Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
368/07.8TALRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA PILAR DE OLIVEIRA
Descritores: PRINCÍPIO DO ACUSATÓRIO
ACUSAÇÃO MANIFESTAMENTE INFUNDADA
NULIDADE INSANÁVEL
ARQUIVAMENTO DOS AUTOS
Data do Acordão: 05/22/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: 2º. JUÍZO DO TRIBUNAL JUDICIAL DE LEIRIA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 283.º, N.º 3, ALS. B) E C), E 311.º, N.º 3, AL. B), DO CPP
Sumário: I - Face ao aditamento do n.º 3 do artigo 311.º do CPP, operado pela Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto, os vícios estruturais da acusação passaram a sobrepor-se às nulidades previstas no artigo 283.º, do mesmo diploma, e converteram-se em matéria sujeita ao conhecimento oficioso do tribunal, não estando, portanto, dependente de arguição por parte dos sujeitos processuais.

II - Sendo a nulidade em causa de conhecimento oficioso, pode ser conhecida, a todo o tempo, até ao trânsito em julgado da decisão final.

III - Uma consequência da estrutura acusatória do processo é a independência do Ministério Público em relação ao juiz na formulação da acusação.

IV - Da consagração da estrutura acusatória resulta inadmissível que o juiz possa ordenar ao MP os termos em que deve formular a acusação. Por maioria de razão, não pode também o juiz suprir os vícios de que a acusação padeça.

V - Assim, não podendo ser sanada a nulidade da acusação, a existência desse vício, verificada antes do trânsito em julgado da decisão final, produz a invalidade dessa peça processual e de tudo o que tiver sido processado posteriormente e, consequentemente, conduz ao arquivamento do processo, por inexistência de objecto.

Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Coimbra:

I. Relatório

Nos autos de processo comum com intervenção do tribunal singular nº 368/07.8TALRA do 2º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Leiria, o arguido A..., identificado nos autos, foi submetido a julgamento pronunciado pela autoria de um crime de participação económica em negócio p. e p. no artigo 377º, nº 1 do Código Penal.

O Hospital B...deduziu pedido de indemnização civil contra o arguido, requerendo a sua condenação na entrega da quantia de 5 065,89 euros, acrescida de juros moratórios à taxa legal desde a notificação até integral pagamento.

Realizada a audiência de julgamento, em 14 de Fevereiro de 2012 foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:

" Tudo ponderado, decide o Tribunal:
a) Condenar A... como autor de um crime de participação económica em negócio previsto e punido pelo art. 377 nº 1 do C.P., ocorrido a 15-1-2003, na pena de quatro meses de prisão, suspensa a sua execução por um ano;
b) Condenar o demandado a entregar à demandante a quantia de quatro mil e sessenta e cinco euros e oitenta e nove cêntimos acrescida de juros de mora à taxa legal desde 9-6-2011 até integral pagamento;
c) Condenar o arguido nas custas, fixando-se a taxa de justiça em 4 U.C., e nos encargos, bem como nas custas civis;"

Inconformado, recorreu o arguido, extraindo da respectiva motivação as seguintes conclusões:

1. O arguido foi condenado como autor material de um crime de participação económica em negócio, previsto e punido pelo art. 377 nº 1 do C.P; ocorrido a 15-­1-2003, na pena de quatro meses de prisão, suspensa a sua execução por um ano;

2- E a entregar à demandante a quantia de quatro mil e sessenta e cinco euros e oitenta e nove cêntimos acrescida de juros de mora à taxa legal desde 9-6-2011 até integral pagamento.

3- É desta decisão que apresenta recurso e abrange a matéria de facto e de direito.

4- A douta sentença viola o princípio de caso julgado; os factos imputados ao arguido no presente processo, já tinham sido objecto de arquivamento no processo n.º 516/08.0TLRA que correu seus termos no MP do Tribunal de Leiria, com fundamento na extinção do procedimento criminal à data de apresentação da queixa (cfr. certidão anexa ao presente processo).

5- Proferida decisão de arquivamento do inquérito, só restaria ao ofendido requer a intervenção hierárquica ou a abertura de instrução.

6- "A expressão julgado mais que uma vez não pode ser entendida no seu estrito sentido técnico-jurídico, tendo antes de ser interpretado num sentido mais amplo de forma a abranger não só a fase de julgamento mas também outras situações análogas ou de valor equivalente, designadamente aquelas em que num processo é proferida decisão final, sem que todavia tenha havido lugar àquele conhecido ritualismo, como sucede com a declaração judicial de extinção de responsabilidade criminal por prescrição do procedimento criminal ou desistência de queixa (V. Acórdão e doutrina mencionada).

7- Foi também violado o principio ne bis idem, expresso no artigo 29, n.º 5 da CRP e que proíbe que os factos imputados a um cidadão, num processo penal e em qualquer fase do processo, sejam avaliados mais que uma vez, visando este princípio garantir a limitação do poder de perseguição e de avaliação da responsabilidade penal, proibindo os poderes estaduais à perseguição penal múltipla; pouco importando a qualificação que lhe tenha sido atribuída em qualquer dos processos, bastando para tanto que se tratem dos mesmos factos.

8- No momento em que a queixa que deu origem aos presentes autos, foi apresentada, já o respectivo procedimento criminal se mostrava extinto pelo decurso do prazo de prescrição.

9- A decisão de pronúncia é vaga, imprecisa, não descreve de forma circunstanciada os factos que são essenciais para preencher o tipo de crime, referindo que em determinadas facturas, que não identifica, foi colocada uma margem de lucro que não identifica, não contendo uma descrição circunstanciadas dos factos, não contendo, por isso, as menções do artigo 283°, 3, do C.P.P, pelo que é nula.

10- As provas referidas no ponto 2.1, declarações do arguido; (gravadas no Sistema Informático CITIUS 00:00:01 - 00:37:24 (sessão de 16-01-2012) Depoimento da testemunha C... (gravado no Sistema Informático CITIUS 00:00:01 - 00:35:28 (sessão de 11-10-2011) Depoimento da testemunha G...; (gravado no Sistema Informático CITIUS 00:00:01 ­00:36:45 (sessão de 11-10-2011); Depoimento da testemunha G... (gravado no Sistema Informático CITIUS 00:00:01 - 00:43:36 (sessão de 07-10-2011) Depoimento de Licínio Carvalho (gravado no Sistema Informático CITIUS 00:00:01 - 00:34:10 (sessão de 18-11-2011); Depoimento da testemunha E... (gravado no Sistema Informático CITIUS 00:00:01 - 01:09:46 (sessão 07-10-2011 e 00:00:01 a 00:00:07 e 00:00:00 a 01:41:15, sessão de 16-02-2012) da Motivação devem ser renovadas, impondo decisão diversa e no sentido de os factos considerados provados nos pontos 7 a 12 da douta sentença devem merecer resposta de não provados.

11- O arguido admitiu, efectivamente, ter reparado dois motores pneumáticos, propriedade do B..., cuja adjudicação havia sido efectuada pelo B... ao F..., o que fez em casa, nunca tendo solicitado ao serralheiro D... que efectuasse a reparação de motores pneumáticos.

12- A testemunha D..., única que referiu que o arguido lhe solicitou a reparação de motores pneumáticos, revelou um depoimento tendencioso, apresentando grande nervosismo e falta de à vontade na resposta às perguntas colocadas, não merecendo, o mesmo, credibilidade.

13- Idêntico tipo de discurso, demonstrou a testemunha E..., cujo relacionamento com o arguido se apresentava á data da denúncia dos factos, "num quadro de degradação": tendo, inclusive, feito, salvo devido respeito por opinião contrária, funções de "investigador" no âmbito do processo.

14-As testemunhas C... e G..., descreveram ao tribunal, os trâmites de adjudicação das reparações ao primeiro; como aplicava os seus preços e como pedia ao arguido a prestação de serviços e como efectuava o seu pagamento, referindo que, entre o mais, lhe adjudicou a prestação de outros serviços de que não apenas de motores pneumáticos e referente a bens que nada tinham a ver com o B..., tal como lhe comprou bens que nada tinham a ver com o B....

15-A prova testemunhal e documental, expressa e analisada nas motivações determina que os factos 7 a 10 e 12, mereçam resposta de não provados.

16-Não se verificam, quer os elementos objectivos, quer subjectivos do tipo de ilícito criminal pelo qual o arguido foi pronunciado

17-Ainda que assim não se entenda, sempre em obediência ao princípio in dubio pro reo, o arguido deveria ser absolvido do crime pelo qual estava pronunciado.

18-Devendo o arguido ser absolvido do crime de que vem pronunciado, deverá igualmente, ser absolvido do pedido de indemnização cível.

19- Ainda que assim não se entenda, sempre se dirá que não se mostram expressos factos, na douta sentença, que sustentem a condenação no pedido cível, não foram dados como provados (ou não provados) quaisquer factos constantes do pedido de indemnização, o mesmo se verificando quanto aos factos constantes da contestação do demandado.

20-Não foram, na douta sentença, analisados os pressupostos de que depende o arbitramento da indemnização, não bastando a mera referência a disposições legais, para que tais pressupostos se mostrem analisados, não se mostrando fundamentada a condenação do demandado.

21-A sentença, é nula, porque omitiu a menção a factos provados e não provados dos articulados respectivos (pedido de indemnização cível e contestação) e ainda porque omitiu a fundamentação da própria condenação.

22-Ainda que assim, não se entenda, sempre o montante a arbitrar a título de indemnização cível, deverá ser decidido em posterior liquidação de execução de sentença, dado que, nem todas as facturas emitidas pelo demandado ao B... se referem a prestação de serviço de motores pneumáticos e, além disso, ainda que assim concluísse, sempre o B... enriqueceria à custa do património do arguido que teria fornecido as peças para a sua reparação,

23-A douta sentença condenou o demandado no pagamento da custas cíveis, quando considerando o valor o pedido apresentado pelo demandante e a condenação do demandado, se verificou um decaimento de cerca de 990,00€, pelo que as custas, do mesmo, não poderiam ter sido aplicadas integralmente ao demandado.

24- O Tribunal recorrido violou princípios básicos do direito processual penal, como sejam princípio do caso julgado; o princípio ne bis idem, o princípio do in dubio pro reo, o princípio da livre apreciação da prova.

25- E violou os artigos os artigos 29°, n.º 5, da CRP; 120°, do C.P., 124°, n.º 2, 277°, 283º n.º 3, 308°, n.º 2, do C.P.P., 668°, do CPC.

26- E ao decidir como fez incorrecta interpretação da prova, violou e fez incorrectamente interpretação dos artigos 73°, 77°, 78°, 79°, 82°, 126°, 374°, n.º 2, 379°, 523°, 524° CPP, 13°, 16°, 122°, 129° e 377°, do CP, 483°, 562°, 566º, do CC e 447°, 661º, n. ° 2, do CPC.

27- O Tribunal, se tivesse aplicado criteriosamente os princípios de direito supra mencionados, os ensinamentos da experiência comum, fazendo correcta interpretação e aplicação daqueles normativos, não teria ficcionado a verificação e existência dos factos probandos, e teria proferido sentença optando quanto a estes por um "non liquet" e, ainda que ultimo recurso, fazendo uso do princípio "in dubio" teria absolvido o arguido.

28-Assim, pelas razões supra expostas, porque por um lado não se verificam os pressupostos processuais de que dependia a realização do julgamento, nomeadamente, considerandos os princípios do caso julgado; o princípio ne bis idem e a prescrição do procedimento criminal, deverá o processo ser "arquivado".

29- Ainda que assim não se entenda, sempre deve o arguido ser absolvido do crime de que vem pronunciado e do respectivo pedido de indemnização civil.

Termos em que deve o presente recurso ser julgado procedente, assim se fazendo JUSTIÇA.

Notificado, o Ministério Público respondeu ao recurso, concluindo o seguinte:

1° - Efectuado o julgamento foi proferida sentença que condenou o arguido A... como autor de um crime de participação económica em negócio previsto e punido no art. 377°, nº 1 do C.Penal, na pena de quatro meses de prisão, suspensa na sua execução por um ano.

2º - Da leitura dos presentes autos resulta de forma inequívoca inexistir razão ao recorrente, no que concerne à ofensa de caso julgado, bem como à violação do princípio ne bis in idem, nos termos por este enunciados, pelo que entendemos que nada se nos oferecer expor neste segmento.

3º - O crime de participação económica em negócio previsto no nº 1 do art. 377° C.Penal é punido com pena de prisão até cinco anos. Atenta a data da prática do factos (15.01.2003) e o preceituado no artigo 118°, alínea b), do C.Penal desde logo, e sem necessidade do recurso às causas de suspensão e de interrupção, resulta que não se mostra prescrito o respectivo procedimento criminal.

4º - Da simples leitura dos artigos 286° a 310°, do C.P.Penal, resulta que há muito se mostra excedido o prazo para qualquer forma de reacção ao despacho de pronúncia pelo que também neste particular nada de relevo se me oferece adiantar.

5º - Em nosso entender, o Mmo Juiz apreciou correctamente a prova produzida em audiência, retirando as conclusões lógicas que a matéria dada como provada impunha, fazendo apelo ao princípio consagrado no artigo 127° do CPP, sem olvidar que a audiência de julgamento obedece também ao princípio da imediação e encontra-se estreitamente ligado ao princípio da oralidade, sendo certo que a convicção do julgador nesta primeira instância, em nosso entender, não se mostra contrária às regras da experiência, da lógica e dos conhecimentos científicos.

6º - Por conseguinte, com o devido respeito, conclui-se que, atentos as declarações e os depoimentos produzidos em audiência e examinada a restante prova constante dos autos, nomeadamente a pericial e a documental, não resulta da sua análise crítica e conjugada, razão válida para que se altere o juízo valorativo expressamente formulado na decisão recorrida, não havendo nos autos - em nosso entender - provas que imponham decisão diversa da recorrida. E assim sendo, cremos que não se verifica incorrecção na apreciação da prova.

7º - Da simples leitura da fundamentação da decisão recorrida resulta que o tribunal não teve qualquer dúvida sobre os pontos de facto que deu como assentes. Na verdade, in casu, o tribunal fez uma ponderada reflexão e análise crítica quanto à prova recolhida, após o que obteve uma plena convicção, porque subtraída a qualquer dúvida razoável sobre a verificação dos factos imputados ao arguido e ora recorrente e que motivaram a sua condenação. Nestes termos, julgamos que não seria de aplicar o princípio "in dubio pro reo" no caso em análise.

8º - Atento o disposto no art. 377° do Código o Penal e tendo em atenção a prova produzida e a matéria de facto dada como provada, a conduta do recorrente integra a pratica do crime de participação económica em negócio.

9º - Assim sendo, em nosso entender, não pode proceder portanto o recurso, devendo fixar-se definitivamente a matéria de facto dada como assente na sentença ora recorrida, e assim subsumir esta ao crime em referência, bem como manter-se nos seus precisos termos as penas impostas ao arguido, sendo certo que não foram violados quaisquer princípios ou preceitos legais, nomeadamente os indicados pelos recorrentes, e não se verifica qualquer irregularidade, nulidade ou inconstitucionalidade.

Porém, decidindo, V. Exª farão a costumada JUSTIÇA

Igualmente notificado, o Hospital B... (...., E.P.E.) respondeu ao recurso, pugnando pela sua improcedência.

Admitido o recurso e remetidos os autos a esta Relação, a Exmª Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido de que o recurso não merece provimento.

Cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2 do Código de Processo Penal, não ocorreu resposta.

Efectuado o exame preliminar e corridos os vistos legais foi realizada conferência, cumprindo apreciar e decidir.


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            II. Fundamentos da decisão recorrida

A decisão recorrida contém os seguintes fundamentos:

1. De facto

A) Factos provados respeitantes à questão da culpabilidade                   
1) No período compreendido entre o ano de 1995 até 2007, A... trabalhou para o Hospital B..., em Leiria, primeiro como funcionário do quadro, até ao dia 31-03-2004, depois, e a partir desta data, como funcionário contratado.
2) Teve como funções a coordenação da área da manutenção dos equipamentos de electromedicina daquele hospital, funções essas que manteve até Setembro de 2006 e no âmbito das quais lhe cabia efectuar os pedidos de reparação de equipamentos hospitalares.
3) Bem como requisições de compras no Serviço de Instalações e Equipamentos daquele hospital.
4) Eram também efectuadas pelos representantes das respectivas marcas, designadamente pela Siemens.
5) Bem como por empresas externas contratadas pelo hospital, nomeadamente pela “ F...Serviços”.
6) No exercício dessas funções, A... efectuou por diversas vezes pedidos de reparações dos motores pneumáticos do bloco de ortopedia e de outros materiais à firma “ F...Serviços”, a qual no período compreendido entre os anos de 2000 a 2003 facturou ao aludido Hospital o montante total de 7 629,49 euros, recebendo deste o correspondente valor.
7) Porém tais reparações não foram efectuadas por “ F...Serviços”, mas pelo próprio B... através do serralheiro D... do serviço de instalações e equipamento e a mando do arguido, o qual recebeu daquela empresa o material a reparar.
8) E debitou à mesma, pessoalmente, o respectivo custo nos montantes de 149,64 euros, 1 119,25 euros, 1 097 euros e 1 700 euros sucessivamente, emitindo a favor dela e como se tivesse uma empresa em nome individual em cada um dos dias a indicar as seguintes facturas: a) nº 37, datada de 30-10-2001, respeitante a prestação de serviços técnicos no valor de 149,64 euros; b) nº 39, datada de 27-3-2002, respeitante a três sondas Rep. Sonicaid, no valor de 1 119,25 euros; c) nº 56, datada de 30-9-2002, respeitante a prestação de serviços técnicos no valor de 1 097 euros; d) nº 58, emitida entre 30-9-2002 e 15-1-2003, respeitante a prestação de serviços técnicos, no valor de 1 700 euros.
9) Recebeu dela os correspondentes valores.
10) A “ F...Serviços” fez depois acrescer a estes valores a sua margem de lucro, inserindo os mesmos em facturas de outros serviços prestados e material fornecido ao Hospital L..., facturas essas que apresentou ao Hospital B... de Leiria, cobrando o valor delas e cada uma das importâncias das facturas acima discriminadas correspondente ao valor dos serviços que prestou e que ele próprio pagou.
11) À primeira data acima assinalada, o Hospital já era empresa pública.
12) O arguido agiu sempre consciente, livre e deliberadamente, com o propósito de, em aproveitamento das suas funções, enriquecer, como enriqueceu, o seu património, lesando o Hospital B..., bem sabendo ser a sua conduta proibida por lei.

B) Factos provados respeitantes à questão da determinação da sanção
13) O arguido não tem antecedentes criminais.
14) O arguido aufere cerca de 3500 euros, vive com a esposa, professora, e que aufere mensalmente 1500 euros, e dois filhos de 14 e 16 anos de idade.

C) Factos Não Provados[1]              
1) Inexistem.

D) Motivação                    
1) Em relação à matéria de facto provada atinente à culpabilidade descrita nos pontos nº 1 a  nº 5 atentou-se ao depoimento de E..., responsável do serviço de instalações e equipamento do B..., e que produziu um depoimento integralmente credível, mostrando ter conhecimento dos procedimentos necessários ao arranjo de instrumentos e máquinas hospitalares, conhecendo o arguido desde 1995, e de forma espontânea e objectiva depôs. Este depoimento nesta parte teve aliás a corroboração completa do arguido A... quando se prestou a emitir declarações.
2) É certo que a defesa pretendeu em várias ocasiões assinalar o “mau relacionamento” da testemunha com o aqui arguido, mas o certo é que a testemunha mostrou-se isenta. Vejamos, é natural que haja uma menor densidade de relacionamento quando alguém é o responsável e tem o dever de comunicar situações em que o arguido estava envolvido conforme documenta o doc. de fls. 26 a 49. As relações laborais e dentro da hierarquia específica têm estes acidentes, contudo em nenhum momento se pode dizer muito simplisticamente que o facto de alguém exercer o seu dever o torna menos isento por causa do “mau relacionamento”. Aliás, no uso das suas competências, deve comunicar superiormente quando estranhou que “as facturas emitidas pelo mesmo ao B... representam uma grande percentagem da sua facturação” (ponto 2 e 3 do doc. de fls. 26).
3) Em relação aos negócios em si mesmos, isto é, à matéria de facto provada descrita nos pontos 6 a 12, o tribunal atentou ao depoimento de E..., o qual foi claro em dizer que ao arguido, incumbindo de verificar o equipamento, cabia o encargo de escolher entre a realização da reparação internamente (caso a reparação fosse simples, era feita nas instalações do hospital) ou externamente. Neste último segmento, impunha-se ao mesmo desenvolver contactos, pedir orçamentos a fornecedores e fabricantes, e obviamente neste último caso, havia facturas. Mais declarou que a firma F...fez inúmeros serviços, e ao que conseguiu apurar os constantes de acordo com a listagem por si feita a fls. 31 a 35. Confirmou o teor da informação que deu à Administração e constante a fls.. 26 e 27 bem como o motivo da origem do procedimento também aí referido. Crucial no procedimento negocial levado a cabo pelo arguido foi o depoimento de H..., gerente da firma F.... De forma espontânea e mostrando conhecimento do procedimento, tornando-se credível, veio dizer que a empresa não arranjou os motores pneumáticos, antes propunha a reparação ao Hospital entregando um orçamento, e autorizada a mesma por esta entidade, entregava os motores ao arguido que arranjava forma de os arranjar, recebendo ambos uma comissão que concretizou em 20% para a firma e 80% para o arguido. De igual forma, I..., filho da testemunha anterior, veio dizer que trabalhou no Hospital até 2002, e quanto aos motores pneumáticos veio dizer que a reparação era “complexa”, achando que o arguido poderia fazê-la. Esta testemunha não foi clara em concretizar o procedimento, mas a custo foi dizendo, corroborando a testemunha anterior, que ganhavam 15% a 20% e acrescentavam o valor do arguido A..., e que era a firma que orçava, mas era o arguido que fixava o valor, o preço. Confirmou os valores em causa. Esclareceu que foram 3 motores em que tal aconteceu e que não houve reparação. Confirmou as facturas emitidas e constantes no apenso II e numeradas conforme assinaladas. Destes dois depoimentos torna-se claro que havia um negócio paralelo para reparação de utensílios do hospital, com benefício para o arguido, sendo este o referente principal da dinâmica negocial, reparando os instrumentos por si ou por outrem. Ora, neste âmbito, revela-se outrossim crucial o depoimento claro e assim credível de D..., serralheiro do Hospital. De acordo com esta testemunha, o arguido entregava em mão motores pneumáticos nos anos 2002 ou 2003, conforme esclareceu ainda que de forma hesitante atento o tempo decorrido como declarou, mas não recebia valores por tal uma vez que tinha vencimento fixo. Foi categórico em dizer que o arguido entregava-lhe os motores e ele “cumpria”, e que era só o arguido que lhe entregava motores em mão, desconhecendo o assunto da facturação. Relativamente aos valores em causa, atendeu-se às facturas assinaladas e que estão em causa bem como ao teor do relatório pericial (de contabilidade, em anexo e elaborado por J...), nomeadamente ao assinalado a fls. 7 e 22 (conclusão 6.2) desse relatório pericial, e que ilustram que o arguido recebeu o benefício resultante dos valores facturados.
4) O arguido prestou-se a declarações, após ouvida a prova referida, assumindo que fez os serviços constantes das facturas, justificou que foi o preço que o motivou à escolha, e que ganhava com a prestação de serviços (“tirava uma parte”). Mais declarou que não sabia que o que fazia era ilícito. Neste âmbito, importa dizer que se estranha esta afirmação. Então o arguido não tem a consciência com a formação teórica que tem que sendo empresa pública, os procedimentos têm que ser transparentes de forma a poder haver crítica da actuação? Então como explica o arguido ter na sua conta bancária valores resultante de serviços concretizado em reparação de instrumentos de interesse público como sejam utensílios de um hospital? Ora, não é credível a afirmação que exterioriza à cerca da falta de conhecimento que afirmou.
5) Em relação à matéria de facto provada atinente à determinação da sanção, atentei ao certificado do registo criminal emitido a 12-5-2011, e constante a fls. 735, bem como às declarações do arguido, as quais prestadas de forma clara e séria convenceram, inexistindo alguma razão que as contrarie.

2. De Direito:

A)Da questão da culpabilidade:    
1. É sancionado com pena criminal o “funcionário que, com intenção de obter, para si ou para terceiro, participação económica ilícita, lesar em negócio jurídico os interesses patrimoniais que, no todo ou em parte, lhe cumpre, em razão da sua função, administrar, fiscalizar, defender ou realizar” conforme o texto do art. 377 nº 1 do C.P..
2. No caso concreto, o arguido agiu em razão da sua função, negociando no seu exclusivo interesse e de terceiro, usando a firma F...como proponente de negócios sendo que por via da escolha desta firma, ambas arrecadariam com os valores em causa. É irrelevante a noção de interesse público por parte do arguido quando o que está em causa é a sua apropriação de valores advindo desses mesmos negócios. Lesou o património público com a sua actuação à margem do procedimento orgânico do Hospital, tendo a vantagem patrimonial concretizada em parte da quantia cobrada. Realizou pois o crime em causa. 
3. Importa agora verificar “se se verificaram os pressupostos de que depende o arbitramento da indemnização civil” (art. 368 nº 2 f) e nº 3 do Código de Processo Penal, adiante C.P.P.). Atento o art. 129 do C.P., o qual remete para o instituto da responsabilidade civil extracontratual (art. 483 do Código Civil, adiante C.C.), importa referir que o dano a ressarcir pelo demandado é o dano patrimonial concretizado no valor assinalado (arts. 483, 562 e 566 do C.C.), a que acresce juros de mora à taxa legal nos termos do art. 805 do C.C. contados desde 9-6-2011 (cfr. fls. 778).

B)Da questão da determinação da sanção:           
1. Atento o art. 71 do Código Penal, regra que nos dá o critério da medida da pena, dizer que o grau de ilicitude é reduzido em face dos valores em causa e assinalados e tendo como dimensão comparativa o património público, o dolo directo, o modo de execução do crime em causa é artesanal, isto é, sem qualquer sofisticação, atenua o facto de a conduta ter sido realizada há mais de sete anos, bem como a inexistência de censura pública por qualquer ilícito criminal nomeadamente patrimonial. Assim, entende-se como adequada a pena de 4 meses de prisão.
2. Importa agora saber se é possível a substituição desta pena.
3. Categoricamente responde-se pela positiva.
4. Atento o facto de estar integrado positivamente na comunidade envolvente, pois trabalha, e mostra-se integrado familiarmente, entende-se adequada e justa a suspensão da execução da pena de prisão por um ano e nos termos do art. 50 nº 1 e nº 5 do C.P..
C)Outras consequências do facto:
1. O arguido responde tributariamente, cfr. art. 513 do C.P.P.. Atenta a complexidade do processo, fixo a taxa de justiça em quatro unidades de conta (art. 8 nº 5 do Regulamento das Custas Processuais), e nos encargos devidos (art. 16 e 17 do RCP). O demandado suporta as custas civis (art. 446 do C.P.C.).


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            III. Apreciação do Recurso

A documentação em acta das declarações e depoimentos prestados oralmente na audiência de julgamento determina que este Tribunal, em princípio, conheça de facto e de direito (cfr. artigos 363° e 428º nº 1 do Código de Processo Penal).

Mas o concreto objecto do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da correspondente motivação, sem prejuízo das questões do conhecimento oficioso. E vistas essas conclusões as questões a apreciar são as seguintes e comuns a todos os recorrentes:

- Se se verifica a excepção de caso julgado e ofensa do princípio ne bis in idem;

- Se o procedimento criminal se encontra prescrito;

- Se ocorre nulidade do despacho de pronúncia;

- Se a sentença recorrida é nula por não se pronunciar sobre os factos alegados no pedido de indemnização civil e contestação deste e por omitir fundamentação bastante no que concerne ao pedido cível;

- Se ocorre erro de julgamento da matéria de facto com violação do princípio in dubio pro reo, devendo esta ser alterada e o arguido absolvido criminal e civilmente.

- Se o a liquidação do valor indemnizatório deve ser relegado para execução de sentença;

- Se a responsabilidade por custas cíveis deve ser alterada em função do decaimento verificado.

Apreciando:

Em primeiro lugar alega o recorrente que se verificam as excepções de caso julgado e ne bis in idem porque os factos imputados ao arguido neste processo já tinham sido objecto de arquivamento no processo de inquérito 516/08.0TALRA com fundamento na extinção do procedimento criminal.

No referido processo de inquérito foram participados factos ocorridos em 30.6.2003 referentes a factura nº 42 datada de 25.11.2002 que se qualificaram como integradores de crime de burla e de infidelidade.

Desde logo se verifica que nestes autos não estão em causa esses específicos factos mas outros ocorridos em diferentes datas e respeitantes a facturas diversas.

Sem necessidade de discursar sobre se as regras do caso julgado seriam aplicáveis a despacho proferido em inquérito declarando extinto por prescrição o procedimento criminal, certo é que o caso julgado se forma nos precisos limite e termos em que julga como se preceitua no artigo 673º do Código de Processo Civil (ex vi do artigo 4º do Código de Processo Penal). O que significa que, havendo caso julgado, ele apenas se formou em relação à prescrição do procedimento criminal por crimes de burla e infidelidade e não em relação a outros crimes, como o dos presentes autos, se porventura se pudesse entender que havia coincidência factual (apenas por via de eventual situação de crime continuado – ainda assim nada impediria o conhecimento de outros factos integrantes da continuação – cfr. a jurisprudência citada pelo Exmº Procurador-Geral Adjunto no seu douto parecer, nomeadamente o Ac. do STJ de 24.9.1992, proferido no proc. nº 042895 publicado em www.dsi.pt).

Por outro lado, o invocado princípio constitucional ne bis in idem (artigo 29º, nº 5 da CRP) visa impedir o duplo julgamento penal pelos mesmos factos não sendo em qualquer caso transponível a sua aplicação para situações em que não ocorreu julgamento, no caso nem sequer ocorreu investigação porque o procedimento criminal foi declarado extinto.

Em suma, não se verificam as referidas excepções de caso julgado e de "duplo julgamento" – violação do princípio ne bis in idem.

Invoca o recorrente que o procedimento criminal exercido contra o arguido se encontra prescrito; que a queixa foi apresentada com o procedimento criminal já extinto por prescrição.

Vejamos.

A queixa foi apresentada em 9 de Fevereiro de 2007.

Estão em causa factos situados entre 2001 e 2003, integradores da prática de um crime de participação económica em negócio p. e p. pelo artigo 377º, nº 1 do Código Penal, punível com pena de prisão até cinco anos.

A tal crime corresponde, nos termos do artigo 118º, nº 1, alínea b) do Código Penal, o prazo de prescrição de 10 anos.

Preceitua o artigo 119º nº 1 do Código Penal que o prazo de prescrição corre desde o dia em que o facto se tiver consumado e o nº 2, alínea b) que o prazo de prescrição apenas corre, nos crimes continuados, desde o dia da prática do último acto.

Tendo o último acto ocorrido, no caso, em 2003, e contando-se a partir dessa data o prazo de prescrição, sem a ocorrência de causas de suspensão e interrupção, o prazo de prescrição completar-se-ia no corrente ano de 2013, sendo manifesto que em 2007, quando foi apresentada queixa, não se encontrava prescrito.

Entretanto, ocorreram causas de interrupção e suspensão do prazo de prescrição.

Assim, em 23.1.2010 o arguido foi notificado do despacho de acusação o que, nos termos do artigo 120º, nº 1, b) do Código Penal, teve por efeito suspender o prazo de prescrição pelo período de três anos.

Simultaneamente tal evento foi o último ocorrido com efeito interruptivo do prazo de prescrição nos termos do artigo 121º, nº 1, alínea b) do mesmo diploma, o que significa que a partir daí se conta novo prazo de prescrição (nº 2 do mesmo artigo) sem embargo da regra correctiva constante do nº 3, preceituando que a prescrição terá sempre lugar quando desde o seu início e ressalvado o período de suspensão, tiver decorrido o prazo normal acrescido de metade.

Do exposto resulta que a prescrição apenas ocorre passados (10+5+3) 18 anos sobre a data do último acto de execução do crime (2021).

Não se encontra prescrito o procedimento criminal exercido contra o arguido.

Alega o recorrente que a decisão de pronúncia é nula porque não contém as menções do artigo 283º, nº 3 do Código de Processo Penal, sendo vaga, imprecisa, não descrevendo de forma circunstanciada os factos que são essenciais para preencher o tipo de crime, referindo que em determinadas facturas, que não identifica, foi colocada uma margem de lucro que não identifica, não contendo uma descrição circunstanciada dos factos.

Se a pronúncia reproduz a acusação deduzida e está tematicamente limitada aos factos da acusação (cfr. artigos 303º e 309º, nº 1 do Código de Processo Penal) a questão que pertinentemente se poderá colocar é se a acusação é nula, contaminando do mesmo vício a subsequente pronúncia (cfr. artigo 122º do Código de Processo Penal).

Mas previamente deverá perguntar-se se a nulidade da acusação segue o regime do artigo do artigo 120º (está dependente de arguição) e se por consequência é ainda passível de conhecimento neste momento.

O artigo 283º, nº 3, alínea b) do Código de Processo Penal estipula que "a acusação contém, sob pena de nulidade, a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou uma medida de segurança (…)".

 Esta nulidade, na falta de disposição legal em sentido contrário, porque não consta do catálogo das insanáveis a que se refere o artigo 119º do Código de Processo Penal, seria, numa primeira abordagem, uma nulidade dependente de arguição, ficando sujeita ao regime legal previsto no artigo 120º a 122.º do mesmo diploma.

Mas estatui o artigo 311º, nº 2, alínea a) do mesmo Código, que a acusação é rejeitada se for considerada manifestamente infundada, concretizando o n.º 3 do mesmo preceito, na parte que releva para o caso concreto, que a acusação considera-se manifestamente infundada quando não contenha a narração dos factos.

Ou seja, em momento em que a nulidade da acusação poderia encontrar-se sanada por não ter sido arguida, segundo o regime dos artigos 120º a 122º, pode o juiz rejeitar a acusação se não contiver a narração dos factos; afinal conhecer oficiosamente da nulidade da acusação prevista no artigo 283º, nº 3 que não se sanou pelo facto de não ter sido arguida.

A propósito ensina Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 2ª ed., p. 207 a 208, face ao aditamento do nº 3 do artigo 311º do CPP operado pela Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto, os vícios estruturais da acusação passaram a sobrepor-se às nulidades previstas no art. 283.º, e converteram-se em matéria sujeita ao conhecimento oficioso do Tribunal, não estando, portanto, dependente de arguição por parte dos sujeitos processuais. Sendo de conhecimento oficioso, pode ser conhecida a todo o tempo, isto é em qualquer fase do procedimento, com a ressalva enquanto a decisão final não transitar em julgado.

Dever-se-á ter presente que as nulidades a que a lei processual penal denomina de insanáveis podem ser declaradas em qualquer fase do procedimento (artigo 119º) mas já não podem ser declaradas após a formação do caso julgado da decisão final, que neste caso actua como meio de sanação. O trânsito em julgado da sentença tem a virtualidade de sanar toda e qualquer nulidade em nome da certeza e segurança do direito.

Embora o artigo 119º do Código de Processo Penal designe de insanáveis as nulidades que contempla, na realidade todas elas são sanáveis através da repetição dos actos viciados.

O que se deve questionar é se também a nulidade da acusação é sanável através da repetição dos actos viciados, a repetição da decisão acusatória e trâmites posteriores do processo, devendo ou não estabelecer-se paralelo com as nulidades expressamente designadas de insanáveis.

Deve ter-se presente que o nosso processo penal depois de uma fase de investigação que culmina com a dedução de acusação, tem estrutura acusatória (constitucionalmente reconhecida no artigo 32º, nº 5 da CRP) tendo a acusação a função de definir e fixar o objecto do processo. Como escreve Germano Marques da Silva na obra já citada a fls. 62, uma consequência da estrutura acusatória do processo é a independência do Ministério Público em relação ao juiz na formulação da acusação. Da consagração da estrutura acusatória resulta inadmissível que o juiz possa ordenar ao Ministério Público os termos em que deve formular acusação. Por maioria de razão não pode o juiz suprir os vícios de que a acusação padeça.

E se assim é a nulidade da acusação será insanável na verdadeira acepção da palavra.

Se é certo que não existe disposição processual penal que o refira expressamente, verificamos que o conceito e dimensão da estrutura acusatória do processo penal vem sendo densificado no sentido mencionado de a acusação não poder ser repetida quando padeça de nulidade.

Senão vejamos o disposto no artigo 287º, nº 1, alínea b), nº 2 e nº 3 do Código de Processo Penal em que o requerimento de abertura da instrução por parte do assistente consubstancia uma acusação. Tal requerimento, caso não obedeça ao requisitos da acusação do artigo 283º, nº 3, alíneas b) e c), deve ser rejeitado e não é susceptível de ser repetido ou de convite à correcção com a evidente consequência da impossibilidade de exercício da acção penal e do arquivamento do processo (cfr. Ac. do TC nº 358/2004 e o Ac. do STJ de fixação de jurisprudência nº 7/2005).

E vejamos o caso paralelo do artigo 359º do Código de Processo Penal referente a alteração substancial dos factos na fase de julgamento que apenas permite que a comunicação da alteração substancial dos factos ao Ministério Público tenha o valor de denúncia para que ele proceda pelos novos factos, se estes forem autonomizáveis em relação ao objecto do processo. Se não o forem a consequência será a absolvição (cf. Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal em anotação ao referido preceito).

Em suma, a nulidade da acusação não é susceptível de ser sanada, a ocorrer e a ser conhecida antes do trânsito em julgado da decisão final, produz a invalidade dessa peça processual e de tudo o que foi processado posteriormente, devendo conduzir ao arquivamento do processo por inexistência do respectivo objecto.

Mas será a acusação deduzida nestes autos nula como alega o recorrente?

Da acusação, da pronúncia e da sentença proferida, cuja redacção é idêntica, ao contrário do que o recorrente alega, constam todos os factos necessários e indispensáveis para que se considere preenchido o tipo de crime imputado.

Sendo certo que podia ser mais concretizada na indicação das datas dos factos e identificação das máquinas que foram objecto de reparação nas circunstâncias descritas, vêm identificadas as datas em que foram facturadas as diversas reparações de máquinas, os valores que de cada uma das vezes foram facturados pelo arguido e cobrados a F...-Serviços, pretensa empresa reparadora, bem como que quem procedeu às reparações foi o próprio hospital através de um seu trabalhador. Ou seja, que o hospital pagou reparações que foram efectuadas pelos seus meios humanos próprios, ao arguido por interposta empresa.

E a falta de concretização notada apenas viciaria a acusação se não desse a conhecer ao arguido a factualidade em causa de modo a que este pudesse exercer o seu direito de defesa. Ora se a especificação das reparações realizadas se encontra efectuada por referência a facturas que o próprio emitiu não se vislumbra que dificuldade poderia sentir em identificar quais seriam as reparações em causa.

E a acusação é bem clara no sentido de que o prejuízo corresponde pelo menos ao valor que o arguido cobrou pelas reparações que foi o próprio hospital que efectuou e que pagou como se fossem efectuadas por terceiro.

Não se reconhece por isso a pretendida nulidade da acusação/pronúncia.

  Alega o arguido que a sentença proferida é nula porque omitiu a menção a factos provados e não provados do pedido de indemnização e respectiva contestação e porque omitiu a fundamentação da própria condenação no pedido.

Não específica o recorrente que factos não foram apreciados pelo Tribunal recorrido.

Compulsada a sentença e os referidos articulados, verificamos que do pedido cível o tribunal se pronunciou sobre todos os factos relevantes para a decisão da causa que são, aliás, os coincidentes com os que se encontravam alegados na pronúncia, apenas não se tendo pronunciado sobre os factos alegados nos artigos 28º e segs por razão que explana em nota de rodapé e que se traduz na sua irrelevância para a decisão da causa, pois que dizem respeito a eventual crime de furto que não é objecto do processo penal.

No que respeita à contestação e no âmbito da resposta a factos com relevo para a decisão da causa, ela tem apenas carácter negatório dos factos alegados, não cabendo elencar nos factos não provados negação de factos provados.

E deve ainda referir-se que nos termos do artigo 368º, nº 2 do Código de Processo Penal, o tribunal apenas está obrigado a pronunciar-se sobre factos relevantes para a boa decisão da causa, logo a sentença apenas padecerá de nulidade se não se pronunciar sobre esses factos nos termos dos artigos 374º, nº 2 e 379º, nº 1, alínea a) do mesmo diploma.

É certo que no que respeita à fundamentação da condenação cível o tribunal recorrido se limita a dizer "importa referir que o dano a ressarcir pelo demandado é o dano patrimonial concretizado no valor assinalado (arts. 483º, 562 e 566 do C.C.) a que acrescem juros de mora. Mas a questão em face da matéria de facto provada e tão simples quanto isto. O arguido de modo ilícito e sem causa recebeu a quantia de 4.065,89 euros e a obrigação de indemnizar nos termos das disposições legais citadas será desse valor. Sendo embora o mais sucinta que é possível, não deixa a sentença recorrida de fundamentar a condenação.

O recorrente impugna a decisão proferida sobre matéria de facto, considerando que foram mal julgados os factos constantes dos pontos 7 a 17 dos factos provados da sentença recorrida que no seu entender devem ser julgados como não provados com a sua consequente absolvição.

No seu entender impõem decisão diversa da recorrida o depoimento da testemunha D..., trabalhador do B..., única que referiu que o arguido lhe solicitou a reparação de motores pneumáticos cujo depoimento se revelou tendencioso, apresentado grande nervosismo e falta de à vontade nas respostas, não merecendo credibilidade, identicamente à testemunha E... cujo relacionamento com o arguido se apresentava à data dos factos num quadro de degradação e exerceu funções de investigador.

As testemunhas C... e G... descreveram ao tribunal, os trâmites de adjudicação das reparações ao primeiro; como aplicava os seus preços e como pedia ao arguido a prestação de serviços e como efectuava o seu pagamento, referindo que, entre o mais, lhe adjudicou a prestação de outros serviços de que não apenas de motores pneumáticos e referente a bens que nada tinham a ver com o B..., tal como lhe comprou bens que nada tinham a ver com o B....

O passo decisivo para aferir da razoabilidade da convicção a que chegou o Tribunal recorrido é a motivação que este expressou em confronto com o teor da prova produzida, porque, como é sabido, não se trata de realizar em recurso um novo julgamento dos factos, mas de encontrar eventuais erros por ocorrer desconformidade entre a motivação expressa e a prova produzida ou interpretação dessa prova que contraria as regras da experiência.

Ora, começando pelo depoimento das duas últimas testemunhas referidas pelo recorrente, C... e G..., verificamos que a primeira, sendo gerente de F..., foi bem clara no sentido de afirmar que houve situações, as dos autos, em que a empresa não procedeu à reparação dos motores pneumáticos, tendo proposto a reparação ao Hospital com orçamento e, quando a reparação lhe foi adjudicada, entregou os motores ao arguido para que este os arranjasse, mais esclarecendo que embora não procedesse a qualquer trabalho recebia comissão. A segunda testemunha, filho da anterior, embora não tendo deposto com tanta precisão, acabou por confirmar o depoimento anterior e ainda que o não fizesse isso não invalidaria, o que, sem rebuço, disso a anterior.

O depoimento de C... oferece um fio condutor para a análise da demais prova oral que ganha assim todo o sentido, mesmo quando se lhe pudesse, isoladamente opor alguma menor congruência.

Assim, o depoimento de D..., serralheiro do hospital, foi claro no sentido de que o arguido lhe entregou no período de tempo em causa motores para que procedesse à sua reparação, apenas tendo revelado alguma hesitação no que respeita a datas, ademais o seu depoimento encaixa-se no esquema que foi revelado pela testemunha anterior que apenas não soube esclarecer a quem o arguido solicitava a reparação.

O depoimento da testemunha E... deu sobretudo o recorte das funções que eram exercidas pelo arguido no Hospital e das suspeitas que se adensaram com a sua investigação. Mas não está aqui em causa a investigação criminal propriamente dita e a testemunha depôs sobre factos do seu conhecimento pessoal, nada obstando a que fosse tido em consideração.

A documentação junta aos autos fornece o restante quadro em confronto com a prova oral e tudo isto com inteira correspondência com a motivação da convicção exposta pelo Tribunal a quo. 

Parece-nos, pois, claro que a motivação exposta pelo Tribunal recorrido obedece ao rigor necessário e a uma lógica que se encontra firmemente sustentada nas regras da experiência e, portanto, a convicção alcançada, alicerçada numa certeza de que os factos se passaram tal como relatados, não pode ser posta em crise por este Tribunal de recurso, posto que não revela qualquer erro de julgamento por avaliação irrazoável ou arbitrária da prova, antes tem nela manifesta correspondência.

E se o Tribunal recorrido tinha fundamento para a convicção positiva a que chegou não se pode concluir pela existência de violação do princípio in dubio pro reo que suporia a inexistência de prova bastante para a convicção alcançada; a existência de dúvida fundada sobre os factos resolvida contra o arguido.

Em conclusão, o teor da prova produzida consente a convicção que o Tribunal recorrido formulou e fundamentou, não se reconhecendo qualquer violação de princípios probatórios, quer confrontando o teor da prova produzida, quer exclusivamente a motivação expressa, sendo certo que a sentença recorrida não padece de qualquer dos vícios a que alude o artigo 410º, nº 2 do Código de Processo Penal, não alegados, mas do conhecimento oficioso. É de manter a decisão de facto proferida e a consequentemente condenação do recorrente porque verificados os pressupostos da sua responsabilidade penal e civil (sem embargo neste último caso de eventual alteração ditada pelo recurso da parte cível).

Finalmente o recorrente alega que o montante a arbitrar a título de indemnização cível, deverá ser decidido em posterior liquidação de execução de sentença, dado que, nem todas as facturas emitidas pelo demandado ao B... se referem a prestação de serviço de motores pneumáticos e, além disso, ainda que assim concluísse, sempre o B... enriqueceria à custa do património do arguido que teria fornecido as peças para a sua reparação. A douta sentença condenou o demandado no pagamento da custas cíveis, quando considerando o valor o pedido apresentado pelo demandante e a condenação do demandado, se verificou um decaimento de cerca de 990,00€, pelo que as custas, do mesmo, não poderiam ter sido aplicadas integralmente ao demandado.

Ao contrário do que o recorrente alega, o que resulta da matéria de facto provada é que as facturas em questão se referem todas a reparações realizadas nas condições descritas, não apenas motores pneumáticos mas também sondas, como expressamente se refere numa dessas facturas. Mas no ponto 6 dos factos provados refere-se que as reparações não eram exclusivamente de motores pneumáticos mas também de outros materiais.

Por outro lado, a reparação de máquinas e outros materiais não supõe necessariamente a incorporação de peças novas que hajam sido adquiridas pelo arguido e nenhuma prova foi oferecida nesse sentido.

O que se encontra provado é que o hospital pagou a quantia de 4.065,89 euros por reparações que o próprio efectuou e, sendo assim, nos termos dos artigos 562º, 564º e 566º, nº 2 do Código Civil é esse o valor do prejuízo a considerar.

Num ponto assiste razão ao recorrente, tendo ocorrido decaimento parcial no pedido cível, as custas serão da responsabilidade de ambas as partes na proporção do respectivo decaimento, em conformidade com o disposto no artigo 446º do Código de Processo Penal, aplicável por força do artigo 523º do Código de Processo Penal.


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IV. Decisão

Nestes termos acordam em negar provimento ao recurso penal interposto pelo arguido e em conceder provimento parcial ao recurso em matéria cível, alterando, por conseguinte, o respectivo dispositivo quanto a custas cíveis que se determina sejam da responsabilidade de ambas as partes na proporção do respectivo decaimento.

Pelo seu decaimento em recurso vai o recorrente condenados em custas, fixando-se a taxa de justiça devida em cinco UC (cfr. artigo 513º, nº 1 do Código de Processo Penal).


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                                  (Maria Pilar Pereira de Oliveira - Relatora)
                              (José Eduardo Fernandes Martins)


[1] O alegado no pedido de indemnização civil quanto ao furto extravasa a adesão necessária do pedido de indemnização ao crime de que o arguido se mostra acusado, sendo irrelevante (art. 28 e segs.).