Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1004/16.7T9VIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ANA CAROLINA CARDOSO
Descritores: PRAZO PARA INTERPOSIÇÃO DE RECURSO
APLICAÇÃO DA LEI N.º 4-B/2021
DE 1 DE FEVEREIRO
Data do Acordão: 11/15/2021
Votação: DECISÃO SUMÁRIA
Tribunal Recurso: VISEU (JUÍZO CENTRAL CRIMINAL DE VISEU – J2)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REJEIÇÃO DO RECURSO
Legislação Nacional: ART. 6.º-B, N.º 5, AL. D), DA LEI N.º 4-B/2021, DE 01-02
Sumário: Do espírito que presidiu à emissão da norma constante do art. 6º-B, n.º 5, al. d), da Lei n.º 4-B/2021, e da unidade do sistema jurídico não cabe outra interpretação senão a que entenda não se suspenderem os prazos para recurso, arguição de nulidades ou requerimento para retificação ou reforma de decisão, seja final seja não final, independentemente da data em que for proferida: antes ou depois da entrada em vigor daquela disposição legal.
Decisão Texto Integral:





=DECISÃO SUMÁRIA=


No processo comum coletivo n.º 1004/16.7T9VIS, do Juízo Central Criminal de Viseu – J2, Comarca de Viseu, foi a 21.4.2021 proferido Acórdão que absolveu todos os arguidos, incluindo a arguida M., SA, do crime de violação de regras de construção agravado de que haviam sido acusados.

A decisão transitou já em julgado.

 

Com data de 28.5.2021, foi proferido o seguinte despacho:

A arguida M. veio requerer a subida, por nisso manter interesse, dos seguintes dois recursos relativos à sua condenação em custas:

a. Recurso interposto pela ora arguida M. (com a ref.ª Citius 4327132) do despacho proferido na sessão de julgamento de 9.09.2020 a fls.1455 que declarou a inutilidade superveniente da lide cível e consequentemente prejudicadas as exceções suscitadas nessa matéria pela arguida M., designadamente a da litispendência e conexas, com custas a cargo daquela, o qual foi admitido por despacho com a ref.ª 86835757 de 16.10.2020.

b. Recurso interposto pela arguida M. (com a Ref.ª Citius 4598860) dos despachos proferidos na sessão de julgamento de dia 4 de janeiro de 2021 (conforme ata com a referência 87278216) em que, a final, veio a ora Arguida a ser condenada no pagamento das custas do incidente, bem como no pagamento de taxa sancionatória correspondente a 3 UCs, o qual foi admitido por despacho proferido com a ref.ª 87828151 de 8.04.2021.

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Por conseguinte, oportunamente, transitada que está a decisão final absolutória, subam os autos

ao Venerando Tribunal da Relação.”

Subiram, assim, os autos a esta Relação de Coimbra para conhecimento de dois recursos intercalares, interpostos pela arguida M., SA, de decisões proferidas a 9.9.2020 e 4.1.2021.

            É sobre estes recursos interlocutórios que nos cabe pronunciar.


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I.

RECURSO INTERPOSTO A 1.4.2021


Na ata de audiência de julgamento que teve lugar a 4 de janeiro de 2021, foi proferido o seguinte despacho:

            “Já quanto à inquirição da testemunha Eng. (…) "explicar o que já está explicado nos documentos", como referido pelos arguidos pessoas singulares, não obrigado, tal é absolutamente inútil e despiciente, considerando ademais a forma detalhada e exaustiva da descrição da inspeção que ali se diz realizada.

Acresce que a sociedade arguida M. tão pouco especifica os concretos esclarecimentos que pretende com a produção da referida prova testemunhal, sem que tanto se vislumbre necessário a este tribunal.

Por conseguinte, nos termos do art.º 340, nº1, a contrario, e nº4, al. b) do C. P. Penal indefere-se a inquirição da testemunha (...).

Notifique”.

Notificada, arguiu a M., SA, a nulidade deste despacho, “reiterando a essencialidade da inquirição da testemunha, devendo aquele ser substituído por outro que a admita”.

Sobre este requerimento recaiu o seguinte despacho:

Quanto à arguição da nulidade/irregularidade agora apresentada, cumpre esclarecer antes de mais, que o Eng. (…) não foi convocado para esta audiência, sendo este tribunal alheio à sua alegada presença neste ato.

No mais, salvo melhor opinião incorre a sociedade arguida no mesmo e manifesto erro de arguir a nulidade do despacho que indeferiu a inquirição da testemunha (…) quando o mesmo apenas admite a interposição do competente recurso como referido em despacho idêntico quanto ao indeferimento da arguição de igual vicio conforme suprarreferido.

Ademais, mantendo-se integralmente as razões que no despacho em crise levaram ao indeferimento da testemunha, por irrelevância probatória da mesma o que aqui se dá como reproduzida, não houve omissão de diligência essencial para a descoberta da verdade, motivo pelo qual improcede a arguição da nulidade /irregularidade. Pelo exposto indefere-se a arguição da nulidade e/ou irregularidade em apreço quanto à inquirição da testemunha em causa.

Por se tratar de um ato manifestamente improcedente que a sociedade arguida M. vem reiterando, com desnecessário entorpecimento no processado, condena-se a mesma sociedade arguida M. nas custas do incidente, nos termos do art.º 521 do C.P. Penal conjugado com o artº 531 do C.P. Civil e artº 10 do regulamento das custas processuais, com taxa sancionatória equivalente a 3UCs.

Interpôs a arguida recurso da sua condenação em taxa sancionatória excecional, aplicada nos termos do art. 531º do Código de Processo Civil (“Por decisão fundamentada do juiz, pode ser excecionalmente aplicada uma taxa sancionatória quando a ação, oposição, requerimento, recurso, reclamação ou incidente seja manifestamente improcedente e a parte não tenha agido com a prudência ou a diligência devida”), recurso que é sempre admissível, independentemente do seu valor e da interposição de recurso da decisão final, conforme previsto no art. 27º, n.º 6, do Regulamento das Custas Processuais.

Pese embora o prazo para recorrer da condenação em taxa sancionatória excecional seja de 15 dias, nos termos do preceito mencionado, o recurso interposto pela arguida incide igualmente sobre a própria decisão que indeferiu a arguição de nulidade. Assim, o prazo a considerar é de 30 dias, e terminava a 8.2.2021 – art. 411º, n.º 1, al. c), do Código de Processo Penal, e 139º, n.º 5, do Código de Processo Civil.

No entanto, o recurso foi interposto a 1.4.2021.

No requerimento de interposição do recurso, invoca a recorrente o seguinte:

O presente recurso é tempestivo atento o disposto no artigo 6º-B, n.º 1, da Lei n.º 4-B/2021, de 01 de fevereiro, e da correlativa suspensão do prazo de recurso desde o dia 22 de janeiro último (vide artigo 4º), uma vez que não é aplicável ao caso concreto o disposto no artigo 6º-B, n.º 5, alínea d), porquanto a decisão recorrida foi proferida em data anterior a 22-01-2021 e a não suspensão do prazo de recurso aí prevista apenas se aplica em relação às decisões judiciais proferidas após 22-01-2021”.

Será assim?

É o que previamente cumpre decidir:

Em virtude do 3º surto pandémico causado pela SARS-Cov19, e do confinamento geral determinado, foi publicada a Lei n.º 4-B/2021, de 1 de fevereiro, que alterou a Lei n.º 1-A/2020, de 19.3, aditando nomeadamente o art. 6º-B, com a epigrafe Prazos e Diligências (judiciais), a que foi dada a seguinte redação, na parte relevante:
«1- São suspensas todas as diligências e todos os prazos processuais, procedimentais e administrativos que devam ser praticados no âmbito dos processos e procedimentos que corra, termos nos tribunais judiciais, tribunais administrativos e fiscais, Tribunal de Contas e demais órgãos jurisdicionais, tribunais arbitrais, Ministério Público, julgados de paz, entidades de resolução alternativa de litígios e órgãos de execução fiscal, sem prejuízo do disposto nos números seguintes.

(…)
5- O disposto no n.º 1 não obsta:
a) À tramitação nos tribunais superiores de processos não urgentes, sem prejuizo do cumprimento do disposto na alínea c) quando estiver em causa a realização de atos presenciais;
b) À tramitação de processos não urgentes, nomeadamente pelas secretarias judiciais;
c) À prática de atos e à realização de diligências não urgentes quando todas as partes o aceitem e declarem expressamente ter condições para assegurar a sua prática através das plataformas informáticas que possibilitam a sua realização por via eletrónica ou através de meios de comunicação à distância adequados, designadamente teleconferência, videochamada ou outro equivalente;
d) A que seja proferida decisão final nos processos e procedimentos em relação aos quais o tribunal e demais entidades referidas no n.º 1 entendam não ser necessária a realização de novas diligências, caso em que não se suspendem os prazos para interposição de recurso, arguição de nulidades ou requerimento da retificação ou reforma da decisão”.

Perante esta norma, sustentou a recorrente que, tendo a decisão recorrida sido proferida em data anterior à entrada em vigor da lei, o prazo para interposição de recurso que terminasse após essa data estaria suspenso nos termos previstos no n.º 1, não lhe sendo aplicável a exceção estatuída na al. d) do n.º 5.

Ora, dispõe o art. 9º, n.º 1, do Código Civil, sobre a interpretação da lei, que: “A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada”.

O contexto pandémico especial e singular que determinou o estabelecimento de regras especiais no que toca, na parte que interessa, ao funcionamento dos tribunais, normas que revestem caráter excecionalíssimo, tiveram como fundamento a proteção da vida e saúde individual, e ainda da saúde pública. Assim, e em obediência às regras vigentes na interpretação da lei, importa considerar a exposição de motivos da Proposta de Lei que deu origem à Lei em causa (n.º 70/XIV), na qual consta, nomeadamente: “Assim, apesar das atuais restrições ao funcionamento de um conjunto de órgãos e serviços, com vista à promoção da diminuição da mobilidade e redução de contactos sociais, importa garantir o funcionamento da Administração Pública e dos tribunais, salvaguardando, contudo, aquele desiderato”.

Pretendeu, assim, o legislador acautelar os casos de contágio através dos contactos decorrentes de deslocações e presenças das pessoas em atos judiciais, assegurando, por outro lado, a tramitação de todos os atos e procedimentos em que tal perigo de contágio se não verificasse – o que claramente decorre ainda da discussão havida na especialidade na AR da proposta de lei referida.

Em suma, com a publicação da Lei n.º 4-B/2021 pretendeu o legislador evitar a propagação da doença, suspendendo todos os atos que implicassem deslocações e contactos, mas assegurando a continuidade daqueles em que tal não ocorresse, ponderando desta forma os direitos fundamentais em conflito: o direito à saúde, e o direito ao processo justo e equitativo, decidido em prazo razoável (art. 20º, n.ºs 1 e 4, da Constituição da República Portuguesa, e 6º, n.º 1, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem) ([1]). É que é necessário não deixar de ter em conta que uma lei que suspenda prazos processuais, dilatando no tempo a eficácia das decisões judiciais, tem de se considerar como restritiva de direitos fundamentais, devendo por isso ser limitada ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente garantidos (art. 18º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa).

Desta forma, logo após determinar a suspensão de todas as diligências e prazos para a prática de atos processuais, a lei excecionou uma série de casos – que não implicassem deslocações ou contactos -, que referiu no n.º 5 do dito art. 6º-B.

Desde logo, ressalta da al. b) que a lei é clara ao dispor que aquele n.º 1 não obsta à tramitação dos processos não urgentes (“nomeadamente pelas secretarias judiciais”), bem como à prática de qualquer diligência não urgente, desde que as partes (intervenientes) o aceitassem – al. c). Relativamente às decisões, sendo certo que não existe qualquer fundamento para distinguir as decisões finais das interlocutórias – já que quanto a estas a lei é omissa -, a al. d) do n.º 5 refere não se suspender o prazo quer para proferir decisão final, quer para a interposição de recurso, arguição de nulidades ou requerimentos de retificação ou reforma da decisão, desde que o tribunal entenda não ser necessária a realização de novas diligências.

É a interpretação desta norma que está em causa.

Na verdade, o que a recorrente entende é o seguinte: se a decisão foi proferida após 22 de janeiro, o prazo para recorrer não se suspendeu; mas se foi proferida em data anterior, o prazo para interpor recurso já se suspende…

Como é possível interpretar a lei de forma mais restritiva numa fase em que ainda não vigorava o estado de emergência, nem se encontrava em vigor a lei especial? Francamente, não vislumbramos qualquer razão para defender tal interpretação, nem a mesma faz qualquer sentido. Na verdade, sempre por maioria de razão os prazos para interposição de recurso que estivessem a decorrer à data da entrada em vigor da norma em análise não se poderão considerar suspensos, desaguando entendimento diverso numa manifesta desigualdade, ao permitir que decisões mais antigas ficassem estagnadas nos seus efeitos, enquanto decisões mais recentes conseguissem obter a sua estabilidade, através do recurso, uma vez que a contagem dos prazos não ficava quanto a estas paralisado ([2]).

Mais: com esta interpretação violar-se-ia o princípio da igualdade constitucionalmente consagrado, pois resultaria na aplicação de regimes distintos e mais gravosos para o mesmo ato processual, sem que qualquer objetivo visado com a lei especial o justificasse.

Pelas razões expostas, entendemos que do espírito que presidiu à emissão da norma constante do art. 6º-B, n.º 5, al. d), da Lei n.º 4-B/2021, e da unidade do sistema jurídico não cabe outra interpretação que a que entenda não se suspenderem os prazos para recurso, arguição de nulidades ou requerimento para retificação ou reforma de decisão, seja final seja não final, independentemente da data em que for proferida: antes ou depois da entrada em vigor do art. 6ºA da Lei n.º 4-B/2021, de 1 de fevereiro ([3]).

Desta forma, impõe-se concluir pela extemporaneidade do recurso interposto pela arguida M., SA, a 1.4.2021.

Estabelece o art. 420º, n.º 1, al. b), do Código de Processo Penal que o recurso deve ser rejeitado se se verificar causa que devia ter determinado a sua não admissão, nos termos do n.º 2 do art. 414º. E o n.º 2 do art. 414º do Código de Processo Penal estatui que o recurso não é admitido quando interposto fora de prazo, não obstando à sua rejeição que tenha sido proferido despacho de admissão no tribunal a quo, despacho essa a que o tribunal superior se não encontra vinculado (art. 414º, n.º 3, do Código de Processo Penal).

Pelas razões expostas, rejeita-se o recurso interposto pela arguida M., SA, a 1.4.2021, por manifesta intempestividade – arts. 417º, n.º 6, al. b), e 420, n.º 1, al. b), do Código de Processo Penal.

Custas pela arguida, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC’s, a que acresce a condenação no pagamento de 3 UC’s, nos termos do art. 420º, n.º 3, do Código de Processo Penal.


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II.

RECURSO INTERPOSTO A 9.10.2020


(…).

Coimbra, 15 de novembro de 2021

Ana Carolina Cardoso (relatora – processei e revi)


[1] - Cf. Ac. desta Relação de Coimbra de 26.10.2021, rel. Des. Cristina Neves, proc. 2706/20.9T8LRA.C1, disponível em www.dgsi.pt.
[2] - Cf. Ac. da Relação de Évora de 13.5.2021, rel. Des. Mata Ribeiro, proc. 2161/19.6T8PTM.E1, Ac. da Relação do Porto de 7.10.2021, rel. Des. Aristides Rodrigues de Almeida, proc. 121276/19.8YiPRT.P1, Ac. da Relação de Lisboa de 13.5.2021, rel. Des. Isoleta Costa, proc. 598/18.7T8LSB.L1-8, e o Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 25.5.2021, rel. Cons. Pedro de Lima Gonçalves, proc. 11888/15.0T8LRS.L1-A.S1, disponíveis em www.dsgi.pt.
[3] - Cf. a Decisão Sumária proferida a 28.10.2021 no proc. n.º 1018/17.0T9CLD.C1, desta mesma seção criminal, rel. Des. Paulo Guerra, publicada em www.dgsi.pt.