Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2874/06.2TBAAVR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: TERESA PARDAL
Descritores: ACESSÃO
ARTICULADOS
CONVITE AO APERFEIÇOAMENTO
Data do Acordão: 02/02/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: FUNDÃO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 1340, 1376 DO CC, 508, 511 CPC
Sumário: I- Não sendo a petição inicial inepta, mas havendo insuficiência dos factos aí alegados, não deverá a acção ser julgada improcedente no despacho saneador, devendo convidar-se os autores para juntar petição inicial aperfeiçoada e de forma a ser considerados todos os factos relevantes segundo as várias soluções plausíveis de direitos.

II- Está nesse caso a alegação deficiente das características da “unidade económica independente” como pressuposto de aquisição parcial do terreno, no âmbito da acessão industrial imobiliária e a falta de definição dos concretos valores do terreno e da obra incorporada, para além dos valores formais constantes nas matrizes prediais.

Decisão Texto Integral: Acordam na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

A.... e mulher B.... intentaram a presente acção declarativa com processo ordinário contra C.... e marido D...., alegando, em síntese, que são donos de um prédio urbano destinado a habitação com a área coberta de 201 m2 e com a área descoberta de 2 649 m2, inscrito na matriz predial urbana de .... sob o artigo yyy...., por o terem construído com materiais próprios há mais de 20 anos, num prédio rústico com a área total de 4 900 m2, inscrito na matriz predial rústica da freguesia de ...., sob o artigo www...., pertencente aos réus e com o consentimento destes, por os mesmos serem pais da autora e sogros do réu.

Mais alegaram que, desde então e com o consentimento dos réus, sempre utilizaram a referida construção e logradouro como uma unidade, usando-a para sua habitação, a qual tem o valor patrimonial de 6 722,99 euros, superior ao valor patrimonial do prédio rústico dos réus, de 50,40 euros, tendo acrescentado à totalidade deste último um valor superior àquele que tinha antes.

Concluíram, pedindo a condenação dos réus a reconhecer que os autores são donos do referido prédio, que adquiriram por acessão industrial imobiliária, mediante a obrigação de pagarem aos réus a quantia de 50,40 euros, ou o que vier a ser fixado pelo Tribunal. 

Os réus contestaram, alegando, em síntese, que, há cerca de 15 anos, cederam aos autores 201 m2 para que estes aí construíssem a casa, nada mais tendo cedido e não ocupando os autores mais do que a respectiva área, mesmo porque não é possível fraccionar os prédios rústicos com área inferior à unidade de cultura, como é o caso, tendo já os autores admitido não terem direito à área circundante da construção, como resulta da desistência da queixa no processo crime onde acusavam familiares de aí terem cortado árvores e sendo também impossível fixar um valor à quota do terreno correspondente ao local onde foi implantada a construção dos autores.

Concluíram, pedindo a improcedência da acção e a absolvição do pedido.      

Após os articulados, foi proferido despacho saneador, onde foi julgada improcedente a acção e os réus absolvidos do pedido.

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Inconformados, os autores interpuseram recurso desta decisão, que foi admitido como apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito devolutivo.

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Os recorrentes alegaram, tendo formulado as seguintes conclusões:          

I- Os recorrentes vêm impugnar a decisão do Tribunal “a quo” que, no despacho saneador, decidiu do mérito da causa, julgando a acção improcedente e absolvendo os réus dos pedidos.

II- Entendeu o Tribunal “a quo” que a acessão não é possível pelos seguintes motivos:

   a) Porque a acessão é impossível, pelo que teria de improceder quanto ao logradouro do prédio, considerando que “…não pode o direito do incorporante ir além do espaço onde coincidem os direitos”.

   b) Teria de improceder quanto ao mais, atendendo a que “…da acção não constam os elementos de facto necessários, indispensáveis à determinação do valor das obras e do terreno em que foram incorporadas”.

   c) E porque “…da petição não constam factos que permitam concluir, a final, se a casa construída pode ou não constituir uma unidade económica independente em relação ao prédio pertença dos réus”.

III- Não se concorda minimamente com os fundamentos invocados pela Mma Juiz “a quo” e supra enunciados.

A. Desde logo, quanto à invocada impossibilidade de a acessão não poder proceder em relação ao terreno que os autores identificam como logradouro da casa, não se aceita esse entendimento porque a jurisprudência dos Tribunais Superiores tem-se orientado maioritariamente no sentido de admitir a aquisição parcial.

De facto, a maioria da jurisprudência e da doutrina seguem a tese nos termos da qual a unidade económica, constituída pelas obras e pelo prédio onde as mesmas se integram, deve corresponder à área que funciona efectivamente como unidade económica, sendo aqui relevante o critério económico para a definição dos limites do prédio.

B. Já quanto à conclusão de que, nos autos, não vêm alegados factos para, a final, se concluir pela autonomização da parcela de terreno onde assenta a casa em relação à parte restante, não se pode concordar com a mesma. Contrariam aquela conclusão, os factos alegados nos artigos 6º e 7º da Petição Inicial.

C. Também não se concede na bondade da conclusão segundo a qual não vêm alegados factos que permitam estabelecer o valor relativo da casa incorporada e do prédio onde foi edificada. De facto, vem alegado pelos autores os respectivos valores. O critério legal, nessa parte, para a acessão poder ser exercida, é de as obras incorporadas no prédio terem trazido, à totalidade do prédio, um valor superior ao que este tinha antes da incorporação.

Os dispositivos legais, quanto ao pressuposto do valor acrescentado ao prédio, em relação à totalidade do mesmo e respectiva prova, não obriga a que se aleguem quaisquer critérios para a fixação dos respectivos valores; a prova daqueles valores poder-se-á fazer por qualquer das formas legalmente admissíveis, nomeadamente por via da avaliação por peritos na altura própria do requerimento, apresentação e produção da prova.

IV- Mas mesmo que não se conceda na possibilidade da acessão em relação à totalidade do logradouro, nada obsta a que a acessão se faça em relação à parcela do terreno ocupado pela construção aí erigida pelos autores.

V- Deve, pois, anular-se a decisão da primeira instância, devendo a acção ser mandada prosseguir, para produção da prova e apreciação dos pressupostos de facto e de direito da requerida acessão imobiliária.

Ao decidir, como decidiu, violou a douta sentença recorrida as disposições legais dos arts 1316º, 1325º e 140º do Código Civil.   

 Nos termos expostos deve o presente recurso ser julgado procedente, anulando-se a decisão recorrida e ordenando-se o prosseguimento da acção, para indicação e produção da prova e apreciação dos pressupostos de facto e de direito da requerida acessão industrial imobiliária.

Termos em que deve, com o douto suprimento de Vossas Excelências, ser concedido provimento ao presente recurso, com o que se fará a habitual Justiça.

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Não foram apresentadas contra alegações.

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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

A questão a decidir é a de saber se foram alegados factos necessários para se concluir estarem reunidos os pressupostos da acessão industrial imobiliária com a consequente aquisição parcial do terreno.

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FACTOS.

Na sentença recorrida foram considerados os seguintes factos provados:

A) Os autores são, respectivamente, filha e genro dos réus.

B) Sob o artigo www...., está inscrito na matriz predial rústica da freguesia de ...., lugar de ...., em nome de D...., o seguinte prédio:

“terra de cultura e regadio, com a área de 4 900 m2, a confrontar: do norte, com ....; do nascente, com....; do sul, com....; do poente, com ....”.

C) Sob o artigo yyy.... urbano, freguesia de ....,.... – .... – ...., está inscrito em nome de A...., na matriz urbana, o seguinte prédio:

“casa de rés do chão com dependência agrícola, composta de três divisões assoalhadas, cozinha, casa de banho e despensa, a confrontar: do norte, com ....; do sul, com ....; do nascente, com ....; do poente, com..... Tem a área coberta de 201 m2 e a descoberta de 2 649 m2 e está ocupada desde 10/03/1991”. 

D) Os autores construíram, a expensas suas, a casa identificada na alínea anterior no prédio rústico identificado em A).

E) Fizeram-no com autorização expressa dos réus.

F) Antes da incorporação da obra, não havia qualquer relação dos autores com o terreno em causa, nomeadamente posse ou qualquer outra relação jurídica.

G) No prédio identificado em A), para além da casa construída pelos autores, existe ainda a casa dos réus (proprietários do terreno) e, ainda, outra pertencente a E...., também filho dos réus.

H) Nas matrizes respectivas, o prédio identificado em A) tem o valor de 50,40 euros e o identificado em B) o de 6 722,99 euros, determinado em 2003.

I) A.... (autor) apresentou queixa crime contra E.... (seu cunhado), por este lhe ter cortado uma árvore de fruto no terreno em causa nesta acção, que diz ser de sua propriedade, por o ter adquirido por acessão industrial imobiliária.

J) O processo terminou por desistência de queixa.

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ENQUADRAMENTO JURÍDICO.

 A sentença recorrida julgou a acção improcedente por entender que não foram alegados factos suficientes para a procedência da acção.

Para apreciar a bondade desta decisão, haverá que ter em conta o conteúdo dos artigos 508º nº3 e 511º nº1 do CPC, cuja redacção é a seguinte, respectivamente:

Artigo 508º nº3 do CPC: “Pode ainda o juiz convidar qualquer das partes a suprir as insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada, fixando prazo para a apresentação de articulado em que se complete ou corrija o inicialmente produzido.”

Artigo 511º nº1: “O juiz, ao fixar a base instrutória, selecciona a matéria de facto relevante para a decisão da causa, seguindo as várias soluções plausíveis da questão de direito, que deva considerar-se controvertida.”

Com efeito, não se verificando uma completa falta ou ininteligibilidade do pedido ou da causa de pedir ou contradição entre ambos ou cumulação de pretensões incompatíveis, geradores de ineptidão da petição inicial tratada no artigo 193º do CPC, as imprecisões ou deficiências dos articulados das partes poderão eventualmente levar à improcedência das respectivas pretensões, mas tais vícios podem ser corrigidos mediante o recurso ao convite ao aperfeiçoamento dos articulados, assim se logrando obter uma decisão mais justa e consentânea com a verdade material (sobre este assunto, relativamente ao aperfeiçoamento da petição inicial, cfr A. Reis, Comentário ao CPC, vol. 2º, página 372).

Por outro lado, havendo várias teses ou correntes doutrinais e jurisprudenciais, não deve o Tribunal optar por nenhuma delas e decidir no despacho saneador, mas sim seleccionar toda a matéria controvertida que seja relevante face a qualquer uma dessas teses ou correntes, de forma a que se apurem todos os elementos que habilitem a uma decisão que, a final, conscienciosamente, opte pela solução mais adequada.

No presente caso, os autores pretendem a aquisição de parte de um terreno rústico, por via da acessão industrial imobiliária, nos termos do artigo 1340º nº1 do CC, que estabelece: “Se alguém, de boa fé, construir obra em terreno alheio, ou nele fizer sementeira ou plantação, e o valor que as obras, sementeiras ou plantações tiverem trazido à totalidade do prédio for maior do que o valor que este tinha antes, o autor da incorporação adquire a propriedade dele, pagando o valor que o prédio tinha antes das obras, sementeiras ou plantações”.

A petição inicial não é inepta, pois é inteligível o pedido, a causa de pedir, não havendo contradição, nem pretensões incompatíveis.

Contudo, tal como foi detectado pela decisão recorrida, os factos alegados pelos autores não são suficientemente esclarecedores e o eventual prosseguimento da acção com aproveitamento da petição inicial poderia levar ou a uma improcedência da acção ou a uma grande dificuldade na produção de prova (trata-se da defesa não do interesse de quem alega, mas também do interesse da parte contrária, que tem direito a confrontar-se com factos devidamente definidos e concretizados, de modo a poder defender-se).     

A questão coloca-se a nível da aquisição parcial do terreno como unidade económica autónoma e a nível do valor da obra e do terreno em que a mesma foi implantada.

Quanto à aquisição parcial do terreno, tem-se verificado uma dicotomia nas interpretações deste artigo, havendo quem considere que a aquisição do terreno terá sempre de ser total (cfr P.Lima e A.Varela, CC anotado, vol.III, página 165, ac. STJ 25/07/75, BMJ 249-489) e havendo quem considere que a aquisição do terreno poderá ser parcial, se a obra incorporada criar uma unidade económica independente (cfr, entre muitos outros, ac RC 13/06/06, www.dgsi.pt)

E, relativamente a esta matéria, alegam os autores que a área de 2 649 m2 circundante da casa construída tem sido usada e explorada juntamente com a casa, constituindo ambas uma unidade económica independente.

Estes factos são, porém, pouco esclarecedores.

Tendo o prédio rústico uma área total inferior à unidade de cultura, não é possível o seu fraccionamento, a não ser para fins que não sejam de cultura (artigo 1376º do CC, Portaria 202/0 de 21/4, P. Lima e A. Varela em CC anotado, vol. III, página 259, ac. RP 8/01/81, sumariado em www.dgsi.pt)

Assim, para que se considere que uma área de 2 649 m2 seja apenas um logradouro ou uma zona que está integrada no uso do edifício, sem estar afecta à cultura, será necessário que seja muito bem explicado e esclarecido qual o uso que lhe tem sido dado e porque é que, juntamente com esse edifício, constitui uma unidade económica independente.

Não sendo os factos alegados pelos autores suficientes para esclarecedores sobre esta matéria, reconhece-se que será difícil esclarecê-la.

Deverá, contudo ser dada uma oportunidade aos autores para explicarem a sua versão, através do convite ao aperfeiçoamento, a que se refere o artigo 508º nº3 do CPC.

E, mesmo que os autores não esclareçam este ponto, ou não venham a provar que a discutida área de 2 649 m2 está integrada numa unidade económica independente não destinada à cultura, sempre se poderá vir a provar o restante alegado (respeitante à acessão correspondente à área da construção e de acordo com a tese da corrente jurisprudencial que admite a aquisição parcial do terreno) e remeter para execução de sentença os justos limites da área circundante à construção, que devem integrar a acessão (ac RP 8/01/81, acima mencionado, sumariado em www.dgsi.pt).

E isto leva-nos à questão do valor, que a sentença recorrida igualmente entendeu não estar devidamente alegado.

Na verdade, como também aponta a decisão recorrida, são ridículos os valores alegados na petição inicial (é perfeitamente irrealista pretender-se que o terreno onde foi implantada a construção tenha o valor de 50,00 euros, que consta da matriz).

Todavia, mais uma vez, a pretensão dos autores é perceptível e estes, mesmo não oferecendo valores realistas, invocam que se verifica a diferença de preços a que se refere o artigo 1340º. Aliás, terminam a petição com o pedido de fixação da indemnização em 50,40 euros ou naquele que o Tribunal vier a fixar.

Assim, também aqui lhes deverá ser dada oportunidade de concretizar os factos que alegam, alegando os reais valores – e não os matriciais – quer do terreno, quer da obra, com referência à data da incorporação, sem prejuízo da sua actualização.

Deverá, portanto, ser revogada a decisão recorrida e os autos prosseguir com o convite ao aperfeiçoamento da petição inicial.

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SUMÁRIO:

I- Não sendo a petição inicial inepta, mas havendo insuficiência dos factos aí alegados, não deverá a acção ser julgada improcedente no despacho saneador, devendo convidar-se os autores para juntar petição inicial aperfeiçoada e de forma a ser considerados todos os factos relevantes segundo as várias soluções plausíveis de direitos.

II- Está nesse caso a alegação deficiente das características da “unidade económica independente” como pressuposto de aquisição parcial do terreno, no âmbito da acessão industrial imobiliária e a falta de definição dos concretos valores do terreno e da obra incorporada, para além dos valores formais constantes nas matrizes prediais.  

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DECISÃO.

Pelo exposto se decide julgar parcialmente procedente a apelação e, consequentemente, revogando a decisão recorrida, determinar que, em sua substituição, seja proferido despacho convidando os autores a aperfeiçoar a sua petição inicial, nos termos supra expostos.     

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Sem custas.