Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1534/09.7TBFIG.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: HENRIQUE ANTUNES
Descritores: MATÉRIA DE FACTO
PODER-DEVER
TRIBUNAL DA RELAÇÃO
DOCUMENTO AUTÊNTICO
FORÇA PROBATÓRIA
CONFISSÃO EXTRAJUDICIAL
DEPOIMENTO DE PARTE
APRECIAÇÃO DA PROVA
Data do Acordão: 06/23/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE COIMBRA – COIMBRA – SECÇÃO CÍVEL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 607º, Nº 5, 663º, Nº 2, E 640º DO NCPC; 358º, 361º E 371º DO C. CIVIL.
Sumário: a) A Relação deve formar uma convicção verdadeira – e fundamentada - sobre a prova produzida na 1ª instância, independente ou autónoma da convicção do juiz a quo, que pode ou não ser coincidente com a deste último – não se devendo limitar a controlar a legalidade da produção da prova realizada naquela instância e a aceitar o resultado do exercício dessa prova, salvo os casos em que esse julgamento seja ilógico, irracional, arbitrário, incongruente ou absurdo.

b) O documento autêntico prova plenamente os factos atestados que se passaram na presença do documentador, v.g., as declarações, mas já não prova de pleno a sinceridade desses factos ou a sua validade ou eficácia jurídicas, pois de uma coisa e de outra não pode aperceber-se a entidade documentadora, podendo, assim, demonstrar-se que a declaração inserta no documento não é sincera nem eficaz, sem necessidade de arguição da falsidade dele.

c) A confissão extrajudicial, comunicada por documento autêntico ou documento particular genuíno que tiver sido feita à parte contrária, tem força probatória plena, mas o declarante é admitido a provar que a declaração não correspondeu à verdade ou que foi afectada por algum vício de consentimento, vício para cuja demonstração é admitida a prova testemunhal e – e por extensão de regime – a prova por declarações de parte.

d) Existindo um princípio de prova escrita, suficientemente verosímil, fica aberta a possibilidade de complementar, por recurso à prova testemunhal, a prova do facto contrário objecto da declaração confessória, ou seja, de demonstrar não ser verdadeira a afirmação produzida na presença do documentador.

e) É admissível a valoração do depoimento de parte, no segmento em que não produz confissão, à luz da livre apreciação do tribunal.

f) A apreciação da prova deve ocorrer sob o signo da probabilidade lógica – de evidence and inference -, i.e., segundo um critério de probabilidade lógica prevalecente, portanto, segundo o grau de confirmação lógica que os enunciados de facto obtêm a partir das provas disponíveis.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

1. Relatório.

A ré, P..., impugna, no recurso ordinário de apelação, a sentença da Sra. Juíza de Direito da Secção Cível da Instância Central da Comarca de Coimbra, proferida no dia 15 de Janeiro de 2015, que, julgando parcialmente procedente a acção que contra ela, o Banco I..., SA, e A..., e cônjuge, M..., foi proposta por J..., a condenou a pagar ao último as quantias de € 30.000,00 (trinta mil euros) referente ao preço devido pela compra e venda da metade indivisa da fração autónoma identificada no ponto A) dos factos provados, ocorrida em 15 de Janeiro de 2004, cfr. ponto G) dos factos provados, e de € 30.000,00 (trinta mil euros) a título de cláusula penal pelo não pagamento, dentro do prazo de 5 anos (contados de 24 de Julho de 2003), do preço referido em 5.1.1., acrescido de juros de mora desde a citação até integral e efetivo pagamento, e absolveu os demais réus dos pedidos formulados.

A apelante – que pede no recurso a revogação desta sentença, na parte em que a condena a pagar ao autor a quantia de € 30.000,00 (trinta mil euros) referentes ao preço devido pela compra e venda da metade indivisa da fração autónoma identificada no ponto A) dos factos provados, ocorrida em 15 de Janeiro de 2004, e a quantia de € 30.000,00 (trinta mil euros) a título de cláusula penal pelo não pagamento, dentro de 5 anos (contados de 24 de Julho de 2003) do preço referido anteriormente, acrescido dos juros de mora desde a citação até integral pagamento, e sua substituição por outra diversa que dê como provado o pagamento ao autor dos € 30.000,00 assumidos na “Declaração Conjunta” de acordo com a declaração por aquele emitida na escritura pública outorgada em 15 de Janeiro de 2004 e, em consequência, a absolva dos pedidos contra si formulados – rematou a sua alegação com esta constelação de conclusões:

...

Na resposta ao recurso, o apelado concluiu, naturalmente, pela improcedência dele.

2. Factos relevantes para o conhecimento do objecto do recurso.

2.1. O Tribunal de que provém o recurso decidiu a matéria de facto nestes termos:

Factos provados.

...

2.2. A Sra. Juíza de Direito adiantou, para justificar o julgamento, designadamente do enunciado referido no ponto 9. dos factos declarados não provados, esta motivação:

(…)

3. Fundamentos.

3.1. Delimitação objectiva do âmbito do recurso.

Além de delimitado pelo objecto da acção e pelos eventuais casos julgados formados na instância recorrida e pela parte dispositiva da decisão impugnada que for desfavorável ao impugnante, o âmbito do recurso pode ser limitado pelo próprio recorrente. Essa restrição pode ser realizada no requerimento de interposição ou nas conclusões da alegação (artº 635 nºs 2, 1ª parte, e 3 do nCPC).

A sentença impugnada, com fundamento em que a apelante não cumpriu, pontualmente, a sua obrigação de pagamento do preço - € 30 000,00 – devido pela compra e venda da quota do apelado na fracção autónoma de edifício comum, concretizada em 14 de Janeiro de 2004, o que deveria ter ocorrido até 24 de Julho de 2008, condenou-a, cumulativamente, a pagar ao apelado tal quantia e, bem assim, com fundamento na pena convencionada – que qualificou como cláusula penal compulsória - quantia de igual valor.

A recorrente discorda, fazendo assentar o seu dissentimento, no error in iudicando, por erro na aferição ou apreciação das provas, dos factos – julgados não provados - relativos à contracção, junto da testemunha ..., e dos co-demandados, A... e cônjuge, M..., dos empréstimos das quantias de € 20.000,00 e € 10.000,00, respectivamente, e ao pagamento ao apelado da quantia de € 30.000,00 convencionada como preço da alienação, por aquele, da sua quota na fracção autónoma de edifício de que ambos eram comproprietários.

A impugnação tem por objecto – e mesmo só por objecto – a decisão da questão de facto. No ver da apelante, numa sã e prudente avaliação da prova, deve julgar-se provado, de um aspecto que contraiu os apontados empréstimos e, de outro, que pagou ao apelado a indicada quantia de € 30.000,00, devendo, correspondentemente, julgar-se não provado o facto inverso – que não entregou, até ao presente, ao autor, o valor de € 30.000.00. Note-se que a ofensa, pelo tribunal recorrido, de uma disposição legal que fixe a força de determinado meio de prova – que se verifica, nomeadamente, quando aquele tribunal deixou de conceder ao meio de prova o seu valor legal, como sucede, por exemplo, quando não atribui a um documento autêntico ou à confissão o valor de prova plena – é ainda, ao contrário do que parecer supor a apelante, um erro na apreciação da prova. Como também ainda é um erro na apreciação da prova, a violação de uma proibição de produção ou de valoração de uma prova, como, por exemplo, a utilização da prova testemunhal para demonstração de uma convenção contrária ao conteúdo de documento autêntico (artº 394 nº 1 do Código Civil).

A controvérsia gravita, pois, em torno da quaestio facti, relativa ao facto – essencial - do pagamento do apontado preço, relativamente ao qual os demais factos objecto da impugnação – a contracção dos dois empréstimos - são puramente instrumentais, i.e., de cuja prova se pode inferir – no ver da apelante – a demonstração daquele facto principal. E diz-se no ver da apelante, dado que, coincidindo o âmbito dos factos instrumentais com o da prova indiciária, pelo que só são verdadeiramente factos instrumentais aqueles que constituem a base de presunções judiciais, portanto, aqueles que permitem inferir, através de regras de experiência, o facto principal – não é esse seguramente o caso dos factos relativos à contracção dos empréstimos alegados, dado que da prova destes não se segue – como corolário que não possa ser recusado – a prova do facto do pagamento (artº 351 do Código Civil).

 Facto do pagamento que, de harmonia com a alegação da apelante, se deve ter por provado – e plenamente – por força da declaração confessória do apelado, documentada na escritura pública de compra e venda, prova plena que importa a proibição de produção – e logo de valoração – da prova testemunhal.

Sendo esta a questão concreta controversa, então importa proceder ao exame, ainda que leve, da finalidade e dos parâmetros dos poderes de controlo desta Relação relativamente à decisão da questão de facto, do valor probatório do documento no qual se contém a declaração do apelante de recebimento daquele preço e da prova admissível para demonstrar a falta de validade ou de veracidade ou sinceridade dessa mesma declaração.

3.2. Error in iudicando por erro em matéria de provas.

3.2.1. Finalidades e parâmetros sob cujo signo são actuados os poderes de controlo desta Relação relativamente à decisão da matéria de facto.

O controlo da Relação relativamente à decisão da matéria de facto pode ter, entre outras, como finalidade, a reponderação da decisão proferida. A Relação pode reapreciar o julgamento da matéria de facto e alterar – e substituir – a decisão da 1ª instância, designadamente se a prova produzida – designadamente a prova pessoal produzida na audiência final, desde que tenha sido objecto de registo – impuser decisão diversa (artº 640 nº 1 do nCPC).

Todavia, esse controlo é actuado na ausência de dois princípios que contribuem decisivamente para a boa decisão a questão de facto: o da oralidade e da imediação - a decisão da Relação não é atingida por forma oral – mas através da audição de registos fonográficos ou da leitura, fria e inexpressiva de transcrições – e sem uma relação de proximidade comunicante com os participantes processuais, de modo a obter uma percepção própria do material que há-de ter como base dessa mesma decisão.

Além disso, esse controlo orienta-se pelos parâmetros seguintes:

a) Do exercício da prova – que visa a demonstração da realidade dos factos – apenas pode ser obtida uma verdade judicial, jurídico-prática e não uma verdade, absoluta ou ontológica, matemática ou científica (artº 341 do Código Civil);

b) A livre apreciação da prova assenta na prudente convicção – i.e., na faculdade de decidir de forma correcta - que o tribunal adquirir das provas que foram produzidas (artº 607 nº 5 do nCPC).

c) A prudente obtenção da convicção deve respeitar as leis da ciência, da lógica e as regras da experiência - entendidas como os juízos hipotéticos, de conteúdo geral, desligados dos factos concretos objecto do processo, procedentes da experiência mas independentes dos casos particulares de cuja observação foram deduzidos e que, para além desses casos, pretendem ter validade para casos novos – e que constituem as premissas maiores de facto às quais são subsumíveis factos concretos;

d) A convicção formada pelo juiz sobre a realidade dos factos deve ser uma convicção subjectiva fundada numa convicção objectiva, assente nas regras da ciência e da lógica e da experiência comum ou de normalidade maioritária, e portanto, uma convicção cognitiva e não volitiva, voluntarista, subjectiva ou emocional.

e) A convicção objectiva é uma convicção argumentativa, i.e., demonstrável através de um ou mais argumentos capazes de se impor aos outros;

e) A apreciação da prova vincula a um conceito de probabilidade lógica – de evidence and inference, i.e., segundo um critério de probabilidade lógica prevalecente, portanto, segundo o grau de confirmação lógica que os enunciados de facto obtêm a partir das provas disponíveis: os elementos de prova são assumidos como premissas a partir das quais é possível extrair inferências; as inferências seguem modelos lógicos; as diversas situações podem ser analisadas de acordo com padrões lógicos que representam os aspectos típicos de cada caso; a conclusão acerca de um facto é logicamente provável, como uma função dos elementos lógicos, baseada nos meios de prova disponíveis.

Note-se – de harmonia com a doutrina que se tem por preferível - que os parâmetros dos poderes de controlo em que esta Relação se mostra investida não são inteiramente condizentes com aqueles que – num largo troço das suas conclusões – a apelante lhe atribuiu.

Em síntese – dado que o detalhe desta proposição se não compadece com os limites estreitos impostos pela decisão do caso concreto - se a Relação tem o dever de proceder ao exame crítico das provas - novas ou mesmo só renovadas – que sejam produzidas perante ela e de formar, relativamente às provas submetidas à sua livre apreciação, uma convicção prudente sobre essas provas – não há razão bastante – legal ou sequer epistemológica - para que não proceda àquele exame e à formulação desta convicção - e à sua objectivação - no caso de reapreciação das provas já examinadas pela 1ª instância (artº 607 nº 5, ex-vi artº 663 nº 2 do nCPC). O controlo da correcção da decisão da matéria de facto da 1ª instância exige, realmente, que a Relação construa – autonomamente, embora com os limites decorrentes da sua vinculação à impugnação do recorrente - não só a sua própria convicção sobre as provas produzidas, mas igualmente que a fundamente[1].

A conclusão da correcção ou da incorrecção da decisão da questão de facto do tribunal da 1ª instância exige um juízo de relação ou comparação entre a convicção que o decisor de facto daquela instância extrai dos elementos de prova que apreciou e a convicção que a Relação adquire da reapreciação dessas mesmas provas. Se a convicção do juiz da 1ª instância e da Relação forem coincidentes, a decisão da matéria de facto daquele tribunal deve ter-se por correcta, com a consequente improcedência da impugnação deduzida contra ela; se a convicção do decisor da 1ª instância e da Relação forem divergentes, a Relação deve fazer prevalecer a sua convicção sobre o convencimento do juiz da 1ª instância e, correspondentemente, revogar a decisão deste último e logo a substituir por outra conforme aquela mesma convicção[2].

A Relação deve, pois, formar uma convicção verdadeira – e fundamentada - sobre a prova produzida na 1ª instância, independente ou autónoma da convicção do juiz a quo, que pode ou não ser coincidente com a deste último – não se limitando a controlar a legalidade da produção da prova realizada naquela instância e a aceitar o resultado do exercício da prova, salvo os casos em que esse julgamento seja ilógico, irracional, arbitrário, incongruente ou absurdo.

3.2.2. Força probatória do documento autêntico e proibição de produção e de valoração da prova por testemunhas.

Em certos casos, a lei impõe ao juiz a conclusão que há-de tirar de certo meio de prova e, portanto, a relevância que deve dar a esse mesmo meio de prova. É nisto que consiste a prova legal ou tarifada. Face a este tipo de prova, é imposto ao juiz que conclua, em face de certo meio de prova, que os factos estão provados. Neste tipo de prova legal positiva, o meio de prova é condição suficiente da prova: o juiz é vinculado a tomar como certa uma conclusão – verdade formal – ainda que não sejam oferecidas todas as garantias da sua conformidade à verdadeira verdade – à verdade material. Este tipo de prova divide-se em três espécies: prova bastante, prova plena e prova pleníssima.

Partindo da força probatória – no sentido de meio de prova – é, realmente, corrente o distinguo entre prova bastante, prova plena e prova pleníssima[3]. Prova bastante é a que, na ausência de qualquer dúvida em contrário, a lei permite como fundamento da convicção do juiz, mas que cede mediante contraprova; prova plena é a que cede - mas só cede - perante prova do contrário.

Produzida uma prova plena, é irrelevante criar no espirito do juiz uma situação de dúvida, dado que a lei manda resolver essa situação de dúvida no sentido indicado pela mesma prova; fica, porém, salva à contraparte a possibilidade de provar a irrealidade do facto. A prova legal plena só pode ser contrariada por meio de prova que mostre não ser verdadeiro o facto dela objecto (artº 347 do Código Civil).

A lei prevê duas modalidades de prova plena: a prova plena simples – em que a prova do contrário pode ser feita por qualquer meio – e a prova plena qualificada, em que a prova do contrário não pode fazer-se por testemunhas ou presunções judiciais. A regra é a de a prova plena ser qualificada (artºs 351 e 392 nº 2 do Código Civil).

No tocante às obrigações, o ónus da prova reparte-se da forma seguinte: ao credor compete demonstrar o seu direito, provando o facto constitutivo (artº 342 nº 1 do Código Civil). Feita a demonstração do direito à prestação, caso tenha havido cumprimento, ao devedor, dada a eficácia extintiva do facto correspondente, cabe demonstrá-lo (artº 342 nº 2 do Código Civil). Quando, por qualquer motivo, o devedor não possa produzir essa prova, fica sujeito a esta desagradável consequência: ter de cumprir outra vez.

Neste contexto, compreende-se sem dificuldade que se confira ao devedor a faculdade de recusar o cumprimento enquanto não lhe for dada quitação, ou seja, enquanto não lhe for passada declaração, em regra constante de documento específico – o recibo – de como o cumprimento foi realizado (artº 787 nº 2 do Código Civil).

O autor do cumprimento pode exigir a quitação de quem quer que tenha recebido a prestação, antes ou depois do cumprimento (artº 787 nºs 1, 1ª parte, e 2, do Código Civil). A quitação pode constar de documento autêntico ou autenticado, ou ser provida de reconhecimento notarial se nisso o autor do cumprimento tiver interesse legítimo (artº 787 nº 1, 2ª parte, do Código Civil).

Normalmente, porém, a quitação ou recibo é a um documento particular no qual o credor declara ter recebido a prestação. Trata-se, porém, de uma simples declaração de ciência, certificativa do facto de que a prestação foi realizada e recebida pelo credor – mas não uma declaração de vontade que signifique que o credor quis aceitar a prestação realizada como satisfação do seu direito e que o considera extinto, embora, uma tal declaração esteja, por via de regra, subjacente ao documento de quitação[4].

A força probatória do documento consiste no valor ou na fé que, como meio de prova a lei lhe confere. Esse valor pode referir-se do documento em si mesmo; ao seu conteúdo. No primeiro caso, têm-se em vista a força probatória formal do documento, a sua autenticidade ou genuinidade; no segundo, a sua força probatória material.

A força probatória formal do documento diz, desde logo, respeito, à proveniência dele, à pessoa de que emana. No tocante à proveniência do documento, estabelece a nossa lei substantiva civil fundamental uma presunção de autenticidade: desde que o documento se mostre subscrito pelo autor, com assinatura reconhecida notarialmente ou com o selo do respectivo serviço, presume-se que provêm da autoridade ou oficial público a quem é atribuído (artº 370 nºs 1 e 2 do Código Civil).

No tocante à força probatória material do documento, quer dizer, quanto às declarações ou narrações de que é continente, em primeiro lugar, o documento autêntico faz prova plena dos factos referidos como praticados pelo documentador: tudo o que o documento referir como tendo sido praticado pela entidade documentadora, tudo o que, segundo o documento, seja obra do seu autor, tem de ser aceite como exacto (artº 371 nº 1, 1ª parte, do Código Civil).

Assim, por exemplo, quando o notário afirma no documento que o leu em voz alta perante o testador, que lhe explicou o seu conteúdo e os direitos que adquiria e as obrigações que contraía tal afirmação há-de ter-se por verdadeira; tem de admitir-se como certo que o notário praticou o acto que, no instrumento, diz ter praticado: a fé pública de que goza o documentador garante a veracidade desse facto.

Depois, o documento autêntico prova a verdade dos factos que se passaram na presença do documentador, quer dizer, os factos que nele são atestados com base nas suas próprias percepções (artº 371 nº 1, 2ª parte, do Código Civil). Este ponto – que é, de resto, o mais delicado da eficácia probatória do documento autêntico – deve ser entendido com habilidade. O documentador garante, pela fé pública de que está revestido, que os factos que documenta, se passaram; mas não garante, nem pode garantir, que tais factos correspondem à verdade. Dito doutro modo: o documento autêntico não fia a veracidade das declarações que os outorgantes fazem ao documentador; só garante que eles as fizeram.

De outro aspecto, os juízos pessoais do documentador só valem como elementos sujeitos à livre apreciação do juiz (artº 371, 2ª parte, do Código Civil). Se o notário, por exemplo, declarar que lhe parece estar o testador no uso das suas faculdades mentais, isso só vale como elemento sujeito à livre apreciação do juiz.

Mas se o documento prova plenamente os factos atestados que se passaram na presença do documentador, v.g., as declarações, já não prova de pleno a sinceridade desses factos ou a sua validade ou eficácia jurídicas, pois de uma coisa e de outra não pode aperceber-se a entidade documentadora. Pode, assim, demonstrar-se que a declaração inserta no documento não é sincera nem eficaz, sem necessidade de arguição da falsidade dele.

Assim, por exemplo, se numa escritura pública de compra e venda, o vendedor declara ao notário que já recebeu o preço, aquele documento só faz prova plena de que aquele outorgante fez aquela declaração negocial; não prova, porém, que tal afirmação corresponde à verdade.

Portanto, o documento no qual sejam plasmadas, por exemplo, as declarações de vontade do testador, integrantes do negócio jurídico unilateral em que o testamento se resolve, prova plenamente que ele produziu essas declarações – mas não prova que estas não se encontram feridas com um qualquer vício na formação da vontade.

A prova plena feita pelo documento autêntico é uma prova plena qualificada, dado que só cede pela prova do contrário, mas uma tal prova em contrário tem na lei um regime especial: o da falsidade (artºs 347 e 372 nº 1 do Código Civil).

No tocante à falsidade há que fazer um distinguo entre a falsidade ideológica e a falsidade material. A primeira verifica-se se no documento se atestar como tendo sido objecto da percepção do documentador qualquer facto que na realidade se não verificou, ou como tendo sido praticado pela autoridade ou oficial público qualquer acto que na realidade não o foi; a falsidade material ocorre se depois da formação do documento, este for alterado no seu conteúdo. Este distinguo mostra que a falsidade ideológica não se confunde com a falta de autenticidade ou de genuinidade do documento: se, por exemplo, o notário refere que reconheceu a identidade do testador o que, na realidade, não aconteceu, o documento é genuíno embora falso.

Assim, se o documentador refere como praticado um determinado facto que não praticou ou atesta um facto que se não se verificou perante ele – falsidade ideológica – o documento é falso e pode ser atacado mediante a arguição da respectiva falsidade (artº 373 nºs 1 e 2 do CC); inversamente, se o documentador atesta um facto que perante ele foi declarado, embora a declaração não corresponda à verdade, o documento tem um conteúdo não verdadeiro – mas não pode ser qualificado de falso: nesta hipótese, a impugnação do conteúdo do documento não pode ser feita através da alegação da falsidade do documento, consistindo o fundamento mais comum dessa impugnação a invocação da falta ou de um vício da vontade do declarante, para a prova do qual pode ser utilizado qualquer meio de prova (artº 393 nº 2 do Código Civil).

Numa palavra: o documento autêntico faz prova plena da materialidade das declarações prestadas – mas não da sinceridade, veracidade ou validade das declarações emitidas pelo declarante, dado que transcendem a área das percepções do documentador. Nada impede, por isso, o recurso à prova testemunhal - e, por analogia ou interpretação extensiva à prova por declarações de parte – para demonstrar um qualquer vício da vontade, que a declaração foi viciada por erro, dolo, coacção, simulação, ou mesmo que faltou essa vontade, porque por exemplo, a declaração documentada não é séria. E tem-se por declaração não séria – que é inexistente ou ao menos nula – a declaração produzida com a intenção de criar uma aparência com a convicção de que a falsidade da aparência é conhecida e de que a aparência assim criada é inocente e não prejudicará ninguém (artº 245 nº 1 do Código Civil). E è justamente a existência de uma declaração não séria que se alega quando, por exemplo, o vendedor afirma que a sua declaração, documentada numa escritura, de que recebeu, do comprador, o preço da venda, não é verdadeira, dado que essa falsidade é do necessário conhecimento do comprador.

A confissão caracteriza-se como uma declaração ou reconhecimento – declaração de ciência – e contradistingue-se pelo seu objecto: um facto desfavorável ao declarante – confitente – e favorável à parte contrária: com a declaração confessória, o confitente contra se pronuntiatio (artº 352 do Código Civil). A confissão é extrajudicial quando é feita por modo diferente da confissão judicial (artº 355 nº 4 do Código Civil).

A confissão extrajudicial segue a regra segundo a qual a confissão tem o valor probatório do meio pelo qual é comunicado ou adquirido pelo tribunal. Assim, se for comunicada por documento autêntico ou documento particular genuíno e tiver sido feita à parte contrária, tem força probatória plena (artº 358 nº 2 do Código Civil)[5]. Nesta hipótese, se a declaração for contrária aos interesses do declarante, o documento transforma-se em confessório. E caso a confissão seja feita à parte contrária, o facto correspondente constitui objecto de uma prova plena – e de uma prova plena qualificada: o facto considera-se verdadeiro, embora possa não o ser, por aplicação das regras da confissão, podendo, porém, o declarante valer-se dos meios de impugnação desta. Pode por isso, provar-se que a declaração não correspondeu à verdade ou que foi afectada por algum vício de consentimento (artºs 376 nº 2 e 359 nºs 1 e 2 do Código Civil)[6]. E para a prova desse vício é seguramente admitida a prova testemunhal[7] e – e por analogia ou extensão de regime – a prova por declarações de parte.

É exacto que a prova testemunhal, admitida juxta scripturam, i.e., para efeitos interpretativos, já não o é, porém, em princípio, contra ou praeter scripturam – i.e., para prova de quaisquer convenções contrárias ou adicionais ao conteúdo autênticos ou dos documentos particulares, quer essas convenções sejam anteriores, contemporâneas ou posteriores à formação do documento (artº 394 nº 1 do Código Civil).

Todavia, o âmbito desta proibição de produção de prova testemunhal é mais restrito do que aparenta à primeira vista.

Em primeiro lugar, a proibição de produção daquela prova pessoal apenas se refere às convenções contrárias ou adicionais ao conteúdo do documento – e não a simples declarações - não excluindo, portanto, a possibilidade de provar por testemunhas qualquer outro elemento como o fim ou o motivo do negócio, dado que aquele fim ou este motivo não é nem contrário ao conteúdo do documento, nem constitui uma cláusula adicional à declaração[8].

Depois, a inadmissibilidade da prova testemunhal, em contrário ou além do conteúdo do documento, não se refere à prova dos vícios da vontade ou da divergência entre a vontade e a declaração. Admite-se, portanto, sem qualquer restrição, aquela prova para demonstração, por exemplo, do erro, do dolo, da coacção, etc.[9].

Finalmente, não falta doutrina de incontestável valia científica, que sustenta que princípio da não admissibilidade daquela prova não é, nos casos apontados, absoluto. Assim, logo no contexto dos trabalhos preparatórios do Código Civil de 1966, sustentava-se a admissibilidade daquela prova, quando seja acompanhada de circunstâncias que tornem verosímil a convenção que com ela se quer demonstrar[10], ou – no caso de prova da simulação pelos simuladores - quando tenha em vista fazer valer a ilicitude do contrato dissimulado ou, melhor, quanto está em jogo um interesse público que deva prevalecer sobre o das partes[11]. E já na vigência do Código Civil, continua a sustentar-se uma interpretação restritiva da proibição apontada, por parecer razoável que a prova testemunhal seja admitida quando, em consequência, das circunstâncias do caso concreto, for verosímil que a convenção foi feita, ou quando a convicção do tribunal está já parcialmente formada com base nessas circunstâncias e a prova testemunhal se limitou a completar essa convicção, ou antes, a esclarecer o significado de tais circunstâncias[12], não tendo esta doutrina das restrições à admissibilidade daquela prova, sido formulada expressis verbis no Código, por isso se ter considerado desnecessário[13], e que as excepções que estes códigos fazem à regra da inadmissibilidade da prova testemunhal contra ou além do conteúdo do documento parecem igualmente verdadeiras no nosso direito, apesar do silêncio do Código acerca delas[14].

O objectivo da inadmissibilidade daquela prova é o de afastar os perigos que a sua admissibilidade seria susceptível de originar: quando uma das partes – ou ambas – quisesse infirmar ou frustrar os efeitos do negócio poderia socorrer-se de testemunhas para demonstrar que o negócio foi simulado, destruindo assim, mediante uma prova insegura ou pouco fiável, a eficácia do documento[15]. Tal objectivo, porém, só se compreende à luz da regra de experiência de harmonia com a qual, se as partes reduzem a escrito um determinado conjunto de declarações, é de presumir que também o façam relativamente a cláusulas contrárias ou adicionais ao conteúdo do documento. Pretendeu-se, portanto, acautelar a justiça da decisão do caso, subtraindo-a à acção de litigantes e testemunhas menos escrupulosas, existindo documento – meio de prova tido por mais fiável – com força probatória plena. O legislador não terá, porém, desejado proteger situações que não merecem tutela, beneficiando quem, efectivamente, acordou verbalmente contra ou para além do documento, e na acção judicial, pretendendo subtrair-se ao cumprimento da palavra dada, alegue a inadmissibilidade da prova testemunhal[16].

Em resumo: existindo um princípio de prova escrita, suficientemente verosímil, abre-se a possibilidade de complementar, por recurso à prova testemunhal, a prova do facto contrário objecto da declaração confessória, ou seja, de demonstrar não ser verdadeira a afirmação produzida na presença do documentador[17].

Serve isto para dizer que, na espécie do recurso, não estava vedado ao apelado demonstrar, por recurso à prova pessoal, que, apesar da declaração constante da escritura, não recebeu, realmente, da apelante, o preço convencionado. Quer porque, segundo alega, aquela declaração não é séria – e, portanto, é nula ou inexistente - quer porque existe um início de prova documental que torna verosímil, a inveracidade daquele facto: o contrato concluído entre ambos no dia 24 de Julho de 2003, no qual se convencionou que a escritura de compra e venda seria outorgada no mais curto espaço de tempo – mas o preço convencionado de € 30.000,00 seria pago pela apelante dentro de cinco anos. Esta convenção insinua, de um aspecto, a ausência de simultaneidade necessária entre a celebração da escritura e a satisfação do preço e que o pagamento deste não constitua conditio sine qua non de outorga da escritura, e de outro, a falta de meios, por parte da apelante, para solver, mesmo a médio prazo, aquele preço. O que inculca ou, ao menos, torna verosímil o facto do não pagamento, em data anterior a 15 de Janeiro de 2004 – data da celebração da escritura – daquele preço.

            Resta, porém, saber se a prova pessoal produzida na instância recorrida permite a conclusão, a que chegou a sentença apelada, de que, realmente, aquele preço não foi pago.

3.2.3. Reponderação da prova.

Como decorre da motivação com que justificou o seu julgamento da questão de facto, que a Sra. Juíza de Direito desvalorizou ou depreciou, francamente, designadamente com fundamento no pecado da parcialidade, as declarações produzidas pelos réus, A... e cônjuge, no contexto do depoimento de parte. Segundo a impugnante, estava vedado ao tribunal a quo fazer qualquer referência motivados aqueles depoimentos de parte, porquanto os mesmos não confessam qualquer facto sobre que versasse os seus depoimentos, dado que o depoimento de parte não constitui no nosso direito um testemunho de parte a apreciar livremente em todo o seu conteúdo, favorável ou desfavorável ao depoente – mas um meio de provocar a confissão.

Nada de menos exacto.

Consabidamente, a prova resolve-se na actividade destinada à formação do tribunal sobre a realidade dos factos controvertidos, actividade que incumbe à parte onerada que, se não satisfazer o ónus correspondente, não obterá uma decisão favorável (artºs 341 e 346, in fine, do Código Civil).

Para cumprir o ónus da prova a parte tem de utilizar um dos meios de prova legal ou contratualmente admitidos ou não excluídos por convenção das partes (artº 345 do Código Civil).

Não é inteiramente incontroversa a questão de saber se, entre nós, existe ou não uma enumeração taxativa, exaustiva, dos meios de esclarecimento e de convicção do tribunal, o mesmo é dizer, de provas[18]. O Código Civil – em que se contém o direito probatório material - contém uma indicação de vários tipos diferenciados de prova, mas essa enumeração nem sequer é esgotante, dado que não menciona diversas provas, admitida pela lei de processo, como, por exemplo, a prova por declarações de parte e a prova por apresentação de coisas – nem uma prova de importância crescente; a prova por documento electrónico (artºs 416 e 466 do nCPC e 1 do Decreto-Lei nº 290-D/99, de 2 de Agosto). E disposições avulsas mostram a admissibilidade de meios inominados de prova, como sucede nas acções de filiação em que se admite os exames de sangue e quaisquer outros métodos cientificamente comprovados, ou de meios de obtenção da prova, como, por exemplo, os relatórios sociais em processos tutelares cíveis (artºs 1801 do Código Civil e 147-B do Decreto-Lei 314/78, de 27 de Outubro).

Todavia, não falta quem sustente a inadmissibilidade de meios de prova não previstos na lei, e, portanto, uma proibição de produção e de valoração de provas atípicas[19]. Tais provas seriam, assim, materialmente proibidas e, portanto, ilícitas e, como tal, insusceptíveis de ser valoradas pelo tribunal, não podendo servir de fundamento a qualquer decisão desse mesmo tribunal, seja qual for a sua natureza. Uma doutrina maioritária, ainda que com reservas, concluía, no entanto, pela inexistência de um números clausus de meios de prova[20].

E o problema é debatido a propósito, justamente, da valoração das declarações não confessórias da parte – portanto, favoráveis a essa parte - produzidas no contexto de depoimento de parte. A dúvida reside no facto de o depoimento de parte ser nitidamente instrumental no tocante à prova por confissão, o mesmo é dizer, ao reconhecimento da realidade de factos que desfavorecem o depoente e que favorecem a parte contrária (epígrafe que encabeça o artº 552 do CPC de 1961 e 352 do Código Civil). A confissão é, realmente, definida como o reconhecimento que a parte faz de um facto que lhe é desfavorável e favorece a parte contrária, caracterizando-se, portanto, como uma declaração de reconhecimento - uma declaração de ciência – que se contradistingue pelo seu objecto – um facto desfavorável ao depoente, que contra se pronuntiatio.

Apesar de parecer contrário de alguma doutrina, uma jurisprudência[21] – que se crê maioritária – conclui, à luz do princípio da livre apreciação das provas, pela admissibilidade da valoração do depoimento de parte, mesmo no segmento em que as respectivas declarações lhe eram favoráveis (artº 607 nº 5 do nCPC). Feitas todas as contas, a conclusão a tirar é, realmente, a da admissibilidade da produção e da valoração das declarações de parte, mesmo que respeitem a enunciados de facto que lhe sejam favoráveis. Segundo certo entendimento do problema, com uma ressalva importante – referida não à admissibilidade do meio de prova, mas à avaliação da sua força probatória: aquela valoração é admissível, contanto que o tribunal não se baseie exclusivamente nessas declarações para formar a sua convicção sobre a veracidade ou inveracidade dos factos controvertidos[22]. Quer dizer: a proibição de valoração deve considerar-se afastada, desde que as declarações, mesmo referidas a enunciados de facto que sejam favoráveis ao declarante, obtenham, de outros meios de prova – ou mesmo de regras de experiência ou de critérios sociais – um grau de confirmação adequado.

A circunstância de a essas declarações não poder ser atribuído o valor de confissão, não impede a sua livre valoração, dado que se não for possível atribuir ao meio de prova qualquer dos valores que a lei lhe atribui em abstracto, é sempre possível atribuir-lhe um desses valores, o que é confirmado pela regra de que o reconhecimento de factos desfavoráveis que não possa valer como confissão, sempre vale como elemento probatório que o tribunal apreciará livremente (artº 361 do Código Civil). E a correcção deste entendimento do problema é confirmada pela consagração, no Código de Processo Civil dito novo, de um novo meio de esclarecimento e convicção: a prova por declarações de parte (artº 466 do nCPC).

Deve, portanto, julgar-se perfeitamente admissível a valoração do depoimento de parte, no segmento em que não produz confissão, à luz da livre apreciação do tribunal, como sempre sucederá, de resto, no caso de acção relativa a direitos indisponíveis em que a confissão se tem por inadmissível (artº 354 b) do Código Civil).

O decisor de facto da 1ª instância depreciou as declarações dos co-demandados A... e cônjuge, M... – irmã da apelante - bem como da testemunha ... E fez bem. Uns e outros asseveram, nos seus depoimentos, ter emprestado à apelante as quantias, deveras consideráveis, de € 10.000,00 e € 20.000,00, respectivamente, tendo ainda os dois primeiros assegurado que a apelante pagou ao apelado a apontada quantia de € 30.000,00.

Realmente, o demandado A... – desempregado mas que está ajudar a mulher que tem uma tasquita - assegurou que a cunhada lhes pediu emprestado € 10 000,00, tinham uma reservasita e emprestou-lhe esse dinheiro, sem qualquer prazo de pagamento, tinham o dinheiro em casa, que entregaram o dinheiro em numerário, em notas, e que já foi paga sensivelmente cerca de € 3 000,00. Depoimento, que foi corroborado pela ré M..., tendo também garantido que o empréstimo foi em dinheiro mesmo e que a apelante deu-lhe € 3 000,00.

            Por sua vez, a testemunha ... afiançou que emprestou à apelante € 20.000,00, dinheiro que tinha em casa, guardado num cofre - tinha emprestado o dinheiro a uma sobrinha - € 25.000,00 – que costuma ter dinheiro em casa e que a ... já pagou.

Considerado o elevado valor destas quantias, é singular que não exista um único documento ocasional – i.e., não originariamente ordenado para a prova, como por exemplo, um cheque, um documento de levantamento, uma transferência bancária, etc. – que inculque a sua entrega à apelante. E isto – como nota o apelado na resposta ao recurso – apesar de tanto a apelante, como os co-demandados e a testemunha ... terem sido notificados, mais que uma vez, para apresentarem um tal documento, tendo até sido condenados em multa processual, por nem sequer terem respondido.

Como também se estranha que garantindo a testemunha que a ... já pagou, havia meses que a ... não conseguia, era 250 euros, dava 250 ou 175 ou 200 conforme podia, não se mostra adquirido para o processo um documento que demonstre ao menos um acto singular de pagamento ou a quitação da solvência do valor total da dívida.

De outro aspecto, não é comum de harmonia com regras de experiência e critérios sociais, com aquilo que normalmente sucede – id plerumque accidit – que se detenha, em dinheiro vivo, somas tão avultadas. E é exactamente para neutralizar ou diminuir a força persuasiva deste argumento de prova, que surge, por um lado, o requerimento elaborado pelo Exmo. Advogado da apelante, assinado pela testemunha ... no qual se declara que para o empréstimo à apelada da quantia de € 20.000,00, não houve necessidade de qualquer levantamento bancário, e, por outro, que aquela testemunha já depois de encerrado o seu depoimento e mesmo depois de dispensada tenha, motu proprio, asseverado à Sra. Juíza de Direito, que comprou um carro e foi pago em dinheiro e que costuma pagar muita coisa em numerário. Declaração e depoimento, que, neste contexto, têm, pois, o singular defeito de provar de mais. Como se não julga convincente - nem sequer sério – o depoimento da ré M..., quando afirmou que podia garantir que esse dinheiro – o emprestado à apelante – estava dentro de um porquinho e, confrontada com a ironia do comentário do Exmo. Advogado do apelado, de que devia ser um porquinho bem gordo, retorquiu: eram vários.

Do mesmo modo, também se julga singular – e, portanto, contrário às regras de normalidade maioritária – ponto que, foi muito justamente sublinhado pela Sra. Juíza de Direito - que não exista um único documento – maxime a declaração de quitação – demonstrativo do pagamento pela apelante ao apelado da quantia de € 30 000,00, em momento anterior ao da celebração da escritura. Ausência tanto mais de estranhar quanto é certo que, segundo a alegação da apelante, aquele preço foi pago, por insistência devastadora do autor. Tendo em conta o conteúdo do documento no qual se convencionou aquele preço – em que o acto de pagamento surge diferido para os cinco posteriores – e o contexto em que o acto de pagamento teria sido realizado, o mais natural não seria que a apelante se garantisse com uma declaração de quitação emitida pelo autor, atestadora desse mesmo pagamento? De resto, tal acto de pagamento não se conjuga, de todo, com o facto de ter se ter convencionado para o pagamento do preço o prazo de 5 anos: a cultura dominante entre nós é a do atraso generalizado nos pagamentos e não a da antecipação do pagamento, para mais em vários anos.

Uma prova cuja determinação da exacta força persuasiva levanta algumas dificuldades é as declarações de parte (artº 466 nº 3 do nCPC). Prova que, por declaração expressa da lei, está submetida à livre convicção do juiz, salvo, naturalmente se o depoimento conduzir à confissão (artº 466 nº 3 do nCPC). As declarações de parte podem, na verdade, redundar na obtenção de meio de prova de natureza distinta e com diferente valor probatório: confissão; reconhecimento de factos desfavoráveis que não possam valer como confissão; demonstração de factos favoráveis - caso em que as declarações de parte são livremente valoráveis pelo juiz (artºs 352 e 381 do Código Civil e 466 nº 3 do nCPC).

 No entanto, não falta quem sustente que as declarações de parte se reconduzem à figura do início de prova e não à de um meio probatório em sentido próprio. Como o princípio de prova é o menor grau de prova - dado que sé vale apenas como factor corroborante da prova de um facto - as declarações de parte não são suficientes para estabelecer por si só, qualquer prova, mas pode coadjuvar, em conjugação com outros elementos, a prova do facto[23].

Como quer que seja, uma das provas de que, para declarar não provado o facto do pagamento – e demonstrado o facto inverso - a Sra. Juíza de Direito se socorreu, foram as declarações de parte do apelado. A apelante é da opinião que tal depoimento não merece crédito, por ter faltado à verdade com tantos pormenores.

É exacto que as declarações do apelado – como salienta a apelante - contêm inexactidões várias, de que é exemplo a relativa à pessoa que outorgou a escritura de compra e venda na qualidade de representante da apelante. Mas não o é menos – ao contrário do que a fundamentação da decisão da matéria de facto da 1ª instância parece inculcar - que não vale neste domínio a máxima falsus unum, falsus in omnibus, que aquelas inexactidões não inutilizam o depoimento, embora forneçam ao juiz um elemento de apreciação da sua força probatória, uma circunstância que deve por o juiz de sobreaviso na apreciação do valor persuasivo das declarações. Todos os participantes processuais têm um indissolúvel compromisso com a verdade. É, portanto, natural que se tome em consideração, na apreciação da força probatória do depoimento, a circunstância de conter inexactidões ou incongruências mais ou menos graves.

Mas há um ponto em que aquele depoimento é claro, congruente e consistente: o do não recebimento da quantia de € 30.000,00. O declarante esclareceu até que a apelante se propunha pagar € 3 000,00, ou que não pagava nada, e que tendo-lhe o declarante dito que ia prosseguir com uma acção, a apelante lhe respondeu: se fizeres isso eu vou dizer que paguei em dinheiro. E não é justamente essa a alegação da apelante?

 E quanto ao facto do não pagamento, o depoimento do apelante é o que melhor se conjuga com o conteúdo do contrato no qual se convencionou aquele preço – maxime com o prazo de pagamento - e com a ausência de qualquer prova documental que convença do facto do pagamento.

De resto – como a Sra. Juíza de Direito prontamente observou – dos depoimentos da testemunha ... e dos co-demandados A... e cônjuge, dada a razão de ciência que os animam - as declarações da própria apelante - não decorre que a última tenha pago o apontado preço. Recorde-se, a este propósito, que A..., questionado pela Sra. Juíza de Direito, se viu o destino dado pela apelante aos € 10.000,00, respondeu: só a palavra dela; não viu a ... entregar estes € 10.000,00 ao Sr. J... Por seu lado, M... também admitiu que não viu o dinheiro a ser entregue ao Sr. J... Para o esclarecimento deste enunciado de facto, os depoimentos das testemunhas ... – são, de todo, inconclusivos.

Portanto, a avaliação com o uso da prudência – i.e., com faculdade de decidir correctamente – da prova, persuade deste facto essencial: que a recorrente não pagou ao apelado a quantia de € 30.000,00, convencionada como preço da venda da quota daquele na fracção autónoma de edifício comum.

Não há, pois, motivo para concluir que, no julgamento da questão de facto, a Sra. Juíza de Direito incorreu, num error in iudicando por erro na valoração das provas, por nessa apreciação ter violado regras da ciência, da lógica ou da experiência, o mesmo é dizer, que a convicção do tribunal a quo sobre a realidade – ou a falta dela – dos factos não foi alcançada com o uso da prudência, i.e., da faculdade de decidir da forma correcta (artº 607 nº 5 do nCPC).

Dito doutro modo: apesar dos condicionalismos em que conheceu algumas das provas – marcados pela ausência de imediação – a convicção que esta Relação extrai dos elementos de prova que tem disponíveis coincide com a convicção da 1ª instância, pelo que, não há qualquer erro, na fixação dos factos materiais da causa, que deva corrigir-se.

Não há, portanto, fundamento para modificar aquele julgamento.

E como a impugnação da decisão da questão de facto constituía o único objecto do recurso, por força da vinculação desta Relação à impugnação do recorrente, nada mais resta do que julgar o recurso improcedente.

Síntese recapitulativa:

a) A Relação deve formar uma convicção verdadeira – e fundamentada - sobre a prova produzida na 1ª instância, independente ou autónoma da convicção do juiz a quo, que pode ou não ser coincidente com a deste último – não se devendo limitar a controlar a legalidade da produção da prova realizada naquela instância e a aceitar o resultado do exercício dessa prova, salvo os casos em que esse julgamento seja ilógico, irracional, arbitrário, incongruente ou absurdo.

b) O documento autêntico prova plenamente os factos atestados que se passaram na presença do documentador, v.g., as declarações, mas já não prova de pleno a sinceridade desses factos ou a sua validade ou eficácia jurídicas, pois de uma coisa e de outra não pode aperceber-se a entidade documentadora, podendo assim, demonstrar-se que a declaração inserta no documento não é sincera nem eficaz, sem necessidade de arguição da falsidade dele.

c) A confissão extrajudicial, comunicada por documento autêntico ou documento particular genuíno que tiver sido feita à parte contrária, tem força probatória plena, mas o declarante é admitido a provar que a declaração não correspondeu à verdade ou que foi afectada por algum vício de consentimento, vício para cuja demonstração é admitida a prova testemunhal e – e por extensão de regime – a prova por declarações de parte;

d) Existindo um princípio de prova escrita, suficientemente verosímil, fica aberta a possibilidade de complementar, por recurso à prova testemunhal, a prova do facto contrário objecto da declaração confessória, ou seja, de demonstrar não ser verdadeira a afirmação produzida na presença do documentador;

e) É admissível a valoração do depoimento de parte, no segmento em que não produz confissão, à luz da livre apreciação do tribunal.

f) A apreciação da prova deve ocorrer sob o signo da probabilidade lógica – de evidence and inference, i.e., segundo um critério de probabilidade lógica prevalecente, portanto, segundo o grau de confirmação lógica que os enunciados de facto obtêm a partir das provas disponíveis.

A apelante sucumbe no recurso. Deverá, por esse motivo, suportar as respectivas custas (artº 527 nºs 1 e 2 do nCPC).

4. Decisão.

Pelos fundamentos expostos, nega-se provimento ao recurso.

Custas pela apelante.

                                                                                              15.06.23

                                                                                  Henrique Antunes

                                                                                              Isabel Silva

                                                                                              Alexandre Reis

[1] António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, Coimbra, 2013, pág. 237 e João Paulo Remédio Marques, A Acção Declarativa à Luz do Código Revisto, 3ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2011, págs. 638.

[2] Miguel Teixeira de Sousa, “Prova, poderes da Relação e convicção: a lição da epistemologia – Ac. do STJ de 24.9.2013, Proc. 1965/04, in Cadernos de Direito Privado, nº 44, Outubro/Dezembro 2013, págs. 33 e ss.

[3] Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, Coimbra, 1979, pág. 212 e Antunes varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, Coimbra, 1985, págs. 471 e 472.

[4] Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume II, 4ª edição, Coimbra, pág. 39.

[5] Antunes varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, cit., págs. 552 e 554; Acs. do STJ de 09.07.14 e de 06.12.11, www.dgsi.pt.

[6] Vaz Serra, RLJ, Ano 110, pág. 81.

[7] Acs. do STJ de 15.04.15 e de 06.12.11, www.dgsi.pt. Concluindo, igualmente, pela admissibilidade da prova testemunhal, com fundamento na diferença entre a confissão e a admissão ou mera declaração de um facto e, portanto, que a declaração constante de uma escritura pública de cessão de quotas no qual é mencionado pelo cedente o recebimento do preço ou de um preço, não pode ser havida como confissão, por não conter a admissão pelo declarante da veracidade de tal recebimento, cfr. os Acs. do STJ de 09.06.05 e 23.02.10, www.dgsi.pt. E no sentido de que ainda que a declaração do recebimento do preço tenha sido feita à parte contrária, vale apenas o que resulta do regime probatório do documento autêntico, pelo que a fixação do sentido e alcance da expressão relativa ao recebimento do preço é um caso de simples interpretação do contexto do documento, subtraída às limitações quanto à produção de prova, cfr. o Ac. do STJ de 02.03.11, www.dgsi.pt.

[8] Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume I, cit.,pág. 343, Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Volume IV, Coimbra, 1984, pág, 317, e Ac. do STJ de 04.03.97, www.dgsi.pt.

[9] Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra, 1979, pág. 275, e Antunes Varela/J. Miguel Bezerra/Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 1985, pág. 618, e Almeida Costa, RLJ Ano 129º, pág. 361.

[10] Vaz Serra, Provas. BMJ nº 112, pág. 193.

[11] Vaz Serra, Provas, BMJ nº 112, págs. 197 e 198.

[12] Vaz Serra, RLJ Ano 103º, pág. 13.

[13] Vaz Serra, RLJ Ano 107º, pág. 311.

[14] Vaz Serra, RLJ, Ano 107º, pág. 312 e, Ano 110, pág. 383 e ss, Ano 111, pág. 3 e ss. e 115, págs. 121 e ss. No mesmo sentido, Mota Pinto, CJ, 85, III, pág. 102 e Acs. da RL de 18.05.99, CJ, III, pág. 102 e 02.07.09, www.dgsi.pt.

[15] Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, cit., pág. 344, e Ac. do STJ de 02.11.10, www.dgsi.pt.

[16] Ac. da RL de 02.07.09, cit.

[17] Acs. do STJ de 09.07.14 e de 23.02.10, www.dgsi.pt.

[18] Cfr., por todos, João Paulo Remédio Marques, “A aquisição e a valoração probatória de factos (des)favoráveis ao depoente ou à parte”, in Julgar, 16, Janeiro-Abril de 2012, Coimbra Editora, págs. 138 e ss.

[19] José Lebre de Freitas, A confissão no Direito Probatório, Coimbra Editora, Coimbra, 1991, pág. 256, nota 40 e Dias Marques, Noções Elementares de Direito Civil, Volume II, Lisboa, AAFDL, 1992, pág. 126.

[20] João de Castro Mendes, Direito Processual Civil, vol. II, AADFL, 1992, pág. 26, Antunes Varela/Sampaio e Nora/Miguel Bezerra, Manual de Processo Civil, 2ª edição, cit., pág. 469, Miguel Teixeira de Sousa, As Partes, O Objecto e a Prova na Acção Declarativa, Lisboa, Lex, 1995, pág. 126 e “A livre apreciação da prova em processo civil”, in Scientia Iuridica, nºs 187-188 (1984), págs. 140 e 141, Isabel Alexandre, Provas Ilícitas em Processo Civil, Almedina, Coimbra, 1998, pág. 46 e Remédio Marques, A Acção Declarativa à Luz do Código Revisto, 3ª edição, 2011, Coimbra Editora, pág. 583.

[21] Acs. da RG de 19.05.11 e de 19.01.15, do STJ de 05.11.08, 21.01.09, 10.12.09, 09.05.06 e de 02.01.04, da RP de 18.01.01 e de 04.04.02 e da RC de 12.04.11, www.dgsi.pt

[22] João Paulo Remédio Marques, ”A aquisição e a valoração…”, cit., pág. 171. Todavia, a verdade é que, não existe qualquer obstáculo epistemológico para não reconhecer às declarações do depoente um meio válido de formação da convicção, esclarecida e racional do juiz, i.e., uma fonte válida de convencimento racional do juiz. Assim, ainda que no contexto da prova por declarações de parte, o Ac. da RE de 12.03.15, www.dgsi.pt, e Paulo Faria e Ana Loureiro, Primeiras Notas ao Código de Processo Civil, Vol. I, Almedina, Coimbra, 2014, pág. 364.

[23] Carolina Braga da Costa Henriques, Declarações de Parte, pág. 48, disponível em wwwestudogeral.sib.uc.pt, e Ac. da RP de 15.09.14. Em sentido diferente, Acs. da RP de 23.03.15 e de da RE de 12.03.15, www.dgsi.pt.