Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2274/17.9T8CBR-C.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: EMÍDIO SANTOS
Descritores: INSOLVÊNCIA
QUALIFICAÇÃO DA INSOLVÊNCIA
INSOLVÊNCIA CULPOSA
DISPOSIÇÃO DOS BENS DO DEVEDOR
Data do Acordão: 03/17/2020
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA - COIMBRA - JUÍZO COMÉRCIO - JUIZ 1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS 185, 186 Nº2 D) CIRE
Sumário: I - A alínea d) do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE compreende a transmissão da propriedade de um bem, da qual resulte proveito apenas para os administradores de facto ou para um terceiro.
II – A resolução da transmissão não prejudica a aplicação de tal alínea.
Decisão Texto Integral:

Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

No processo de insolvência da sociedade S (…) Lda, o administrador da insolvência propôs a qualificação da insolvência como culposa e que fossem afectados por tal qualificação A (…) e L (…).

O Meritíssimo juiz do tribunal a quo declarou aberto o incidente da qualificação da insolvência.

O Ministério Público pronunciou-se no sentido de a insolvência da sociedade ser qualificada como culposa e de ser afectado por essa qualificação A (…) e L (…).

A (…) e L (…)opuseram-se à qualificação da insolvência como culposa, sustentando a qualificação dela como fortuita.

O processo prosseguiu os seus termos e após a audiência final foi proferida sentença que decidiu:

a) Qualificar como culposa a insolvência de S (…) Lda, nos termos das alíneas a), d) e f) do nº 2 do art.º 186º, do CIRE;

b) Considerar afectados pela qualificação da insolvência como culposa os requeridos, A (…) e L (…);

c) Declarar os requeridos, A (…) e L (…), inibidos para administrar patrimónios de terceiros e para o exercício do comércio durante um período de 2 (dois) anos, bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão da sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa, nos termos do disposto no n.º 2, alínea c) do CIRE;

d) Determinar a perda de quaisquer créditos sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente que sejam detidos pelos referidos requeridos, A (…) e L (…), pessoas afectadas pela qualificação;

e) Condenar os Requeridos, A (…) e L (…), a indemnizar solidariamente os credores da sociedade devedora da circunstância de terem sido efectuadas vendas do activo-viaturas-, e na medida que tal importou num agravamento da sua condição de Insolvente e um prejuízo para os credores para além do valor já recuperado e que consubstancia o valor da liquidação e o valor da venda da viatura matrícula  (...), marca Peugeot no valor de €2.832,96 (pelo menos este sempre será devido), até porque apenas nestas medidas a sua actuação agravou a situação destes credores, a quantificar em liquidação de sentença, nos termos da parte final do n.º 4 do art.º 189.º do CIRE.

Os requeridos não se conformaram com a sentença e interpuseram o presente recurso de apelação, pedindo a revogação e a substituição dela por decisão que declarasse a insolvência como fortuita, com as legais consequências.

 Os fundamentos do recurso expostos nas conclusões consistiram em resumo no seguinte:

1. Na alegação de que o tribunal a quo errou ao ter dado como provado quea insolvente através dos gerentes alienou/vendeu parte ou a totalidade conhecida do património da sociedade insolvente, sem que tenha pago aos seus credores” e que “a transmissão das quotas da sociedade insolvente efectuada no dia 29 de Dezembro de 2016, por parte dos sócios da sociedade, A (…) e L (…), a M (…) a qual ficou como gerente única, mais não foi do que uma tentativa de se subtraírem às suas obrigações para com os credores”  e daí ter tirado as consequências;

2. Na alegação de que o tribunal a quo errou na interpretação do disposto nos artigos 185.º e 186.º, ambos do CIRE.

O Ministério Público respondeu ao recurso.

Na resposta começou por alegar que o recurso fora interposto fora de prazo, devendo, em consequência, ser indeferido o requerimento de interposição do recurso.

Ainda que assim se não entendesse, o recurso devia ser julgado improcedente.


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Síntese questões suscitadas pelo recurso:

1. Saber se o tribunal a quo errou ao ter dado como provados os factos indicados pelos recorrentes;

2. Saber se o tribunal errou na interpretação do disposto nos artigos 185.º e 186.º, ambos do CIRE.

Por sua vez, a resposta ao recurso suscita a questão de saber se o recurso foi interposto fora do prazo legal.

Esta questão foi resolvida no despacho inicial, no sentido de o recurso ter sido interposto dentro do prazo legal.


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Considerando que a resolução das questões de facto tem precedência lógica sobre a resolução das questões de direito, comecemos por responder à questão de saber se o tribunal errou ao dar como provados os factos indicados pelos recorrentes.

Em relação à primeira alegação de facto, as recorrentes sustentam que resulta da prova produzida, nomeadamente da prova documental, testemunhal e especialmente das declarações deles, recorrentes, que o produto da venda em causa serviu para pagar a fornecedores da insolvente.

Em relação à segunda alegação, os recorrentes dizem que nenhuma prova foi produzida que permitisse concluir que a transmissão das quotas da sociedade S (…) mais não foi do que uma tentativa de eles, cedentes, se subtraírem às suas obrigações para com os credores. Sobre esta questão dizem que o depoimento da testemunha M (…) não podia ser valorado, dado que não sabia nada sobre o negócio nem conhecia a sociedade insolvente ou os seus gerentes.

Apreciação do tribunal:

Comecemos pela questão de saber se o tribunal errou na decisão de julgar provado que “a insolvente através dos gerentes alienou/vendeu parte ou a totalidade conhecida do património da sociedade insolvente, sem que tenha pago aos seus credores”.

Como é bom de ver, para este tribunal responder afirmativamente a esta questão seria necessário, antes de mais, que na realidade, o tribunal a quo tivesse julgado provado a mencionada realidade, o que não sucedeu. A afirmação consta da sentença, mas na parte em que ela apreciou a questão de saber se os requeridos tinham incorrido na situação prevista na alínea f) do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE, representando a conclusão do tribunal a propósito das alienações de duas viaturas da sociedade insolvente, uma de matrícula  (...) e outra de matrícula  (...).

Na realidade o que os recorrentes pretendem é que este tribunal julgue provado que a transmissão das viaturas serviu exclusivamente para pagar aos credores.

A pretensão está, no entanto, votada ao fracasso. Com efeito, embora resulte do depoimento do requerido, ora recorrente, que vendeu as viaturas por dez mil euros e que pagou a alguns fornecedores, este depoimento, que está sujeito à livre apreciação do tribunal, suscita-nos sérias reservas pelo seguinte.

Se, como afirmou o ora recorrente, as viaturas tivessem sido vendidas pelo preço indicado e se o produto da venda tivesse sido usado para pagar aos credores da insolvente, o que seria normal, à luz das regras da experiência comum, visto que a vendedora era uma sociedade e as sociedades estão obrigadas a emitir factura por cada transmissão de bens ou prestação de serviços, independentemente da qualidade do adquirente dos bens ou destinatário dos serviços, ainda que estes não a solicitem, bem como pelos pagamentos que lhes sejam efectuados antes da data da transmissão de bens ou da prestação de serviços, é que houvesse registo documental da venda, do pagamento do preço pelos adquirentes e dos pagamentos aos credores. Sucede que não há o mais leve registo destes factos. Aliás não foi disponibilizado qualquer elemento da contabilidade. Além de não haver, o ora recorrente, não conseguiu sequer identificar um único fornecedor que tenha sido pago com o alegado produto da venda dos veículos.

Nestas circunstâncias não nos merece credibilidade a afirmação do requerido de que vendeu os dois veículos pelo preço de 10 mil euros e que este dinheiro foi usado no pagamento aos credores.

Pelo exposto, julga-se improcedente a pretensão do recorrente no sentido de este tribunal julgar provado que o produto da venda das viaturas serviu para pagar a fornecedores da insolvente S (…), Lda.

Quanto à alegação de que “a cedência das quotas na sociedade devedora efectuada pelos seus sócios fundadores, A (…) e L (…), em 6.01.2017 [nota: em 6 de Janeiro de 2017 deu-se o registo da cedência das quotas; esta teve lugar em 29-12-2016, como o prova plenamente a escritura de cessão de quotas junta ao processo] mais não foi do que um tentativa de se subtraírem às suas obrigações para com os credores” ela figura nos factos provados sob o número 15.

Sucede que o tribunal a quo não extraiu qualquer consequência jurídica deste facto, mais concretamente da decisão de julgar que a cedência de quotas mais não foi do que uma tentativa de os cedentes, ora recorrentes, se subtraírem às suas obrigações para com os credores. Com efeito, não se serviu dele para qualificar como culposa a insolvência nem sequer para declarar os ora recorrentes afectados pela qualificação da insolvência. Afirmou mesmo que tal facto não era necessário para tal identificação, visto que os factos que serviram de base à qualificação da insolvência ao abrigo das alíneas a), d) e f) do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE, foram praticados no período temporal anterior à aludida transmissão em que os gerentes de direito de facto eram os requeridos, A (…) e L (…).

Pode, assim, dizer-se que tal facto não teve qualquer relevo para a decisão impugnada. Ora apesar de resultar da primeira parte do n.º 2 do artigo 608.º do CPC – aplicável ao acórdão proferido em sede de apelação por remissão do n.º 2 do artigo 663.º do CPC – que o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras, isso não quer significar que o juiz deva resolver questões de facto irrelevantes para a decisão de direito, pois se o fizesse estaria a praticar um acto inútil e está vedado ao tribunal praticar actos inúteis (artigo 130.º do CPC aplicável ao presente incidente por remissão do n.º 1 do artigo 17.º do CIRE). De resto, sendo a decisão relativa à matéria de facto instrumental em relação à decisão de direito, só tem razão de ser a pronúncia sobre questões de facto desde que tal seja susceptível de influenciar a decisão de direito.

Pelo exposto não se conhece da questão de saber se o tribunal errou ao julgar provado que a cedência das quotas mais não foi do que uma tentativa dos cedentes de se subtraírem às suas obrigações para com os credores.


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Julgada a impugnação da decisão relativa à matéria de facto consideram-se provados os seguintes factos

1. Em 22 de Março de 2017 foi instaurado, por O (…) S.A., o processo de insolvência a que os presentes são apensos (conforme resulta da petição inicial apresentada nos autos principais).

2. Em 19 de Junho de 2017 foi exarada sentença declarando a insolvência de S (…) Lda, a qual transitou em julgado.

3. A devedora exercia com actividade principal a exploração de posto de combustível, CAE (…) , e como actividade secundária a exploração de café e restaurante.

4. As instalações da sede da insolvente onde funcionava o café e o restaurante “(…)” estão a ser explorados pela sociedade I (…), Lda, cujo único sócio é A (…) filho dos insolventes.

5. Em 06.01.2017 foi registada a transmissão das quotas da sociedade insolvente efectuada no dia 29 de Dezembro de 2016, por parte dos sócios da sociedade, A (…) e L (…), a M (…), a qual ficou como gerente única.

6. Resulta da sentença de 19.06.2017 proferida nos autos principais, que: “3º Fixo a residência dos gerentes da insolvente, A (…) e L (…), na rua (…), (…).

7. O Administrador Judicial não teve acesso às declarações fiscais de rendimentos dos três últimos anos, nem a qualquer elemento da contabilidade da insolvente.

8. Os gerentes identificados na sentença não forneceram qualquer elemento da contabilidade da devedora.

9. De acordo com a certidão da Conservatória de Registo Automóvel junta a fls. 31 do Apenso D, encontra-se registada, em 29/12/2010, a transmissão da viatura de matrícula  (...), marca Peugeot por parte da sociedade insolvente a favor da sociedade I (…), Lda, sociedade da qual é único sócio é A (…), filho dos insolventes tendo tal viatura sido adquirida, em 20-06-2017, em leilão, à B (…)S.A. por C (…) por €2.832,96.

10. A devedora transmitiu, em 29.12.2016, uma viatura de matrícula  (...), marca Nissan, a favor da sociedade I (…), Lda, sociedade da qual é único sócio é A (…) filho dos insolventes.

11. A devedora transmitiu, em 29.12.2016, uma viatura matrícula  (...), marca Massey-Ferguson, a A (…), filho dos insolventes.

12. Tais negócios foram objecto de resolução a favor da massa insolvente, tendo sido notificados para o efeito, os requeridos, A (…) e L (…), I (…), Lda e A (…)

13. Consta da carta resolutiva relativa à viatura matrícula  (...), marca Massey-Ferguson, além do mais, que: “(…)  O contrato de transmissão de propriedade resultou de facto num acto gratuito, uma vez que não se verificou o pagamento de qualquer preço por parte do beneficiário do contrato de transmissão de propriedade; De facto, A (…) não pagou qualquer valor à sociedade aqui insolvente por contra do contrato de transmissão de propriedade da viatura identificada em 5; (…) A transmissão de propriedade da viatura identificada em 5 e ausência de qualquer pagamento por parte do beneficiário da referida transmissão pôs em causa o património da sociedade aqui insolvente; Tal ato, a transmissão gratuita da propriedade da viatura identificada em 5, diminuiu e frustrou a satisfação dos credores da insolvência, (…)” O beneficiário da transmissão de propriedade, A (…) é filho dos administradores da sociedade transmitente e aqui insolvente (doc. 2) e reside na mesma localidade e na proximidade da residência dos seus progenitores (dc. 1); (…)”. O beneficiário da transmissão de propriedade, A (…), atento ao facto de ser filho dos administradores da sociedade transmitente e aqui insolvente (doc. 3), tinha pois um conhecimento privilegiado da situação económica em que a sociedade, aqui insolvente, se encontrava; Conhecimento fortalecido pelo facto de residir na mesma localidade e na proximidade da residência dos seus progenitores, administradores da sociedade insolvente (doc. 1).

14. Consta da carta resolutiva relativa à viatura de matrícula  (...), marca Nissan, além do mais, que: “(…) O contrato de transmissão de propriedade, resultou de facto num ato gratuito, uma vez que não se verificou o pagamento de qualquer preço por parte da sociedade beneficiária do contrato de transmissão de propriedade; De facto, a sociedade I (…), LDA não pagou qualquer valor à sociedade aqui insolvente por contra do contrato de transmissão de propriedade da viatura identificada em 5; (…)”. A transmissão de propriedade da viatura identificada em 5 e ausência de qualquer pagamento por parte da sociedade beneficiária da referida transmissão, pôs em causa o património da sociedade aqui insolvente; Tal ato, a transmissão gratuita da propriedade da viatura identificada em 5, diminuiu e frustrou a satisfação dos credores da insolvência, (…)” Acresce que a sociedade beneficiária da transmissão de propriedade, I (…) LDA é uma sociedade da qual o único sócio e gerente A (…) filho dos administradores da sociedade transmitente e aqui insolvente (doc. 3); Acresce que a sede da sociedade beneficiária da transmissão, I (…), LDA é na residência dos administradores da sociedade transmitente e aqui insolvente (doc. 1 e 2); (…)”; A sociedade beneficiária da transmissão de propriedade, atento ao facto de o único sócio e gerente ser filho dos administradores da sociedade transmitente e aqui insolvente (doc. 3), tinha pois um conhecimento privilegiado da situação económica em que a sociedade, aqui insolvente, se encontrava; Conhecimento fortalecido pelo facto de a sociedade de que é único sócio e gerente, I (…), LDA ter sede precisamente na morada da residência dos seus progenitores e administradores da sociedade transmitente e aqui insolvente;  Refira-se que, à data da transmissão de propriedade, 29-12-2016, contrato que ora se resolve, a sociedade aqui insolvente já se encontrava em situação de insolvência, uma que se encontra impossibilitada de cumprir as suas obrigações vencidas, como resulta da prova produzida na audiência de que resultou a sentença de declaração de insolvência; Tal situação, como atrás se disse, e por força do facto de A (…) ser filho dos administradores da sociedade transmitente e aqui insolvente (doc. 3) e ser único sócio e gerente da sociedade beneficiária da transmissão, não poderia ser desconhecida por parte desta da situação de insolvência da sociedade transmitente; (…)”(transmissão cfr. documentos referidos em 12º).

15. A cedência das quotas na sociedade devedora efectuada pelos seus sócios fundadores, A (…) e L (…), em 06.01.2017, mais não foi que uma tentativa de se subtraírem às suas obrigações para com os credores.

16. A (…) e L (…) foram declarados insolventes no âmbito do processo nº 2643/17.4T8CBR-Juiz1.

17. O último ano que a sociedade publicou e registou as suas contas foi o de 2015.

18. A devedora estava em incumprimento para com a credora requerente da insolvente desde Janeiro de 2013.

19. Os créditos reclamados pelo credor O (…) S.A. representam 52,5% do total do passivo da devedora.

20. Um colaborador do Administrador Judicial deslocou-se ao café a funcionar na sede da insolvente e tendo solicitado para falar com os gerentes de facto, A (…) e L (…) e foi informado pelo filho A (…) que os mesmos não se encontravam.

21. O Administrador Judicial no dia 12.09.207 deslocou-se ao referido Café e tendo solicitado para falar com os gerentes de facto, A (…) e L (…) obteve a mesma resposta que os mesmos não se encontravam.

22. A devedora tem débitos que totalizam € 663.458,49, conforme relação de créditos e respectiva sentença.

23. A devedora encontra-se em incumprimento à Autoridade Tributária desde Novembro de 2016 e Segurança Social desde Outubro de 2016.  

24. As viaturas apreendidas foram vendidas pelo valor total de € 3.000,00.

25. Na sentença de declaração de insolvência foi, além do mais, dada como provada a seguinte factualidade:

a) Em 1 de Janeiro de 2013, requerente e requerida subscreveram o documento intitulado de Acordo de Regularização de Dívida junto de fls. 14 verso a 16 cujos dizeres dou por integralmente reproduzidos, nos termos do qual a requerida confessou-se devedora à requerente da quantia de €219.352,03 que se comprometeu a pagar-lhe em prestações variáveis;

b) O acordo referido em 5º foi incumprido, encontrando-se em dívida o montante global de €250.893,52;

c) Em 1 de Janeiro de 2013, requerente e requerida subscreveram o documento intitulado de Contrato de Distribuição de Combustíveis em regime de consignação junto de fls. 10 verso a 14 cujos dizeres dou por integralmente reproduzidos

d) Na sequência do acordo referido em 7º a requerente forneceu à requerida combustíveis e lubrificantes;

e) A requerida deve à requerente a quantia global de €97.734,79 referente ao acordo mencionado em 7º;

f) Em 28 de Novembro de 2016 e 11 de Janeiro de 2017 a requerente remeteu à S (…), Lda. cartas a solicitar o pagamento dos montantes referidos em 6º e 9º”.


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Descritos os factos passemos à resolução das restantes questões suscitadas pelo recurso.

Para bem se perceberem os fundamentos do recurso importa previamente dizer o seguinte.

A sentença qualificou a insolvência como culposa ao abrigo das alíneas a), d) e f) do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE.

Na base de tal qualificação estiveram os seguintes factos:

1. A transmissão, pela devedora, em 29-12-2016 de duas viaturas, uma de matrícula (...) e outra de matrícula (...), a primeira à sociedade I (…) Limitada, da qual é único sócio A (…), filho dos ora recorrentes, e a segunda a A (…)

2. Os factos constantes das cartas de resolução destes negócios a favor da massa insolvente, designadamente que não se tinha verificado qualquer pagamento de preço por parte dos beneficiários da transmissão das viaturas, o facto de um dos adquirentes ser filho dos ora requerentes e o facto de a sociedade ter como único sócio o filho dos ora recorrentes;

3. O facto de terem sido apreendidas apenas as viaturas referidas e de terem sido vendidas pelo preço de € 3000.

Segundo a sentença, os factos provados eram suficientes para se retirar a conclusão de que a devedora dispôs dos bens em proveito, desde logo, não só de terceiros, mas também pessoal, que tentou ocultar os mesmos e que tais alienações constituíram uma forma de dissipar o património da insolvente e que esta alienou/vendeu parte ou a totalidade conhecida do património sem que tenha pago aos seus credores.

Os recorrentes contestam esta fundamentação com a seguinte linha argumentativa:

1. Que eles mais não fizeram do que procurar liquidez para pagarem aos credores e que os negócios em causa não prejudicaram ou agravaram a situação económica e financeira da devedora S (…), Lda, perante terceiros;

2. Que à data nenhuma alteração se verificou em relação aos credores com aquela sociedade;

3. Que no elenco dos factos provados pelo tribunal a quo não existia qualquer facto ou indício do qual resultasse que a origem da insolvência da sociedade S (…) resultou dos negócios realizados pêlos requeridos ou tal foi causa do seu agravamento;

4. Que também não havia ficado demonstrado que o produto da venda das viaturas ou da própria viatura da marca Peugeot tivesse como destino o proveito próprio dos recorrentes ou de terceiros para não pagar aos credores;

5. Que o próprio administrador da insolvência referiu que não apurou qualquer volume de negócios afecto à actividade principal e/ou à actividade secundária, limitando-se a informar que não teve acesso à documentação contabilística, assegurando ainda que há mais de 6 meses à data da declaração da insolvência o incumprimento era generalizado;

6. Que nem a venda de viaturas nem qualquer outro negócio criou ou agravou a situação de insolvência nem nenhuma conduta foi praticada com dolo ou culpa grave.

Como se vê, a tese dos recorrentes é a de que os negócios que serviram de base à qualificação da insolvência – concretamente a transmissão de duas viaturas automóveis em 29 de Dezembro de 2016, a de matrícula  (...) à sociedade I (…), Lda, e a de matrícula  (...) a A (…) – não justificavam tal qualificação à luz do disposto nos artigos 185.º e 186.º do CIRE porque os negócios serviram para a devedora obter liquidez para pagar aos credores, porque não está provado que eles criaram ou agravaram a situação de insolvência da sociedade e porque não está provado que o produto da venda das viaturas ou da própria viatura da marca Peugeot tivesse como destino o proveito próprio dos recorrentes ou de terceiros para não pagar aos credores.

Sobre esta alegação cabe dizer o seguinte.

Em primeiro lugar não está provado que as transmissões em causa serviram para a sociedade obter liquidez e com ela satisfazer alguma das suas obrigações. Mais: não está provado sequer que a sociedade tenha recebida qualquer contrapartida em dinheiro pela transmissão dos veículos. Visto que resulta do n.º 3 do artigo 607.º do CPC que a legalidade da decisão recorrida é aferida exclusivamente em função dos factos que tiverem sido considerados provados, segue-se daqui que não valem contra a decisão impugnada as alegações que compreendem factos que não estão assentes.

Em segundo lugar, se é certo que não há prova de que foi a transmissão das viaturas em 29 de Dezembro de 2016 que criou a situação de insolvência da sociedade ou que agravou essa situação, também é certo que a ausência de tal prova não impedia o tribunal a quo de qualificar a insolvência da sociedade como culposa. Vejamos.

O CIRE distingue dois tipos de insolvência, a culposa e a fortuita [artigo 185º].

Segundo o n.º 1 do artigo 186º, do mencionado diploma, a insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência.

Esta noção geral de insolvência culposa é complementada pelos números 2 e 3 do mesmo preceito. Para o caso interessa-nos o n.º 2 pois foi ao abrigo deste número que a insolvência da sociedade S (…), Lda, foi considerada culposa.

O n.º 2 considera sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência, incorrido nalguma das situações previstas nas várias alíneas.

Ao dispor que se considera sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto, levem a cabo alguma das condutas tipificadas nas suas várias alíneas nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência, o n.º 2 do artigo 186.º significa que, quando ficar provado que os administradores, de direito ou de facto, sejam autores de alguma dessas acções, no mencionado período, a situação de insolvência da sociedade é de qualificar sem mais como culposa.

E é de qualificar sem mais como culposa, pois a expressão “considera-se sempre culposa a insolvência do devedor” significa que não é necessário provar que a acção em causa causou ou agravou a insolvência e/ou que o administrador actuou com dolo ou com culpa grave.

Mais: o n.º 2 do artigo 186.º não só não requer, para qualificar a insolvência como culposa, a prova de que a acção prevista nalguma das suas alíneas causou ou agravou a insolvência e/ou a prova de que o administrador actuou com dolo ou com culpa grave, como veda a prova de que a acção em questão não causou ou agravou a situação de insolvência, bem como veda a prova de que os administradores não actuaram com dolo ou com culpa grave.

Citam-se, em abono desta interpretação do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE, o acórdão do STJ de 6-10-2011, proferido no processo n.º 46/07.8TBSVC, o acórdão do STJ proferido em 15-02-2018, no processo n.º 7353/15.4T8VNG-A.P1.S1, o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 22-05-2012, proferido no processo n.º 1053/10.9TJCBR e o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 14-01-2014, proferido no processo n.º 785/11.9TBLRA, todos publicados no sítio www.dgsi.pt.

Na doutrina citam-se em abono desta interpretação:
1. Luís Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvênc1ia e da Recuperação de Empresas Anotado, QUid Juris, que em anotação ao artigo 186, página 610, escrevem: “Da letra da lei (considera-se sempre) resulta claramente que no preceito em anotação se estabelece uma presunção iuris et de iure, em vista do que dispõe o n.º 2 do artigo 350º”;
2. Manuel A. Carneiro da Frada [A responsabilidade dos administradores na insolvência, publicado na Revista da Ordem dos Advogados, ano 66º, Volume II, disponível no sítio http://www.oa.pt] que escreve a este propósito o seguinte: “Tendo lugar alguma das situações previstas, a culpa presume-se, não havendo lugar a prova em contrário e estando portanto precludida a alegação e demonstração de alguma causa de desculpação (…) O n.° 2 do art. 186 contempla desta sorte um conjunto de hipóteses em que se estabelece inilidivelmente ter ocorrido uma conduta ilícita e culposa dos administradores. Mas não se trata apenas disso. A referida conduta é tida pelo preceito como causadora ou agravadora de uma insolvência. Só assim é que a insolvência pode ser qualificada como culposa pelo legislador. Temos, portanto, que o art. 186 n.° 2 também faz presumir iuris et de iure a causalidade da violação ilícita e culposa de determinados deveres em relação à insolvência”;

Mesmo que se entendesse – como o fez o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 570/2008 (DR, 2ª série de 14 de Janeiro de 2009) - que era duvidoso, perante a noção de presunções legais constantes do artigo 349º, do Código Civil, que o n.º 2 do artigo 186º instituísse verdadeiras presunções, sempre se teria de entender que as situações em causa foram configuradas pelo legislador como situações típicas, características de insolvência culposa. A este propósito escreveu-se no citado acórdão: “Na verdade, o que o legislador faz corresponder à prova da ocorrência de determinados factos não é a ilação de que um outro facto (fenómeno ou acontecimento da realidade empírico-sensível) ocorreu, mas a valoração normativa da conduta que esses factos integram. Neste sentido, mais do que perante presunções inilidíveis, estaríamos perante a enunciação legal (não importa aqui averiguar se mediante enunciação taxativa ou concretizações exemplificativas) de situações típicas de insolvência culposa”. Acrescentou, porém, que “…numa ou noutra perspectiva (presunção inilidível de culpa, factos -índice ou tipos secundários de insolvência culposa), o legislador prescinde de uma autónoma apreciação judicial acerca da existência de culpa como requisito da adopção das medidas restritivas previstas no artigo 189.º do CIRE contra os administradores julgados responsáveis pela insolvência”.

Diga-se, por fim, que o tribunal Constitucional não julgou inconstitucional a norma do artigo 186º, n.º 2, no caso a alínea a), interpretada no sentido de que consagrava uma presunção de culpa iure et iure.

Em síntese: a qualificação da insolvência como culposa ao abrigo do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE basta-se com o concurso dos seguintes factos:
1. Com a declaração de insolvência;
2. Com a prática, pelos administradores, de direito ou de facto, do devedor que não seja uma pessoa singular, de alguma das acções previstas nas suas várias alíneas, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência.

Segue-se do exposto que a circunstância de não estar provado que a transmissão dos veículos criou ou agravou a situação de insolvência não prejudicava a aplicação do n.º 2 do artigo 186.º.

Só assim não seria se tal transmissão não se ajustasse à previsão de nenhuma das normas que serviram de base à decisão de qualificar a insolvência como culposa. Nessa hipótese a mencionada transmissão apenas poderia relevar para efeitos de qualificação ao abrigo do n.º 1 do artigo 186.º do CIRE e este requeria a prova de que foram as transmissões que criaram a situação de insolvência ou que, pelo menos, a agravaram.

No entender deste tribunal a transmissão dos veículos automóveis não cabe nas hipóteses das alíneas a) e f) do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE; ajusta-se, no entanto, à situação prevista na alínea d) do mesmo preceito. Vejamos.

A hipótese prevista nas alíneas a), d) e f) verificam-se quando os administradores de direito ou de facto de uma pessoa colectiva tenham:

a) Destruído, danificado, inutilizado, ocultado, ou feito desaparecer, no todo ou em parte considerável, o património do devedor;

d) Disposto dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros;

f) Feito do crédito ou dos bens do devedor uso contrário ao interesse deste, em proveito pessoal ou de terceiros, designadamente para favorecer outra empresa na qual tenham interesse directo ou indirecto”.

O que está em causa nas alíneas a) e d), bem como nas alíneas b), e) e g), para usarmos as palavras de Luís Carvalho Fernandes, são “…comportamentos dos administradores do insolvente que, afectando a situação patrimonial deste, implicam concomitantemente benefício para o próprio administrador que os adopta ou para terceiros (Themis, Edição Especial, Novo Direito da Insolvência, 2005, página 95, nota 23).

No mesmo sentido se pronuncia Catarina Serra, ao escrever que nas alíneas a) a g) “… estão os factos a que, na maioria das situações, mais frequentemente se deve a insolvência: a prática de actos de delapidação do património do devedor e aquilo que, no contexto da insolvência de um devedor que não seja uma pessoa humana, podem considerar-se infracções ao dever geral de fidelidade (ou lealdade) dos administradores, formalmente consagrado no artigo 64º, n.º1, alínea b), do CSC – a condução da actividade do devedor de modo a beneficiar os interesses pessoais ou de terceiros” (Cadernos de Direito Privado, n.º 21, Janeiro/Março 2008, página 65).             

Luís Manuel Teles de Menezes Leitão refere-se, por seu turno, a “actos destinados ao empobrecimento do património do devedor” (Direito da Insolvência, 2ª Edição, página 272].

Centrando, agora, a nossa atenção na alínea a), vemos que nela estão em causa acções que, quando realizadas com intenção de prejudicar os credores, preenchem o crime de insolvência dolosa previsto na alínea a) do n.º 1 do artigo 227.º do Código Penal.

No entender deste tribunal, a conduta dos ora recorrentes que está em apreciação– a transmissão dos veículos automóveis para a sociedade I (…) e para A (…) - não se ajusta a nenhuma das acções previstas na alínea a) do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE. As razões deste entendimento são as seguintes.

Em primeiro lugar a transmissão não configura destruição, danificação ou inutilização do património do devedor. Com efeito, com a transmissão não se destruiu, não se danificou nem se inutilizaram os veículos automóveis da sociedade.

Em segundo lugar, a transmissão não é acção que tenha “feito desaparecer … o património do devedor”. Para efeitos da alínea a), a expressão “feito desaparecer… o património do devedor” compreende as acções que fazem sair bens do património do devedor de forma tal que o destino deles não seja conhecido.  A favor desta interpretação cita-se Pedro Caeiro, que, em comentário ao artigo 227.º do Código Penal escreve: estão em causa “condutas que provocam uma diminuição real do património”; com elas “o devedor deprecia realmente o valor do seu património, causando por essa forma uma situação de insolvência. No que diz respeito à expressão “fazer desaparecer parte do seu património”, parece que ela servirá para atalhar os casos em que não se descobre o paradeiro de bens que supostamente se deviam encontrar na titularidade do devedor. Não se importa se eles foram objecto de uma alienação real ou tão só-fictícia, importa tão só que os credores não conseguem atingi-los para garantir a satisfação das suas dívidas, pelo que o valor ostensivo do património resulta, em qualquer caso diminuído” [Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial Tomo II, páginas 412 e 413].  

Interpretada a expressão “feito desaparecer … o património do devedor” com o sentido exposto, a conclusão a retirar é a de que ela não cobre a transmissão dos veículos. É que, apesar de a transmissão ter por efeito a transmissão da propriedade das viaturas (alínea a), do artigo 879.º do Código Civil), sabe-se o destino delas.     

Por fim, a venda não se ajusta ao conceito de ocultação.

No nosso entender, a ocultação que é tida em vista tanto compreende a ocultação física de bens do devedor, como a ocultação jurídica. No caso não há ocultação física, pois conhece-se o paradeiro dos veículos. E também não há ocultação jurídica, pois para tal seria necessário que estivesse provado que existiu um acordo entre a transmitente e os transmissários dos veículos no sentido de simularem as transmissões, com a intenção de esconderem a verdadeira titularidade dos veículos (que continuaria a caber à sociedade). Nesta hipótese poder-se-ia sustentar a tese da ocultação (jurídica) do património do devedor.

Ora, os factos provados – os únicos que, nos termos do n.º 3 do artigo 607.º do CPC, aplicável por remissão do n.º 2 do artigo 663.º, do mesmo diploma, ao acórdão proferido em sede de apelação – são manifestamente insuficientes para sustentar a tese da ocultação do direito de propriedade sobre os veículos.

Na alínea f) está em causa o uso do crédito ou de bens de uma pessoa colectiva, não no interesse desta, mas em proveito dos administradores ou de terceiros.

Na acção em apreciação, não está em causa nenhum concreto uso dado aos veículos automóveis pelos ora recorrentes, enquanto gerentes da sociedade S (…), Lda. Está em questão a transmissão do direito de propriedade sobre tais veículos.

Como já se escreveu acima, a transmissão do direito de propriedade de tais bens da sociedade insolvente cabe na hipótese da alínea d) do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE, na parte em que esta prevê “a disposição dos bens do devedor em benefício de terceiro”. Vejamos.

Esta alínea prevê actos de disposição de bens do devedor em proveito pessoal dos administradores, de direito ou de facto, ou de terceiros.

Para estes efeitos, devem considerar-se “actos de disposição” tanto aqueles que têm por efeito a saída dos bens do património do devedor (como sucede, por exemplo com a venda ou a doação de bens) como os que, não implicando necessariamente tal saída, retiram-lhe, no entanto, a disponibilidade deles, colocando-os na disponibilidade de outrem. Cita-se em abono desta interpretação o Acórdão do STJ proferido em 15-02-2018, no processo n.º 7352/15.4T8VNG-A, publicado em www.dgsi.pt onde se escreveu: “a previsão legal é preenchida não apenas quando por negócio jurídico a titularidade do direito sobre os bens do insolvente é transferida para o terceiro, mas também quando, independentemente disso, é consentido a este que use, goze e frua os bens, que deles retire as respetivas utilidades em benefício próprio. Neste caso o insolvente fica, na prática, numa situação equivalente à de não ser proprietário desses bens, ou de não ter qualquer direito de gozo dos mesmos”. É certo, entretanto, que para os fins em presença só há que falar em proveito quando o ato de disposição se traduz na outorga de um benefício sem uma justa ou legítima correspondência prestacional (se existe correspondência prestacional do terceiro, não há proveito deste, mas sim o recebimento do que lhe compete, justa e legitimamente, receber)”.

A exigência feita na alínea d) do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE de que o acto de disposição seja feito em proveito pessoal dos administradores (de direito ou de facto) ou de terceiros serve para excluir do alcance da norma os actos de disposição que “produzam uma perda absoluta do direito, ou seja, a extinção do direito sem que lhe corresponda qualquer aquisição” [seguimos neste aspecto o entendimento de Pedro Sousa Macedo, Manual de Direito das Falências, Volume II, Livraria Almedina, Coimbra 1968, página 220, a propósito do conceito de actos onerosos constante do artigo 1202º, alínea d) do Código de Processo Civil de 1961, que se presumiam celebrados de má-fé].

Interpretada com o sentido e o alcance acabados de expor, a alínea d) compreende a transmissão da propriedade de um bem, da qual resulte proveito apenas para os administradores de facto ou para um terceiro.

Foi o que se passou no caso. Com efeito, resulta da matéria assente que sociedade S (…) era proprietária de dois veículos automóveis, um com a matrícula (…) e outro com a matrícula  (...) e que, em 29-12-2016, e que os ora recorrentes, na qualidade de gerentes da sociedade, transmitiram a propriedade do primeiro para a sociedade I (…), Lda, da qual é único sócio A (…) filho dos ora recorrentes, e transmitiram a propriedade do segundo a favor do filho dos ora recorrentes.

A transmissão da propriedade dos veículos configurou uma disposição de bens da sociedade. E tratou-se de uma disposição em proveito dos transmissários, e apenas destes, porque não lhe correspondeu a entrada de qualquer bem no património da transmitente nem a diminuição do respectivo passivo. Com efeito, está assente que a transmissão dos veículos foi objecto de resolução por parte do administrador e que um dos fundamentos da resolução foi o facto de os adquirentes dos veículos não terem pago qualquer preço pela respectiva aquisição.

Observe-se que a circunstância de o administrador da massa ter procedido à resolução da transmissão não prejudica a aplicação da alínea d). Como se escreveu no acórdão do STJ proferido em 15-02-2018, no processo n.º 7353/15.4T8VNG-A “Trata-se de uma circunstância subsequente aos comportamentos que aqui estão sob escrutínio, que em nada contende com o anterior ato de disposição do bem em proveito do terceiro. Apenas sucede que se tratou de um ato de disposição em proveito de terceiro que acabou mal sucedido, mas isto não tem a virtualidade de apagar o comportamento culposo anterior”.

Por todo o exposto é de manter a decisão, embora com fundamentos não inteiramente coincidentes com os da decisão recorrida.


*

Decisão:

Julga-se improcedente o recurso e, em consequência, mantém-se a decisão recorrida.

Responsabilidade quanto a custas:

Visto o disposto no n.º 1 do artigo 527.º do CPC e o n.º 2 do mesmo preceito e o facto de os recorrentes terem ficado vencidos no recurso, condenam-se os mesmos no pagamento das custas do recurso.

Coimbra, 17 de Março de 2020

Emídio Santos (Relator)

Catarina Gonçalves

Maria João Areias