Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
421/14.1TAFIG.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALBERTO MIRA
Descritores: ACÇÃO CÍVEL CONEXA COM A ACÇÃO PENAL
INSOLVÊNCIA
EXTINÇÃO DA INSTÂNCIA
INUTILIDADE SUPERVENIENTE DA LIDE
Data do Acordão: 12/16/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA (SECÇÃO CRIMINAL DA INSTÂNCIA LOCAL DA FIGUEIRA DA FOZ)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART. 71.º E 4.º DO CPP; ART. 287.º, AL. E), DO CPC
Sumário: Mesmo no âmbito de pedido civil enxertado em processo penal, a declaração de insolvência do demandado torna supervenientemente inútil a instância cível, nos termos do disposto no artigo 287.º, alínea e), do CPC e 4.º do CPP.
Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, na 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra:

I. Relatório:

Na Comarca de Coimbra - Secção Criminal da Instância Local da Figueira da Foz -, o Ministério Público submeteu a julgamento, em processo comum, com intervenção de tribunal singular, os arguidos:

- A... , Lda., pessoa colectiva n.º (...) , NISS (...) , com sede na Rua (...) , Figueira da Foz;

- B... , divorciada, empresária, filha de (...) e de (...) , nascida a 02/02/1969, natural da freguesia de (...) , concelho de Ourém, residente na Rua (...) Marinha das Ondas; e

- C... , solteira, desempregada, filha de (...) e de (...) , nascida a 26/07/1983, natural da freguesia de (...) , concelho da Figueira da Foz, residente na Rua (...) Marinha das Ondas,

sob imputação da prática, em autoria material, na forma consumada e continuada, de um crime de abuso de confiança contra a segurança social, p. e p. pelos artigos 6.º, 7.º, n.ºs 1 e 3, 107.º, n.ºs 1 e 2, com referência ao artigo 105.º, n.ºs 1 e 4, do Regime Geral das Infracções Tributárias (doravante R.G.I.T.) e artigos 30.º, n.º 2 e 79.º, do Código Penal.


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2. O Instituto da Segurança Social - IP/Centro Distrital de Coimbra, deduziu, em 13-02-2015, pedido civil contra os arguidos, impetrando a condenação, solidária, destes no pagamento ao demandante da quantia de € 33.801,37, acrescida de juros de mora que, naquela data, atingiam o montante de € 5.206,71, e dos vincendos até integral pagamento.

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3. Efectuado o julgamento, por sentença de 18-10-2011, o tribunal proferiu decisão do seguinte teor:
1. Em sede de questão prévia, ao abrigo do disposto no artigo 277.º, alínea e), do Código de Processo Civil, julgou extinta a instância cível, por inutilidade superveniente da lide;
2. No dispositivo:
A) Condenou a arguida A... , LDA., pela prática, na forma consumada e continuada, de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, previsto e punível pelo artigo 107.º, n.ºs 1 e 2, com referência aos artigos 105.º, n.ºs 1 e 4 e 7.º, n.º 1, do R.G.I.T., em conjugação com os artigos 30.º, n.º 2 e 79.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 270 (duzentos e setenta) dias de multa, à taxa diária de €5,00 (cinco euros);
B) Condenou cada uma das arguidas B... e C... , pela prática, em autoria material, na forma consumada e continuada, de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, previsto e punível pelo artigo 107.º, n.ºs 1 e 2, com referência aos artigos 105.º, n.ºs 1 e 4 e 6.º, do R.G.I.T., em conjugação com o artigo 30.º, n.º 2 e 79.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 130 (cento e trinta) dias de multa, à taxa diária de €2,50 (dois euros e cinquenta cêntimos).
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4. Inconformado, o demandante recorreu da sentença, tendo formulado na respectiva motivação as seguintes (transcritas) conclusões:
1.ª - A discordância do ora recorrente prende-se, em concreto, e somente, com a extinção do pedido de indemnização civil por inutilidade superveniente da lide ancorado no pressuposto de que o “pedido de indemnização civil não é mais do que uma acção civil enxertada no processo penal, através do qual se pretende o reconhecimento de um direito de crédito…”.
2.ª - Com a acção penal, o demandante não pretende o reconhecimento de um “direito de crédito indemnizatório”, mas antes que lhe seja fixada uma indemnização pela prática de um facto ilícito criminal (sendo que esta não pode nunca ser inferior ao valor da prestação em falta, podendo até ser superior), pelo que não faz sentido que o demandante reclame o seu crédito no processo de insolvência ao abrigo do art. 128.º do CIRE, pois o que o demandante pretende não é reclamar um crédito, mas ser indemnizado pela prática de um crime.
3.ª  - O pedido cível enxertado no processo penal tem, necessariamente, como causa de pedir a prática de um crime - no caso, concretamente, o de abuso de confiança em relação à Segurança Social, ou seja, o facto ilícito criminal tão só de responsabilidade extra-contratual, nos termos dos arts. 483.º do C. Civil e 129.º do C. Penal.
4.ª - Sendo os gerentes demandados subsidiariamente responsáveis pelo pagamento das prestações tributárias indevidamente retidas, nos termos dos artigos 23.º e 24.º da LGT.
5.ª - No caso dos autos, não está em causa o pagamento das dívidas tributárias, mas a prática de um crime de abuso de confiança contra a segurança social.
6.ª - Está, assim, em causa no processo de insolvência o incumprimento das obrigações tributárias, e no caso destes autos a prática de um facto que a lei considera como ilícito criminal imputável à Sociedade e a ambos os gerentes, radicando-se a responsabilidade em cada um desses processos em normas distintas - de natureza tributária no processo de insolvência e de natureza penal no crime de abuso de confiança em relação à Segurança Social -, em que a conduta omissiva é a mesma, sendo as suas responsabilidades diferentes - solidária no âmbito do crime de abuso de confiança em relação à Segurança Social, nos termos do art. 497.º do C. Civil, e subsidiária no âmbito contratual.
7.ª - A reclamação de créditos, no processo de insolvência, emerge da violação de uma relação contratual de pagamento das contribuições à Segurança Social, enquanto o pedido de indemnização civil emerge do prejuízo patrimonial pela prática do facto ilícito extra-contratual, assumindo a Segurança Social no processo de insolvência a posição de credora e no pedido de indemnização civil a qualidade de lesada.
8.ª - Neste, verificados os pressupostos do art. 483.º do C.C. - facto, dano, nexo de causalidade, ilicitude e culpa -, todos os seus agentes são solidariamente responsáveis nos termos do art. 497.º, n.º 1, do C. Civil, sem prejuízo do direito de regresso, nos termos do n.º 2, não podendo o credor exigir a totalidade da prestação de todos ou parcial ou totalmente a qualquer um dos devedores.
9.ª - O facto de o Instituto de Segurança Social, IP, ter apresentado reclamação de créditos no processo de insolvência da sociedade aqui arguida, não é impeditivo da procedência do pedido de indemnização civil contra ela deduzido no processo criminal nem da condenação dos restantes demandados civis - sócios gerentes.
10.ª - A lei não prevê a dedução do pedido de indemnização civil em separado, no caso de insolvência.
11.ª - Sendo incompreensível o decidido pela Juiz a quo de que a demandante “terá de lançar mão da reclamação de créditos (como de resto já o fez em relação à sociedade demandada) ou eventualmente socorrer-se da acção prevista no art. 146.º do CIRE (verificação ulterior)”.
12.ª - A competência do tribunal criminal para conhecer da acção penal e da conexa acção cível enxertada não se confunde com a competência dos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal em matéria de insolvência, além de convocar o princípio da adesão, afirma o princípio da suficiência penal, nos termos do art. 7.º do CPP.
13.ª - A dedução do pedido de indemnização civil em processo penal não depende do “aval” de outros ordenamentos jurídicos; estes não determinam, quer a legitimidade, quer a viabilidade daquele.
14.ª - A reclamação de créditos, no processo de insolvência, foi deduzida apenas contra o sujeito da insolvência - a sociedade aqui arguida e demandada civil -, enquanto no peticionado cível são requeridos, além da sociedade, os arguidos pelo que não há identidade de sujeitos.
15.ª - Não há identidade de pedido, pois no processo de insolvência as contribuições (tributos) em dívida correspondem à soma das parcelas da responsabilidade da entidade empregadora e da responsabilidade do trabalhador (contribuições e cotizações), já os valores em dívida que consubstanciam o crime são unicamente os referentes aos trabalhadores (cotizações).
16.ª - Não há identidade de causa de pedir, pois enquanto o que titula a reclamação de créditos num processo de insolvência é a relação obrigacional existente entre a entidade empregadora e a dívida nela titulada, no pedido de indemnização civil formulado, a causa de pedir é o facto ilícito consubstanciador de um crime e o prejuízo por ele produzido.
17.ª - A sua responsabilidade criminal e a responsabilidade civil extra-contratual dela decorrente não se confundem com a responsabilidade tributária.
18.ª - No processo penal, o devedor é demandado a título principal, tendo por base a autoria de um crime de que emerge uma conexa responsabilidade civil delitual - artigo 6.º do RGIT- sendo o pedido baseado na obrigação de indemnizar pelos factos causados pela prática de facto ilícito e culposo - artigo 483.º do Código Civil.
19.ª - O art. 6.º do RGIT (Actuação em nome de outrem) prevê a punição daquele que agir como titular de um órgão, membro ou representante de uma pessoa colectiva ou sociedade, e o art. 7.º, n.º 3, do mesmo diploma, esclarece que a responsabilidade criminal das pessoas colectivas e sociedades “não exclui a responsabilidade individual dos respectivos agentes”.
20.ª - A extinção do pedido de indemnização civil, por inutilidade superveniente da lide, esquece o instituto da “exoneração do passivo restante” que pode ser concedido às pessoas singulares insolventes, que após o encerramento do seu processo de insolvência, por rateio final, ou por insuficiência da massa, possam vir a adquirir um novo património, susceptível de ressarcir a demandante do prejuízo causado pela prática do crime.
21.ª - No ratio do art. 85.º do CIRE não cabe o pedido de indemnização civil deduzido em processo crime, pois que se trata de uma unidade incindível, atento o princípio da adesão, e o processo crime não tem subjacente a apreciação de questões relativas a bens compreendidos na massa insolvente.
22.ª - Foram assim violados os artigos 71.º, 77.º, do CPP, 6.º, 7.º, n.º 2, 105.º e 107.º do RGIT, 23.º e 24.º da LGT, 483.º e 487.º  do CC.
Pelo que, com o douto suprimento, na procedência do recurso, deve ser revogada a douta sentença, na parte em que extinguiu o pedido de indemnização civil por inutilidade superveniente da lide, devendo ser substituída, nessa parte, por douta decisão que conheça do pedido de indemnização civil, só assim se fazendo, como sempre e se espera, justiça.

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6. Os demandados não responderam ao recurso.

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7. O Exmo. Sr. Procurador-geral Adjunto neste Tribunal da Relação apenas apôs “visto”.

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8. Efectuado o exame preliminar e colhidos os vistos legais, foi o processo submetido a conferência, cumprindo agora apreciar e decidir.

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II. Fundamentação

1. Poderes cognitivos do Tribunal ad quem e delimitação do objecto do recurso:

Conforme Jurisprudência constante e pacífica, são as conclusões extraídas pelos recorrentes das respectivas motivações que delimitam o âmbito dos recursos, sem prejuízo das questões cujo conhecimento é oficioso, indicadas no art. 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal (cfr. Ac. do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19 de Outubro, publicado no DR, 1-A de 28-12-1995).

Em conformidade, o objecto do recurso interposto no âmbito destes autos versa apenas direito e está circunscrito a uma única questão, a de saber se pode ser declarada extinta a instância cível, por inutilidade superveniente da lide, face à declaração de insolvência dos demandados e à prolação, no processo de insolvência relativo à sociedade demandada, de sentença de verificação e graduação de créditos.


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2. Passamos a reproduzir, in totum, a decisão de declaração da extinção da instância civil, por inutilidade superveniente da lide:

«No pedido de indemnização civil enxertado no processo penal deduzido pelo Instituto da Segurança Social – IP/Centro Distrital de Coimbra, veio este peticionar a condenação solidária da sociedade « A... , Lda.», B... e C... , a pagarem-lhe a quantia de €39.908,08, referente às quotizações devidas e não liquidadas e juros de mora vencidos, a título de ressarcimento pelos danos patrimoniais emergentes do crime de abuso de confiança contra a Segurança Social de que igualmente aquelas se encontram acusadas.

Importa, considerar, porém, que:

- Por sentença proferida em 08/07/2013, já transitada em julgado, no âmbito do processo n.º 648/13.3TBFIG, do extinto 1.º Juízo do Tribunal Judicial da Figueira da Foz, foi declarada a insolvência da « A... , Lda.», sociedade esta que se encontra em fase de liquidação.

- Por sentença proferida em 15/01/2014, já transitada em julgado, no âmbito do processo n.º 84/14.4TBFIG, do extinto 2.º Juízo do Tribunal Judicial da Figueira da Foz, foi declarada a insolvência de C... .

- Por sentença proferida em 21/11/2013, já transitada em julgado, no âmbito do processo n.º 2232/13.2TBFIG, do extinto 3.º Juízo do Tribunal Judicial da Figueira da Foz, foi declarada a insolvência de B... .

Notificada a demandante para se pronunciar quanto à eventual extinção da instância por inutilidade superveniente da lide, a mesma veio pugnar pela sua improcedência, nos termos que constam de fls. 355 e segs., e que se prendem, em suma, com a diversa natureza da causa de pedir que fundamenta o pedido de indemnização civil e a responsabilidade tributária que fundamenta uma reclamação de créditos a deduzir por apenso ao processo de insolvência.

Cumpre decidir.

Aceitando-se embora que diferentes são as causas de pedir e que o fundamento do pedido de indemnização civil, pela sua natureza, entronca na comissão de um ilícito criminal, a verdade é que, salvo melhor entendimento, não se poderá olvidar que o pedido de indemnização civil não é mais do que uma acção civil enxertada no processo penal, através do qual se pretende o reconhecimento de um direito de crédito indemnizatório. E, assim sendo, a declaração de insolvência do demandado não poderá ser indiferente à solução a adoptar.

Ora, a questão de saber se a declaração de insolvência determinava a extinção da instância por inutilidade superveniente da lide de uma acção declarativa de condenação para reconhecimento de um crédito sobre o insolvente era controversa e não vinha merecendo solução uniforme por parte da jurisprudência, até à prolação do Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.º 1/2014, in DR-I, de 25/02/2014, nos termos do qual:

Transitada em julgado a sentença que declara a insolvência, fica impossibilitada de alcançar o seu efeito útil normal a acção declarativa proposta pelo credor contra o devedor, destinada a obter o reconhecimento do crédito peticionado, pelo que cumpre decretar a extinção da instância, por inutilidade superveniente da lide, nos termos da alínea e) do artigo 287.º do C.P.C.

De resto, já o Tribunal Constitucional, através do Acórdão n.º 46/2014, in DR-II, de 21/02/2014, havia considerado não ser inconstitucional a interpretação normativa de acordo com a qual, transitada em julgado a sentença que declara a insolvência, fica impossibilitada de alcançar o seu efeito útil normal a acção declarativa proposta pelo credor contra o devedor, destinada a obter o reconhecimento do crédito peticionado, impondo-se decretar a extinção da instância, por inutilidade superveniente da lide, nos termos da alínea e) do então artigo 287.º do Código de Processo Civil.

Ademais, tal solução decorre da concatenação de diversas normas do Código da Insolvência.

Assim, dispõe o artigo 46.º, n.º 1, do C.I.R.E. que: “A massa insolvente destina-se à satisfação dos credores da insolvência, depois de pagas as suas próprias dívidas …”, acrescentando o artigo 47.º, n.º 1, que: “Declarada a insolvência, todos os titulares de créditos de natureza patrimonial sobre o insolvente, ou garantidos por bens integrante da massa insolvente, cujo fundamento seja anterior à data dessa declaração, são considerados credores da insolvência, qualquer que seja a sua nacionalidade e domicílio”.

Daqui decorre desde logo que, declarada a insolvência, todos os credores do devedor passam a ser havidos como credores da insolvência.

Por outro lado, os credores da insolvência apenas poderão exercer os seus direitos em conformidade com o preceituado no Código da Insolvência e durante a pendência do correspondente processo (artigo 90.º, do C.I.R.E.).

Nessa medida, estão os credores da insolvência obrigados a reclamar os seus créditos no próprio processo de insolvência, mesmo que dotados de sentença definitiva que reconheça a existência do seu crédito, o que se harmoniza com o carácter de execução universal do processo de insolvência, cuja finalidade é a liquidação do património do devedor, assegurado o princípio da igualdade de tratamento entre os credores.

Na verdade, após a declaração de insolvência têm os credores um prazo fixado na sentença para virem reclamar os seus créditos no processo de insolvência (artigo 128.º, do C.I.R.E.), sendo que a verificação de créditos “tem por objecto todos os créditos sobre a insolvência, qualquer que seja a sua natureza e fundamento, e mesmo o credor que tenha o seu crédito reconhecido por decisão definitiva não está dispensado de o reclamar no processo de insolvência, se nele quiser obter pagamento” (n.º 3 do aludido artigo).

Por conseguinte, para efeitos de obtenção do pagamento de créditos à custa da massa insolvente, só releva a reclamação deduzida no processo de insolvência.

Mais, é manifesto que qualquer acção declarativa que vise o reconhecimento de um direito de crédito e a condenação de quem foi declarado insolvente a pagar tem indirectamente relação com os bens apreendidos para a massa falida, entendendo-se que o artigo 85.º, do C.I.R.E. só não impõe a apensação das mesmas ao processo de insolvência por este ser um processo de carácter privado em que os credores têm a liberdade de reclamar ou não os seus créditos.

Por isso, como referem Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, em anotação ao artigo 128.º, do C.I.R.E. e a propósito da apensação, “Se dentro do prazo para a reclamação de créditos, esses processos estiverem já apensos ao processo de insolvência, muito embora, em rigor, se não possa dizer, à semelhança do n.º 4 do artigo 188.º do CPEREF, que se consideram reclamados, a verdade é que não pode deixar de se entender, para efeitos do n.º 1 do artigo 129.º, que eles são conhecidos do administrador da insolvência.

Mas, por maior prudência, os titulares dos créditos identificativos nos processos apensados devem também reclamá-los” .

Daqui resulta que, mesmo que se verifique a apensação, o que não é obrigatório, ainda assim os credores da insolvência, à cautela, deverão igualmente reclamar os seus créditos no processo falimentar; assim, se não for pedida a apensação, os créditos têm obrigatoriamente que ser reclamados nos termos fixados no artigo 128.º, do C.I.R.E., sob pena de não se serem atendidos.

Assim sendo, o presente pedido de indemnização civil, no qual a demandante pretende ver reconhecido um seu crédito sobre as arguidas/demandadas, não mantém qualquer interesse ou utilidade práticos, uma vez que não possibilitará jamais a satisfação do seu crédito, posto que a mesma terá de lançar mão da reclamação de créditos (como, de resto, já o fez em relação à sociedade demandada) ou eventualmente socorrer-se da acção prevista no artigo 146.º, do C.I.R.E. (verificação ulterior de créditos).

Ademais, mesmo que o pedido de indemnização civil prosseguisse nunca a demandante poderia obter a cobrança coerciva do seu crédito com fundamento na decisão final, pois que a declaração de insolvência obsta à instauração de qualquer acção executiva intentada pelos credores da insolvência (artigo 88.º, n.º 1, 2.ª parte, do C.I.R.E.).

Como refere Artur Dionísio Oliveira, “… o reconhecimento judicial do crédito no âmbito de uma acção intentada pelo respectivo titular contra o devedor/insolvente não tem força executiva no processo de insolvência. Só a sentença que, neste processo, julgar verificado esse crédito terá essa força” .

Face a todo o exposto, tendo em conta que a demandante só poderá obter o pagamento do seu crédito no âmbito do processo de insolvência, não sendo relevante para tal processo a existência de sentença que reconheça o mesmo, verifica-se que o presente processo se tornou inadequado para a realização do direito de crédito por si invocado.

Ora, como referem Lebre de Freitas, João Redinha e Rui Pinto , “A impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide dá-se quando, por facto ocorrido na pendência da instância, a pretensão do autor não se pode manter, por virtude do desaparecimento dos sujeitos ou do objecto do processo, ou encontra satisfação fora do esquema da providência pretendida”.

Neste sentido, veja-se o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 20/09/2011, proc. n.º 2435/09.4TBMTS.P1.S1. acessível in www.dgsi.pt, nos termos do qual: “Por tudo o exposto, somos em crer, que transitada em julgado a declaração de insolvência do devedor e aberta a fase processual de reclamação de créditos, com vista à sua ulterior verificação e graduação – frisa-se, sempre no âmbito do respectivo processo de insolvência –, deixa de ter qualquer interesse e utilidade o prosseguimento de acção declarativa instaurada com vista ao reconhecimento de eventuais direitos de crédito do demandante, pois estes sempre teriam de ser objecto de reclamação no processo de insolvência. De nada servirá, assim, a sentença proferida na acção instaurada contra o devedor, se o credor não reclamar o crédito no processo de insolvência, porquanto jamais poderá tal decisão ser dada à execução para cumprimento coercivo, até porque, de acordo com o dito art. 88º, a declaração de insolvência obsta à instauração ou ao prosseguimento de qualquer acção executiva intentada pelos credores da insolvência”.

Também a propósito do pedido de indemnização civil enxertado no processo penal deduzido contra o arguido, declarado insolvente, pode ler-se no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 22/02/2011, proc. n.º 86/09.2TAEPS.G1, acessível in www.dgsi.pt, que: “A declaração de insolvência do arguido, demandado civil, determina a extinção da instância cível enxertada em processo penal, por inutilidade superveniente da lide”, salientando-se ainda que o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra que a demandante apresentou não se debruçou especificamente sobre a questão agora decidida, atenta a diversidade dos argumentos aí ponderados e que assentam essencialmente na diversidade de causas de pedir.

Termos em que, ao abrigo do artigo 277.º, alínea e), do Código de Processo Civil, julgo extinta a instância cível, por inutilidade superveniente da lide.»

3. Na sentença recorrida, foram dados como provados os seguintes factos:

1) A sociedade « A... , Lda.», pessoa colectiva n.º (...) , NISS (...) , com sede na Rua (...) , concelho da Figueira da Foz, dedicava-se à exploração de lar para idosos.

2) Por sentença de 08 de Julho de 2013, proferida nos autos de insolvência n.º 648/13.3TBFIG, do extinto 1.º Juízo do Tribunal Judicial da Figueira da Foz, foi tal sociedade declarada insolvente, sem que, até ao momento, tivesse lugar o encerramento da liquidação.

3) Desde o início da constituição da sociedade arguida, a sua gerência foi exercida, de direito e de facto, pelas arguidas B... e C... , as quais geriam e administravam a sociedade, contactando com fornecedores e com credores, pagando as remunerações aos trabalhadores e gerentes, efectuando as deduções a tais remunerações, correspondentes às quotizações devidas à Segurança Social.

4) A sociedade arguida, como entidade empregadora, obrigava-se a reter e a entregar mensalmente, até ao dia 15 do mês seguinte àquele a que respeitam as contribuições, as quantias retidas e devidas à Segurança Social, previamente descontadas no acto de pagamento das remunerações.

5) No entanto, apesar de as arguidas terem efectivamente pago aos trabalhadores e gerentes da sociedade arguida, as remunerações respeitantes ao período compreendido entre os meses de Janeiro a Outubro de 2011 e Dezembro de 2011 até Setembro de 2013 e de terem deduzido às mesmas a quantia correspondente às respectivas quotizações para a Segurança Social, no valor total de €33.801,37 (trinta e três mil oitocentos e um euros e trinta e um cêntimos), conforme infra se discrimina, de comum acordo e na qualidade de gerentes da sociedade arguida, não procederam à sua entrega na Segurança Social:

Mês de         Quotizações    Quotizações       Total

Ref.ª                     11%     9,6%

2011/01 295,76€           127,41€           423,19€

2011/02 433,67€           127,41€           561,08€

2011/03 470,24€           127,41€           597,65€

2011/04 446,00€           127,41€           573,41€

2011/05 459,89€           127,41€           587,30€

2011/06 402,16€           127,41€           529,57€

2011/07 435,74€           127,41€           563,15€

2011/08 780,38€           127,41€           907,79€

2011/09 641,91€           127,41€           769,32€

2011/10 817,83€           127,41€           945,24€

2011/12 833,34€           148,64€           981,98€

2012/01 939,28€           148,64€           1.087,92€

2012/02 1.024,22€        148,64€           1.172,86€

2012/03 1.015,80€        148,64€           1.164,44€

2012/04 1.037,70€        148,64€           1.186,34€

2012/05 997,09€           148,64€           1.145,73€

2012/06 1.104,07€        148,64€           1.252,71€

2012/07 1.077,38€        148,64€           1.226,02€

2012/08 1.058,63€        148,64€           1.207,27€

2012/09 1.100,16€        148,64€           1.248,80€

2012/10 1.178,79€        152,89€           1.331,68€

2012/11 989,74€           152,89€           1.142,63€

2012/12 986,70€           161,38€           1.148,08€

Mês de  Quotizações  Quotizações      Total

Ref.ª                       11%               11%

2013/01 985,55€           180,20€           1.165,75€

2013/02 1.030,95€        175,17€           1.206,12€

2013/03 1.084,03€        185,86€           1.264,87€

2013/04 1.106,75€        180,84€           1.287,59€

2013/05 1.247,68€        180,84€           1.443,54€

2013/06 1.368,82€        185,86€           1.544,64€

2013/07 1.233,79€        175,82€           1.409,61€

2013/08 1.277,08€        180,84€           1.457,92€

2013/09 1.101,35€        175,82€           1.277,17€

TOTAL  28.962,50€      4.848,91€        33.801,37€

6) Nem o fizeram nos 90 dias subsequentes ao termo do prazo de 15 dias referido em 4), antes retendo tais quantias.

7) As arguidas procederam à entrega das declarações de remunerações relativas aos salários pagos aos trabalhadores e gerentes da sociedade por referência aos períodos acima mencionados, embora desacompanhadas dos valores retidos a título de quotizações.

8) As arguidas foram, a título pessoal e na qualidade de representantes da sociedade arguida, notificadas para, em 30 dias, procederem ao pagamento da referida quantia e respectivos juros de mora, conforme previsto no artigo 105.º, n.º 4, alínea b), do R.G.I.T., não o tendo, porém, efectuado nesse prazo nem até à presente data.

9) As arguidas agiram com intenção de não entregar as contribuições devidas à Segurança Social, descontadas nas remunerações pagas aos seus trabalhadores e gerentes, nos aludidos períodos, retendo-as e dando-lhes destino diferente, não obstante não lhes pertencerem e em prejuízo do Estado, que não as pôde utilizar para as finalidades previstas na legislação da Segurança Social, o que realizaram e conseguiram.

10) Sabendo que as mesmas não lhes pertenciam e que estavam obrigadas a entregá-las à Segurança Social.

11) As arguidas B... e C... agiram em nome e no interesse da sociedade arguida « A... , Lda.», bem como no seu próprio interesse.

12) Agiram as arguidas ainda, durante o referido hiato temporal, reiterando sucessivamente os mesmos propósitos, praticando de forma homogénea os repetidos actos, favorecidos pela mesma circunstância de tais condutas não terem sido prontamente detectadas pela Segurança Social, servindo-se dos mesmos métodos que se foram revelando aptos para atingir os seus fins.

13) Agiram as arguidas de forma livre, deliberada e consciente, de forma concertada e em conjugação e esforços, bem sabendo que a conduta descrita era proibida e punida por lei.

14) A insolvência da sociedade arguida, assim como as responsabilidades e garantias pessoais assumidas pelas arguidas B... e C... , resultaram na insolvência pessoal de cada uma delas.

15) Com efeito, por sentença proferida em 15/01/2014, já transitada em julgado, no âmbito do processo n.º 84/14.4TBFIG, do extinto 2.º Juízo do Tribunal Judicial da Figueira da Foz, foi declarada a insolvência de C... .

16) Por sentença proferida em 21/11/2013, já transitada em julgado, no âmbito do processo n.º 2232/13.2TBFIG, do extinto 3.º Juízo do Tribunal Judicial da Figueira da Foz, foi declarada a insolvência de B... .

17) As arguidas B... e C... nunca se aproveitaram, em qualquer circunstância, do património gerado pela sociedade « A... , Lda.», nomeadamente nunca se aproveitaram do estado e existência de contas bancárias e dos seus fluxos.

18) Nunca tendo retirado qualquer benefício financeiro dos factos de que vêm acusadas.

19) As arguidas têm-se socorrido da ajuda de familiares para sobreviverem economicamente, pois que ambas viviam do trabalho no lar.

20) São pessoas bem vistas pelos ex-trabalhadores, clientes e fornecedores, utentes do lar e seus familiares.

21) São pessoas honestas, com elevados e sólidos padrões profissionais e morais, bem integradas e eticamente responsáveis, que sempre criaram riqueza e trabalho para a sua comunidade, sendo igualmente bem vistas pelos familiares e amigos.

22) As arguidas sofreram financeira e economicamente com os problemas financeiros e judiciais do lar, perdendo capacidade monetária.

23) As arguidas sempre tentaram cumprir com os pagamentos dos salários, inexistindo qualquer crédito laboral reclamado no processo de insolvência.

24) As arguidas sempre tentaram chegar a acordo com os seus credores, sobretudo com as Finanças e Segurança Social, demonstrando boa-fé negocial e boa vontade, chegando a ser aprovado um plano de pagamento em prestações com a Segurança Social, o qual foi apenas cumprido parcialmente.

25) Somente por dificuldades intransponíveis de tesouraria e de financiamento deixou a sociedade arguida de cumprir as suas obrigações fiscais.

26) As arguidas B... e C... confessaram integralmente e sem reservas a prática dos factos por que vinham acusadas.

27) A arguida B... encontra-se desempregada, vive com a sua irmã C... , o companheiro desta e as duas filhas menores de ambos.

28) Residem em casa arrendada, pela qual pagam mensalmente €450,00.

29) Efectua limpezas esporadicamente, do que recebe quantia não concretamente apurada e incerta.

30) Completou o 9.º ano de escolaridade.

31) O companheiro da arguida C... é militar da G.N.R., auferindo cerca de €900,00 mensais.

32) A arguida C... é licenciada em farmácia, estando actualmente desempregada.

33) As arguidas não têm condenações averbadas ao seu certificado do registo criminal.


*

3. Mérito do recurso:
No domínio do direito anterior ao Código Penal de 1982, a reparação por perdas e danos arbitrada em processo penal tinha natureza especificamente penal.
Com efeito, na medida em que se postergava o princípio da necessidade do pedido e se considerava a indemnização como um efeito necessário da condenação penal (arts. 34.º e 450.º, n.º 5, do C.P.P./29), definiam-se critérios próprios da sua avaliação, distintos dos estabelecidos pela lei civil (§ 2.º do mesmo art. 34.º) e não se previa a possibilidade de transacção ou de renúncia ao direito e desistência do pedido, aquela reparação constituía, em rigor, um «efeito penal da condenação - como aliás claramente o inculca o art. 75.º, 3 do CP - hoc sensu “uma parte da pena pública”, que não se identifica, nos seus fins e nos seus fundamentos, com a indemnização civil, nem com ela tem de coincidir no seu montante»[1].
Contra essa descaracterização, quer da acção civil enxertada no processo penal quer da própria natureza e finalidades da indemnização aí arbitrada, que não contra o sistema da adesão em si mesmo, veio a grande reforma do direito penal de 1982.
Assim, passando a ser determinada de acordo com os pressupostos e critérios substantivos da lei civil, por força da norma do art. 128.º do Código Penal de 1982 (que revogou, tacitamente, o § 2.° do art. 34.º, do C.P.P./29), reproduzida no art. 129.º, do CP/95, a reparação assume-se, agora, como pura indemnização civil que, sem embargo de se lhe reconhecer uma certa função adjuvante, não se confunde com a pena (o art. 128.º do C.P./82 corresponde, com ligeiras alterações formais, ao art. 106.º do Projecto da Parte Geral do Código Penal de 1963, que Eduardo Correia justificou pela «ideia de que, pelo menos no ponto de vista substantivo, a indemnização civil do dano produzido pelo crime é coisa diferente, de todo o ponto, da responsabilidade penal ...»[2]
E, no plano do direito adjectivo, o Código de Processo Penal, mantendo o sistema da adesão [embora alargando, no art. 72.º, o número de casos em que, concedendo ao princípio da alternatividade ou opção, é permitido intentar a acção cível em separado, e levando essa maior maleabilidade ao ponto de autorizar o tribunal não só a condenar no que se liquidar em execução da sentença, sempre que não disponha de elementos bastantes para fixar a indemnização - art. 82.º, n.º l, - mas também a remeter para os tribunais civis, nos casos previstos no n.º 2 (hoje, n.º 3) do último dispositivo citado], veio conferir àquela acção de indemnização pela prática de um crime, formalmente enxertada no processo penal, a estrutura material de uma autêntica acção civil, acolhendo, inequivocamente, os princípios da disponibilidade - cfr. art. 81.º - e da necessidade do pedido (nemo iudex sine actore, ne procedat iudex ex ofício, ne eat iudex ultra vel extra petita partium) - cfr., v.g., os art.ºs 71.º, 74.º a 77.º e 377.º (a Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto, além do mais, aditou, relativamente ao texto originário do Código de Processo Penal de 1987, o art. 82.º-A que consagra, para uma situação de excepção (“quando particulares exigências da protecção da vítima o imponham”), uma solução de excepção (em caso de condenação, atribuição, ex officio, de reparação à vítima) que pressupõe, obviamente, a regra ou princípio de que, em processo penal, o juiz só pode arbitrar indemnização, ao lesado, quando este tiver deduzido o respectivo pedido, nos termos do cit. art. 77.º, do C.P.P., e prescrevendo que a decisão penal, ainda que absolutória, que conheça do pedido cível, constitui caso julgado nos termos em que a lei atribui eficácia de caso julgado às sentenças civis, cfr. art. 84.º.
Porém, dizer que, em processo penal, a indemnização se determina de acordo com os pressupostos e critérios da lei civil não significa que a própria admissibilidade do pedido se afira, ali, em função, apenas, do direito civil substantivo da responsabilidade civil, sem qualquer tipo de limitação. Com efeito, como flui, claramente, do disposto nos arts. 71.º, n.º l, e 74.º, n.º l, do C.P.P., 128.º, do CP/82, e 129.º, do CP/95, a acção cível que adere ao processo penal é a que tem por objecto a indemnização de perdas e danos causados por um crime e só essa. Logo, se o pedido não é de indemnização por danos ocasionados pelo crime, se não se funda na responsabilidade civil do agente, pelos danos que, com a prática do crime, causou, então, o pedido é legalmente inadmissível no processo penal. Consequentemente, pelos danos causados por um facto que viola, exclusivamente, um crédito ou uma obrigação em sentido técnico, não pode pedir-se a respectiva indemnização no processo penal.
A esta luz, não é difícil determinar o sentido e alcance do disposto no art. 377.º, do CPP: se se tiver provado que o arguido, absolvido do crime que lhe era imputado na acusação ou na pronúncia, causou, ainda assim, com a sua conduta, danos a outrem, haverá lugar à condenação em indemnização (desde que, obviamente, se verifiquem os pressupostos de responsabilidade civil).
Dito de outro modo, no caso previsto no cit. art. 377.º, n.º l, do CPP, a indemnização só pode fundar-se em responsabilidade civil extracontratual ou em responsabilidade pelo risco. Foi justamente neste sentido que o Supremo Tribunal de Justiça fixou jurisprudência, pelo Acórdão n.º 7/99, de 17 de Junho de 1999, publicado no D.R.- I-A, n.º 179, de 3/8/99), no seguinte sentido:
«Se em processo penal for deduzido pedido cível, tendo o mesmo por fundamento um facto ilícito criminal, verificando-se o caso previsto no artigo 377.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, ou seja, a absolvição do arguido, este só poderá ser condenado em indemnização civil se o pedido se fundar em responsabilidade extra-contratual ou aquiliana, com exclusão da responsabilidade civil contratual».
Em síntese conclusiva, dir-se-á, pois, que o pedido de indemnização civil «fundado na prática de um crime» pode ser «deduzido no processo penal respectivo (art. 71.º, do CPP)», mas a sentença, ainda que absolutória, condena o arguido em indemnização civil «sempre que o pedido respectivo vier a revelar-se fundado».
Assim, se o pedido tem de se fundar «na prática de um crime», mas a absolvição (do crime) não obsta à condenação do arguido no pedido - se «fundado» - de indemnização, o fundamento da condenação não será obviamente a «prática de um crime», mas, segundo, o assento 7/99 de 17 de JUN, a «responsabilidade extracontratual ou aquiliana», ainda que (eventualmente) não criminosa.
*
 Em consonância com o que se acaba de expor, o pedido de indemnização civil a deduzir em processo penal tem como causa de pedir os mesmos factos que são também pressuposto da responsabilidade criminal e pelos quais o arguido é acusado.
Como bem salienta, prolixamente, o recorrente, o que está em causa nos autos não é a responsabilização de pessoas singulares pelas dívidas tributárias da sociedade arguida, na qualidade de representantes legais da mesma - a que são aplicáveis as normas dos artigos 22.º a 24.º da Lei Geral Tributária, aprovada pelo DL n.º 398/98, de 17/12 -, mas sim a responsabilidade civil do referido ente colectivo decorrente da prática do crime de abuso de confiança contra a segurança social. E esta determina-se de acordo com as regras do Código Civil, para as quais também remetem os artigos 129.º do Código Penal e 3.º do Regime Geral das Infracções Tributárias, aprovado pela Lei n.º 15/2001.
Ora, o artigo 497.º do Código Civil consagra o princípio da responsabilidade solidária no âmbito da responsabilidade civil extracontratual, quando forem várias as pessoas responsáveis pelos danos. Deste modo, nos casos, como o dos autos, em que a sociedade é também responsável criminalmente em relação a um crime de abuso de confiança contra a segurança social, aquela responde também, solidariamente, pelo ressarcimento dos danos decorrentes da prática do referido crime.
Independentemente da efectivação da responsabilidade tributária subsidiária das pessoas singulares, através da reversão do processo de execução fiscal, nos termos do disposto no art. 23.º Lei Geral Tributária, aprovada pelo DL 398/98, de 17/12 (a execução fiscal só pode ser intentada contra a sociedade, devedora principal, como tal figurando no título de cobrança, nos termos do art. 153.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aprovado pelo DL 433/99, de 26/10), o pedido de indemnização fundado na prática de um crime há-de ser deduzido por dependência da acção penal, como decorre do princípio da adesão estabelecido no art. 71.º do CPP, só o podendo ser em separado nos casos previstos na lei.
Como é dito no Ac. do STJ de 26-01-2006[3], não configurando «excepção a tal regra o facto de a legislação tributária permitir ao demandante obter o pagamento das quantias em dívida por outros meios, concretamente pela execução fiscal, (…)» mesmo a existência de título executivo de natureza fiscal não obsta o que o credor possa «obter a condenação do devedor por meio do pedido cível, em consonância com o que tem sido afirmado em diversa jurisprudência (…)»[4], com particular evidência para o Ac. de Fixação n.º 1/2013, de 15-11-2012, in DR, 1.ª série, de 07-01-2013.
*

Mas o punctus sallius da questão a dirimir está fora do quadro mental desenvolvido na petição recursória.

Em causa está tão só o alcance dos efeitos externos das sentenças, transitadas em julgado, de declaração de insolvência de todos os demandados e de verificação e graduação de créditos do ente colectivo no enxerto cível deduzido nos presentes autos, pelo ora recorrente, ou seja, quais as repercussões processuais e substantivas daquelas decisões no domínio do pedido de indemnização civil formulado no processo em curso pelo Instituto da Segurança Social - IP/Centro Distrital de Coimbra.

En passant, cabe referir que, para o efeito, é destituída de todo e qualquer sentido a destrinça feita pelo recorrente entre responsabilidade contratual e responsabilidade decorrente da prática de facto ilícito porquanto, afigura-se-nos claro, as referidas fontes de obrigação destinam-se, na latitude que ora importa considerar, ao ressarcimento de danos provocados na esfera patrimonial do lesado.

O thema dcidendum, reitera-se, consiste em saber se, como foi decidido pela sentença sob recurso, a declaração de insolvência dos demandados e/ou o acto processual de verificação e graduação de créditos determina(m) a extinção da instância civil por impossibilidade superveniente da lide, nos termos do artigo 287.º, alínea e), do Código de Processo Civil, ex vi artigo 4.º, do Código de Processo Penal.

A inutilidade superveniente da lide ocorre quando, em virtude de novos factos ocorridos na pendência do processo, a decisão a proferir já não pode ter qualquer efeito útil, ou porque não é possível dar satisfação à pretensão que o demandante quer fazer valer no processo ou porque o escopo visado com a acção foi atingido por outro meio[5].

Até à prolação do Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.º 1/2014, (publicado no DR,-I, de 25-02-2014) - segundo o qual «Transitada em julgado a sentença que declara a insolvência, fica impossibilitada de alcançar o seu efeito útil a acção declarativa proposta pelo credor contra o devedor, destinada a obter o reconhecimento do crédito peticionado, pelo que cumpre decretar a extinção da instância, por inutilidade superveniente da lide, nos termos da alínea e) do artigo 287.º do C.P.C.» -, não era consensual a jurisprudência dos nossos tribunais superiores, no domínio da jurisdição cível, em relação às normas que se referem aos efeitos da declaração de insolvência em acções declarativas então pendentes e à sua compatibilização com as normas que se referem à reclamação, no processo de insolvência, de todos os créditos de natureza patrimonial sobre o insolvente, tendo surgido as seguintes duas posições: (i) a que se manifestava pela impossibilidade superveniente da lide e consequente extinção da instância, nos termos da alínea e) do artigo 287.º do Código de Processo Civil[6]; (ii) a que considerava que “a declaração de insolvência não determina, só por si, a inutilidade das acções declarativas que têm como objecto o reconhecimento judicial de um crédito sobre o insolvente. A sua inutilidade apenas ocorrerá a partir do momento em que, no processo de insolvência, é proferida sentença de verificação e graduação de créditos”[7].

As razões do dissídio estão bem expressas nos Acórdãos acabados de citar, em nota de rodapé.

Em relação à demandada sociedade, importante para o caso em apreciação é reter que, segundo as duas posições em destaque, tendo sido proferida, no processo de insolvência em curso, verificação e graduação de créditos, com inclusão do crédito reclamado na acção declarativa e, por conseguinte, também no pedido cível deduzido em processo penal, ocorre inutilidade superveniente da lide, por aplicação do normativo já acima indicado [artigo 287.º, alínea e), do Código de Processo Civil].

Eis as razões subjacentes a esta consequência jurídica.

Como decorre do Código da Insolvência e Recuperação de Empresas, aprovado pelo DL n.º 53/2004, de 18 de Março, nomeadamente do seu 1.º artigo (serão deste diploma os demais normativos que se vierem a citar sem indicação de fonte legal), o processo de insolvência é um processo de execução universal que tem como finalidade a liquidação do património de um devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores.

Segundo o disposto no artigo 90.º, «os credores da insolvência apenas poderão exercer os seus direitos em conformidade com os preceitos do presente Código [o CIRE], durante a pendência do processo de insolvência».

Em anotação ao referido artigo, escrevem Luís Carvalho Fernandes e João Labareda[8]:

«Este preceito regula o exercício dos direitos dos credores contra o devedor no período de pendência do processo de insolvência.

A solução nele consagrada é a que manifestamente se impõe, pelo que, apesar da sua novidade formal, não significa, no plano substancial, um regime diferente do que não podia deixar de ser sustentado na vigência da lei anterior.

Na verdade, o art. 90.º limita-se a determinar que, durante a pendência do processo de insolvência, os credores só podem exercer os seus direitos «em conformidade com os preceitos do presente Código». Daqui resulta que têm de os exercer no processo de insolvência e segundo os meios processuais regulados no CIRE.

É esta a solução que se harmoniza com a natureza e a função do processo de insolvência, com execução universal, tal como o caracteriza o art. 1.º do Código.

Um corolário fundamental do que fica determinado é o de que, para poderem beneficiar do processo de insolvência e aí obterem, na medida do possível, a satisfação dos seus interesses, os credores têm de neles exercer os direitos que lhes assistem, procedendo, nomeadamente, à reclamação dos créditos de que sejam titulares, ainda que eles se encontrem já reconhecidos em outro processo (cfr. art. 98.º, n.º 3, vd., também, o n.º 2 do art. 87.º). Neste ponto, o CIRE diverge do que, a propósito, se acolhia no citado art. 188.º, n.º 3, do CPEREF.

Por conseguinte, a estatuição deste art. 90.º enquadra um verdadeiro ónus posto a cargo dos credores».

Efectivamente, a finalidade do processo de insolvência é orientada no sentido de que todos os credores do mesmo devedor exerçam os seus direitos, no âmbito de um único processo, em condições de igualdade, não dispondo nenhum credor de quaisquer privilégios ou garantias para além dos que sejam reconhecidos pelo direito da insolvência e nos precisos termos em que este os reconhece.

Decorre do exposto que, durante a pendência do processo de insolvência, os credores apenas poderão exercer os seus direitos no âmbito do mesmo, em conformidade como as normas do CIRE.

Como se realça no Acórdão do STJ de 25-03-2010, já acima indicado, citando extracto da decisão recorrida, «de nada serve a sentença proferida na acção instaurada contra o devedor, se o credor não reclamar o crédito no processo de insolvência, porquanto jamais poderá tal decisão ser dada à execução para cumprimento coercivo, uma vez que, de acordo com o disposto no art. 88.º do CIRE, a declaração de insolvência obsta à instauração ou ao prosseguimento de qualquer acção executiva intentada pelos credores da insolvência».

No que concerne aos dois demandados singulares, sustentados no mencionado Ac. Uniformizador de Jurisprudência e, no domínio do enxerto cível, ainda na corrente jurisprudencial de que é exemplo o citado Ac. da Relação de Guimarães de 22-02-2011 (proc. n.º 86/09.2TAEPS.G1), a cujos fundamentos, dados aqui por inteiramente reproduzidos, aderimos sem qualquer reserva, manifestamos também entendimento no sentido de a declaração de insolvência daqueles determinar também a extinção da instância, tendo por base o preceito legal reiteradamente invocado.

Perante o exposto, dir-se-á, em síntese conclusiva: a declaração de insolvência dos demandados e a verificação e graduação de créditos no processo de insolvência da demandada sociedade “ A... , Lda.”, tornou a lide cível enxertada neste processo supervenientemente inútil, nos termos do disposto no artigo 287.º, alínea e), do Código de Processo Civil, aqui aplicável por força da norma do artigo 4.º do Código de Processo Penal.

Consequentemente, improcede o recurso.


*

III. Dispositivo:

Posto o que precede, acordam os Juízes da 5.ª Secção deste Tribunal da Relação de Coimbra em negar provimento ao recurso, mantendo-se, na íntegra, a decisão recorrida.

Custas pelo demandante.


*
(Processado e revisto pelo relator, o primeiro signatário)
Coimbra, 16 de Dezembro de 2015


(Alberto Mira - relator)


(Elisa Sales - adjunta)


[1] Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, 1.º vol., 1974, pág. 549.
[2] Cfr. Acta da 32.ª sessão, in “Actas das Sessões da Comissão Revisora do Código Penal, Parte Geral”, II vol., M.J., 1966, págs. 211/212.
[3] Processo n.º 231/05-5.ª, do qual foi relator o Sr. Conselheiro Rodrigues da Costa, citado no Acórdão do mesmo Tribunal de 11-12-2008, publicado em www.dgsi.pt.
[4] Neste sentido, v.g., os Acs. da Relação do Porto de 20-09-2006 e de 28-02-2007; da Relação de Évora de 19-04-2005, da Relação de Coimbra de 13-06-2007 e 01-10-2008, da Relação de Guimarães de 28-10-2007, todos publicados em www.dgsi.pt; e da Relação de Guimarães de 21-10-2002, in Colectânea, tomo IV, pág. 288.
[5] Cfr. José Alberto dos Reis, Comentário ao Código de Processo Civil Anotado, volume 1.º, Coimbra Editora, 1999, págs. 510-512.
[6] Cfr., v. g., Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 20-09-2011, proc. n.º 2435/09.4TBMTS.P1.S1,  e de 25-03-2010, proc. n.º 2532/05.5TTLSB.L1.S1; Ac. da Relação do Porto de 08-06-2009, proc. n.º 116/08.5TUMTS.P1, todos publicados in www.dgsi.pt.  No domínio da jurisdição penal, veja-se ainda o Ac. da Relação de Guimarães de 22-02-2011, proc. n.º 86/09.2TAEPS.G1, publicado no mesmo sítio.
[7] Cfr. Ac. da Relação de Lisboa de 30-06-2010, proc. n.º 1814/08.9TTLSB.L1-4. No mesmo sentido, vejam-se ainda, a título meramente exemplificativo, o Ac. da mesma Relação de 15-02-2011 (proc. n.º 1135/06.1TVLSB.L1-1) e os Acs. da Relação do Porto de 17-12-2008 (proc. n.º 0836085), e de 22-09-2009 (proc. n.º 413/08.0TBSTS-F.P1), todos publicados no sítio www.dgsi.pt.
[8] In Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, Reimpressão, Quid Juris, Sociedade Editora, 2006, pág. 367.