Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
511/10.0TBSEI-E.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: HENRIQUE ANTUNES
Descritores: DIREITO DE RETENÇÃO
CONTRATO PROMESSA DE COMPRA E VENDA
TRADIÇÃO DA COISA
RECLAMAÇÃO DE CRÉDITOS
INSOLVÊNCIA
Data do Acordão: 01/15/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE SEIA – 1º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 410º, Nº 1, 442º E 755º, Nº 1, AL. F) DO C. CIVIL; 128º, NºS 1 E 3 E 129º, Nº 1 DO CIRE.
Sumário: I – Dada a sua natureza de recurso de reponderação e não de reexame, na apelação não é admissível a alegação de factos novos.

II - Contrato promessa é o contrato pelo qual as partes, ou uma delas, se obriga a celebrar novo contrato – o contrato definitivo (artº 410º, nº 1 do Código Civil).

III - Sendo o direito do adquirente dotado de eficácia real ele é investido não apenas no direito de crédito à celebração do contrato definitivo, mas simultaneamente num direito real de aquisição.

IV - Faltando eficácia real à promessa, o promitente adquirente apenas tem a seu favor um direito de crédito à celebração do contrato definitivo.

V - Havendo sinal e o promitente fiel for o adquirente, e este não opte pela execução específica ou esta não seja já possível, assiste-lhe o direito de exigir o dobro do que prestou, ou caso, tenha havido tradição da coisa objecto do contrato definitivo prometido, o valor desta, objectivamente determinado ao tempo do não cumprimento, com dedução do preço convencionado, e a restituição do sinal e da parte do preço que tenha pago (artº 442º, nºs 1, 2, 2ª parte, e 3 do Código Civil).

VI - A lei disponibiliza para estes créditos resultantes do não cumprimento do contrato promessa, sempre que tenha havido traditio da coisa prometida, uma tutela particularmente enérgica: o direito de retenção (artº 755º, nº 1 f) do Código Civil).

VII - Um dos pressupostos do direito de retenção é a existência de um nexo causal entre o crédito e a coisa: é o que decorre da declaração da lei de que o crédito deve resultar de despesas por causa da coisa ou de danos por ela causados (artº 754º do Código Civil).

VIII - Contudo, essa conexão pode também ser estabelecida pelo facto de a detenção resultar de uma relação legal ou contratual à qual a lei reconheça, como garantia, aquele direito.

IX - Está nestas condições, precisamente a retenção reconhecida ao beneficiário da promessa de transmissão ou constituição de direito real para quem a coisa objecto mediato definitivo prometido tenha sido traditada, no tocante ao crédito resultante do não cumprimento dele pelo outro promitente (artº 755 nº 1 f) do Código Civil).

X - Todavia, a verdade é que o texto da lei abrange, sem qualquer distinguo ou reserva, todos os contratos promessa de transmissão ou constituição de direito real em que tenha havido tradição da coisa – versem esses contratos sobre prédios (urbano ou rústicos) ou sobre coisas móveis.

XI - Concluindo-se, v.g., que a traditio visou antecipar a realização das prestações objecto do contrato definitivo, o que sucederá, por exemplo, quando o preço está pago na totalidade ou em grande parte, e o promitente adquirente exerce sobre a coisa poderes de facto correspondentes ao direito real de propriedade, haverá posse nos termos deste último direito real.

XII - A traditio exigida para que se constitua o direito de retenção reclama apenas a detenção material lícita da coisa – não sendo necessário, para esse efeito, uma posse.

XIII - Por outras palavras: a posse não constitui requisito daquela garantia real.

XIV - Deste modo, os pressupostos do direito de retenção do promitente adquirente são apenas estes: a traditio da coisa ou coisas, objecto mediato do contrato definitivo prometido; o incumprimento definitivo do contrato promessa pelo promitente alienante; a titularidade pelo promitente adquirente, por virtude desse incumprimento, de um direito de crédito.

XV - Para a constituição da retenção não se exige sequer a declaração de incumprimento: é suficiente a tradição da coisa prometida vender, conjugada com a titularidade, pelo promitente adquirente de um direito de crédito relativamente à contraparte.

XVI - Nem a reclamação de créditos em processo de insolvência está na dependência da existência de um título executivo, nem é necessário que a garantia real representada pelo direito de retenção se mostre reconhecido por sentença.

XVII - A intervenção, na insolvência, dos credores do insolvente, se não restringe àqueles que se encontre munidos de título executivo, antes se encontra aberta a todos os credores, seja qual for a natureza ou fundamento do seu crédito (artºs 128 nºs 1 e 3 e 129 nº 1 do CIRE).

XVIII - O processo de insolvência é uma execução colectiva ou universal (artº 1º do CIRE).

XIX - No processo de insolvência, não constitui pressuposto da intervenção dos credores do insolvente a existência de um título executivo.

XX - O reconhecimento do direito de retenção pelo promitente comprador não depende da verificação, por sentença, dos respectivos pressupostos, não sendo exigível que esteja munido de título executivo nem a apresentação daquela sentença, sendo inteiramente admissível que o reconhecimento do crédito e da garantia alegadas seja feita, no contexto da acção de insolvência, no processo de verificação e graduação de créditos.

XXI - Para que o direito de retenção se deva reconhecer ao promitente, é suficiente uma traditio ficta – a entrega de um objecto que representa simbolicamente a coisa e permita a actuação material sobre ela. É o que ocorre, frequentemente, no caso de prédios urbanos ou de fracções de prédio urbano, em que basta para a realização da traditio a entrega das chaves - que não ocorra no local - que permitam aceder aqueles bens.

XXII - O direito de retenção resolve-se no direito conferido ao credor, que encontra na posse de certa coisa pertencente ao devedor de, não só recusar a entrega dela enquanto o devedor não cumprir, mas também, de executar a coisa e se pagar à custa do valor dela, com preferência sobre os demais credores.

XXIII - O direito de retenção, porque dispõe de sequela – de que a inerência, i.e. inseparabilidade do direito real e da coisa é a noção base – é um verdadeiro real.

XXIV - O direito de retenção prevalece mesmo sobre o direito de crédito garantido por hipoteca ainda que anteriormente constituída, rectius, registada (artº 759º, nº 2 do Código Civil).

XXV - Declarada a insolvência do dono da coisa, o retentor terá que a entregar ao administrador, dado que tratando-se de bem do insolvente, e, portanto, integrante da massa, aquele terá que a apreender, mas sem que aquele direito real de extinga (artºs 46º, nº 1, 149º e 150º do CIRE).

XXVI - O retentor terá, pois, de reclamar o seu direito de crédito (artº 47º, nº 4 a) do CIRE).

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

1. Relatório.

O credor reclamante da insolvência de “C…, Lda.”, A… impugnou, no tocante ao seu crédito, a lista de credores reconhecidos pelo Administrador da insolvência, pedindo que se reconheça o seu direito de retenção sobre seis fracções autónomas de edifício e a qualificação daquele seu crédito, de €1.001.583,22, como privilegiado.

Fundamentou a impugnação no facto de o seu crédito, naquele valor, respeitante ao sinal em dobro do preço que pagou pela promessa de compra, à insolvente, daquelas fracções, ter sido reconhecido como comum, mas de esse crédito, por lhe terem sido entregues as respectivas chaves, gozar de direito de retenção.

O credor reclamante, D…, SA, respondeu que aquelas fracções se mantêm e sempre estiveram na posse da insolvente, que nunca entregou as chaves ao impugnante.

Seleccionada a matéria de facto, procedeu-se – com registo sonoro dos actos de prova levados a cabo oralmente – à audiência de discussão e julgamento no terminus da qual se decidiu, sem reclamação, o único facto seleccionado para a base instrutória.

A sentença final da causa – com fundamento em que o crédito do impugnante goza de direito de retenção - julgou a impugnação procedente e graduou o crédito do reclamante, pelo remanescente do produto do prédio urbano apreendido nos autos sito na Avenida … - FRACÇÕES F,G, H, J, L e K -, imediatamente a seguir ao crédito do Estado por IMI, mas imediatamente antes do crédito de D…, SA.

É esta sentença que o credor D…, SA impugna no recurso ordinário de apelação no qual pede se proceda à sua alteração, por forma a graduar a ora Apelante, preferencialmente face ao credor A...

A recorrente extraiu da sua alegação estas conclusões:

...

                Na resposta, o recorrido concluiu, naturalmente, pela improcedência do recurso.

2. Factos relevantes para o conhecimento do objecto do recurso.

2.1. Foi seleccionado para a base instrutória este único enunciado de facto:

                                                                              1º

Não obstante a não celebração da escritura, a insolvente entregou ao impugnante, A…, as chaves das fracções F), G), H), L), J) e k)?

2.2. O enunciado referido em 2.1. obteve do Tribunal da audiência, esta resposta: Provado.

2.3. O decisor de facto da 1ª instância adiantou, para justificar o julgamento referido em 2.2., esta motivação:

Na formação da sua convicção, o tribunal apreciou de forma livre, crítica e conjugada a prova produzida em sede de audiência de julgamento, bem como a prova documental constante dos autos, de harmonia com o princípio consagrado no artigo 655º do Código de Processo Civil.

Com efeito, a convicção em que se alicerçou a decisão sobre a matéria de facto, resultou do conjunto de prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, nomeadamente, dos depoimentos das testemunhas, conjugado com critérios das regras da experiência e da normalidade.

2.2. O Tribunal de que provém o recurso julgou provada, no seu conjunto, a factualidade seguinte:

...

3. Fundamentos.

3.1. Delimitação objectiva do âmbito do recurso.

O objecto do recurso é, antes de mais, delimitado pelo objecto da acção, pelos eventuais casos julgados formados na instância recorrida e pela parte dispositiva da decisão impugnada que for desfavorável ao recorrente. Mas este pode também, no requerimento de interposição ou nas conclusões da sua alegação, limitar o âmbito, objectivo ou subjectivo, do recurso (artº 684 nºs 2, 1ª parte, e 3 do CPC).

                A sentença impugnada é a que, além de julgar a impugnação deduzida pelo recorrente contra a lista de créditos reconhecidos pelo administrador da insolvência, procedeu á verificação dos créditos e à sua graduação, i.e., a sua hierarquização entre si.

A recorrente não discute no recurso – como não discutiu na resposta à impugnação deduzida pelo recorrido contra a apontada lista – a declaração do crédito daquele como verificado. A única coisa que a recorrente controverte na apelação é a graduação daquele crédito, i.e., a sua hierarquização.

Segundo a sentença recorrida, o crédito do apelado, porque, no seu ver, goza de direito de retenção, prevalece sobre o da recorrente, garantido por hipoteca; de harmonia com a alegação da recorrente, o seu crédito deve prevalecer sobre o do recorrido, por esta razão simples: o crédito do recorrido não goza daquela garantia real.

Numa palavra: a recorrente limitou objectivamente o âmbito do recurso à questão da graduação do seu crédito no confronto com o do apelado.

Todavia, a exacta delimitação do âmbito objectivo do recurso reclama esclarecimentos suplementares.

Tendo em conta a finalidade da impugnação, os recursos ordinários podem ser configurados como um meio de apreciação e de julgamento da acção por um tribunal superior ou como meio de controlo da decisão recorrida.

No primeiro caso, o objecto do recurso coincide com o objecto da instância recorrida, dado que o tribunal superior é chamado a apreciar e a julgar de novo a acção: o recurso pertence então à categoria do recurso de reexame; no segundo caso, o objecto do recurso é a decisão recorrida, dado que o tribunal ad quem só pode controlar se, em função dos elementos apurados na instância recorrida, essa decisão foi correctamente decidida, ou seja, se é conforme com esses elementos: nesta hipótese, o recurso integra-se no modelo de recurso de reponderação[1].

No direito português, os recursos ordinários visam a reapreciação da decisão proferida, dentro dos mesmos condicionalismos em que se encontrava o tribunal recorrido no momento do seu proferimento.

Como o pedido e a causa de pedir só podem ser alterados ou ampliados na 2ª instância se houver acordo das partes – eventualidade mais que rara – bem pode assentar-se nisto: que os recursos interpostos para a Relação visam normalmente apreciar o pedido formulado na 1ª instância com a matéria de facto nela alegada.

Isto significa que, em regra, o tribunal de recurso não pode ser chamado a pronunciar-se sobre matéria que não foi alegada pelas partes na instância recorrida ou sobre pedidos que não hajam sido formulados.

Os recursos são meios de impugnação de decisões judiciais – e não meios de julgamento de julgamento de questões novas[2].

Excluída está, portanto, a possibilidade de alegação de factos novos - ius novarum nova – na instância de recurso.

Em qualquer das situações, salvaguarda-se, naturalmente, a possibilidade de apreciação, em qualquer grau de recurso, da matéria de conhecimento oficioso[3].

Ao tribunal ad quem é sempre lícita a apreciação de qualquer questão de conhecimento oficioso ainda que esta não tenha sido decidida ou sequer colocada na instância recorrida.

Estas questões – como, v.g., o abuso do direito, os pressupostos processuais, gerais ou especiais, ou a litigância de má fé, oficiosamente cognoscíveis – constituem um objecto implícito do recurso, que torna lícita a sua apreciação na instância correspondente, embora, quando isso suceda, de modo a assegurar a previsibilidade da decisão e evitar as chamadas decisões-surpresa, o tribunal ad quem deva dar uma efectiva possibilidade às partes de se pronunciarem sobre elas (artº 3 nº 3 do CPC).

Face ao modelo do recurso de reponderação que o direito português consagra, o âmbito do recurso encontra-se objectivamente limitado pelas questões colocadas no tribunal recorrido pelo que, em regra, não é possível solicitar ao tribunal ad quem que se pronuncie sobre uma questão que não se integra no objecto da causa tal como foi apresentada e decidida na 1ª instância.

A função do recurso ordinário é, no nosso direito, a reapreciação da decisão recorrida e não um novo julgamento da causa.

O modelo do nosso sistema de recursos é, portanto, o da reponderação e não o de reexame[4].

A questão concreta controversa em torno da qual gravita o litígio é de saber se o crédito do apelado está ou não garantido por direito de retenção.

Para sustentar a resposta negativa, a apelante alega, como fundamento da impugnação, que a compra das fracções não se destinava à habitação do credor A…, mas sim à sua posterior venda a terceiros ou arrendamento, que aquele não actuou como consumidor e não é consumidor.

Simplesmente uma leitura, ainda que meramente oblíqua quer da matéria de facto julgada provada pelo Tribunal de que provém o recurso – que neste ponto não é objecto de impugnação - quer das alegações produzidas pelas partes na instância recorrida, torna patente, de um aspecto, que aqueles factos não foram julgados, e de outro – o que é mais – que nem sequer foram alegados naquela instância.

A única coisa que a este propósito se julgou provado foi que o recorrido reside no Brasil e não habita as fracções. Mas deste facto não decorre, como corolário que não possa ser recusado, que o apelado destinava aquelas fracções à venda ou a arrendamento.

Como melhor se procurará detalhar, um dos pressupostos do direito de retenção é a existência de um nexo causal entre o crédito e a coisa: é o que decorre da declaração da lei de que o crédito deve resultar de despesas por causa da coisa ou de danos por ela causados (artº 754 do Código Civil).

                Contudo, essa conexão pode também ser estabelecida pelo facto de a detenção resultar de uma relação legal ou contratual à qual a lei reconheça, como garantia, aquele direito.

Está nestas condições, precisamente, a retenção reconhecida ao beneficiário da promessa de transmissão ou constituição de direito real para quem a coisa objecto mediato definitivo prometido tenha sido traditada, no tocante ao crédito resultante do não cumprimento dele pelo outro promitente (artº 755 nº 1 f) do Código Civil).

                Sem paralelo noutros ordenamentos, o direito de retenção assinalado foi introduzido na nossa ordem jurídica na década de 80 com o fito declarado de proteger o promitente adquirente de prédios urbanos ou de fracções autónomas destes do não cumprimento, por promitentes pouco escrupulosos, da promessa correspondente (artº 442 nº 3 do Código Civil, na redacção do Decreto-Lei nº 236/80, de 18 de Julho).

                Todavia, a verdade é que o texto da lei abrange, sem qualquer distinguo ou reserva, todos os contratos promessa de transmissão ou constituição de direito real em que tenha havido tradição da coisa – versem esses contratos sobre prédios (urbano ou rústicos) ou sobre coisas móveis.

                Apesar da severa e cerrada crítica de que a inovação foi alvo – assente na infundada distinção conferida ao direito de indemnização do promitente-comprador e na prevalência sobre a hipoteca, ainda que de registo anterior, lesiva da solidez e da segurança do crédito hipotecário[5] - o legislador, bem ciente daqueles juízos doutrinários de desvalor, manteve-a, limitando-se a deslocar a norma correspondente para o local sistematicamente mais adequado (artº 775 nº 1 f), na redacção do Decreto-Lei nº 379/86, de 11 de Novembro).

A contradição entre os motivos do legislador histórico e o texto da lei deu lugar a uma acesa controvérsia doutrinária e a várias tentativas de interpretação restritiva da lei[6], que, apesar da superveniência do Decreto-Lei nº 379/86, são ainda relativamente correntes, mas no ver de outra doutrina, são claramente injustificadas[7].

Assim, a partir do fundamento comum do direito de retenção e com o declarado propósito de harmonizar os direitos do credor hipotecário com os do promitente adquirente, sustenta-se, por exemplo, que o direito de retenção apontado só tem conexão com o aumento do valor da coisa ou do direito, que é o único crédito resultante do não cumprimento que tem uma relação directa com a coisa a reter, pelo que a retenção só poderia ser exercida em relação a esse crédito.

A retenção não poderia, por isso, ser actuada em relação ao crédito de restituição do sinal em dobro – mas apenas em relação ao aumento do valor da coisa, se acaso o credor tiver optado por essa alternativa e, portanto, só relativamente ao crédito do aumento desse valor seria lícito ao retentor pagar-se preferencialmente em detrimento ao credor hipotecário[8].

Numa interpretação aparentemente mais benigna, advoga-se que o direito de retenção considerado, apesar de valer para todos os direitos resultantes do não cumprimento da promessa, apenas deve reconhecer-se ao promitente comprador consumidor – entendendo-se por consumidor, naturalmente, o consumidor final enquanto tal, o adquirente a fornecedores profissionais de bens e serviços ou direitos para uso ou fruição própria (ou alheia) e não para uso profissional - por ser o único carecido da tutela disponibilizada por aquela garantia e o único compreendido no âmbito de protecção da norma[9].

De harmonia com esta interpretação – restritiva – deve recusar-se aquele direito a todos os promitentes compradores que não sejam consumidores (artº 2 nº 1 da Lei de Defesa do Consumidor, aprovada pela Lei nº 24/96, de 31 de Julho) [10].

Na interpretação restritiva, o resultado da interpretação é mais restrito do que o seu significado literal da lei: o espírito da lei fica aquém da sua letra, pelo que não se justifica a inferência de uma regra que seja aplicável a todos os casos que são abrangidos pela sua letra.

A interpretação restritiva é, portanto, uma interpretação citra litteram, assentando num princípio de restrição, imposta pela circunstância de a dimensão pragmática da lei ficar aquém da sua dimensão semântica: há casos abrangidos pela letra da lei que, porém, não devem ser abarcados por ela[11].

A interpretação restritiva ocorre sempre que a letra da lei se refere a um género, mas, por imposição dos elementos da interpretação, o seu significado deva limitar-se à espécie.

Baseia-se, portanto, num juízo de desagregação: o que está estabelecido para o todo só deve valer para uma parte.

Por força dela, a lei deixa de ser aplicável a factos ou situações que são abrangidos pela sua letra, do que decorre esta consequência: a regulação desses factos ou situações jurídicas por um outro regime jurídico.

As propostas de interpretação restritiva da norma considerada têm por fundamento último o facto de, em termos de política legislativa, a concessão ao promitente fiel do direito de retenção, ser uma má solução[12].

Simplesmente, uma tal solução corresponde, por inteiro, à lógica e a finalidade do legislador, como linearmente decorre do facto, de apesar as aceradas críticas que lhe foram dirigidas, ter sido peremptório na reiteração da atribuição, sem qualquer reserva ou distinguo, do direito de retenção a todos os promitentes, consumidores finais ou não.

Seja como for, ainda que uma interpretação que restringe o preceito a relações de consumo se devesse ter por exacta, no caso sempre estaria excluída a sua aplicação. É que, como se notou, os factos que permitiriam a aplicação da solução que decorre daquela interpretação restritiva, não foram alegados na instância recorrida – mas apenas na instância de recurso.

Trata-se, portanto de factos novos.

Mas como na instância de recurso não podem ser invocados factos novos ou colocadas questões que podiam ter sido alegadas ou colocadas na instância recorrida, aqueles factos não constituem objecto admissível do recurso.

A sentença impugnada reconheceu ao recorrido o direito de retenção alegado e, em estrita coerência, declarou a sua prevalência relativamente à hipoteca que garante o crédito do recorrente.

Mas uma tal decisão só se explica, no ver da apelante, em última extremidade, pelo error in iudicando, por erro na valoração das provas, em que incorreu o decisor de facto da 1ª instância.

Maneira que, tendo em conta os parâmetros de cognição representados pelo conteúdo da decisão recorrida e das alegações das partes, as questões concretas controversas que importa resolver são as de saber se:

a) O Tribunal da audiência incorreu, no julgamento da questão de facto, num error in iudicando por erro na aferição das provas;

b) O crédito do recorrido goza ou não do direito de retenção e, por isso, se deve ser satisfeito com preferência relativamente ao crédito da recorrente, assegurado por hipoteca.

A resolução destes problemas vincula ao exame dos poderes de controlo desta Relação sobre a decisão da matéria de facto da 1ª instância e dos pressupostos do direito de retenção do promitente comprador.

Entre a matéria de direito e a matéria de facto existe uma interdependência que se verifica na sua delimitação recíproca, em especial na sua confluência para a obtenção da decisão de um caso concreto. Dado que a delimitação da matéria de facto é feita em função da matéria de direito – visto que os factos são recortados e escolhidos segundo a sua relevância jurídica, i.e., segundo a sua importância para cada um das soluções plausíveis da questão de direito - justifica-se, metodologicamente, que a exposição subsequente se abra com a enunciação dos pressupostos do direito de retenção do promitente.

3.3. Pressupostos do direito de retenção.

Contrato promessa é o contrato pelo qual as partes, ou uma delas, se obriga a celebrar novo contrato – o contrato definitivo (artº 410 nº 1 do Código Civil)[13].

A distinção mais relevante no domínio desta convenção é a que separa o contrato promessa com eficácia real e o contrato promessa com eficácia meramente obrigacional.

Sendo o direito do adquirente dotado de eficácia real ele é investido, não apenas no direito de crédito à celebração do contrato definitivo – mas simultaneamente num direito real de aquisição; faltando eficácia real à promessa, o promitente adquirente apenas tem a seu favor um direito de crédito à celebração do contrato definitivo.

Sendo esse o caso, aquele promitente nada poderá fazer se a obrigação de conclusão do contrato definitivo prometido se extinguir, por exemplo, por impossibilidade ou outra causa idónea.

Essa impossibilidade pode resultar - segundo certo entendimento das coisas - da alienação da coisa prometida; desde que esta saia do património do promitente alienante, este já não poderá cumprir, sem prejuízo da obrigação de indemnizar.

Havendo incumprimento do contrato promessa, o promitente fiel pode obter a execução específica dele, através da emissão de sentença substitutiva da declaração negocial do promitente faltoso (artº 830 nº 1 do Código Civil).

A emissão da sentença ex artº 830 tem como pressupostos o incumprimento do contrato promessa; a falta de convenção em contrário; a compatibilidade com a natureza da obrigação assumida.

                Havendo sinal e o promitente fiel for o adquirente, e este não opte pela execução específica ou esta não seja já possível, assiste-lhe o direito de exigir o dobro do que prestou, ou caso, tenha havido tradição da coisa objecto do contrato definitivo prometido, o valor desta, objectivamente determinado ao tempo do não cumprimento, com dedução do preço convencionado, e a restituição do sinal e da parte do preço que tenha pago (artº 442 nºs 1 e 2, 2ª parte, e 3 do Código Civil).

                A lei disponibiliza para estes créditos resultantes do não cumprimento do contrato promessa, sempre que tenha havido traditio da coisa prometida, uma tutela particularmente enérgica: o direito de retenção (artº 755 nº 1 f) do Código Civil).

Particularmente espinhosa é a questão de saber se o promitente-comprador, beneficiário da tradição da coisa objecto mediato do contrato definitivo prometido, pode ou não considerar-se possuidor, se tem a posse daquela coisa.

                Do contrato promessa de compra e venda emergem simples prestações de facto jurídico positivo; obrigação de emitir, no futuro, as declarações de vontade integrantes do contrato definitivo prometido.

O contrato promessa não é, portanto, causal da transmissão de qualquer direito real, como não o é, em regra, da entrega da coisa objecto mediato do contrato definitivo.

Maneira que a entrega dessa coisa tem de ser imputada a um segundo acordo (artº 405 do Código Civil)[14].

                Não havendo qualquer tipicidade de contratos constitutivos ou translativos de direito reais, não há, igualmente, qualquer tipicidade de contratos com eficácia possessória, nada obstando, portanto, à inclusão, logo no contrato promessa, de uma cláusula autorizando a tradição da coisa, ou à conclusão, paralelamente ao contrato promessa, de um segundo acordo, que tenha por objecto específico a traditio da coisa.

                Nestas condições, a questão de saber se o promitente adquirente que viu traditada para si a coisa objecto do contrato definitivo prometido é ou não possuidor dela não é susceptível de uma resposta de valor universal – mas de uma resposta diferenciada: tudo dependerá da vontade das partes, que poderá obter-se, por exemplo, através da interpretação do acordo à luz do qual a tradição operou, e da natureza dos concretos poderes de facto exercidos pelo beneficiário dela, sobre aquela coisa corpórea[15].

                Concluindo-se, v.g., que a traditio visou antecipar a realização das prestações objecto do contrato definitivo, o que sucederá, por exemplo, quando o preço está pago na totalidade ou em grande parte, e o promitente adquirente exerce sobre a coisa poderes de facto correspondentes ao direito real de propriedade, haverá posse nos termos deste último direito real.

                Um dos fundamentos em que a recorrente baseia a impugnação consiste na alegação de que o recorrido não era possuidor das fracções objecto mediato do contrato definitivo prometido - mas mero detentor ou possuidor precário delas.

                Mas no caso do recurso, não há que discutir o problema da posse do recorrido sobre aqueles bens imóveis.

Porquê?

Por esta razão simples – mas sólida: a traditio exigida para que se constitua o direito de retenção reclama apenas a detenção material lícita da coisa – não sendo necessário, para esse efeito, uma posse.

Por outras palavras: a posse não constitui requisito daquela garantia real[16].

                Deste modo, os pressupostos do direito de retenção do promitente adquirente são apenas estes: a traditio da coisa ou coisas, objecto mediato do contrato definitivo prometido; o incumprimento definitivo do contrato promessa pelo promitente alienante; a titularidade pelo promitente adquirente, por virtude desse incumprimento, de um direito de crédito[17].

E, por não ser de aceitar, também aqui, qualquer interpretação restritiva - de qualquer direito de crédito emergente do incumprimento definitivo da obrigação de facto jurídico positivo resultante do contrato promessa[18].

Para a constituição da retenção não se exige sequer a declaração de incumprimento: é suficiente a tradição da coisa prometida vender, conjugada com a titularidade, pelo promitente adquirente de um direito de crédito relativamente à contraparte[19].

Portanto, ao contrário do que sustenta a apelante na sua alegação, não é necessária qualquer prévia declaração da titularidade, pelo promitente, da titularidade do direito de retenção.

A recorrente, porém – confortando-se no acórdão de 31 de Outubro de 2010 do Supremo[20] – sustenta veementemente que para o reconhecimento, tanto do crédito como da garantia alegada, é indispensável que o reclamante exiba sentença que lhe reconheça quer aquele crédito quer esta garantia.

Realmente, naquele acórdão[21], o Supremo concluiu que, no processo de verificação e graduação de créditos da insolvência a simples alegação pelo credor reclamante de factos integradores do direito de retenção é insuficiente para que lhe seja reconhecido o privilégio consagrado no artº 759 nº 2 do Código Civil, tornando-se necessário, para tanto, que junte título justificativo que, no caso, é a sentença condenatória a reconhecer o incumprimento do promitente vendedor e a tradição da coisa para o promitente comprador.

E na fundamentação o acórdão vai mesmo mais longe, afirmando que o credor reclamante só é admitido ao concurso de credores, seja em execução singular, seja em processo de insolvência, desde que munido de título executivo.

Salva sempre a unção devida a opinião contrária, não temos por exactas nenhuma das proposições: nem a reclamação de créditos em processo de insolvência está na dependência da existência de um título executivo, nem é necessário que a garantia real representada pelo direito de retenção se mostre reconhecido por sentença.

E por várias e boas razões.

É certo que, na execução singular, a promoção da execução e a reclamação de créditos exigem que o credor se mostre munido com um título executivo (artºs 45 e 865 nº 2 do CPC).

Mas não o é menos, que idêntica exigência se não mostra formulada na regra reguladora, no processo de insolvência, dos pressupostos de intervenção, na insolvência, dos credores do insolvente, e que de diversas outras normas reguladores do processo de insolvência, e mesmo da sua natureza, se extrai a regra inversa: a de que, a intervenção, na insolvência, dos credores do insolvente, se não restringe àqueles que se encontre munidos de título executivo, antes se encontra aberta a todos os credores, seja qual for a natureza ou fundamento do seu crédito (artºs 128 nºs 1 e 3 e 129 nº 1 do CIRE).

O processo de insolvência é uma execução colectiva ou universal (artº 1 do CIRE).

                Na acção executiva promove-se, em geral, a realização coactiva de uma única prestação contra um único devedor e, em observância de um princípio de proporcionalidade, apenas são penhorados e excutidos os bens do devedor que sejam suficientes para liquidar a dívida exequenda (artºs 828 nº 5, 833 nº 1 e 832 nº 1 a) do CPC).

Esta execução distingue-se do processo de insolvência que é uma execução universal, tanto porque nela intervêm todos os credores do insolvente, como porque nele é atingido, em princípio, todo o património deste devedor (artºs 1, 47 nºs 1 a 3, 128 nºs 1 e 3 e 149 nºs 1 e 2 do CIRE).

                Como o devedor se encontra em situação de insolvência, quer dizer, impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas, todos os credores, podem reclamar os seus créditos e todo o património do devedor responde pelas suas dívidas (artº 3 nº 1 do CIRE).

                Na execução singular, um credor pretende ver satisfeito o seu direito a uma prestação; esse credor necessita de uma legitimação formal, que é um título executivo e se o devedor for solvente obtém na acção executiva a satisfação do seu crédito (artºs 45 nº 1 e 55 nº 1 do CPC).

                No processo de insolvência podem apresentar-se todos os credores do insolvente, ainda que não possuam qualquer título executivo, porque todos eles podem concorrer ao pagamento rateado do seu crédito, através do produto apurado na venda de todos os bens arrolados para a massa insolvente[22].

                O processo de insolvência baseia-se na impossibilidade de o devedor saldar todas as suas dívidas e, portanto, orienta-se por um princípio de distribuição de perdas entre os credores.

                De resto, a existência de um título executivo – mesmo que consista numa sentença condenatória – não é só desnecessária, como não seria suficiente, dado que mesmo o credor que tenha o seu crédito reconhecido por decisão definitiva não está dispensado, em caso algum, de o reclamar no processo de insolvência, se nele quiser obter pagamento (artº 128 nº 3, in fine, do CIRE).

                A intervenção dos credores do insolvente em processo de insolvência não está, pois, na dependência da apresentação, pelo credor reclamante, de um título executivo, podendo a reclamação ser actuada tanto pelo credor que esteja munido com esse título, como por aquele que dele não dispõe.

É claro que a procedência da acção – o reconhecimento do crédito alegado – depende dos elementos de prova produzidos, da sua idoneidade para demonstrar a existência do crédito invocado.

Em qualquer caso, o título executivo não é o único meio probatório do crédito, sendo certo que o crédito reclamado só é reconhecido quando são suficientes os outros elementos - e na falta deles, o crédito não deve se reconhecido ou deve sê-lo em termos menos favoráveis ao reclamante.

Ao contrário do que sucede na execução singular, em que exige a apresentação pelo credor de um título executivo, no processo de insolvência, diferentemente, insta-se o credor reclamante a apresentar os meios de prova de que disponha e só com a sentença de verificação e de graduação de créditos, se individualiza definitivamente e se torna legítima a pretensão executiva do credor: o título que habilita a satisfação do crédito reclamado forma-se, portanto, através do procedimento de verificação dos créditos, concluindo-se no momento em que o crédito obtém reconhecimento judicial[23].

                A conclusão a tirar é, portanto, a de que, no processo de insolvência, não constitui pressuposto da intervenção dos credores do insolvente a existência de um título executivo.

De resto, no caso, um tal pressuposto – ainda que fosse exigível – deveria ter-se por preenchido. Por duas razões, de resto.

De um aspecto, porque o recorrido dispõe de um tal título – a sentença condenatória da insolvente – de outro, porque a questão do reconhecimento do crédito reclamado daquele constitui res judicata, dado que a recorrente não impugna no recurso a verificação desse crédito – mas apenas a sua graduação no confronto com aquele de que ela mesma é titular (artºs 46 nº 1 a) e 684 nºs 3 e 4 do CPC).

                E se o credor, para intervir no concurso em insolvência pendente, não carece de um título executivo, a fortiori, não necessitará de uma sentença prévia que lhe reconheça o direito de retenção, dado que resultando esta garantia directamente da lei, a verificação dos respectivos pressupostos pode ser discutida, apreciada e reconhecida na sentença que verificar e graduar os créditos[24].

O credor que pretende a verificação e a graduação do seu crédito sobre a insolvência deve reclamá-lo no prazo fixado na sentença declaratória daquele estado (artº 128 nº 1 do CIRE).

Porém, o credor que não se socorreu da reclamação – meio mais simples – porque, por exemplo, deixou passar o prazo assinado na sentença declarativa da insolvência, nem por isso fica desarmado: ele pode fazer reconhecer o crédito sobre a insolvência de que se diz titular, propondo acção declarativa contra a massa insolvente, os credores e o devedor (artº 146 nº 1 do CIRE).

Esta acção constitui dependência do processo de insolvência, correndo-lhe por apenso e segue sempre, seja qual for o seu valor, a forma sumária de processo comum de declaração (artº 148 do CIRE).

                Nestas condições, não é razoável exigir-se ao credor que pretenda invocar a garantia representada pelo direito de retenção que obtenha prévio reconhecimento, por sentença autónoma, de que o seu crédito goza dessa garantia – ou o reconhecimento de que além do incumprimento da promessa por parte do promitente vendedor, a coisa prometida vender lhe foi traditada – dado que a propositura da acção correspondente não o dispensaria de reclamar o seu crédito na insolvente pendente.

                O procedimento de reclamação de créditos é, pois, a sede adequada para a apreciação dos créditos reclamados e das garantias alegadas, ainda que para esse reconhecimento se exija uma extensão de competência do juiz da insolvência, como sucederá, por exemplo, no tocante aos créditos fiscais, parafiscais e laborais (artºs 128 e ss. do CIRE e 96 do CPC).

Entendimento diverso do problema contrastaria vivamente com um princípio estruturante do processo civil, i.e. de um princípio, que lhe é indispensável, e de que o processo de insolvência em geral, e o de verificação do passivo, em particular, naturalmente, também partilha: o da auto-suficiência - quer este seja entendido no sentido de tutela provisória da aparência, de harmonia com a qual em matéria processual, vale como realidade para o efeito de se determinar se essa aparência corresponde ou não à realidade,[25] quer com o significado de que o processo de insolvência é, em regra, o lugar adequado ao conhecimento de todas as questões cuja solução se revele necessária para a decisão a tomar - a declaração de insolvência e a verificação e graduação dos créditos reclamados (artº 96 nº 1 do CPC).

                De resto, uma tal acção autónoma, ordenada para obtenção de um tal título, revestir-se-ia, para o credor que alegasse um crédito garantido por direito de retenção, de bem pouca utilidade.

É que não sendo a sentença que eventualmente reconhecesse a existência daquela garantia oponível aos demais credores – maxime ao credor hipotecário – a menos que tivesse sido interposta contra todos eles, àqueles sempre seria facultada, no procedimento de reclamação, a impugnação dos factos constitutivos, tanto do crédito como da garantia[26].

                Na acção executiva singular, ao credor reclamante, cujo crédito disponha de uma garantia real, mas que não disponha de título exequível, é imposto, na acção autónoma destinada à sua obtenção, o litisconsórcio necessário passivo do exequente, do executado e dos demais credores reclamantes – solução que, transposta para o procedimento de insolvência, obrigaria o credor a propor a acção contra todos os demais credores reclamantes ou ao menos por aqueles cujo crédito tivesse sido reconhecido pelo administrador da insolvência (artº 869 nº 5 do CPC).

                Para sustentar a vinculação do credor que alegue o direito de retenção, à apresentação de uma sentença condenatória que lhe reconheça a garantia – o incumprimento do contrato promessa e a traditio da coisa objecto do contrato definitivo prometido para o promitente adquirente – a jurisprudência do Supremo, que decorre dos apontados acórdãos, adianta o seguinte argumento: se assim não fosse, não faria sentido o preceituado no artº 106 do CIRE, que determina que no caso de insolvência do promitente vendedor, o administrador pode recusar o cumprimento do contrato-promessa com eficácia real, se já tiver havido tradição da coisa a favor do promitente-comprador; se assim não fosse – acrescenta-se – acabaria o administrador por ser obrigado a reconhecer a existência de um qualquer contrato promessa, apenas mediante a alegação do promitente-comprador de que, tendo havido traditio, houve incumprimento por banda do promitente vendedor, tornando incompreensível o regime excepcional consagrado naquele artigo 106.º e, o que é mais grave, favorecendo de forma totalmente desajustada a posição do promitente-comprador de um simples contrato sem eficácia real, bastando tão só a verificação das condições alegadas.

                Este modo de pensar, esquece, todavia, que aquela norma do CIRE apenas regula o caso do contrato-promessa que não se mostre totalmente cumprido por ambas as partes, quer dizer, o negócio em curso.

                Nestas condições, importa fazer um distinguo entre o incumprimento definitivo, imputável ao promitente vendedor, que importe a extinção do contrato promessa, antes da declaração de insolvência, que terá como consequência, a vinculação daquele à restituição do sinal em dobro e a atribuição à contraparte do direito de retenção – e o contrato promessa que, à data daquela declaração, se não mostre cumprido in totum por qualquer das partes.

                De resto, o administrador da insolvência não tem – nem deve - bastar-se com a simples alegação, por parte do promitente adquirente, de que, à data da declaração de insolvência, de que, além do incumprimento definitivo pelo promitente vendedor, houve traditio da coisa a seu favor: por força dos amplos poderes em que a lei o investe, o administrador deverá proceder à indagação dos factos alegados pelo credor e exigir a este a apresentação das provas, documentais ou outras, adequadas, que lhe permitam concluir pela exactidão da alegação do promitente adquirente (artº 129 do CIRE).

                Nem outra foi, no caso, a conduta do administrador da insolvência, que apesar de ter prontamente reconhecido o crédito alegado pelo recorrido – documentado na sentença condenatória – lhe recusou, todavia, por ausência de prova, o reconhecimento da garantia invocada.

                Assim, se a declaração de insolvência ocorrer depois da extinção da promessa, não há lugar à aplicação do artº 106 do CIRE, que, por se referir aos negócios em curso, pressupõe, evidentemente, que o cumprimento das obrigações dela emergentes ainda se mostra possível: se o contrato se mostrar definitivamente incumprido, o promitente adquirente pode reclamar, na insolvência, o seu crédito e actuar o direito de retenção que o garanta[27].

                Maneira que se o contrato promessa tiver sido resolvido antes da declaração de insolvência, não estamos face a um negócio em curso – mas perante um crédito integrado na massa insolvente; neste caso, verificando-se os pressupostos do direito de retenção, o crédito deve ter-se por garantido, ou, no caso inverso, será tratado, na ausência de garantia real de outra espécie, como comum[28].

                Em absoluto remate: o reconhecimento do direito de retenção pelo promitente comprador não depende da verificação, por sentença, dos respectivos pressupostos, não sendo exigível que esteja munido de título executivo nem a apresentação daquela sentença, sendo inteiramente admissível que o reconhecimento do crédito e da garantia alegadas seja feita, no contexto da acção de insolvência, no processo de verificação e graduação de créditos[29].

                Resta acrescentar, que a traditio exigida para a constituição da garantia tanto pode ser uma tradição material como uma tradição puramente simbólica, em qualquer das suas modalidades: traditio longa manu, traditio ficta ou traditio brevi manu (artº 1263 b) do Código Civil).

Para que o direito de retenção se deva reconhecer ao promitente, é suficiente uma traditio ficta – a entrega de um objecto que representa simbolicamente a coisa e permita a actuação material sobre ela. É o que ocorre, frequentemente, no caso de prédios urbanos ou de fracções de prédio urbano, em que basta para a realização da traditio a entrega das chaves - que não ocorra no local - que permitam aceder aqueles bens.

                Porém, nos termos gerais, o direito de retenção é excluído quando a detenção da coisa tenha sido adquirida por meios ilícitos, com o conhecimento do retentor, ou quando tenham sido realizadas de má fé as despesas que determinaram a aquisição do crédito (artº 756 a) e b) do Código Civil).

A má fé é aqui entendida em sentido subjectivo, como a consciência da ilicitude da aquisição da coisa ou da lesão do credor em face da realização da despesa[30].

                Note-se, porém – como ocorre, de resto, no lugar paralelo relativo à posse de boa fé – que o se aponta como decisivo para a caracterização da ilicitude da detenção é o momento da aquisição da coisa que deve ser entregue (artºs 1260 nº 1 e 756 a), 2ª parte do Código Civil).

A exclusão do direito de retenção só se verifica, portanto, se o acto ilícito doloso se referir a esse momento. Vale, pois, também aqui, a máxima mala fide superveniens non nocet.

                As garantias especiais de prestações podem operar por uma de duas vias: por via pessoal; por via real.

Quando, com vista a assegurar certo crédito se procede à afectação de coisas corpóreas, temos uma garantia real.

Inclui-se nesta categoria, sem dúvida, o direito de retenção (artº 754 do Código Civil).

                O direito de retenção resolve-se no direito conferido ao credor, que encontra na posse de certa coisa pertencente ao devedor de, não só recusar a entrega dela enquanto o devedor não cumprir, mas também, de executar a coisa e se pagar à custa do valor dela, com preferência sobre os demais credores[31].

                O direito de retenção, porque dispõe de sequela – de que a inerência, i.e. inseparabilidade do direito real e da coisa é a noção base – é um verdadeiro real.

É, por isso, dotado, para usar uma terminologia corrente e expressiva, de oponibilidade erga omnes, sendo, portanto, oponível mesmo ao próprio dono da coisa que não seja o titular do direito à entrega dela[32].

                O direito de retenção prevalece mesmo sobre o direito de crédito garantido por hipoteca ainda que anteriormente constituída, rectius, registada (artº 759 nº 2 do Código Civil)[33].

                Assim, declarada a insolvência do dono da coisa, o retentor terá que a entregar ao administrador, dado que tratando-se de bem do insolvente, e, portanto, integrante da massa, aquele terá que a apreender, mas sem que aquele direito real de extinga (artºs 46 nº 1, 149 e 150 do CIRE).

O retentor terá, pois, de reclamar o seu direito de crédito (artº 47 nº 4 a) do CIRE).

A graduação de créditos é especial para o bem objecto da garantia e liquidado esse bem, será feito o pagamento dos credores garantidos de harmonia com a prioridade das respectivas garantias (artº 140 nº 2 do CIRE).

Se o credor que beneficie de direito de retenção não ficar integralmente pago, será o saldo respectivo incluído entre os créditos comuns (artº 174 nº 1 do CIRE).

                Revertendo ao caso que constitui o universo das nossas preocupações, não oferece dúvida a existência do crédito do crédito reclamado pelo recorrido nem o facto de que ele emerge: o não cumprimento definitivo pela insolvente do contrato promessa, como linear e irrecusavelmente decorre da sentença proferida no processo n.º 675/07, já passada em julgado.

Resta, portanto, a verificação do terceiro pressuposto do direito de retenção: a traditio, ainda que puramente simbólica, das coisas prometidas vender, e que, no plano de facto, constitui justamente o objecto do único ponto seleccionado para a base instrutória, e que a recorrente reputa de mal julgado.

3.4. Poderes de controlo da Relação relativamente ao julgamento da matéria de facto do tribunal recorrido.

É indiscutível a afirmação de que, a par da utilização de um processo justo e da escolha e interpretação correctas da norma jurídica aplicável, um dos fundamentos de uma decisão justa é o da verdade na reconstituição dos factos objecto do processo.

De nada vale ao juiz uma compreensão exacta da norma aplicável ao caso se, do mesmo passo, se deixa equivocar na apreciação da matéria de facto.

O error in judicando da questão de facto traz consigo, inevitavelmente, um erro de direito; erro esse que, nem por ter aquela causa, resultará menos sensível para os destinatários lesados.

A reconstrução da espécie de facto, o saber na realidade como as coisas são ou se passaram, quando este conhecimento dependa de elementos de prova cuja apreciação é deixada ao prudente critério do juiz, é uma actividade extraordinariamente delicada – que ele terá de levar a cabo sem nenhuma ou quase nenhuma ajuda, pode dizer-se, da ciência do direito, que, nada ou quase nada, lhe pode dizer[34].

As dificuldades do controlo da exactidão do julgamento da questão de facto resultam, fundamentalmente, da falta de homogeneidade da assunção das provas pelo tribunal de 1ª instância e pela Relação e da natureza da actividade de julgamento da questão de facto.

A Relação é normalmente um tribunal de 2ª instância.

Pela sua própria índole, a Relação tem competência para apreciar e conhecer tanto de questões de direito como de questões de facto.

O recurso de apelação é precisamente aquele que, segundo a sua natureza de recurso amplo, deveria ter eficácia e alcance para submeter à consideração da Relação toda a matéria da causa.

A atribuição ao recurso de apelação da natureza de recurso verdadeiramente global e, correspondentemente, a possibilidade de a Relação conhecer da matéria de facto, pressupõe que a esse Tribunal são garantidas, pelo menos, as mesmas condições que são asseguradas ao tribunal recorrido.

O sistema actual de recursos procurou conciliar as garantias da oralidade e da imediação – que contribuem decisivamente para o bom julgamento da causa, em especial, no que se refere à apreciação da matéria de facto – com algumas exigências práticas.

Estas exigências conduzem, por exemplo, a que o controlo sobre um decisão relativa ao julgamento de um facto supostamente provado pelo depoimento de uma testemunha, não requeira a presença dessa testemunha perante o tribunal ad quem.

É suficiente, na lógica da lei, que seja disponibilizado a este tribunal o registo ou a gravação desse depoimento ou a sua transcrição (artºs 685-B nºs 1 a 4 e 712 nºs 1, a) e b), e 2 do CPC).

O registo dos actos de produção da prova é feito por gravação, em regra, por meios sonoros (artºs 522-B e 522 C) nºs 1 e 2 do CPC).

Essa gravação é efectuada, também em regra, por equipamentos existentes no tribunal e por funcionário de justiça (artºs 3 nº 1 e 4 do Decreto Lei nº 39/95, de 15 de Fevereiro).

O controlo efectuado pela Relação sobre o julgamento da matéria de facto realizado pelo tribunal da 1ª instância, pode, entre outras finalidades, visar a reponderação da decisão proferida.

A Relação pode reapreciar o julgamento da matéria de facto e alterar – e, portanto, substituir - a decisão da 1ª instância se do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos de facto da matéria em causa ou se, tendo havido registo da prova pessoal, essa decisão tiver sido impugnada pelo recorrente ou se os elementos fornecidos pelo processo impuserem decisão diversa, insusceptível de ser destruída por qualquer outra prova (artº 712 nºs 1 a) e b) e 2 do CPC).

Note-se, porém, que não se trata de julgar ex-novo a matéria de facto - mas de reponderar ou reapreciar o julgamento que dela foi feito na 1ª instância e, portanto, de aferir se aquela instância não cometeu, nessa decisão, um error in iudicando[35].

O recurso ordinário de apelação em caso algum perde a sua feição de recurso de reponderação para passar a ser um recurso de reexame.

Mas para que a Relação altere e, portanto, substitua, a decisão da matéria de facto da 1ª instância não é suficiente um qualquer erro.

Este erro há-de ser manifesto, ostensivamente contrário às regras da ciência, da lógica e da experiência, que aponte, decisiva e inequivocamente, para, o julgamento do facto, um sentido diverso daquele que lhe imprimiu o decisor da 1ª instância - e não, simplesmente, que se limite a sugerir ou a tornar provável ou possível esse outro sentido[36].

Nem, aliás, é difícil explicar a exactidão de um tal entendimento dos poderes de controlo sobre a decisão da matéria de facto que a lei adjectiva actual reconhece à Relação.

De um aspecto, porque esse controlo e a reponderação correspondente da matéria de facto é efectuado, em regra, a partir da reprodução de registos sonoros, rectior, gravações áudio, de depoimentos, ou da leitura fria e inexpressiva da sua transcrição.

Ora, é irrecusável que depoimentos não são só palavras, nem o seu valor pode alguma vez ser medido pelo tom em que foram proferidos; a palavra é simultaneamente um meio de exprimir conteúdos de pensamento e de os ocultar; todas as formas de comunicação não verbal do depoente influem, quase tanto como a sua expressão oral, na força persuasiva do seu depoimento[37].

Realmente, a expressão oral é apenas uma parte bem diminuta da comunicação e, por isso, existem aspectos e reacções dos depoentes que apenas podem ser apreendidos e apreciados por quem os constata presencialmente e que a gravação sonora, e muito menos a transcrição, não tem a virtualidade de registar e que, por isso, são irremissivelmente subtraídos à apreciação do último tribunal relativamente ao qual ainda seja lícito conhecer da questão correspondente[38].

Tratando-se de prova pessoal, rectius, testemunhal, o registo – sonoro ou escrito - comporta o risco de tornar formalmente equivalentes declarações substancialmente diferentes, de desvalorizar depoimentos só aparentemente imprecisos e de atribuir força persuasiva a outros que só na superfície dela dispõem.

A decisão da matéria de facto, respeita, por definição, à averiguação de factos – i.e., a ocorrências da vida real, eventos materiais e concretos, a qualquer mudança do mundo exterior, ao estado, qualidade ou situação real das pessoas e coisas[39] – e o resultado dessa actividade pode exprimir-se numa afirmação susceptível de ser considerada verdadeira ou falsa.

Todavia, essa actividade não se traduz num juízo silogístico-formal de subsunção, não é uma operação pura e simplesmente lógico-dedutiva – mas uma formação lógico-intuitiva.

As dificuldades que daqui decorrem para o controlo dessa actividade são meramente consequenciais.

Por último, convém ter presente que o controlo da matéria de facto tem por objecto uma decisão tomada sob o signo da livre apreciação da prova, atingida de forma oral e por imediação, i.e., baseada numa audiência de discussão oral da matéria a considerar e numa percepção própria do material que lhe serve de base (artºs 652 nº 3 e 655 nº 1 do CPC)[40].

Decerto que liberdade de apreciação da prova não é sinónimo de arbitrariedade ou discricionariedade e, portanto, que essa apreciação há-de ser reconduzível a critérios objectivos: a livre convicção do juiz, embora seja uma convicção pessoal, não deve ser uma convicção puramente voluntarista, subjectiva ou emocional – mas antes uma convicção formada para além de toda a dúvida tida por razoável e, portanto, capaz de se impor aos outros.

Mas não deve desvalorizar-se a circunstância de essa convicção sobre a realidade ou a não veracidade do facto provir do tribunal mais bem colocado para decidir a questão correspondente.

O procedimento desenvolvido para estabelecer os factos sobre os quais o tribunal deve construir a sua decisão não é puramente cognitivo, o que explica a inevitável relatividade da certeza histórica de um facto que a prova disponibiliza.

Contudo, esse procedimento, na medida em que assenta num esquema lógico, permite estabelecer uma regra de valoração da prova que se analisa nas proposições seguintes: a valoração da prova é uma operação mental que resolve num silogismo em que a premissa maior é a fonte ou o meio de prova – o depoimento, o documento, etc. - a premissa menor é uma máxima de experiência e a conclusão é a afirmação da existência ou a inexistência do facto que se pretendia provar; as regras de experiência são juízos hipotéticos, de conteúdo geral, desligados dos factos concretos objecto do processo, procedentes da experiência mas independentes dos casos particulares de cuja observação foram deduzidos e que, para além desses casos, pretendem ter validade para casos novos.

Deste ponto de vista, a única diferença entre um sistema de prova livre e um sistema de prova legal, consiste no facto de na última, a máxima de experiência, que constitui a premissa menor do silogismo, ser estabelecida ou objectivada pelo legislador, ao passo que, no primeiro, se deixa ao juiz a determinação da máxima de experiência que deve aplicar no caso.

Em ambos os casos, o método de valoração da prova não deve ser contrário à lógica, devendo antes ser actuado de harmonia com um critério de normalidade jurídica, derivado do id quod plerumque accidit - daquilo que normalmente sucede[41].

Nestas condições, a apreciação da prova vincula a um conceito de probabilidade lógica – de evidence and inference.

Os elementos de prova são assumidos como premissas a partir das quais é possível extrair inferências; as inferências seguem modelos lógicos; as diversas situações podem ser analisadas de acordo com padrões lógicos que representam os aspectos típicos de cada caso; a conclusão acerca de um facto é logicamente provável, como uma função dos elementos lógicos, baseada nos meios de prova disponíveis[42].

O juiz deve decidir segundo um critério de minimização do erro, i.e., segundo a ponderação de qual das decisões possíveis – a realidade ou a inveracidade de um facto – tem menor probabilidade de não ser a correcta.

3.4.1. Reponderação da decisão relativa à matéria de facto da 1ª instância.

Algumas das provas que permitem o julgamento da matéria de facto controvertida e a generalidade daquelas que são produzidas na audiência final estão sujeitas à livre apreciação do tribunal, no sentido já apontado.

É o caso, por exemplo, da prova testemunhal (artº 396 do Código Civil).

Essa apreciação baseia-se – já se notou – na prudente convicção do tribunal sobre a prova produzida, quer dizer, em regras de ciência e de raciocínio e em máximas de experiência (artº 655 nº 1 do CPC).

Neste contexto, nada impede, por exemplo, que a convicção do juiz se funde no depoimento de uma única testemunha[43].
Constitui património comum dos operadores judiciários a extraordinária cautela com que deve ser manejada a prova testemunhal, dado o perigo da sua infidelidade, seja ela involuntária – v.g., por erro de percepção ou de retenção do facto – ou voluntária – por vício de parcialidade.
Dadas todas as possíveis causas de erro que actuam sobre a prova testemunhal, é natural uma atitude de desconfiança e desânimo por parte de quem se vê forçado a decidir sobre a base de semelhante prova e uma atitude de desconforto por banda de quem tem de controlar uma decisão assente numa prova a que se associa uma tão larga falibilidade.
O desencanto é tanto mais lamentável quanto é certo que na prática dos tribunais a prova por testemunhas vem à cabeça de todas as outras, é a prova de uso mais frequente porque é, na maioria dos casos, a única que se pode produzir.
Considerada a enorme variedade de causas que podem dar lugar a que a testemunha não possa ou não queria dizer a verdade, deve usar-se de grande cautela em relação a esta prova e só a sua valoração sob o signo estrito da oralidade e da imediação permite estabelecer, adequadamente, o efeito persuasivo que, em cada caso, lhe deve ser assinalado.
De resto, aquele princípio e este seu corolário são comprovadamente adequados a extirpar um dos maiores males da prova testemunhal: a mentira.
Como já se reparou, o resultado da actividade de julgamento da matéria de facto pode exprimir-se numa afirmação susceptível de ser considerada verdadeira ou falsa.
Contudo, essa verdade não é uma verdade absoluta ou ontológica, sendo antes uma verdade judicial, jurídico-prática.
No julgamento da matéria de facto não se visa o conhecimento ou apreensão absoluta de um acontecimento, tanto mais que intervêm, irremediavelmente, inúmeras fontes possíveis de erro, quer porque se trata de conhecimento de factos situados no passado, quer porque assenta, as mais das vezes, em meios de prova que, pela sua natureza, se revelam particularmente falíveis.
Está nestas condições, notoriamente, a prova testemunhal.
A prova de um facto não visa, pois, obter a certeza absoluta, irremovível, da verificação desse facto.
A prova tem, por isso mesmo, atenta a inelutável precariedade dos meios de conhecimento da realidade de contentar-se com certo grau de probabilidade do facto: a probabilidade bastante, em face das circunstâncias concretas, para convencer o decisor, conhecer das realidades do mundo e das regras de experiência que nele se colhem, da verificação da realidade do facto[44].

As provas não têm forçosamente que criar no espírito do juiz uma certeza absoluta acerca do facto a provar, certeza essa que seria impossível ou geralmente impossível: o que elas devem é determinar um grau de probabilidade tão elevado que baste para as necessidades da vida.

Nestas condições, uma prova, considerada de per se ou criticamente conjugada com outras, é suficiente para demonstrar a realidade – não ontológica mas jurídico-prática – de um facto quando, em face dela seja de considerar altamente provável a sua veracidade ou, ao menos, quando essa realidade seja mais provável que a ausência dela.

                O facto que a recorrente reputa de erroneamente julgado é o relativo à entrega, pela insolvente ao recorrido, das chaves das fracções de edifício, objecto mediato dos contratos promessa de compra e venda – declarados resolvidos, com fundamento no seu incumprimento definitivo pela insolvente, por sentença passada em julgado.

                E que prova é que, no ver da recorrente, foi mal valorada pelo decisor de facto da 1ª instância? Toda a prova testemunhal produzida.

                ...

                De todas estas contas pode, pois, retirar-se esta proposição conclusiva: apesar da refracção provocada pela distância entre este tribunal e as provas e o modo como delas conheceu - através da audição do registo sonoro - não há motivo para que se conclua que a decisão da matéria de facto contém um error in judicando e, portanto, para modificar esse julgamento.

Um tal julgamento dos factos provados, considerado, ao menos a posteriori, à luz das regras da lógica, da experiência e de critérios sociais é, de todo, razoável.

E à correcção da decisão da questão de facto deve adicionar-se a exactidão do enquadramento jurídico desses mesmos factos.

                3.5.          Concretização.

                Em face da matéria de facto apurada, é realmente clara a titularidade pelo recorrido do direito de retenção alegado.

E como este prevalece sobre a hipoteca que garante a satisfação do crédito da recorrente, a sentença impugnada ao graduar preferencialmente o crédito do recorrido, não incorreu em qualquer erro de direito, por equívoco na qualificação, na subsunção ou sobre a estatuição, i.e., na escolha da norma aplicável, no juízo de integração dos factos apurados na previsão dessa norma ou sobre a aplicação, ao caso, da consequência jurídica por ela definida.

                O recurso não dispõe, pois, de bom fundamento.

Cumpre recusar-lhe provimento.

                Expostos todos os argumentos, afirma-se, em síntese, que:

a) Dada a sua natureza de recurso de reponderação e não de reexame, na apelação não é admissível, a alegação, na instância de recurso, de factos novos;

                b) A traditio exigida para que se constitua o direito de retenção, reclama apenas a detenção material lícita da coisa; a posse não constitui pressuposto daquele direito real de garantia;

                c) Essa traditio tanto pode ser material como meramente simbólica;

                d) No processo de insolvência podem intervir todos os credores do insolvente, mesmo aqueles que não possuam um título executivo;

                e) Não é exigível ao credor que invoque o direito de retenção o prévio reconhecimento, por sentença autónoma, de que o seu crédito goza daquela garantia real.

A recorrente sucumbe no recurso. Deverá, por essa razão, suportar as respectivas custas (artº 446 nºs 1 e 2 do CPC).

Dada a complexidade do tratamento processual do objecto do recurso, a respectiva taxa de justiça deve ser fixada nos termos da Tabela I-C que integra o RCP (artº 6 nº 5).

4. Decisão.

Pelos fundamentos expostos, nega-se provimento ao recurso

Custas pela recorrente, devendo a taxa de justiça ser fixada nos termos da Tabela I-C, integrante do RCP.

                                                                                                                            

                                                                                                                             Henrique Antunes (Relator)

                                                                                                                             José Avelino Gonçalves                   

                                                                                                                             Regina Rosa


[1] Armindo Ribeiro Mendes, Recursos em Processo Civil, Lex, Lisboa, 1994, pág. 138 e ss., e Recursos em Processo Civil, Reforma de 2007, Coimbra, 2009, págs. 50 e 51, Freitas do Amaral, Conceito e Natureza do Recurso Hierárquico, Coimbra, 1981, pág. 227 e ss.
[2] A afirmação de que os recursos visam modificar as decisões recorridas e não criar decisões sobre matéria nova constitui jurisprudência firme. Cfr., v.g., Acs. STJ de 14.05.93, CJ STJ, 93, II, pág. 62, e da RL de 02.11.95, CJ, 95, V, pág. 98.
[3] Ac. STJ de 23.03.96, CJ, 96, II, pág. 86.
[4] Armindo Ribeiro Mendes, Recursos em Processo Civil, Reforma de 2007, Coimbra Editora, Coimbra, 2009, pág. 81.
[5] Antunes Varela, RLJ, Ano 119, pág. 226, e Sobre o Contrato Promessa, 2ª edição, Coimbra Editora, 1989, págs. 106 a 116 e Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, 4ª edição, vol. I, Coimbra Editora, 1987, pág. 778.
[6] Ana Prata, O Contrato-Promessa, pág. 846
[7] Pinto Duarte, Direito Reais, cit., pág. 242.
[8] Menezes Leitão, Direito das Obrigações, vol. I, Introdução, Da Constituição das Obrigações, 2ª edição, Almedina, Coimbra, 2002, pág. 233. Adere a esta proposta restritiva, António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, II, Direito das Obrigações, Tomo II, 2010, Almedina, Coimbra, págs. 401 e 402.
[9] L. Miguel Pestana de Vasconcelos, Direito das Garantias, Almedina, Coimbra, 2010, pág. 323 e 324 e “Direito de retenção e contrato promessa e insolvência”, in Cadernos de Direito Privado, nº 33, Janeiro/Março de 2011, pág. 20, e Ac. do STJ de 14.12.11, www.dgsi.pt. que, aliás, se conforta expressamente na última das obras citados.
[10] E entendendo-se por consumidor apenas a pessoa singular e não também as pessoas colectivas, também a estas, na lógica desta interpretação restritiva, deverá recusar-se o reconhecimento da garantia. Sustentando uma concepção restrita de consumidor, na jurisprudência, o Ac. da RL de 31.05.97, www.dgsi.pt., e na doutrina, Teresa Almeida, Lei de Defesa do Consumidor Anotada, 2001, pág. 25, Calvão da Silva, Responsabilidade Civil do Produtor, pág. 58, Compra e Venda de Coisas Defeituosas, pág. 118, e Venda de Bens de Consumo, Decreto-Lei nº 67/2003, de 8 de Abril, Comentário, 4ª edição 2010, pág. 55, Cura Mariano, Responsabilidade Contratual do Empreiteiro, pág. 233 e Ferreira de Almeida, Os Direitos dos Consumidores, 1982, pág. 208; contra, Paulo Duarte, O Conceito Jurídico de Consumidor, segundo o art.º 2.º. 1, da Lei de Defesa do Consumidor, BFDUC, LXXV, 1999, pág. 649 e Sara Larcher, “Contratos celebrados através da internet; garantias dos Consumidores contra vícios na Compra e Venda de Bens de Consumo”, in Estudos do Instituto de Direito do Consumo, Vol. II, 2005, pág. 155.
[11] João Baptista Machado, Introdução ao Direito e a Discurso Legitimador, Almedina, Coimbra, 2002, pág. 186.
[12] António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, II, Direito das Obrigações, Tomo II, 2010, cit., pág. 398
[13] Vaz Serra, Contrato-Promessa, BMJ nº 74, 1958, pág. 6.
[14] Cfr., v.g., Ac. do STJ de 17.04.07., www.dgsi.pt. Discutível é, porém, a exacta natureza desse acordo. Segundo uns – por exemplo, o Ac. da RL de 16.02.82 (CJ, VII, I, pág. 189) estamos face a um contrato de comodato; segundo outros – v.g. Vaz Serra (RLJ Ano 115, pág. 208) e o Ac. da RL de 1905.07 (CJ, XII, III, pág. 86) estar-se-á perante um contrato obrigacional atípico inominado; para outros ainda – v.g., Antunes Varela (RLJ, Ano 104, pág. 269) trata-se, simplesmente, de uma simples cláusula acessória do contrato promessa. Salvo melhor reflexão, o caso é de uma específica união de contratos, funcionando a antecipação do pagamento do preço objecto do contrato definitivo prometido como prestação correspectiva da antecipação traditio do bem prometido vender.
[15] Menezes Cordeiro, A posse, cit., págs. 75 a 77 e Abrantes Geraldes, Temas, Procedimentos Cautelares Especificados, cit., págs. 37 a 39. e Lebre de Freiras, CPC Anot., vol. II, pág. 76 e João Calvão da Silva, Sinal e Contrato Promessa, Coimbra, 1988, pág. 160, nota (55) e v.g., Acs. do STJ de 06.11.07, 17.04.07, 18.12.07 e de 11.09.12, www.dgsi.pt.
[16] Acs. da RP de 18.05.06 e do STJ de 20.11.03, www.dgsi.pt., Fernando de Gravato Morais, Contrato-Promessa em Geral, Contratos-Promessa em Especial, Almedina, Coimbra, 2009, págs. 232 e 242 e Salvador da Costa, O Concurso de Credores, 3ª edição, Almedina, Coimbra, 2005, pág. 220.
[17] Acs. do STJ de 24.06.04 e de 10.01.08, www.dgsi.pt. e Fernando de Gravato Morais, Contrato-Promessa em Geral, cit. págs. 232 a 234.
[18] Acs. do STJ de 10.01.08, 18.12.07 e de 04.12.07 e da RP de 26.10.06, www.dgsi.pt, e Ana Prata, O Contrato Promessa e o seu Regime Civil, cit., pág. 888 e Calvão da Silva, Sinal e Contrato Promessa, cit. pág. 184.
[19] Acs. do STJ de 24.04.02 e 12.12.02, www.dgsi.pt e Salvador da Costa, O Concurso de Credores, cit., pág. 221.
[20] www.dgsi.pt.
[21] E já assim, também, no Ac. de 19.11.09, www.dgsi.pt.
[22] Miguel Teixeira de Sousa, Acção Executiva Singular, Lex, Lisboa, 1998, pág. 9.
[23] Catarina Serra, A Falência no Quadro da Tutela Jurisdicional dos Direitos de Crédito, Coimbra Editora, 2009, págs. 95 e 288.
[24] Abrantes Geraldes, “Direito de Retenção, Breves Notas”, CEJ, Outubro de 2006, pág. 9.
[25] Miguel Teixeira de Sousa, Introdução ao Processo Civil, Lex, Lisboa, 2000, pág. 51 e Ac. da RP de 26.01.10. A verificação de créditos é, no direito português, uma actividade inteiramente jurisdicional: mesmo que não haja contestação do crédito reclamado, este só se considera verificado depois do seu reconhecimento no despacho saneador que deve ser proferido no apenso de verificação: Miguel Teixeira de Sousa, “A verificação do passivo no processo de insolvência”, RFDUL, vol. XXXVI, 1995, Lex, pág. 361.
[26] José Lebre de Freitas, “Sobre a prevalência no apenso da reclamação de créditos, do direito de retenção reconhecido por sentença, Separata da ROA, Ano 66, II, Lisboa, Setembro de 2006, págs. 612 e 613.
[27] Fernando de Gravato Morais, “Promessa obrigacional de compra e venda com tradição da coisa insolvência do promitente-vendedor”, in Cadernos de Direito Privado, nº 29, Janeiro/Março de 2010, pág. 4.
[28] Miguel Pestana de Vasconcelos, “Direito de retenção, contrato promessa e insolvência”, in Cadernos de Direito Privado, nº 33, Janeiro/Março de 2011, págs, 9 e 10. E, em comentário ao acordão do Supremo de 19.11.09, o autor acrescenta: suscitam-nos no entanto as maiores reservas que se exija para a reclamação de crédito indemnizatório garantido com direito de retenção que tenha que haver já e, portanto, ser junta uma sentença condenatória “a reconhecer o incumprimento do promitente-vendedor e a tradição da coisa para o promitente-comprador”.
[29] Ac. da RP de 06.11.12.
[30] Salvador da Costa, O Concurso de Credores, Almedina, Coimbra, 1998, págs. 225 e 226 e Ac. do STJ de 07.04.02, BMJ nº 320, pág. 407.
[31] Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, 5ª edição, vol. II., Almedina, Coimbra, 1992, pág. 571. A função de garantia é assegurada pelo direito de retenção por uma via dupla: através de um efeito compulsório, resultante da pressão psicológica que a situação jurídica da retenção exerce sobre o dono da coisa; pela possibilidade de realização pecuniária, relacionada com as faculdades executivas, com pagamento preferencial da coisa retida, nos termos reconhecidos ao credor pignoratício e ao credor hipotecário (artºs 758 e 759 do Código Civil); cfr. António Menezes Cordeiro, Da Retenção do Promitente na Venda Executiva, ROA, Ano 57, nº 11, pág. 547.
[32] Vaz Serra, Direito de Retenção, BMJ nº 65, pág. 103, Calvão da Silva, Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória, pág. 339, Rui Pinto Duarte, Curso de Direitos Reais, Principia, Cascais, 2002, pág. 240 e 241 e Sérgio Nuno Coimbra Castanheira, Direito de Retenção do Promitente-Adquirente, in Garantia das Obrigações, Coordenação de Jorge Ferreira Sinde Monteiro, Almedina, Coimbra 2007, págs. 498 e 499; Acs. do STJ de 17.04.07 e 13.07.07, www.dgsi.pt. O direito de retenção não está sujeito a registo e, por isso, a sua publicidade é, precisamente, a resultante da posse exercida pelo retentor, que permite que terceiros se apercebam da sua existência.
[33] Ac. do STJ de 14.09.06, www.dgsi.pt. Solução que, de harmonia com a jurisprudência constitucional, não ofende bens ou valores constitucionais: Cfr. Acs. do TC nºs 356/04, de 19.04.04, 594/03, de 03.12.03, www.tribunalconstitucional.pt.
[34] Manuel de Andrade, Sentido e Valor da Jurisprudência, BFDUC, Vol. XLVIII, Coimbra, 1972, pág. 227.
[35] Ac. do STJ de 14.03.06, CJ, STJ, XIV, I, pág. 130 e António Santos Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, Novo Regime, Almedina, Coimbra, 2007, pág. 271.
[36] Acs. da RL de 10.11.05 e de 19.02.04, www.dgsi.pt. e Luís Filipe Brites Lameiras, Notas Práticas ao Regime dos Recursos em Processo Civil, Almedina, Coimbra, 2008, pág. 150.
[37] Eurico Lopes Cardoso, BMJ nº 80, págs. 220 e 221.
[38] Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, vol. II, 3ª edição, Almedina, 2000, págs. 273 e 274.
[39] Acs. do STJ 08.11.95, CJ, STJ, 95, III, pág. 293 e da RP de 20.02.01, www.dgsi.pt.
[40] Ac. do STJ de 29.09.95, www.dgsi.pt.
[41] Juan Montero Aroca, Valoración de la prueba, regras legales, Quaderni de “Il giusto processo civile”, 2, Stato di diritto e garanzie processualli, a cura di Franco Cipriani, Atti delle II Giornate internazionali de Diritto processualle civile, Edizione Scientifiche Italiene, 2008, págs. 44 e 45.
[42] Michelle Taruffo, La Prueba, Marcial Pons, Madrid, 2008, págs. 42 e 43.
[43] Ac. da RC de 18.05.94, BMJ nº 437, pág. 598.
[44] Antunes Varela, RLJ Ano 116, pág. 330.