, determinando-se a suspensão do processo de insolvência até à decisão sobre o incidente do plano de pagamentos;

b) caso o plano de pagamentos não venha a ser aprovado pelos credores, devem os requerentes ser declarados insolventes, com as demais consequências legais;

c) a concessão da exoneração do passivo restante nos moldes peticionados por ambos;

d) no caso de concessão de exoneração do passivo restante, o diferimento do pagamento das custas até à decisão final do pedido de exoneração do passivo restante, nos termos do disposto no artigo 248º, nº 1, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas[1];

e) a nomeação como administrador de insolvência do gestor por eles indicado.

A 18 de Agosto de 2010, foi proferida sentença que decretou a insolvência de D (…) e O (…), não tendo havido qualquer pronúncia sobre os incidentes de plano de pagamentos e de exoneração do passivo restante, designando-se logo dia e hora para realização de assembleia de credores.

O Sr. Administrador da Insolvência apresentou o seu relatório, propondo a aprovação de um plano de pagamentos e na falta de aprovação do plano de pagamentos, a concessão aos insolventes da exoneração do passivo restante.

A 25 de Outubro de 2010 realizou-se assembleia de credores, tendo a Caixa (...) , SA votado favoravelmente o relatório do Sr. Administrador de Insolvência, requerendo a C (...) , SA prazo para votação por escrito, pretensão que foi judicialmente deferida, concedendo-se o prazo de dez dias para o efeito.

A C (...) , SA veio pronunciar-se declarando não aderir ao plano de pagamentos, em virtude do mesmo não acautelar os seus interesses, nomeadamente quanto ao prazo proposto e, especialmente, quanto à moratória de um ano, requerendo, em consequência, que o plano de pagamentos seja considerado sem efeito e bem assim a notificação dos credores que não estiveram presente na assembleia de credores para se pronunciarem sobre o plano de pagamentos.

A 27 de Dezembro de 2010 foi proferido o seguinte despacho:

Nos autos, tendo-lhe sido concedido essa faculdade, vieram os credores C (...) e Banco M (...) deixar por escrito o seu sentido de voto relativamente ao plano de pagamentos apresentado pelo Administrador da Insolvência. Esse sentido de voto vai no sentido da rejeição do aludido plano de pagamentos. A percentagem de votos relativamente a cada um desses credores é de, respectivamente, 4,869 % e 17,227 %. A Caixa (...) formulou sentido de voto positivo em acta e dispõe da percentagem de 42,055 %. Ora, prevalece na Assembleia de Credores a deliberação que for aprovada por maioria dos votos expressos donde, se tem por aprovado o plano de pagamentos aprovado, bem como o pedido de exoneração do passivo restante para além dos 5 (cinco) anos de execução do plano.

Inconformada com esta decisão que lhe foi notificada por carta expedida a 29 de Dezembro de 2010, C (...) , Sucursal em Portugal da S.A. Francesa C (...) interpôs recurso de apelação contra a mesma, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:

1 – A legitimidade da recorrente decorre de se ter oportunamente oposto ao plano de pagamentos e de este ter sido “aprovado” contra o seu voto desfavorável;

2 – Quanto à fixação do regime do recurso (imediata e nos próprios autos com efeito devolutivo), há que atender às disposições: do nº 1 do artº 255 do C.I.R.E. (que qualifica o plano de pagamentos como um incidente do processo de insolvência) do nº 4 do artº 259 do C.I.R.E. (que estabelece que o trânsito da homologação do plano de pagamentos determina o encerramento do processo de insolvência) e do nº 6, alínea d) do artº 14º do C.I.R.E. (que prevê que subam nos próprios autos os recursos que ponham termo ao incidente – neste caso ao incidente do plano de pagamentos);

3 – A circunstância de o incidente do plano de pagamentos não ter sido autuado como apenso e de o Mmº Juiz a quo ter entendido usar a expressão “aprovação do plano de pagamentos” em vez de “homologação”, são inteiramente alheias à aqui recorrente que não pode, por virtude dessas irregularidades do Tribunal, ser prejudicada.

4 – Uma vez que a decisão recorrida põe termo ao incidente do plano e do seu trânsito em julgado resultaria o enceramento do processo de insolvência, este recurso está igualmente sujeito ao regime do nº 2, alínea j) do artº 691º e do nº 1, alínea a) do artº 691º-A ambos do C.P.C.;

5 – Às pessoas singulares enquadradas no artº 249 – como é, nestes autos, o caso dos devedores requerentes – são-lhe aplicáveis, no que respeite ao regime do “plano de pagamentos” as normas constantes dos artºs 251º a 263 do C.I.R.E.

6 – Os devedores cumpriram correctamente e em tempo, o preceituado nos artºs 251º e 252 do C.I.R.E. quanto à apresentação do plano de pagamentos (independentemente da “bondade” de tal plano);

7 – E referiram tratar-se de um incidente prévio à sentença de insolvência.

8 – Na sentença de insolvência prolatada em 18.08.10, o Tribunal, não considerou “altamente improvável” que tal plano viesse a ser aprovado, reconhecendo que fora apresentado e, apesar disso, proferiu logo sentença de declaração de insolvência, não tendo ordenado a formação de um apenso ao processo de insolvência com o incidente do plano de pagamentos, violando assim o artº 263º do C.I.R.E., nem tendo suspendido o processo até à decisão do incidente do plano, com violação do artº 255 nº 1 do C.I.R.E.

9 – A violação destas normas e tramitação processual implica a nulidade da sentença que declarou a insolvência dos devedores e toda a subsequente tramitação do processo porque a sentença de insolvência proferida após uma eventual aprovação do plano de pagamentos, tem conteúdo, alcance, publicidade e registo que são diferentes da sentença proferida (artº 259, nºs 1, 4 e 5, normas também violadas)

 9 – Não tendo sido suspensa a sentença de declaração de insolvência e organizado previamente o apenso com o incidente de aprovação do plano de pagamentos, a respectiva tramitação processual viola o disposto nos artºs. 255 e 256 do C.I.R.E., infracção que redunda em prejuízo da recorrente que foi surpreendida pela aprovação ilegal de um plano de pagamento;

10 – A decisão recorrida viola o disposto nos artºs 249 e 155 do  por ter sido admitida a votação, em assembleia de credores, de um plano de pagamentos que não podia ser incorporado no relatório do Senhor Administrador e que foi por este apresentado em assembleia e admitido a votação, com violação, também, do procedimento indicado no artº 256 do C.I.R.E.

11 – A decisão recorrida viola ainda as regras ínsitas no artº 258 do C.I.R.E. visto que a aprovação do plano de pagamentos depende da aprovação de credores que representem mais de dois terços do valor total dos créditos relacionados pelo devedor e não foi requerido o suprimento da aceitação dos que votaram contra nem dos que se abstiveram, nem foi, sequer, proferido despacho de suprimento.

12 – A decisão recorrida na parte em que declarou aprovar, além do plano de pagamentos, “o pedido de exoneração do passivo restante para além dos 5 (cinco) anos de execução do plano”, além de ilegal não é inteligível, visto que viola o artº 235 do C.I.R.E. (por prever exoneração nos 5 anos seguintes aos mais de 13 após o cumprimento do plano de pagamentos).

13 – Por outro lado, os credores não foram chamados a pronunciar-se sobre o pedido de exoneração do passivo restante, o que deveriam ter sido convidados a fazer, nos termos do nº 2 do artº 238 do C.I.R.E. (a contrario).

14 – Esta parte da decisão é também nula, por estar em contradição manifesta com o segmento decisório que aprova o plano de pagamentos.

15 – Não pode verificar-se simultaneamente a aprovação de um plano de pagamentos e a concessão da exoneração do passivo restante por a tal se oporem os preceitos do artº 254º e da alínea c) do artº 237º do C.I.R.E., que a decisão viola”.

            A recorrente pede a revogação in totum da decisão recorrida, quer na parte em que aprovou o plano de pagamentos, quer na parte em que aprovou a exoneração do passivo restante e, em consequência, que os autos baixem à primeira instância, declarando-se a nulidade da sentença que declarou a insolvência dos devedores e toda a tramitação subsequente do processo de insolvência, que deverá ser suspenso até à decisão do plano de pagamentos, determinando-se a organização do apenso previsto no artº 263 do C.I.R.E., pedindo ainda, em alternativa, sem prejuízo da revogação da decisão recorrida, que se ordene que o incidente do plano de pagamentos seja reiniciado seguindo-se a tramitação prevista nos artºs. 255 e segs. do C.I.R.E.

            Não foram oferecidas contra-alegações.

            Com o acordo dos Exmos. Juízes-adjuntos, dada a simplicidade das questões a resolver, sendo as mesmas exclusivamente questões de direito e tendo ainda em atenção a natureza urgente dos autos e as delongas de que vêm padecendo, decidiu-se dispensar os vistos.

Nada obstando ao conhecimento do objecto do recurso, cumpre apreciar e decidir.

            2. Questões a decidir tendo em conta o objecto do recurso delimitado pela recorrente nas conclusões das suas alegações (artigos 684º, nº 3 e 685º-A nºs 1 e 3, ambos do Código de Processo Civil, na redacção aplicável a estes autos), por ordem lógica e sem prejuízo do conhecimento de questões de conhecimento oficioso, observado que seja, quando necessário, o disposto no artigo 3º, nº 3, do Código de Processo Civil

2.1 Da nulidade da sentença que decretou a insolvência de D (…) e O (…)em virtude de não ter sido tramitado por apenso o incidente do plano de pagamentos requerido pelos insolventes e por não ter sido suspenso o processo de insolvência até à decisão do incidente do plano de pagamentos;

2.2 Da ilegalidade da votação de um plano de pagamentos em assembleia de credores, proposto pelo Administrador da Insolvência e após ter sido decretada a insolvência;

2.3 Da ilegalidade da decisão que aprovou a votação do plano de pagamentos com uma simples maioria e sem suprimento da aceitação dos credores que votaram contra bem como dos que se abstiveram e sem que tal haja sequer sido requerido;

2.4 Da incompatibilidade legal da cumulação sucessiva da exoneração do passivo restante com a aprovação do plano de pagamentos e da ilegalidade da admissão de exoneração do passivo restante sem prévio contraditório dos credores.

3. Fundamentos de facto resultantes dos elementos constantes da certidão de folhas 20 a 78, bem como da cópia da sentença que decretou a insolvência de D (…) e o (…)[2]


3.1

            Em requerimento inicial registado a 02 de Agosto de 2010, no Tribunal Judicial da Comarca de Ourém, D (…) e O (…) vieram apresentar-se à insolvência, em coligação, requerendo:

a) a admissão do plano de pagamentos proposto por ambos, tendo em vista a aprovação pelos credores e sua consequente homologação, determinando-se a suspensão do processo de insolvência até à decisão sobre o incidente do plano de pagamentos;

b) caso o plano de pagamentos não venha a ser aprovado pelos credores, devem os requerentes ser declarados insolventes, com as demais consequências legais;

c) a concessão da exoneração do passivo restante nos moldes peticionados por ambos;

d) no caso de concessão de exoneração do passivo restante, o diferimento do pagamento das custas até à decisão final do pedido de exoneração do passivo restante, nos termos do disposto no artigo 248º, nº 1, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas;

e) a nomeação como administrador de insolvência do gestor por eles indicado.


3.2

A 18 de Agosto de 2010, foi proferida sentença que decretou a insolvência de D (…) e O (…), não tendo havido qualquer pronúncia sobre os incidentes de plano de pagamentos e de exoneração do passivo restante, não obstante se aludir a tais incidentes no relatório da sentença, tendo-se designado dia e hora para realização de assembleia de credores.

3.3

O Sr. Administrador da Insolvência apresentou o seu relatório, referindo que os insolventes não exercem nem exerceram qualquer actividade comercial nos últimos três anos, propondo a aprovação de um plano de pagamentos e, em caso de não aprovação do plano de pagamentos, a concessão de exoneração do passivo restante aos insolventes, ficando os insolventes com um rendimento disponível de pelo menos três salários mínimos nacionais.

3.4

 A 25 de Outubro de 2010 realizou-se assembleia de credores, tendo a Caixa (...) , SA votado favoravelmente o relatório do Sr. Administrador de Insolvência, requerendo a C (...) , SA prazo para votação por escrito, pretensão que foi judicialmente deferida, concedendo-se o prazo de dez dias para o efeito.

3.5

A C (...) , SA, quinto maior credor dos insolventes, veio pronunciar-se declarando não aderir ao plano de pagamentos, em virtude do mesmo não acautelar os seus interesses, nomeadamente quanto ao prazo proposto e, especialmente, quanto à moratória de um ano, requerendo, em consequência, que o plano de pagamentos seja considerado sem efeito e bem assim a notificação dos credores que não estiveram presentes na assembleia de credores para se pronunciarem sobre o plano de pagamentos.

3.6

A 27 de Dezembro de 2010 foi proferido o seguinte despacho:

Nos autos, tendo-lhe sido concedido essa faculdade, vieram os credores C (...) e Banco M (...) deixar por escrito o seu sentido de voto relativamente ao plano de pagamentos apresentado pelo Administrador da Insolvência. Esse sentido de voto vai no sentido da rejeição do aludido plano de pagamentos. A percentagem de votos relativamente a cada um desses credores é de, respectivamente, 4,869 % e 17,227 %. A Caixa (...) formulou sentido de voto positivo em acta e dispõe da percentagem de 42,055 %. Ora, prevalece na Assembleia de Credores a deliberação que for aprovada por maioria dos votos expressos donde, se tem por aprovado o plano de pagamentos aprovado, bem como o pedido de exoneração do passivo restante para além dos 5 (cinco) anos de execução do plano.

4. Fundamentos de direito

4.1 Da nulidade da sentença que decretou a insolvência de D (…) e O (…) em virtude de não ter sido tramitado por apenso o incidente do plano de pagamentos requerido pelos insolventes e por não ter sido suspenso o processo de insolvência até à decisão do incidente do plano de pagamentos

Na perspectiva da recorrente teria sido cometida uma nulidade processual por não ter sido proferido despacho a determinar a autuação do incidente do plano de pagamentos por apenso e por não ter sido declarada a suspensão da instância do processo de insolvência.

A violação das normas legais invocadas pela recorrente é patente, bastando para tanto atentar no que vem disposto nos artigos 263º e 255º, nº 1, segunda parte, ambos do CIRE. Também é patente que houve omissão de pronúncia aquando da prolação da sentença que decretou a insolvência dos requerentes sobre os incidentes de plano de pagamentos e de exoneração do passivo restante. Porém, a recorrente teve conhecimento desse vício, quando foi notificada da sentença que decretou a insolvência, já que era o quinto maior credor (veja-se o artigo 37º, nº 3, do CIRE) e consta do relatório da sentença que decretou a insolvência que havia sido requerido o plano de pagamentos, bem como a exoneração do passivo restante.

Nos termos do disposto no artigo 201º, nº 1, do Código de Processo Civil, não sendo caso de nulidade legalmente tipificada (nos artigos anteriores ao artigo 201º ou em disposição avulsa que comine tal vício à infracção em causa), a prática de acto que a lei não admita, bem como a omissão de acto ou formalidade que a lei prescreva, só produzem nulidade quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa.

Não estando em causa nenhuma das nulidades previstas nos artigos 193º, 194º, na segunda parte do nº 2 do artigo 198º e nos artigos 199º e 200º, todos do Código de Processo Civil, ou em que a lei permita o seu conhecimento oficioso, o tribunal apenas poderá conhecer de um tal vício após reclamação do interessado (artigo 202º do Código de Processo Civil). As nulidades que não sejam de conhecimento oficioso devem ser apreciadas logo que reclamadas (artigo 206º, nº 3, do Código de Processo Civil).

O prazo para a dedução de reclamação contra eventual nulidade que não seja de conhecimento oficioso é de dez dias, sempre que a parte não esteja presente, por si ou por mandatário, no momento em que é cometida (artigos 205º, nº 1, 2ª parte e 153º, ambos do Código de Processo Civil), sendo o termo inicial de tal prazo o dia em que depois de cometida a nulidade, a parte interveio em algum acto praticado no processo ou foi notificada para qualquer termo dele mas, neste último caso, só quando deva presumir-se que então tomou conhecimento da nulidade ou quando dela pudesse conhecer, agindo com a devida diligência. Nesta eventualidade, sendo o processo expedido em recurso antes de findar o prazo para a dedução da reclamação, a arguição da nulidade pode ser feita perante o tribunal superior, contando-se o prazo desde a distribuição (artigo 205º, nº 3, do Código de Processo Civil).

As disposições legais que se têm vindo a citar permitem concluir, com toda a segurança, que o meio próprio de reacção contra a prática de nulidades processuais atípicas é a reclamação para o órgão que praticou ou omitiu o acto contrário à lei e não o recurso. Só assim não será quando o vício esteja explícita ou implicitamente coberto por uma decisão judicial. Daí que seja corrente a afirmação de que “dos despachos recorre-se, contra as nulidades reclama-se[3].

No caso em apreço, não obstante a imediata declaração de insolvência dos requerentes, não se nos afigura que se deva entender que o incidente de plano de pagamentos foi implicitamente indeferido, pois do texto desta decisão nada permite concluir que tal pressuposto tenha alguma vez estado subjacente na mente do Sr. juiz autor da sentença. O processamento subsequente é a prova real de que assim não sucedeu, pois mal se perceberia a aprovação de um plano de pagamentos que em fase anterior já tivesse sido indeferido, ainda que de forma meramente implícita, pois que a tanto obstaria o caso julgado formal.

Assim, provocada a decisão do autor da acção ou omissão integradora de nulidade processual mediante a pertinente reclamação, então caberá recurso, nos termos gerais (artigo 691º do Código de Processo Civil), da decisão que venha a ser proferida sobre essa reclamação.

Ainda que a conclusão quanto à impropriedade processual de arguição de nulidade processual atípica em via de recurso não resultasse de tudo quanto antes se expôs, sempre à mesma conclusão se chegaria atentando no figurino próprio do recurso que, em regra, consiste na reapreciação de questões que tenham sido objecto de decisão pelo tribunal a quo.

Na verdade, em via de recurso, não se tratando do conhecimento de arguição de nulidade por omissão de pronúncia, de questão de conhecimento oficioso, de mera operação de qualificação jurídica diversa da factualidade alegada, nem tendo havido, nos termos legais, alteração do pedido, em segunda instância, por acordo das partes, não se deve conhecer de questão nova que não haja sido suscitada junto do tribunal a quo.

No caso em apreço, a verificar-se a arguida nulidade, a recorrente teve forçosamente conhecimento dessa patologia quando foi notificada da decisão que declarou a insolvência dos requerentes, notificação que ocorreu após 18 de Agosto de 2010 e antes de 25 de Outubro de 2010. A decisão que decretou a insolvência, como já antes fundamentámos, não integra qualquer conhecimento explícito, ou sequer implícito, do incidente de plano de pagamentos.

Neste circunstancialismo, a admitir-se a legitimidade processual da recorrente para arguir a preterição das aludidas regras legais (artigos 255º, nº 1, segunda parte e 263º, ambos do CIRE), a mesma podia arguir a alegada nulidade em reclamação oferecida nos dez dias subsequentes ao conhecimento da sentença que decretou a insolvência dos requerentes.

É indubitável que o prazo para deduzir a reclamação da invocada nulidade terminou em data anterior àquela até à qual veio a ser interposto recurso da decisão recorrida.

O meio processual usado pela recorrente no caso dos autos, além de enfermar de inadequação processual, também foi interposto fora do prazo legal previsto para a reclamação, o que afasta a possibilidade desse recurso ser convolado em reclamação de nulidade, por aplicação dos princípios subjacentes ao instituto do erro na forma de processo (artigo 199º do Código de Processo Civil).

Não sendo o recurso o meio próprio para suscitar o conhecimento da arguida nulidade, tanto basta para que com tal fundamento não seja conhecida a nulidade indevidamente suscitada em via de recurso.

4.2 Da ilegalidade da votação de um plano de pagamentos em assembleia de credores, proposto pelo Administrador da Insolvência e após ter sido decretada a insolvência

A recorrente sustenta a ilegalidade da proposta de um plano de pagamentos pelo Sr. Administrador da Insolvência, bem como da sua votação após ter sido decretada a insolvência, em virtude de tal contender com o disposto nos artigos 253º e 255º, nº 1, ambos do CIRE.

Cumpre apreciar e decidir.

Salvo melhor opinião, regista-se na arguição ora em análise, o obstáculo já assinalado na decisão da questão que precede e que consiste na prática de acto processual que a lei não admite, a que a recorrente assistiu e a que não levantou qualquer objecção no momento da sua prática, antes parecendo conformar-se com essa actuação, pois até pediu prazo para poder votar por escrito.

Nesta medida, o recurso não é o meio próprio para sindicar a actuação processual do tribunal a quo que na assembleia de credores, após a declaração de insolvência dos requerentes, admitiu a apresentação de um plano de pagamentos por parte do Sr. Administrador da Insolvência e que submeteu à votação dos presentes essa proposta, pois devia ter sido deduzida reclamação nessa assembleia de credores contra tal procedimento do tribunal.

Por isso, não se conhece do recurso neste segmento das conclusões em virtude de não ser o meio próprio, não sendo convolável na pertinente reclamação por patente intempestividade.

4.3 Da ilegalidade da decisão que aprovou a votação do plano de pagamentos com uma simples maioria e sem suprimento da aceitação dos credores que votaram contra bem como dos que se abstiveram e sem que tal haja sequer sido requerido

 A recorrente pugna pela revogação da decisão sob censura em virtude de ter aprovado um plano de pagamentos que apenas obteve o voto favorável de um credor que representa 42,055 % do total dos créditos e o voto contra de credores que representam um total de 22,096 %.

Cumpre apreciar e decidir.

É patente a ilegalidade da decisão judicial de “aprovação” do plano de pagamentos, decisão que do ponto de vista formal devia ser de homologação (artigo 259º, nº 1, do Código de Processo Civil), porquanto a lei exige a aceitação do plano de pagamentos por credores cujos créditos representem mais de dois terços do valor total dos créditos relacionados pelo devedor (artigo 258º, nº 1, do CIRE) e, no caso dos autos, o plano só teve a aceitação de um credor que representa menos de metade do total dos créditos relacionados pelos devedores. Neste quadro, não estavam sequer reunidas as condições legais para que pudesse ser requerido o suprimento da aprovação dos demais credores, nos termos previstos no já citado artigo 258º, nº 1, do CIRE.

Será que na assembleia de credores, não obstante a designação utilizada, foi submetida à votação um plano de insolvência e não um plano de pagamentos, plano este com regras distintas para a sua aprovação (artigo 212º do CIRE)?

Salvo melhor opinião, esta hipótese é de rejeitar, desde logo porque sendo os insolventes pessoas singulares não titulares de empresa, não lhes é aplicável, em caso algum, o instituto do plano de insolvência (artigo 250º do CIRE).

Assim, pelo que precede, conclui-se que a decisão recorrida deve ser revogada, na parte em que decidiu pela aprovação do plano de pagamentos.

4.4 Da incompatibilidade legal da cumulação sucessiva da exoneração do passivo restante com a aprovação do plano de pagamentos e da ilegalidade da admissão de exoneração do passivo restante sem prévio contraditório dos credores

A recorrente suscita a ilegalidade da decisão recorrida por ter admitido a cumulação da exoneração do passivo restante com a aprovação do plano de pagamentos e ainda por ter sido admitida a exoneração do passivo restante, sem que aos credores tenha sido facultado o exercício do contraditório.

Apreciemos.

Antes de mais, deve anotar-se uma ambiguidade da decisão recorrida quanto ao exacto alcance da aprovação do pedido de exoneração “do passivo restante para além dos 5 (cinco) anos de execução do plano.” Na verdade, esta formulação tanto pode significar que decorridos cinco anos sobre o início do cumprimento do plano de pagamentos, passaria a operar também a exoneração do passivo restante, como pode significar que isso apenas sucederia nos cinco anos subsequentes ao termo do cumprimento do plano de pagamentos aprovado.

Independentemente desta dúvida interpretativa quanto àquilo que foi decidido, certo é que os incidentes do plano de pagamentos e de exoneração do passivo restante se excluem mutuamente, como resulta de forma clara do disposto no artigo 254º do CIRE, normativo que prevê a dedução subsidiária do incidente de exoneração do passivo restante para a eventualidade do incidente de plano de pagamentos não ser aprovado. E bem se percebe que assim seja porquanto, transitada em julgado a sentença de homologação do plano de pagamentos, bem como da sentença que declara a insolvência, há lugar ao encerramento do processo (artigo 259º, nº 4, do CIRE), ao invés do que sucede no incidente de exoneração do passivo restante em que após o proferimento do despacho inicial, há lugar à cessão do rendimento disponível durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo e, só após o decurso de tal prazo, pode ocorrer a decisão final de exoneração (artigo 244º do CIRE).

Por outro lado, resulta do disposto no artigo 236º, nº 4, do CIRE, que na assembleia de apreciação do relatório é dada aos credores e ao administrador da insolvência a possibilidade de se pronunciarem sobre o requerimento.

A acta da assembleia de credores não contém qualquer indicação de que haja sido facultada aos credores a possibilidade de se pronunciarem sobre o requerimento de exoneração do passivo restante, pois foi logo submetido à votação o relatório apresentado pelo Sr. Administrador da Insolvência, não tendo sido cumprido, a fazer fé na acta, o disposto no nº 1, do artigo 156º do CIRE.

A submissão de uma proposta a votação não equivale à observância do contraditório, pois este princípio requer que seja concedida à parte a possibilidade de conformar a decisão jurídica do caso, mediante a pertinente alegação de factos e o oferecimento de provas.

Neste caso, a decisão que se pronunciou sobre o incidente de exoneração do passivo restante cobriu, implicitamente, a inobservância do contraditório, pelo que o recurso é meio próprio para sindicar esta violação da lei.

Atente-se ainda que a decisão sob censura foi além da proposta que obteve o voto favorável da Caixa (...) SA, porquanto no relatório submetido à votação apenas se previa a concessão da exoneração do passivo restante para a eventualidade do plano de pagamentos não ser aprovado, e nunca em aplicação cumulativa e sucessiva com o plano de pagamentos. Finalmente, deve salientar-se que a admissão da exoneração do passivo restante pressupõe uma decisão judicial (artigo 239º, nº 1, do CIRE), assente em variados pressupostos fácticos e jurídicos, não podendo consistir numa mera decisão homologatória de deliberação maioritária de credores favorável a essa concessão.

Pelo exposto, com fundamento na violação do contraditório, deve também ser revogado o segmento da decisão sob censura que deferiu o incidente de exoneração do passivo restante.

Por tudo quanto se acaba se expor, conclui-se pela parcial procedência do recurso, devendo ser integralmente revogado o despacho proferido a 27 de Dezembro de 2010 e realizar-se nova assembleia de credores em que se faculte a estes a possibilidade de se pronunciarem sobre o incidente de exoneração do passivo restante e ainda sobre a liquidação do activo, já que o plano de pagamentos proposto pelo Sr. Administrador da Insolvência não constitui uma alternativa legal, seguindo-se a essa assembleia os ulteriores termos legais.

5. Dispositivo

Pelo exposto, em audiência, os juízes abaixo-assinados da segunda secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra acordam em julgar parcialmente procedente o recurso de apelação interposto por C (...) , Sucursal em Portugal da S.A. Francesa C (...) e, em consequência, em revogar a decisão proferida a 27 de Dezembro de 2010, determinando-se que se realize nova assembleia de credores em que se faculte aos credores a possibilidade de se pronunciarem sobre o incidente de exoneração do passivo restante e ainda sobre a liquidação do activo dos insolventes; custas do recurso de apelação na proporção de metade a cargo da recorrente e na metade restante a cargo da massa insolvente.


***

Carlos Gil (Relator)

Fonte Ramos

Carlos Querido



[1] Doravante citado abreviadamente como CIRE.
[2] A decisão sob censura não enuncia os factos que julga provados, pelo que cabe a este tribunal suprir esta omissão.
[3] A este propósito veja-se o Comentário ao Código de Processo Civil do Sr. Professor José Alberto dos Reis, Volume 2º, Coimbra Editora 1945, página 507.