Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2132/10.8TXCBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE FRANÇA
Descritores: ADAPTAÇÃO À LIBERDADE CONDICIONAL
INCUMPRIMENTO
EVASÃO DO CONDENADO
DIREITO DE AUDIÇÃO DO CONDENADO
Data do Acordão: 02/24/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL DE EXECUÇÃO DAS PENAS DE COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 188.º, E 183.º A 186.º, DO CEPMPL (CÓDIGO DA EXECUÇÃO DAS PENAS E MEDIDAS PRIVATIVAS DA LIBERDADE
Sumário: I - A audição do condenado, referida no n.º 2 do artigo 185.º do CEPMPL, pressupõe que o mesmo não se ausentou ilegitimamente da residência, porquanto, de outra forma, ele tornará até inviável a notificação pessoal para o exercício de tal direito.

II - O contraditório é assegurado mediante a mera concessão ao condenado da possibilidade de efectividade do seu exercício, deixando na disponibilidade daquele a opção a tomar, positiva ou negativa.

III - Assim, só ocorre invalidade processual se ao condenado não for concedida a possibilidade de comparência a acto a que a lei confere o estatuto de obrigatoriedade, e não quando o próprio condenado, de forma voluntária, não comparece ao acto, ou quando, de modo predeterminado, se coloca em posição donde decorre a inviabilidade de convocatória para presença.

IV - Consequentemente, por identidade de razão, é possível prosseguir com o incidente de incumprimento de adaptação à liberdade condicional em regime de permanência na habitação com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância, previamente à declaração de contumácia, ao abrigo do disposto no n.º 4 do artigo 185.º do CPP, por a fuga predeterminada ser de equiparar à “falta injustificada”.

V - Não estando o condenado ainda em regime de liberdade condicional, e encontrando-se evadido, deverão ser emitidos mandados como vista à sua captura e condução ao Estabelecimento Prisional onde, anteriormente, cumpria pena.

Decisão Texto Integral:


ACORDAM NA SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA


Nos autos que, sob o nº 2132/10.8TXCBR-A, correm termos pelo Tribunal de Execução de Penas de Coimbra, o condenado A... que havia beneficiado do regime de adaptação à liberdade condicional, a cumprir em regime de permanência na habitação com vigilância electrónica e sujeito aos deveres constantes das três alíneas da decisão, datada de 6/3/2013, proferida no apenso A, ausentou-se ilegitimamente da mesma, colocando-se em paradeiro desconhecido.

Nessa sequência, foi instaurado Incidente de Incumprimento (Lei 115/2009), dando assim lugar ao apenso I. Neste apenso, após diligências várias, viria o condenado a ser declarado contumaz, por decisão de 26/6/2015. No próprio despacho que declarou a contumácia, e entre o mais, foi ordenada «a passagem imediata de mandados de detenção, pelo tempo estritamente necessário à notificação a que alude o disposto no artº 185º, 2 do CEPMPL».

Pelo despacho de fls. 53 deste traslado, datado de 13/7/2015, o MP promoveu a «emissão de mandados de captura do condenado e a subsequente condução ao estabelecimento prisional, seguida de oportuna audição nos presentes».

Sobre tal promoção – e após cumprimento do contraditório - recaiu o despacho de fls. 54, que é do seguinte teor:

«O Ministério Público promoveu, a fls. 57 (e na sequência do despacho proferido a fls. 56 através do qual se pretendia clarificar a tramitação processual dos presentes autos), e pelos motivos ali descritos, a emissão de mandados de captura do condenado e subsequente condução ao estabelecimento prisional, seguida da oportuna audição do mesmo.

Concedido o legal contraditório, nada a defesa veio requerer.

Cumpre decidir.

Os presentes autos de incidente de incumprimento foram originados em virtude de o condenado, no dia 13/9/2013, se ter ausentado da habitação onde cumpria a adaptação à liberdade condicional com obrigação de permanência na habitação fiscalizada por vigilância electrónica, tendo-se colocado em paradeiro desconhecido (na sequência de incidentes domiciliários retratados pela companheira no processo).

A audição do condenado não chegou a ter data agendada dado o paradeiro do mesmo ser desconhecido (cfr. fls. 10). No entanto, foram emitidos mandados de detenção para condução ao EP (cfr. fls. 12).

O condenado veio a ser declarado contumaz (fls. 40), tendo nessa sequência sido determinada a emissão de mandados para a notificação a que alude o art. 185º nº 2 do Código de Execução de Penas (CEP, doravante).

Ora, a questão que se coloca é a da admissibilidade da detenção do condenado e condução ao EP para cumprimento da pena, nesta fase do processo, tal como promovido pelo MºPº e anteriormente determinado nos autos.

Ao incumprimento da adaptação à liberdade condicional, é aplicável, por força do disposto no nº 7 do art. 188º do CEP, o regime do incumprimento da liberdade condicional – arts. 183º a 186º.

De entre estas normas, constata-se que, não só previamente à revogação há lugar à audição do condenado (art. 185º nº 2 do CEP), como o recurso que venha a ser interposto da decisão final do incidente de incumprimento tem efeito suspensivo da decisão proferida, em caso de revogação (art. 186º nº 3 do CEP).

Em face deste regime, e porque o mesmo não é excepcionado pela Lei 33/2010, de 2/9, que regulamente a vigilância electrónica, importa constatar que os únicos mandados que neste âmbito podem ser emitidos são os de condução à residência, como previsto no nº 2 do art. 12º, sendo certo, no entanto, que essa condução à residência é um dever das autoridades judiciárias ou forças de segurança.

É ainda certo que no nº 3 do art. 10º da referida Lei se prevê que, em face de relatório dos serviços da DGRS que relatem incidentes susceptíveis de comprometer a execução da medida, o juiz decide das providências necessárias ao caso, “nomeadamente a revogação da vigilância electrónica”, cujos casos vêm previstos no art. 14º.

Tais normas vindas de referir estão inseridas na parte geral do diploma que regulamenta a vigilância electrónica não só para o caso da adaptação à liberdade condicional, mas também para outros casos de execução domiciliária da pena de prisão, da medida de coacção de permanência na habitação e modificação da execução da pena, entre outros. No que concerne a adaptação à liberdade condicional, a Lei 33/2010, de 2/9 é totalmente omissa no que tange o incumprimento (cfr. arts. 23º a 25º, secção IV).

Em face a tal, e porque o incumprimento da adaptação à liberdade condicional segue os trâmites do incumprimento da liberdade condicional, julgamos que não é admissível, ao contrário do que sucede, por exemplo, com a medida de coacção de obrigação de permanência na habitação, a imediata revogação da vigilância electrónica e a subsequente emissão de mandados de detenção para condução do condenado ao Estabelecimento Prisional, sob pena de, assim sucedendo, com a “simples decisão” de revogação da vigilância electrónica a que aludem os cits. arts. 10º nº 3 e 14º, se tornar supervenientemente inútil a tramitação e a decisão final a proferir no incidente de incumprimento.

Com efeito, revogada que fosse a vigilância electrónica, logo se tornaria legalmente inadmissível a adaptação à liberdade condicional, porquanto no sistema legal vigente, e definido nos arts. 62º do CP e 188º do CEP, a adaptação à liberdade condicional só é admissível com obrigação de permanência na habitação e com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância (ao contrário, por exemplo, do que sucede com a modificação da execução da pena de prisão – cfr. art. 120º nº 2 do CEP, ou mesmo, com a medida de coacção de obrigação de permanência na habitação – art. 201º do CPP) .

Acresce ainda que, sendo aplicável à decisão final do incidente de incumprimento da adaptação à liberdade condicional o regime de recurso previsto para o incumprimento da liberdade condicional, consagrado no art. 186º, aplicável por via do art. 188º nº 7 do CEP, e face ao efeito suspensivo da decisão final em caso de revogação ali expressamente previsto, uma vez proferida esta, sempre o condenado aguardaria, sem se encontrar em reclusão, o trânsito em julgado de decisão que revogasse o regime de adaptação à liberdade condicional.

E tudo isto é assim apesar de a referida Lei 33/2010, de 2/9 descrever, no já citado art. 14º, mas “sem prejuízo do disposto no Código Penal, no Código de Processo Penal e no Código de Execução de Penas”, os casos de revogação da vigilância electrónica nas situações ali elencadas, entre as quais surge, sem sombra para dúvidas, o caso de violação grave dos deveres a que o condenado está sujeito ou quando se eximir à execução da vigilância electrónica, como aqui sucede, na medida em que o condenado se ausentou do local, incumprindo totalmente a medida.

Ou seja: a Lei 33/2010, de 2/9 expressamente salvaguarda, quando prevê os casos de revogação da vigilância electrónica no art. 14º, os regimes de cada instituto a que é aplicável, entre os quais, os do Código de Execução de Penas (adaptação à liberdade condicional e modificação da execução da pena).

Explicitado o regime aplicável, e porque norma semelhante, por exemplo, à estatuída no nº 1, parte final, do art. 195º do CEP inexistir (que determina, em caso de incumprimento de licença de saída jurisdicional a imediata passagem de mandado de captura), cremos que, sob pena de violação da norma contida no art. 186º do CEP, e ainda sob pena de se tornar inútil a tramitação do incidente de incumprimento cujo regime vem previsto no art. 183º e ss. do CEP (normas estas aplicáveis por via do estatuído no nº 7 do art. 188º, e cuja aplicação é salvaguardada pelo art. 14º da Lei 33/2010, de 2/9), não se mostra legalmente admissível, sem que transite decisão final no âmbito de incidente de incumprimento, a emissão de mandados de detenção para que o condenado retome o cumprimento de pena no Estabelecimento Prisional, como promovido pelo Ministério Público e como anteriormente determinado nos autos, não sendo pois aplicável o nº 3 do art. 10º da referida Lei 33/2010, de 2/9.

Para finalizar importa apenas referir que, sendo o regime da adaptação à liberdade condicional um instituto que mantém alguns traços de reclusão, por via do confinamento e da fiscalização através do Dispositivo de Identificação Pessoal (DIP) e Unidade de Monitorização Local (UML) e, simultaneamente, detém contornos da própria da liberdade condicional, na medida em que permite uma reaproximação à família, a retoma da dinâmica familiar, o restabelecimento dos laços afectivos e maior privacidade, servindo como que de “ponte” entre a reclusão e a liberdade condicional, não podemos deixar de assinalar a estranheza causada pela impossibilidade da imediata detenção, em meio prisional, de condenado que incumpra o regime de adaptação à liberdade condicional em circunstâncias como a dos autos, o que só o enfraquece nos seus termos e fins, assim o tornando num instituto que afinal oferece limitadas garantias no que tange os casos de incumprimento grave.

Face a tudo exposto, indefere-se o doutamente promovido

Por não se conformar com tal decisão, a Ex.ma Magistrada do MP dela interpôs o presente recurso, que motivou, concluindo nos seguintes termos:

1. A situação de um condenado colocado em adaptação à liberdade condicional não é a mesma do condenado a quem foi concedida a liberdade condicional. Na adaptação o condenado não está livre; está a ser testado para a eventual e futura liberdade condicional, e está necessariamente sujeito, por exigência da lei, à obrigação de permanência na habitação e à vigilância electrónica. Ou seja, o condenado ainda está preso, embora numa residência, tal como se retira, entre os demais condicionalismos enunciados e a título de exemplo, do artº 23º, 4 da Lei 33/2010, de 2/9, ao prever a possibilidade de continuação do RAVE (regime aberto voltado para o exterior), pensado para situações de execução de pena de prisão.

2. Se fugir, se se eximir ao cumprimento da pena nessa condição, violando as regras apostas, comete um crime de evasão – artº 352º do CP: “Quem, encontrando-se legalmente privado da liberdade, se evadir é punido com pena de prisão até 2 anos.” – que se consuma logo que o sujeito fica fora do alcance da entidade que lhe limita a liberdade.

3. E quando um condenado em reclusão se evade (em regra, do estabelecimento prisional) são emitidos mandados de detenção para que continue a cumprir a pena que lhe foi aplicada, como impõe o artº 97º do CEPMPL, sob a epígrafe ‘Evasão ou ausência não autorizada’ – “Qualquer autoridade judiciária ou agente de serviço ou força de segurança tem o dever de capturar e conduzir ao estabelecimento prisional qualquer recluso evadido ou que se encontre fora do estabelecimento (no caso, da residência) sem autorização.”.

4. A detenção de um condenado que se eximiu ao cumprimento da pena, estando a cumpri-la em regime de permanência na habitação com vigilância electrónica, e a sua condução ao estabelecimento prisional, não posterga qualquer direito fundamental constitucionalmente consagrado, desde logo porque ele está consciente das consequências da violação das condições impostas, designadamente se se ausentar para parte incerta, depois de retirar ou danificar o equipamento de monitorização, como sucedeu no caso subjudice.

5. A situação do condenado na adaptação à liberdade condicional, que mais não é do que uma autêntica reclusão domiciliária, é bem distinta daquela em que um condenado foi libertado condicionalmente e vem, depois, a infringir regras e injunções – este infringiu, desobedeceu, mas não se evadiu.

6. Daí que se imponha a sua captura, não se compadecendo esta situação com a rigorosa e absoluta observância da tramitação do incumprimento de liberdade condicional, na qual o sujeito foi libertado, embora com imposições de regras de conduta, aqui, sim, fazendo sentido aferir previamente das razões da infracção das regras impostas e só posteriormente emitir mandados de condução ao EP, se revogada essa liberdade.

7. A aplicação do regime do incumprimento da liberdade condicional ao regime de incumprimento da adaptação deve ser feita mutatis mutandis, consideradas as especificidades dos casos – liberdade, no primeiro; prisão em obrigação de permanência na habitação com vigilância electrónica, no segundo.

8. A detenção e condução do condenado ao EP não torna a tramitação e a decisão final do incidente de incumprimento ‘supervenientemente inútil’, porque ele sempre terá de ser ouvido sobre o caso, devendo proferir-se decisão final que, na melhor das hipóteses, será a da manutenção da sua prisão no domicílio, sendo que até lá nenhum direito foi postergado.

9. Veja-se que a Lei 33/2010, de 2/9 (regime de utilização de meios técnicos à distância) prevê no artº 10º, 3, que o relatório que dê conhecimento de incidentes susceptíveis de comprometer a execução da medida ou da pena devem ser apresentados de imediato ao juiz, que decide as providências que se afigurarem necessárias, nomeadamente a revogação da vigilância electrónica; e uma das providências imediatas será exactamente a ordem de detenção do condenado que se materializa no respectivo mandado, o que, aliás, é imposto pelo nº 2 doa rtº 12º deste diploma, que estipula que “qualquer autoridade judiciária ou força de segurança tem o dever de capturar e conduzir ao local de vigilância electrónica qualquer arguido ou condenado que se ausente, sem autorização, deste local, sem prejuízo da decisão do juiz ao abrigo do disposto no nº 3 do artº 10º”.

10. Procedendo-se à detenção, naturalmente que o condenado terá de ser levado para o EP onde antes se encontrava e não novamente para a residência de onde facilmente se evadiu, retirando a pulseira electrónica que lhe havia sido colocada, desde logo pelo risco iminente de o mesmo voltar a acontecer. Outra solução seria absurda e incongruente com a unidade do sistema jurídico.

11. É, pois, pelo recurso às normas de interpretação da lei que a solução deve ser buscada – artºs 9º e 10º do Código Civil -, sempre com a premissa de que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados, e pelo recurso ao caso análogo, sendo que, na falta dele, a situação deverá resolver-se segundo a norma que o próprio intérprete criaria, se houvesse de legislar dentro do espírito do sistema, sob pena de não se ultrapassar o impasse processual criado com o decidido.

12. O despacho recorrido violou o disposto nos artº 97º e 138º, 4, t) do CEPMPL, 10º e 12º da Lei 33/2010, de 2/9 e 478º, do CPP.

13. Deve ser revogado e substituído por outro que ordene a passagem de mandados de detenção do condenado e a sua condução ao estabelecimento prisional.

Não respondeu o condenado.

            Nesta Relação, o Ex.mo PGA emitiu douto parecer, no qual conclui pelo provimento do recurso, assim acompanhando as conclusões do recurso.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

DECIDINDO:

           

            Chegados a este ponto, verificamos que estamos confrontados com duas posições diversas, e parcialmente contraditórias sobre uma mesma questão:

- uma mais formal, mais positivista-legalista, suportada no despacho recorrido, que pretende que não é possível, no caso, a emissão de mandados de captura do condenado com vista à sua condução ao EP, pois que deste modo se estaria a tornar supervenientemente inútil a tramitação do incidente de incumprimento, que ainda não tem decisão final;

- uma outra, mais pragmática, que é a que resulta das conclusões que o MP retira da sua motivação, nos termos da qual, a situação do condenado é uma verdadeira ‘evasão’, razão pela qual se imporá a passagem daqueles mandados, sem prejuízo da posterior tramitação daquele incidente.

            Estamos de acordo com a afirmação do Ex.mo PGA que, no seu parecer, de forma esclarecida, afirma que «o que se verifica é que o discurso fundamentador da decisão recorrida atentou apenas no formalismo regulador do incidente, esquecendo a dualidade das situações subjacentes a que o mesmo se destina e que devem presidir à interpretação de tais normas».

            No nosso entendimento é aí, precisamente, que se encontra a pedra de toque que nos permitirá resolver a presente questão.

            São aplicáveis ao caso, por força da expressa remissão operada pelo artº 188º, 7, as normas dos artºs183º a 186º (todas do CEPMPL).

Argumenta-se no despacho recorrido que, assim sendo, e com vista à eventual revogação desse regime de adaptação, se impõe a audição prévia do condenado (artº 185º, 2) e que o recurso que venha a ser interposto da decisão final revogatória tem efeito suspensivo da mesma (artº 186º, 3).

Tal é verdadeiro mas não para todos os casos.

Em primeiro lugar, como bem adverte a Ex.ma Magistrada do MP, não podemos olvidar a diferente natureza da liberdade condicional, por um lado, e do regime de colocação em adaptação à liberdade condicional. Nesta última, prévia àquela, o condenado não se encontra ainda numa situação de liberdade (ainda que controlada) mas, isso sim, numa situação de privação da sua liberdade, em reclusão, ainda que efectuada na residência, com sujeição ao acompanhamento electrónico, vulgo com ‘pulseira electrónica’. Por isso, temos de considerar que ocorre ‘evasão’ quando viola as obrigações a que se encontra cumulativamente sujeito, v.g. nos casos em que, como no presente, se ausenta ilegitimamente para parte incerta, depois de retirar ou danificar aquele dispositivo electrónico de controle.

Daqui se pode retirar que as normas dos artºs 183º a 186º devem ser interpretadas tendo em atenção essas especificidades.

Por um lado, a audição a que se refere o artº 185º, 2, pressupõe que o condenado se não ausentou ilegitimamente da residência, pois que, de outra forma, ele tornará inviável sequer a notificação pessoal para o exercício de tal direito constitucional ao contraditório.

Esta exigência da prévia audição do condenado, quando está em causa a decisão do incidente de incumprimento, traduz-se na transcrição legal dos comandos constitucionais referentes à garantia de defesa em processo criminal (artº 32º, 1, CRP) e, mais directamente, com a observância do princípio do contraditório (seu nº 5). Essas garantias só serão asseguradas quando a audiência respectiva decorra com a audição presencial do condenado (cit. artº 185º, 2).

            Visto que tal não aconteceu ainda no nosso caso, e é previsível que tão cedo não venha a acontecer, por força da situação de contumácia em que aquele se encontra, à partida poderíamos prefigurar a ocorrência de questão impeditiva da passagem daqueles mandados.

            No entanto, o nosso caso mostra-se rodeado de cambiantes que poderão determinar que, não obstante essa ausência, não ocorra o vício em questão e, assim, se mostrem respeitadas aquelas garantias constitucionais.

            Por um lado, temos de concluir que o tribunal não logrou ainda notificar pessoalmente o condenado para comparência. Por outro lado, foram esgotadas todas as diligências pensáveis tendentes à descoberta do paradeiro do mesmo, com vista à sua notificação, o que, aliás, levou à declaração da sua contumácia.

            O princípio do contraditório, aqui invocado, constitui uma verdadeira garantia constitucional, que, dada essa sua natureza, é inviolável. Todavia, para que a concessão dessa garantia assuma a sua efectividade torna-se necessária alguma colaboração positiva do condenado, para que, sendo-lhe facultada a possibilidade de se pronunciar pessoalmente, compareça na data designada para o efeito. O tribunal concede ao arguido a possibilidade de exercer o contraditório, não lhe pode impor, de modo algum, a obrigação de exercício efectivo desse direito.

            O contraditório é exercido mediante a mera facultação ao arguido da possibilidade desse exercício, não se exigindo, de forma alguma que esse exercício seja efectivo, deixando na disponibilidade daquele a opção a tomar, positiva ou negativa. Seria contraproducente fazer comparecer - mediante detenção - o arguido revel a uma diligência com tal finalidade, para a qual tivesse sido anteriormente notificado para comparência, e a ela faltando injustificadamente.

            Por isso, sendo de considerar que foi facultada ao condenado a possibilidade de exercer o direito ao contraditório, não se mostram, de forma alguma, violadas as garantias constitucionais asseguradas pelo artº 32º, 1 e 5 da CRP.

            No caso presente, só ocorreria qualquer invalidade se ao condenado não fosse concedida a possibilidade de comparência a acto a que a lei confere esse estatuto de obrigatoriedade e já não quando o próprio arguido a ele não comparece de forma voluntária ou quando, de forma pré-determinada, se coloca em posição de não ser possível transmitir-lhe a convocatória para tal comparência.

            E é esta a situação do caso concreto, pois que o condenado, de forma pré-determinada, e através da sua referida ‘evasão’, se colocou em situação de tornar impossível a transmissão da comunicação de comparência para os fins daquele artº 185º, 2.

            Por isso, e usando de argumento de identidade de razão, teria sido possível prosseguir com o incidente, previamente à declaração de contumácia, ao abrigo do que dispõe o nº 4 do referido artº 185º, pois que a fuga pré-determinada é de equiparar á «falta injustificada», conhecedor que era o arguido dos deveres que sobre si impendiam, v.g. os resultantes da decisão que o colocou na situação de adaptação à liberdade condicional, constantes especialmente das suas alíneas a) e c) e bem assim do regime de saídas autorizadas ali logo estabelecido (v. fls. 15 deste traslado).

            Por outro lado, também não é aqui procedente o argumento referente ao efeito do recurso relativo à decisão revogatória – suspensivo da decisão – porque não estamos ainda chegados a tal fase e porque tal situação, mais uma vez, foi pensada para a normalidade das situações em que o condenado incumpridor, apesar de tudo, se mantém no local determinado pelo tribunal, e não para os casos, como o presente, em que, de forma ilegítima e injustificada, se coloca numa situação de absoluta revelia. Ou seja, os pressupostos em que assentou a decisão que concedeu tal regime ao condenado e em que deveria assentar um eventual recurso interposto da decisão que o revogasse, estão completamente descontextualizados, face à voluntária, injustificada e pré-determinada conduta daquele que, de forma a frustrar completamente a teleologia legal, se colocou numa situação em que torna impossível a consecução dos fins visados pelas normas.

Por isso, e porque o arguido não se encontra ainda em regime de liberdade condicional, encontrando-se evadido, deverão ser emitidos mandados com vista à sua captura e condução ao EP onde, anteriormente, se encontrava recluído.

           

Termos em que, nesta Relação, se acorda em conceder provimento ao recurso, revogando a decisão recorrida, a qual deve ser substituída por outra que, deferindo ao promovido, determine a emissão de mandados de captura e condução ao EP.

Recurso sem tributação.

Coimbra, 24 de Fevereiro de 2016

(Jorge França - relator)

(Cacilda Sena - adjunta)