Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
747/17.2T8LRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FONTE RAMOS
Descritores: MATÉRIA DE FACTO
ALTERAÇÃO PELA RELAÇÃO
PRÉDIO ENCRAVADO
REGISTO PREDIAL
Data do Acordão: 04/20/2021
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA – J. L. CÍVEL DE LEIRIA – JUIZ 3
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA – J. L. CÍVEL DE LEIRIA – JUIZ 3
Sumário: 1. A Relação só poderá/deverá alterar a decisão de facto se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa (art.º 662º, n.º 1 do CPC).

2. Pertence à categoria de prédio encravado o prédio (seja rústico ou urbano) que não tem nenhuma comunicação com a via pública, existindo entre ele e a via pública outro ou outros prédios (alheios) de permeio.

3. A presunção legal iuris tantum de dominialidade prevista no art.º 7º do Código do Registo Predial não se estende à composição, à área e às confrontações dos imóveis, meros factores descritivos dos mesmos, o que se justifica, principalmente, pela frequente falta de rigor/fidedignidade dos dados descritivos registrais no que concerne à sua materialidade.

4. Para efeito de indemnização pela privação do uso emerge como critério a demonstração no processo que, não fora a privação, o lesado usaria normalmente a coisa, vendo frustrado esse propósito.

5. Não será de atribuir qualquer indemnização se, demonstrado o impedimento (objetivo) em aceder a determinado local de passagem (com a área de 20 m2), os AA., proprietários do prédio serviente, não demonstraram que, nesse período, pretendiam usar a parcela de terreno em causa para aceder à parte restante do seu prédio (provida de outro acesso).

Decisão Texto Integral:



Apelação 747/17.2T8LRA.C1

Relator: Fonte Ramos

Adjuntos: Alberto Ruço

                  Vítor Amaral

          Sumário do acórdão:          

1. A Relação só poderá/deverá alterar a decisão de facto se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa (art.º 662º, n.º 1 do CPC).

2. Pertence à categoria de prédio encravado o prédio (seja rústico ou urbano) que não tem nenhuma comunicação com a via pública, existindo entre ele e a via pública outro ou outros prédios (alheios) de permeio.

3. A presunção legal iuris tantum de dominialidade prevista no art.º 7º do Código do Registo Predial não se estende à composição, à área e às confrontações dos imóveis, meros factores descritivos dos mesmos, o que se justifica, principalmente, pela frequente falta de rigor/fidedignidade dos dados descritivos registrais no que concerne à sua materialidade.

4. Para efeito de indemnização pela privação do uso, emerge como critério a demonstração no processo que, não fora a privação, o lesado usaria normalmente a coisa, vendo frustrado esse propósito.

5. Não será de atribuir qualquer indemnização se, demonstrado o impedimento (objectivo) em aceder a determinado local de passagem (com a área de 20 m2), os AA., proprietários do prédio serviente, não demonstraram que, nesse período, pretendiam usar a parcela de terreno em causa para aceder à parte restante do seu prédio (provida de outro acesso).

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I. Em 06.02.2017, L... (solteiro) e C... (casado no regime da comunhão de adquiridos com M...) intentaram a presente acção declarativa comum contra J... e mulher M..., pedindo que estes sejam condenados a: reconhecer que os AA. são donos e legítimos proprietários do prédio identificado no art.º 1º da petição inicial (p. i.) (1); remover o muro construído e as restantes obras efectuadas identificadas no art.º 11 da p. i. e restituir a parcela de terreno de 32 m2 que compõe o prédio que abusivamente ocupam, deixando-a livre e desocupada (2); pagar a quantia de €5.000,00[1] a título de indemnização por ocupação ilegítima e abusiva e da corrente privação do uso e cómodos (3) e € 75 por cada dia de atraso no cumprimento, nos termos do disposto no art.º 829º-A do Código Civil (CC) (4).

Alegaram, em síntese: os Réus ocuparam uma parcela de terreno dos AA., contra a vontade destes, que também serve de “passagem” entre o prédio dos Réus e a Rua ..., tendo nela realizado as obras cuja demolição se pretende.

Os Réus contestaram alegando, em resumo, que o seu prédio sempre confrontou do seu lado norte com a Rua ... e a parcela de terreno reivindicada pelos AA. sempre integrou o prédio dos Réus; as obras foram feitas de acordo com a regulamentação aplicável. Concluem pela improcedência da acção.

 Foi proferido despacho saneador, que identificou o objecto do litígio e enunciou os temas da prova.

 Realizada a audiência de julgamento, a Mm.ª Juíza a quo, por sentença de 23.9.2020, julgou a acção parcialmente procedente, condenando os Réus a: 1 - Reconhecer que os AA. são donos e legítimos proprietários do prédio identificado no art.º 1º dos factos provados; 2 - Remover o muro construído e todas as restantes obras efetuadas identificadas no art.º 11 da p. i. e restituir a parcela de terreno de 20 m2 que compõe o prédio que abusivamente ocupam, deixando-a livre e desocupada; 3 - Pagar a quantia de €1.200 (mil e duzentos euros) a título de indemnização por ocupação ilegítima e abusiva e da corrente privação do uso e incómodos; absolveu os Réus do demais pedido.

Inconformados, os Réus interpuseram a presente apelação, formulando as seguintes conclusões:

....

Rematam dizendo que deve ser alterada a matéria de facto nos termos alegados, e revogada ou declarada nula a decisão proferida.

Os AA. responderam concluindo pela improcedência do recurso.

Atento o referido acervo conclusivo, delimitativo do objecto do recurso, importa apreciar e decidir: a) nulidade da sentença; b) impugnação da decisão sobre a matéria de facto (erro na apreciação da prova); c) decisão de mérito (cuja alteração, quanto aos dois primeiros pedidos, depende do desfecho daquela impugnação, e estando ainda causa a questão da indemnização).

II. 1. A 1ª instância deu como provados os seguintes factos:

...

3. Cumpre apreciar e decidir com a necessária concisão.

Os Réus/recorrentes começam por dizer que a sentença sofre do vício de nulidade previsto no art.º 615º, n.º 1, al. c) do CPC, na medida em que dá como provados factos que estão em contradição com a decisão, tornando assim esta ambígua”, pois “não se entende como pode o Tribunal dar como provado que o prédio dos Réus confronta do seu lado nascente com a Rua ... [cf. II. 1. 4), supra], e em simultâneo, dá como provado que tal prédio se encontra encravado [II. 1. 5) a 7), supra]”, condenando em simultâneo os Réus a restituir aos AA. a parcela de 20 m2 que confronta exactamente com a via pública – Rua ...

No despacho em que admitiu o recurso, a Mm.ª Juíza a quo pronunciou-se dizendo que “a redacção dada ao ponto 4 da matéria de facto reporta-se à identificação do prédio urbano pertencente aos Réus, tal como consta do registo”, que “a presunção a que alude o artigo 7º do Código de Registo Predial se reporta apenas à existência, amplitude e titularidade do direito registado, dele se excluindo as áreas e as confrontações” e que inexiste “contradição, tendo o Tribunal julgado provada a situação de encrave do prédio dos Réus (pontos 5, 6 e 7)[2], sem prejuízo das menções que constam do registo (ponto 4), razão pela qual se julga improcedente a nulidade arguida”.

Reza o dito normativo (art.º 615º, n.º 1, al. c) do CPC) que é nula a sentença quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível.

Salvo o devido respeito por opinião em contrário, afigura-se, por um lado, que os elementos juntos aos autos não permitem concluir que se tenha feito constar do Registo Predial que o prédio dos Réus confronta de “nascente com Rua ...” (cf., sobretudo, o documento de fls. 128 verso[3]), e, por outro lado, como se verá de seguida, a prova produzida nos autos evidencia, com suficiente clareza, que o prédio dos Réus não tinha nenhuma comunicação com a via pública (prédio encravado)[4], existindo de permeio uma parcela de terreno que pertencia aos pais dos AA., pelo que o acesso à via pública, a partir do prédio dos Réus, pelo menos, desde a data de implantação do seu prédio urbano (1982/1983), tem vindo a ser efectuado através do prédio vizinho hoje pertença dos AA..

AA. e Réus não impugnaram a factualidade vertida em II. 1. 4), supra (que reproduz o alegado no art.º 4º da p. i.[5]; cf., ainda, o art.º 9º da contestação). Aparentemente, o litígio passou a centrar-se, apenas, em torno da factualidade vertida em II. 1. 5) a 7), 11) e 17) e II. 2. alíneas b), c) e d), supra, objecto da impugnação da decisão sobre a matéria de facto.

Na resposta à alegação de recurso, os AA. consideraram que “foi pelo facto de o prédio estar encravado que os o pai dos AA. cederam uma servidão de passagem aos Réus”, inclusive, para “licenciamento camarário para efeitos de obtenção de licença de construção” e que “em momento algum se defende que o prédio depois de dada a referida servidão de passagem não confronta com via pública, já que a partir do momento que foi dado acesso ao referido prédio através da referida servidão de passagem, o mesmo naturalmente deixou de estar encravado e passou a confinar com via pública”.

Esta, cremos, a realidade que decorre dos autos - e que melhor se explicitará adiante, não se antolhando necessário tomar a medida prevista no art.º 662º, n.º 2, alínea c) do CPC ou declarar e sanar tal pretensa “contradição” -, sendo certo, sem quebra do respeito sempre devido, que o apurado a final (e alegado nos articulados) teve porventura uma insuficiente expurgação (ou delimitação) do que não é facto, ao arrepio, diga-se, do sentido dos temas da prova enunciados no despacho de 28.01.2020 (cf. os art.ºs 410º e 596º, n.º 1 do CPC), assim configurados: «1 - Os actos tendentes à demonstração da propriedade por parte dos AA. de uma faixa de terreno com entre 20 a 32 m2, que integrará prédio de sua propriedade inscrito na matriz sob o artigo ... e descrito na 2ª CRP de Leiria sob o n.º.... / 2 - A concreta configuração daquela faixa de terreno. / 3 - Se aquela faixa de terreno tem sido usada pelos RR. e pelos AA. desde 1980, e em que termos foi acordada a respectiva utilização, para os AA. acederem ao prédio indicado em 1 e os RR. acederem ao prédio de que são proprietários inscrito na matriz sob o artigo ... e descrito na 2ª CRP de Leiria sob o n.º ... / 4 - Os actos tendentes à demonstração da propriedade por parte dos RR de uma faixa de terreno com entre 20 a 32 m2, que integra prédio de sua propriedade melhor identificado em 3. / 5 - Os concretos danos patrimoniais advenientes para os AA. por via de obras efectuadas pelos RR. dentro da faixa de terreno acima referida[6]

Cabendo a esta Relação reapreciar os elementos trazidos aos autos e o decidido em 1ª instância, parece-nos, pelo exposto, que não será de concluir pelo apontado vício.

Concluindo-se porventura por tal (aparente ou real) discrepância ou incongruência (nas decisões de facto e de mérito), tal não obstaria ao imediato conhecimento do objecto da apelação (art.º 665º, n.º 1 do CPC).

4. a) Os Réus/recorrentes insurgem-se contra a decisão sobre a matéria de facto, invocando, sobretudo, um depoimento (de testemunha) produzido em audiência de julgamento (cf. as “conclusões 11ª a 15ª”, ponto I., supra), concluindo que deveriam ter sido julgados como não provados os factos indicados em II. 1. 5) a 7), 11) e 17) e como provados os factos referidos em II. 2. b), c) e d), supra (cf., sobretudo, as “conclusões 7ª, 14ª e 17ª”, ponto I./supra).

Nenhuma das partes deu o devido cumprimento aos ónus previstos no art.º 640º do CPC.

No entanto, tal circunstância não embaraça o conhecimento da impugnação de facto, a que acresce a conveniência em verificar o que resultou da prova produzida nos autos e em audiência de julgamento, para saber se outra poderia/deveria ser a decisão do Tribunal a quo quanto à factualidade em causa, relevante para a decisão de mérito.

b) Esta Relação procedeu à audição integral da prova pessoal produzida em audiência de julgamento, conjugando-a com a prova documental.

c) Pese embora a maior dificuldade na apreciação da prova (pessoal) em 2ª instância, designadamente, em razão da não efectivação do princípio da imediação[7], afigura-se, no entanto, que, no caso em análise, tal não obstará a que se verifique se os depoimentos e as declarações de parte foram apreciados de forma razoável e adequada.

            Na reapreciação do material probatório disponível por referência à factualidade em causa, releva igualmente o entendimento de que a afirmação da prova de um certo facto representa sempre o resultado da formulação de um juízo humano e, uma vez que este jamais pode basear-se numa absoluta certeza, o sistema jurídico basta-se com a verificação de uma situação que, de acordo com a natureza dos factos e/ou dos meios de prova, permita ao tribunal a formação da convicção assente em padrões de probabilidade[8], capaz de afastar a situação de dúvida razoável.

d) Partindo da fundamentação da decisão sobre a matéria de facto apresentada pela Mm.ª Juíza a quo, destacamos os seguintes excertos (atende-se ao objecto do recurso, introduzindo-se, entre parêntesis rectos, alguns elementos visando uma melhor explicitação):

(…)

e) Releva também a demais prova documental junta aos autos, mencionada supra, em nota ou cujo conteúdo integra a factualidade dada como provada (cf., principalmente, os documentos de fls. 10/138 e 11).

f) Os Réus/recorrentes salientam que AA. e Réus «provaram nos autos que os seus prédios se encontram inscritos no registo predial a seu favor, gozando estes então da presunção de titularidade estabelecida no artigo 7 do Código de Registo Predial, segundo o qual o registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define”; pugnam, depois, para que do teor dos documentos matriciais e registais se extraiam elementos no sentido da sua “tese” (cf., sobretudo, as “conclusões 21ª a 24ª”, ponto I., supra).

Ora, quanto a esta matéria, convém lembrar que a inscrição registal do direito de propriedade faz presumir que o direito existe sobre o bem descrito e nos termos em que o registo o define (art.º 7 do Código do Registo Predial) - a presunção abrange o direito de propriedade da coisa que está concretamente identificada e determinada no registo, com a consequente inversão do ónus da prova[9].

No entanto, conforme entendimento uniforme da jurisprudência, essa presunção legal iuris tantum de dominialidade não se estende à composição, à área e às confrontações dos imóveis, meros factores descritivos dos mesmos, o que se justifica, principalmente, pela frequente falta de rigor/fidedignidade dos dados descritivos registrais no que concerne à sua materialidade, normalmente devida à respectiva desactualização, não olvidando que a função do registo é essencialmente declarativa e não constitutiva.[10]

 6. A fundamentação da decisão sobre a matéria de facto, elaborada pela Mm.ª Juíza a quo, afigura-se correcta.

            Na verdade, face à mencionada prova pessoal e documental, apenas podemos dizer que a factualidade dada como provada (e não provada) respeita a prova produzida nos autos e em audiência de julgamento, sendo que, até em razão da exigência de (especial) prudência na apreciação da prova pessoal[11], a Mm.ª Juíza não terá desconsiderado regras elementares desse procedimento (e sabendo-se que o tribunal aprecia livremente as declarações das partes, quando não representam confissão - art.º 466º, n.º 3, do CPC), inexistindo elementos seguros que apontem ou indiciem que não pudesse ou devesse ponderar a prova no sentido e com o resultado a que chegou, pela simples razão de que não se antolha inverosímil e à sua obtenção não terão sido alheias as regras da experiência e as necessidades práticas da vida[12]

            A Mm.ª Juíza analisou criticamente as provas e especificou os fundamentos que foram decisivos para a sua convicção, respeitando as normas/critérios dos n.ºs 4 e 5 do art.º 607º do CPC, sendo que a Relação só poderá/deverá alterar a decisão de facto se os factos tidos como assentes [veja-se, por exemplo, que os Réus/recorrentes não impugnaram o que se deu como provado em II. 1. 15) e 16), supra], a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa (art.º 662º, n.º 1 do CPC).

            Improcede, assim, a pretensão dos apelantes de verem modificada a decisão de facto.

7. Os Réus/recorrentes não lograram ver modificada a decisão de facto proferida em 1ª instância e - com a excepção do que designam como “incorreto julgamento de direito no que respeita à indemnização arbitrada” (sic) - não colocam quaisquer questões relacionadas com a decisão de mérito (que não tenham sido ponderadas ao nível da reapreciação da decisão sobre a matéria de facto).

Os Réus desconsideraram a necessidade ou conveniência em formular pedido reconvencional na decorrência do invocado direito de propriedade sobre a disputada parcela identificada como o leito da servidão, visando, apenas, a improcedência do pedido deduzido pela parte contrária; ficando demonstrado que «os Réus adquiriam e construíram a sua residência num prédio encravado, e sem qualquer comunicação com a via publica, tendo-lhe sido concedido aquele acesso pelos AA.», nada se poderá objectar ao decidido na sentença recorrida sob os pontos 1 e 2 do segmento injuntivo.

Resta determinar se os AA. têm direito à indemnização “por ocupação ilegítima e abusiva e da corrente privação do uso e cómodos”.

8. A obrigação de indemnizar tem como finalidade precípua a remoção do dano causado ao lesado.

Quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação (art.º 562º, do CC), obrigação que apenas existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão (art.º 563º, do CC).

Têm a natureza de dano não só o prejuízo causado (dano emergente) como os benefícios que o lesado deixou de obter em consequência da lesão, sendo atendíveis danos futuros, desde que previsíveis (art.º 564º, do CC).

O nosso legislador acolheu prioritariamente a via da reconstituição natural (art.º 566º, n.º 1, do CC) e, sempre que a indemnização é fixada em dinheiro, determina que se fixe por referência à medida da diferença entre a situação patrimonial do lesado, na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal, e a que teria nessa data se não existissem danos (art.º 566º, n.º 2, do CC). Se não puder ser averiguado o valor exacto do dano, o tribunal julgará equitativamente dentro dos limites que tiver por provados (n.º 3).

9. Sabemos que a questão da ressarcibilidade autónoma do dano da privação do uso não tem encontrado entendimento pacífico, inclusive, no Supremo Tribunal de Justiça.

Afigura-se, no entanto, salvo o devido respeito, que aquela que se vem perfilando como corrente maioritária é a que verdadeiramente retira e respeita todas as consequências do conteúdo do direito de propriedade (do seu “licere”/conjunto de faculdades inerentes ao respectivo exercício).

Concretizando.

Uma das perspectivas em presença tem entendido que a indemnização pela privação do uso de certo bem, designadamente um veículo automóvel, depende da prova do dano concreto, ou seja, da concretização e demonstração dos prejuízos decorrentes directamente da não utilização do bem, enquanto outros, maioritariamente, sustentam que a simples privação do uso, por si só, constitui um dano indemnizável.

No desenvolvimento e afirmação desta segunda perspectiva, que se perfilha, considera-se que sempre será necessário provar o dano, mas não exactamente nos termos defendidos pela primeira teoria acima referida, pois que não haverá dúvidas sérias de que a privação injustificada do uso de uma coisa pelo respectivo titular, pode constituir um ilícito susceptível de gerar obrigação de indemnizar, uma vez que, na generalidade dos casos, impedirá o seu proprietário do exercício dos direitos inerentes à propriedade.

Estamos com aqueles que, partindo do princípio de que a privação do uso de uma coisa pode constituir um ilícito gerador da obri­gação de indemnizar - uma vez que impede o seu dono do exercício dos direitos inerentes à propriedade, isto é, de usar, fruir e dispor do bem nos termos genericamente consentidos pelo art.º 1305º, do CC -, consideram, no entanto, que a privação do uso é condição necessária, mas não suficiente, da existência de um dano corres­pondente a essa realidade de facto, porquanto “podem...configurar-se situações da vida real em que o titular da coisa não tenha interesse algum em usá-la, não pretenda dela retirar as utilidades que aquele bem normalmente lhe podia proporcionar (o que até constitui uma faculdade inerente ao direito de propriedade), ou pura e sim­plesmente não usa a coisa; (…) se o titular se não aproveita das vantagens que o uso normal da coisa lhe proporcionaria, também não poderá falar-se de prejuízo ou dano decorrente da privação do uso, visto que, na circunstância, não existe uso, e, não havendo dano, não há, evidentemente, obrigação de indemnizar; (…) competindo ao lesado provar o dano ou prejuízo que quer ver ressarcido, não chega alegar e provar a privação da coisa, pura e simplesmente, mostrando-se ainda necessário, que o A. alegue e demonstre que pretendia usar a coisa, ou seja, que dela pretendia retirar as utilidades (ou algumas delas) que a coisa normalmente lhe proporcionaria se não estivesse dela privado pela actuação ilícita do lesante”.[13]

10. Para efeito de atribuição de indemnização pela privação do uso não será de exigir a prova de danos efectivos e concretos, mas a ressarcibilidade também não pode ser apreciada e resolvida em abstracto, aferida pela mera impossibilidade objectiva de utilização da coisa (independentemente de que a utilização tenha ou não lugar durante o período de privação), emergindo como critério de atribuição do direito à indemnização a demonstração no processo que, não fora a privação, o lesado usaria normalmente a coisa, vendo frustrado esse propósito.

Só assim será possível uma avaliação concreta, subjectiva e dinâmica do dano, que permita à responsabilidade civil realizar a sua intenção ou função específica, que é a de proteger os direitos e bens jurídicos, e protegê-los não apenas ´estaticamente`, na sua pertinência ou atribuição às pessoas, mas ainda ´dinamicamente`, no uso, emprego ou aplicação concreta que se faça deles.[14]

11. In casu, os AA. alegaram que, com a descrita actuação dos Réus, ficaram impedidos de aceder àquela parte do seu prédio (art.º 10º da p. i.), com a “privação do uso e cómodos” proporcionados por esta parcela ao longo de 49 anos, desde a sua aquisição em 1967 (art.º 14º da p. i.); afirmaram, ainda, que tal parcela de terreno foi sempre utilizada “para o trânsito das pessoas, animais e viaturas entre o prédio pertencente aos AA. e o prédio pertencente aos Réus” (art.º 24º da p. i.) e que na missiva que o pai dos AA. remeteu aos Réus, datada de 21.02.2013, aquele mencionou que havia sido “acordado a faculdade” de o mesmo, “na qualidade de proprietário”, aceder ao seu terreno pela “servidão de passagem” em causa, “uma vez que a comunicação por outra via me causaria, como causará bastantes incómodos assim como dispêndios desproporcionados” (sic) (cf. art.º 6º do articulado superveniente e documento de fls. 18).

            Resultou provado: no ano de 2014, os Réus sem a autorização dos AA. e seu antepossuidor, construíram um muro no seu prédio, ao longo da passagem até à via pública, numa extensão de cerca de 5 m, impedindo aos AA. e seu antepossuidor o acesso àquela parte do seu prédio; os Réus, ao realizarem as obras ditas em II. 1. 10), apossaram-se de uma parcela de terreno que faz parte integrante do prédio dos AA. - ocupam a passagem, não existindo qualquer acordo no sentido daqueles ocuparem a referida serventia, impedindo o acesso aos AA. [cf. II. 1. 9), 11) e 17), supra].

            12. Como bem se referiu em sede de identificação do objecto do litígio, questionava-se, designadamente, se a parcela (com uma área de cerca de 20 m2) integrava o prédio dos AA. na parte usada por AA. e Réus como serventia, e se os Réus deviam ser condenados a pagar aos AA. uma indemnização decorrente da privação do uso da parcela de terreno por eles ocupada (cf. fls. 142 verso/art.º 596º, n.º 1 do CPC).

13. Sem prejuízo do devido respeito por entendimento contrário, e cientes de que a situação dos autos não é isenta de dificuldades, afigura-se, por um lado, que a alegação dos AA. foi insuficiente e, por outro lado, que o que resulta provado cinge-se ao impedimento objectivo em aceder a certo local de passagem, durante determinado espaço de tempo.

Na verdade, os AA. não demonstraram que pretendiam usar a parcela de terreno em causa para aceder à parte restante do seu prédio (ao fim e ao cabo, a única utilidade que essa parcela de 20 m2 lhes poderia/poderá continuar a proporcionar); não se provou (e, em bom rigor, ficou por alegar[15]) que, não fora a privação consequente à actuação dos Réus, os AA. (e seu pai), no período temporal em causa, continuariam a usar esse tracto de terreno para aquele efeito; também não se provou que os AA. viram frustrado esse propósito (de utilização) com prejuízos ou desvantagens derivados da utilização de um outro acesso porventura menos adequado.[16]

Naturalmente, tal resposta, em nada contraria a ordenada remoção do muro construído e restantes obras, supra identificadas, e a restituição da parcela de terreno.

Por conseguinte, entendemos não estarem reunidos os pressupostos para atribuir a requerida indemnização pelo “dano da privação do uso”.

14. Procedem, assim, parcialmente as “conclusões” da alegação de recurso.

III. Pelo exposto, na parcial procedência da apelação, decide-se absolver os Réus do pagamento da “quantia de €1200 (mil e duzentos euros) a título de indemnização por ocupação ilegítima e abusiva e da corrente privação do uso e incómodos”, mantendo-se no mais o decidido.

Custas da acção, por AA. e Réus, na 1ª instância na proporção de 1/7 e 6/7 e as da apelação na proporção de 1/30 e 29/30, respectivamente.

                                                 Coimbra, 20/04/2021


***



[1] Atenta a “correcção” operada a fls. 137, atendida por despacho de 141.
[2] Em conformidade com a fundamentação da decisão de facto - cf., designadamente, II. 4. d), in fine, infra.
[3] Cf. a “nota 3”, supra.

[4] Em anotação ao art.º 1550º do CC - que assim reza: «1. Os proprietários de prédios que não tenham comunicação com a via pública, nem condições que permitam estabelecê-la sem excessivo incómodo ou dispêndio, têm a faculdade de exigir a constituição de servidões de passagem sobre os prédios rústicos vizinhos. 2. De igual faculdade goza o proprietário que tenha comunicação insuficiente com a via pública, por terreno seu ou alheio.» - vide, nomeadamente, Pires de Lima e Antunes Varela, CC Anotado, Vol. III., 2ª edição, Coimbra Editora, 1987, pág. 636, onde se refere pertencer à categoria de prédio encravado o prédio (seja rústico ou urbano) que não tem nenhuma comunicação com a via pública, existindo entre ele e a via pública outro ou outros prédios (alheios) de permeio.
[5] Cf. a “nota 3”, supra.

[6] Não obstante, o Mm.º Juiz incluiu a seguinte nota de rodapé: «Note-se que nos temas da prova não há a necessidade de indicar os concretos factos a apurar, podendo-se até remeter para conceitos de direito ou conclusivos, sendo que os temas da prova tem por missão unicamente a enunciação do tema da instrução, ou seja, que se conheça o que está ainda em causa na instrução subsequente. Por isso ao contrário da base instrutória não se torna necessário fazer uma selecção atomística de factos. (…)»

[7] Vide, entre outros, Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1979, págs. 284 e 386 e Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, Vol. II, 4ª edição, 2004, págs. 266 e seguinte.
[8] Refere-se no acórdão da RP de 20.3.2001-processo 0120037 (publicado no “site” da dgsi): A prova, por força das exigências da vida jurisdicional e da natureza da maior parte dos factos que interessam à administração da justiça, visa apenas a certeza subjectiva, a convicção positiva do julgador. Se a prova em juízo de um facto reclamasse a certeza absoluta da verificação do facto, a actividade jurisdicional saldar-se-ia por uma constante e intolerável denegação da justiça.   
[9] Cf., nomeadamente, L. Carvalho Fernandes, Lições de Direitos Reais, Quid Juris, 6ª edição (reimpressão), 2010, pág. 277 e o acórdão do STJ de 13.7.2010-processo 122/05.1TBPNC.C1.S1, publicado no “site” da dgsi.

[10] Cf., de entre vários, os acórdãos do STJ de 29.10.1992, 23.9.2004-processo 04B2324, 24.4.2007-processo 07A853, 28.6.2007-Proc. 07B1097, 18.12.2007-processo 07B4420, 17.11.2011-processso 447/08.4TBCBR.C1.S1, 11.02.2016-processo 6500/07.4TBBRG.G2.S3 e STJ de 19.9.2017-processo 120/14.4T8EPS.G1.S1, publicados, o primeiro, no BMJ, 420º, 590 e, os demais, no “site” da dgsi.
[11] Vide, entre outros, Manuel de Andrade, ob. cit., pág. 277.
[12] Vide, nomeadamente, Manuel de Andrade, ob. cit., pág. 192 e nota (1) e Vaz Serra, Provas (Direito Probatório Material), BMJ, 110º, 82.
[13] Cf., de entre vários, perfilhando aquele entendimento maioritário, os acórdãos do STJ de 21.4.2005-processo 03B2246, 29.11.2005, 09.12.2008-processo 08A3401, 12.01.2010-processo 314/06.6TBCSC.S1, 09.3.2010-processo 1247/07.4TJVNF.P1.S1, 16.3.2011-processo 3922/07.2TBVCT.G1.S1, 03.5.2011-processo 2618/08.06TBOVR.P1.S1, 28.9.2011-processo 2511/07.8TACSC.L2.S1, 15.11.2011-processo 6472/06.2TBSTB.E1.S1, 10.01.2012-processo 189/04.0TBMAI.P1.S1 e 08.5.2013-processo 3036/04.9TBVLG.P1.S1, publicados, à excepção do segundo, no “site” da dgsi [os dois primeiros publicados na CJ-STJ, XIII, 3, 151 e XVI, 3, 179, respectivamente].
    Na doutrina vide, nomeadamente, Júlio Gomes, in Cadernos de Direito Privado, n.º 3, páginas 52 e seguintes e A. Abrantes Geraldes, in Temas da Responsabilidade Civil, Vol. I, “Indemnização do Dano da Privação do Uso”.
   Relativamente àquela primeira corrente de entendimento (minoritária) cf., entre outros, os acórdãos do STJ de 04.10.2007-processo 07B1961, 30.10.2008-processo 08B2662 e 30.10.2008-processo 07B2131, publicados no “site” da dgsi.
[14] Vide F. M. Pereira Coelho, O Enriquecimento e o Dano (reimpressão), Almedina, 1999, pág. 35.

[15] Daí que os Réus tenham alegado, e bem, que “nem mesmo foi alegado ou provado de que no caso de ter o bem disponível (parcela de terreno de 20 m2) os AA. dele retirariam utilidades” (cf. a “conclusão 28ª”, ponto I., supra).

[16] Pensamos que a situação em análise não reclama a aplicação da orientação (na sua dimensão mais estrita) defendida, por exemplo, no acórdão da RL de 23.10.2007-processo 8457/2007-7, publicado no “site” da dgsi (relatado por Abrantes Geraldes): «(…) a simples verificação de que a impossibilidade de fruição de um bem próprio, em consequência de uma actuação ilícita de outrem, determina um corte temporal no legítimo direito de fruição; verificando-se uma lacuna de natureza patrimonial, correspondente à fatia de poderes de que o proprietário ficou privado, é com naturalidade que deve ser encarada a atribuição de uma compensação monetária, face à constatação de que o simples reconhecimento da ilegitimidade da privação e a condenação na restituição do bem são insuficientes para repor a situação do lesado no estado em que se encontraria caso não tivesse existido tal privação; se a privação do uso do bem durante um determinado período origina a perda das utilidades que o mesmo era susceptível de proporcionar e se tal perda não pode ser reparada mediante a forma natural de reconstituição, impõe-se que o responsável compense o lesado na medida equivalente; considerando que o direito de propriedade integra, como um dos seus elementos fundamentais, o poder de exclusiva fruição, e que isso envolve até o direito de não usar, a privação do uso reflecte o corte definitivo e irrecuperável de uma “fatia” desses, justificando-se, assim, o ressarcimento que supra a modificação negativa que a privação do uso determina na relação entre o lesado e o seu património