Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2320/12.2TALRA-A.C2
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE DIAS
Descritores: MAGISTRADO
OFENDIDO
TRIBUNAL
EXERCÍCIO DE FUNÇÕES
Data do Acordão: 05/20/2015
Votação: DECISÃO SUMÁRIA
Tribunal Recurso: LEIRIA
Texto Integral: S
Meio Processual: CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA
Decisão: DIRIMIDO O CONFLITO
Legislação Nacional: ART. 23.º DO CPP
Sumário: I - A Reforma Judiciária entrada em vigor em 1de Setembro de 2014, introduzida pela LOSJ, alterou não só o Mapa Judiciário como reestruturou competências.

II - Face à nova organização judiciária, há que fazer uma interpretação atualista do disposto no art. 23.º do CPP. Assim, sendo ofendido num processo um magistrado a exercer funções numa Instância Local de uma Comarca e devendo o processo correr termos na Instância Central da mesma Comarca, não se verificam os pressupostos enunciados no art. 23.º do CPP, ou seja, in casu, o processo não corre termos no tribunal onde o magistrado ofendido, efetivamente, exerce funções.

Decisão Texto Integral:
O Sr. Juiz da Instância Central – Secção Criminal – J2, da Comarca de Leiria veio no âmbito dos autos de processo comum coletivo, Proc. n.º2320/12.2TALRA-A.C2, suscitar a resolução do conflito negativo de competência relativamente ao despacho proferido pelo Sr. Juiz da Instância Central – Secção Criminal – J1 da Comarca de Coimbra, dado atribuírem-se essas Instâncias reciprocamente competência, negando a própria, para tramitar os presentes autos.

Foram notificados os sujeitos processuais nos termos do artº 36º nº 1 CPP, tendo sido apresentada resposta pela Sr.ª Juíza da Comarca de Coimbra, onde mantém o expendido no despacho em conflito.

A Exmª Procuradora-Geral Adjunto emite parecer no sentido de a competência para a tramitação subsequente dos presentes autos ser da Instância Central – Secção Criminal, da Comarca de Leiria.

Para tanto fundamenta: “Com o presente conflito negativo de competência, pretende-se saber qual o Tribunal competente para o julgamento do Proc. Comum Colectivo n° 2320/12.2TALRA, em que é ofendido o Dr. A... , em exercício de funções como magistrado judicial na Instância Local de Leiria - Secção Criminal tendo a acusação no âmbito do citado processo sido deduzida perante Tribunal Colectivo, ou seja, perante um Tribunal de estrutura e composição diferente, daquele em que este senhor magistrado exerce funções

Com efeito, por força da Lei de Organização do Sistema Judiciário, os Magistrados Judiciais que se encontrem em exercício de funções e integrados numa Instância Local, não exercem funções, nem se encontram integrados numa Secção Criminal.

Assim, a reforma judiciária que entrou em vigor no dia 1 de Setembro de 2014 alterou não só o Mapa Judiciário como reestruturou as respectivas competências, referindo-se no preâmbulo do Dec. Lei n° 49/2014 de 27 de Março que, as secções criminais estão destinadas à preparação e ao julgamento das causas crime da competência do tribunal colectivo, enquanto que as instâncias locais, tramitam e julgam as causas não atribuídas à instância central, integram secções de competência genérica e podem desdobrar-se em secções cíveis, secções criminais, secções de pequena criminalidade e secções de proximidade.

Por sua vez, o art. 118° da Lei n" 62/2013, de 26 de Agosto, estatui que compete às secções criminais da instância central proceder ao julgamento e aos termos subsequentes nos processos de natureza criminal da competência do tribunal coletivo ou do júri.

E, o art. 130.° da citada Lei refere que compete às secções de competência genérica, preparar e julgar os processos relativos a causas não atribuídas a outra secção da instância central ou tribunal de competência territorial alargada;

Desta forma, actualmente os processos da competência do Tribunal Colectivo correm na Instância Central e aqueles que não devam correr na Instância Central correm na Instância Local.

Nesta conformidade, entendemos que a competência territorial para o julgamento do Proc. Comum Colectivo n° 2320712.2TALRA, em que é ofendido o Dr. A... , em exercício de funções como magistrado judicial na Instância Local de Leiria pertence à Secção Criminal da Instância Central, da Comarca de Leiria, porquanto se trata de um Tribunal com estrutura e composição diferente daquele em que este sr. Magistrado ofendido exerce funções.


*

FUNDAMENTAÇÃO:

Com o presente conflito negativo de competência, pretende-se saber qual o Tribunal competente para a tramitação subsequente dos presentes autos, se a Secção Criminal da Instância Central da Comarca de Leiria, se a Secção Criminal da Instância Central da Comarca de Coimbra, tratando-se de processo em que é ofendido um magistrado judicial que exerce funções na Instância Local de Leiria, da Comarca de Leiria.

O Sr. Juiz de Leiria fundamenta a incompetência do tribunal no facto de o juiz ofendido no processo “exercer funções na sede da comarca de Leiria”.

O Sr. Juiz de Coimbra, para além de discriminar o facto de o Sr. Juiz ofendido exercer funções na Instância Local e o processo correr na Instância Central, ambas da comarca de Leiria, referindo: “O Magistrado visado, ofendido, exerce funções na Instância Local de Leiria-Secção Criminal e o processo foi distribuído para julgamento à Instância Central, que por força da Lei de Organização do Sistema Judiciário os Magistrados Judiciais da Instância Local não integram.

Assim, existindo na sede da Comarca de Leiria, um Tribunal de estrutura e composição diferente (Instância Central-Secção Criminal), daquele em que o Magistrado ofendido exerce funções, não se justifica fazer deslocar o processo para a Comarca mais próxima, situação que apenas se colocava, se a acusação tivesse sido deduzida perante Tribunal Singular, mas que, atenta a actual organização judiciária, colocaria por sua vez a questão de saber, qual a Instância local competente - se a Instância local mais próxima dentro da Comarca de Leiria ou a Instância Local mais próxima dentro da Comarca também mais próxima, neste caso, Coimbra.

Entende-se assim, que a competência territorial para o julgamento dos presentes autos pertence à Secção Criminal da Instância Central da Comarca de Leiria, porquanto se trata de Tribunal com estrutura e composição diferente daquele em que o Magistrado ofendido exerce funções.”

Vejamos:

Estatui o artigo 23.º do CPP o seguinte:

«Se num processo for ofendido, pessoa com a faculdade de se constituir assistente ou parte civil, um magistrado, e para o processo devesse ter competência, por força das disposições anteriores, o tribunal onde o magistrado exerce funções, é competente o tribunal da mesma hierarquia ou espécie com sede mais próxima, salvo tratando-se do Supremo Tribunal de Justiça.»

A razão de ser da norma contida no preceito, será “o evitar a falta da necessária liberdade das pessoas que no processo têm de funcionar, visto, que de outra forma, se encontrariam mais ou menos coagidas pelo facto de o juiz da comarca ter interesse no processo”, cfr. Luís Osório, a propósito de norma de teor semelhante, artigo 52º C P Penal de 1929, in Comentário ao C. P. Penal, 1º vol. Coimbra, 1932, pág.465.

Noutra perspetiva, mais atualista e de acordo com a realidade do tempo presente, pode entender-se que aquela norma visa, ainda, afastar qualquer risco de suspeita de favorecimento ou de desconfiança sobre a imparcialidade da decisão e foi consagrada por naturais razões de se salvaguardar a isenção e o prestígio dos Tribunais.

Ora, a questão fundamental a apreciar e a decidir consiste em saber, relativamente a um processo em que for ofendido, pessoa com a faculdade de se constituir assistente ou parte civil, um magistrado, e para o processo devesse ter competência (por força das regras sobre competência territorial) o tribunal onde o magistrado exerce funções, qual será o tribunal competente da mesma hierarquia ou espécie com sede mais próxima, salvo tratando-se do Supremo Tribunal de Justiça, de harmonia com o disposto no artigo 23 do Código de Processo Penal.

Mas a questão que desde logo se deve suscitar como ponto prévio é, o processo em causa deve correr, o tribunal territorialmente competente é o tribunal onde o sr. Magistrado ofendido exerce funções?

Os Conselheiros Simas Santos, Leal Henriques e Borges de Pinho, em anotação ao art. 23 do Código de Processo Penal colocam a tónica no local onde o magistrado ofendido exerce funções, referindo, “… fosse competente … o tribunal onde o magistrado exerce efetivamente funções…” (sublinhado nosso).

A Reforma Judiciária entrada em vigor em 1de Setembro de 2014 alterou não só o Mapa Judiciário como reestruturou competências.

Refere-se no preâmbulo do Dl. Nº 49/2014 de 27 de Março que:

As instâncias centrais têm, na sua maioria, competência para toda a área geográfica correspondente à comarca e desdobram-se em secções cíveis, que tramitam e julgam, em regra, as questões cíveis de valor superior a (euro) 50 000,00, em secções criminais, destinadas à preparação e julgamento das causas crime da competência do tribunal coletivo ou de júri, e em secções de competência especializada, designadamente, secções de comércio, execução, família e menores, instrução criminal, e do trabalho, que preparam e julgam as matérias cuja competência lhes seja atribuída por lei.

As instâncias locais, que tramitam e julgam as causas não atribuídas à instância central, integram secções de competência genérica e podem desdobrar-se em secções cíveis, secções criminais, secções de pequena criminalidade e secções de proximidade” (sublinhados nossos).

Por sua vez a Lei nº 62/2013 de 26-08 estatui:

“Artigo 118.º  - Competência

1 - Compete às secções criminais da instância central proferir despacho nos termos dos artigos 311.º a 313.º do Código de Processo Penal, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 78/87, de 17 de fevereiro, e proceder ao julgamento e aos termos subsequentes nos processos de natureza criminal da competência do tribunal coletivoou do júri.

2-…”.

“Artigo 130.º - Competência
1 - Compete às secções de competência genérica:
a)Preparar e julgar os processos relativos a causas não atribuídas a outra secção da instância central ou tribunal de competência territorial alargada;

            …”.

            Donde resulta que a Instância Local tem competência genérica, mas residual.

            Há que abstrair dos anteriores conceitos e atribuições de competência.

            Com a reestruturação ou reforma, processos das antigas comarcas e que eram da competência do Tribunal Coletivo transitaram ou deveriam transitar para as Instâncias Centrais.

            Atualmente inexistem Tribunais Coletivos a deslocarem-se a Instâncias Locais para julgarem ou tramitarem processos da competência destas, pois que estas apenas têm processos de competência própria do Juiz Singular. Atualmente quando o Tribunal Coletivo se deslocar a um Tribunal de Instância Local é para julgar processo próprio, seu, da Instância Central.

            É que na anterior organização judiciária (com ressalva das Varas) os processos eram todos da competência da respetiva Comarca e os Juízes de Circulo (antigos corregedores), com competência na área do Circulo Judicial, aí se deslocavam para julgar os processos que fossem da competência do Tribunal Coletivo (os círculos judiciais não funcionavam como um tribunal, apenas se referiam a uma área territorial de competência).

            Como se disse, com a ressalva das Varas, todos os processos, quer fossem da competência do Tribunal Coletivo quer do Juiz Singular, corriam no mesmo Tribunal, o Tribunal de Comarca (Artigo 62.º da Lei 3/99 de 13-01, com a epigrafe Tribunais de comarca - [revogado - Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto] dispunha no seu nº 1 que “- Os tribunais judiciais de 1.ª instância são, em regra, os tribunais de comarca).

            Atualmente os processos da competência do Tribunal Coletivo correm na Instância Central e aqueles que não devam correr na Instância Central competem à Instância Local.

            Instância Central e Instância Local, embora no âmbito territorial da mesma Comarca (mesma circunscrição judicial) são tribunais distintos, quer na sua estrutura quer na sua composição, não podendo ser considerados tribunais da mesma hierarquia ou espécie.

            Face à nova organização judiciária há que fazer uma interpretação atualista do disposto no art. 23 do CPP.

            Assim como há que interpretar a doutrina do Acórdão Uniformizador de Jurisprudência nº 6/2005, in DIÁRIO DA REPÚBLICA—I SÉRIE-A N.º 134—14 de Julho de 2005, tendo em conta a nova reforma judiciária em vigor desde 1de Setembro de 2014, o qual refere, “«À luz do preceituado no artigo 23 do Código de Processo Penal vigente, se num processo for ofendido, pessoa com a faculdade de se constituir assistente ou parte civil, um magistrado, e para esse processo devesse ter competência territorial o tribunal onde o magistrado exerce funções, é competente o tribunal da mesma hierarquia ou espécie com sede na circunscrição mais próxima, ainda que na circunscrição judicial onde aquele magistrado exerce funções existam outros juízes ou juízos da mesma hierarquia e espécie.»

            No caso concreto, exercendo o magistrado ofendido funções na Instância Local de Leiria e correndo o processo na Instância Central de Leiria, ambas da Comarca de Leiria, não pode considerar-se que tem competência para o processo o tribunal onde o magistrado ofendido exerce funções.

            Aqueles tribunais não têm a mesma hierarquia e a espécie processual da competência de um daqueles tribunais (Instância Central) exclui a do outro.

            Apenas quando um magistrado ofendido exerça funções numa Instância Central de uma Comarca a competência territorial para tramitar o processo se transmitirá à Instância Central da Comarca mais próxima.

            Como no domínio da anterior organização judiciária, só se fosse ofendido num processo o juiz de círculo, a competência pertenceria a tribunal de comarca de círculo judicial diferente, mais próximo.

Face à LOSJ em vigor, sendo ofendido num processo um magistrado a exercer funções numa Instância Local de uma Comarca e devendo o processo correr termos na Instância Central da mesma Comarca, não se verificam os pressupostos enunciados no art. 23 do CPP, ou seja, in casu, o processo não corre termos no tribunal onde o magistrado ofendido, efetivamente, exerce funções.


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DECISÃO:

Pelo exposto dirime-se o presente conflito negativo, julgando-se competente para os termos subsequentes do processo o Tribunal da Secção Criminal da Instância Central da Comarca de Leiria.       

Sem tributação.

Cumpra-se o disposto no artº 36º nº 3 CPP e, dê-se conhecimento ao Ex.mº Juiz Presidente das Comarcas de Coimbra e Leiria.

Coimbra, 20 de Maio de 2015

Jorge Dias