Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
827/06.0TBFIG.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: TÁVORA VÍTOR
Descritores: DIREITO DE RETENÇÃO
RESERVA DE PROPRIEDADE
Data do Acordão: 06/01/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: FIGUEIRA DA FOZ
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 754º DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: 1) O "direito de retenção" pertence à categoria dos direitos de garantia, encontrando-se enunciado no artigo 754º do Código Civil.

2) São momentos fundamentais do instituto 1) Que o devedor seja obrigado a entregar uma coisa susceptível de penhora; 2) que seja simultaneamente titular de um crédito sobre a pessoa a que esteve obrigado a entregar a coisa; 3) Que exista uma conexão causal entre a coisa e o crédito sobre a pessoa que a deva receber podendo essa conexão resultar de despesas feitas por causa da coisa ou danos por ela causados (754º) ou de uma relação legal ou contratual que tenha implicado a detenção da coisa e cuja garantia que a lei atribua a esse efeito ou de uma relação legal ou contratual que tenha implicado a detenção da coisa a cuja garantia que a lei atribua esse efeito.

3) Os interesses do titular da reserva de propriedade entram não raro em conflito com os do beneficiário da excepção do não cumprimento do contrato, colocando-se o problema de aquilatar da respectiva prevalência. Nos termos do nº 2 do mencionado preceito legal "Tratando-se de coisa imóvel, ou de coisa móvel sujeita a registo, só a cláusula constante do registo é oponível a terceiros".

4) Nesta conformidade mau grado a reparadora de uma viatura tenha direito de retenção sobre a mesma pelo valor da reparação, certo é que estando o veículo em causa cativo de "reserva de propriedade" registada a favor do Banco que mutuou determinada importância ao adquirente da mesma que por seu turno contratou com o responsável pela oficina a reparação do veículo tal cláusula prevalece sobre o direito de retenção desta última.

Decisão Texto Integral: 1. RELATÓRIO.

     Acordam na secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra.

     "A..., Lda.”, veio propor a presente acção declarativa de condenação, sob a forma de processo sumário, contra B... e “C..., S.A.”, com a dedução dos seguintes pedidos:

     a) A condenação da primeira Ré no pagamento da quantia de € 10.868,60 (dez mil oitocentos e sessenta e oito euros e sessenta cêntimos), e na quantia diária de € 25 (vinte e cinco euros) até efectuar o pagamento efectivo correspondente ao capital em dívida;

     b) A condenação das Rés a reconhecer que a Autora tem em seu poder o veículo automóvel da marca ..., matrícula ...;

     c) Declarar-se o direito e serem ambas as Rés condenadas a reconhecer que a Autora tem o direito de retenção sobre o aludido veículo, podendo a Autora proceder à venda do carro e ser paga pelo montante que resultar da venda;                    

     d) Ser proferida sentença que autorize a Autora a proceder à venda do veículo automóvel, servindo como declaração válida para o adquirente proceder ao registo da aquisição da propriedade;

     e) A condenação das Rés a reconhecer que o valor comercial do ..., matrícula ..., à data da interposição da acção é de € 3000 (três mil euros) e, por isso, a condenação das mesmas a pagar a A. a diferença entre o que a viatura à data da interposição em juízo vale e o montante pelo qual o veículo for efectivamente vendido.

     A A. alegou para tanto e em resumo, que a Ré B... efectuou um contrato de compra e venda de um veículo automóvel de marca ..., matrícula ...; apesar da compra ter sido documento assinado electronicamente. Esta assinatura electrónica substitui a assinatura autógrafa feita com reserva de propriedade. Era a R. B... que usava a viatura como sua proprietária e quem escolhia as oficinas para efectuar as suas reparações, e quem de resto as pagava;

     No dia 14-01-2005, a Ré B... mandou efectuar a desmontagem do veículo para execução de relatório para elaboração do orçamento, em resultado de um acidente de viação, para que fosse efectuada na oficina da A. a reparação da viatura, muito embora a viatura estivesse nas instalações da A. desde o dia 10-01-2005;

     A A. procedeu à desmontagem do veículo para execução do orçamento; na desmontagem para elaborar o orçamento foram gastas 8 horas de serviço; a hora de serviço na oficina da A. custa € 20, ao que acresce o IVA; assim, a mão-de-obra em dívida pela Ré B... à Autora totaliza € 193,60;

     A A. é uma empresa que se dedica a efectuar reparações de veículos automóveis e ao parqueamento de viaturas e cobra pelo parqueamento a quantia de € 25 por dia, conforme tabela afixada; até à presente data ascende ao montante de € 10.675 o montante de parqueamento da viatura que a Ré B... tem de pagar;

     Estando a A. obrigada a entregar o carro à R. B... ou à sua proprietária, a A. tem sempre o direito de retenção sobre a viatura até que lhe seja pago o montante que a Ré B... lhe deve;

     Actualmente a viatura ... tem um valor comercial de € 3.000 existindo comprador para essa viatura por esse montante.

     Uma vez que não logrou citar-se pessoalmente a Ré B..., procedeu-se à sua citação edital.

     Ao abrigo do disposto no artigo 15º do Código de Processo Civil foi citado o Ministério Público, não tendo sido apresentada qualquer contestação.

     Por seu turno a Ré “ C..., S.A.” apresentou contestação na qual argumentou, em síntese, que por contrato de financiamento para aquisição a crédito celebrado em 09 de Janeiro de 2004, o “ C..., S.A.”, a solicitação da 1ª Ré, acordou mutuar-lhe a quantia de € 23.823,40 (vinte e três mil oitocentos e vinte e três e quarenta cêntimos), que seria paga em 60 prestações mensais (vencendo-se a primeira em 15. 02.2004). Tal financiamento destinou-se à aquisição de automóvel ligeiro de passageiros, marca ..., matrícula .... Em garantia do bom e pontual pagamento do aludido montante, dos juros contratuais e moratórios devidos ao seu reembolso, bem como de eventuais encargos, a 1ª Ré B... constituiu reserva de propriedade a favor do “ C..., S.A.” sobre o veículo automóvel ligeiro de passageiros, marca ..., matrícula ... e entregou ao Banco uma livrança caução subscrita por si. A 1ª Ré apenas liquidou as primeiras 12 prestações.

     Assim, em consequência do incumprimento, o “ C..., S.A.” por carta registada com aviso de recepção datada de 30 de Novembro de 2005 comunicou-lhe a resolução do contrato. Estribando a 2ª ré “ C... S.A.” a sua defesa do artigo 409º do C.C. não poderá a Autora vender a referida viatura, nem tão pouco pode retê-la,

visto ser um bem de um terceiro. A 1ª Ré usou o veículo da forma como bem entendeu, não tendo a 2ª Ré “ C..., S.A.”, manifestado vontade de celebrar um contrato com a Autora que tenha por objecto o mesmo, nem entregou coisa alguma a Autora, nem solicitou qualquer tipo de orçamento ou reparação, pelo que não é responsável pelo pagamento das reparações, não podendo ser responsabilizada pela dívida de um terceiro.

     Defendeu, pois, a Ré “ C... S.A.” a improcedência da presente acção, com todas as demais consequências legais.

     A Autora apresentou resposta à contestação, na qual, fundamentalmente, refuta todos os argumentos vertidos na contestação, pugnando pela improcedência da excepção deduzida pela Ré.

     Foi proferido despacho saneador, no qual se afirmou a validade e a regularidade da instância. Foi ainda seleccionada a matéria de facto assente e controvertida, que não foi objecto de qualquer reclamação.

     Seguiu-se a instrução do processo com o arrolamento de testemunhas pelas partes.

      Procedeu-se à realização da audiência de discussão e julgamento com respeito pelo legal formalismo e à resposta à matéria de facto controvertida (fls. 204 a 211), a qual não mereceu qualquer reclamação.

     Foi proferida sentença que julgou a acção parcialmente procedente por provada e consequentemente:

     a) Condenou a Ré B... a pagar a

Autora “ A..., Lda” a quantia diária de € 25 (vinte e cinco euros) desde o dia 14.01.2005 até ao dia 28.03.2006 (data da entrada em juízo da petição inicial);

     b) Condenou ambas as Rés, B... e C..., S.A. a reconhecer que a A. “ A..., Lda.” tem em seu poder o móvel sujeito a registo e que é o veículo automóvel da marca ..., matrícula ...

     No mais julgou improcedentes os pedidos da Autora, absolvendo as Rés nessa medida.

     Daí o presente recurso de apelação interposto pela A., a qual no termo da sua alegação pediu que se revogue a sentença em análise decidindo-se de harmonia com o propugnando nas seguintes,

     Conclusões.

     1) No que à matéria de facto dada por provada tem de ser alterada a resposta aos quesitos 4º, 9º e 10º que deveriam ter sido julgados provados em vez de não provados. Com efeito depuseram a estes artigos ou quesitos as testemunhas da A. D..., que prestou depoimento em audiência de discussão e julgamento, tendo o seu depoimento prestado ficado registado, gravado, no sistema Citius e Q..., que prestou depoimento em audiência de discussão e julgamento, tendo o seu depoimento ficado registado, gravado no sistema Citius, justificando ambos os depoimentos, outra resposta.

     2) A A. intentou a presente acção onde fez vários pedidos:

     3) "O direito de retenção" consiste na faculdade que tem o detentor de uma coisa de a não entregar a quem lha pode exigir enquanto esta não cumprir uma obrigação a que está adstrito para com aquele. Porque é um direito de garantia o detentor pode vender as coisas móveis como o pode fazer um credor pignoratício (artº 758º),”, Auts., ob. e loc. cits..

     4) O direito de retenção é "o direito conferido ao credor que se encontra na posse de certa coisa pertencente ao devedor de, não só recusar a entrega dela enquanto o devedor não cumprir mas também, de executar a coisa e se pagar à custa do valor dela com preferência sobre os demais credores", Ob. Aut. e Loc. cits..

     5) "O direito de retenção previsto no artigo 754º depende de três requisitos:

      1º Detenção lícita de uma coisa que deve ser entregue a outrem;

      2º Apresentar-se o detentor, simultaneamente, credor da pessoa com direito à entrega;

      3º A existência de uma conexão directa e material entre o crédito do detentor e a coisa detida, quer dizer, resultante de despesas realizadas com ela ou de danos pela mesma produzidos", Ob. Aut. e Loc. Cits..

     6) Além da matéria cuja alteração foi pedida, foi dado por provado:

       1º No dia 14-01-2005, a R. B... mandou efectuar a desmontagem do veículo para execução de relatório para elaboração do orçamento,

       2º A A. é uma empresa que se dedica a efectuar reparações de veículos automóveis e cobra pelo parqueamento de viaturas que fiquem na garagem a quantia de € 25 (vinte e cinco euros) por dia;

       3º A R. B... não procedeu ao pagamento da reparação da viatura, não veio buscar a viatura, nem procedeu ao pagamento das despesas do parqueamento.

     7) A R. entregou à A. a sua viatura para que a mesma fosse desmontada para execução do relatório para a elaboração do orçamento – a detenção do veículo que deve ser entregue a outrem é lícita – e não tendo ido buscar o seu veículo nem pagou as despesas de parqueamento que deve à A. – apresentando-se o detentor simultaneamente credor da pessoa com direito à entrega a R. e existindo uma conexão directa e material entre o crédito do detentor e a coisa detida, quer dizer, resultante de despesas realizadas com ela – conferiu à A. a possibilidade de reter o bem até que lhe seja paga a quantia em dívida.

     8) É que a A. invoca, alega e prova que tem um crédito por causa de um bem – veículo automóvel - e só o vai entregar contra o pagamento do montante em dívida. A A. alega e prova que esse valor não pode ser determinado ainda uma vez que não se sabe a data concreta do pagamento.

     Por causa ou relacionado com o veículo, todos os dias se vence mais uma quantia. Para levantar o bem tem que pagar todo o montante em dívida, sob pena de não o fazendo, a A. recusar a entrega e executar o bem nos mesmos termos em que o pode fazer o credor pignoratício.

     9) O direito de retenção extingue-se pelas mesmas causas que cessa a hipoteca e ainda pela entrega da coisa. Ora só com a extinção da dívida garantida, que só cessa quando for paga ou quando prescrever, é que cessa o direito de retenção, que foi precisamente o que a A. pediu nesta lide. Foi violado o artigo 730º aplicável por força do disposto no artigo 761º do Código Civil.

     10) Assim sendo, deveria ter sido julgada procedente a primeira alínea do pedido.

     11) Só o facto de a A. estar a parquear a viatura e de zelar pela sua segurança impede que o mesmo tenha sido vandalizado, roubado e que ainda exista.

     A circunstância de a vendedora com reserva de propriedade nada ter contratado com a A. não impede as despesas diárias que a A. está a ter com o parqueamento da viatura. São despesas provenientes da coisa, com a sua conservação e guarda.

     12) A questão não pode ser colocada em termos de reciprocidade de créditos e se o C... tem ou não um crédito sobre a A. e a A. sobre esta. Mais a mais, pense-se que o direito de retenção prevalece sobre a hipoteca, no caso dos imóveis, onde o registo da hipoteca é obrigatório, mas o registo do direito de retenção inexiste...

     13) Se em face da sentença recorrida a A. percebendo que anda todos os dias a guardar o carro na garagem e que todos os dias o tira e põe dentro da garagem à mão e que nem essas despesas ganha, então poderá pura e simplesmente pôr o carro na rua. Ora se sabe que nada vai receber e que nem direito de retenção tem, pode abandonar o carro à sua sorte. E se for abandonado, sorte nunca mais terá, pois em menos de vinte e quatro horas levam o que resta com valor na viatura.

     14) O direito de retenção confere ao respectivo titular o direito de recusar a entrega da coisa retida, ficando ainda legitimado a pagar-se coercivamente pelo valor desta, neste sentido, Almeida e Costa, ob. cit., pág. 915,

     15) Quando o direito de retenção recai sobre coisa móvel, o seu titular goza dos direitos e está sujeito às obrigações do credor pignoratício, salvo no que toca à substituição ou reforço da garantia. “Atribuem-se, portanto, ao direito de retenção sobre coisas móveis as características de um penhor legal – figura esta que o legislador achou preferível não consagrar em termos genéricos. Consequentemente: o detentor prefere aos demais credores (artº 666º), no caso de conflito entre o direito de retenção e um privilégio mobiliário especial, prevalece a garantia primeiro constituída (artº 750º); aplicam-se ao titular do direito de retenção as disposições relativas ao credor pignoratício, frutos e uso da coisa empenhada exceptuando-se, porém, o que respeita à substituição ou reforço da garantia (artsº 670º a 673º); é permitida a execução da coisa retida em termos paralelos aos de execução do objecto empenhado (artº 625º). Também são aplicáveis ao direito de retenção, por força do artigo 678º as disposições ... dos artigos 692º, e 694º a 699º....

     O direito de retenção, como os privilégios creditórios, não se encontra sujeito a registo, produzindo efeitos em relação às partes e a terceiros independentemente dele. Tal conclusão mostra-se inequívoca, embora falte norma expressa que a tal a alicerce.

     É que o direito de retenção resulta directamente da lei e não de um negócio jurídico ou de outro acto de conteúdo singular (assim de um acto administrativo ou de uma sentença). A sua publicidade encontra-se assegurada pelo próprio texto legal que admite o instituto e pelas situações materiais objectivas ou ostensivas a que se aplica, facilmente reconhecíveis para qualquer terceiro. Aliás, o Cód. Reg. Predial confirma este entendimento, na medida em que não inclui, entre os factos registáveis, o que origina o direito de retenção. E considera-se inquestionável que se trata de uma enumeração taxativa.”, Almeida Costa, ob. cit., págs. 916/7.

     16) O direito da A., sendo um direito real de garantia é oponível erga omnes, inclusivamente ao Banco credor de reserva de propriedade, pelo que a acção deveria ter sido julgada procedente por provada.

     17) Foram, por conseguinte, violados os artigos 2.º do Código de Registo Predial e os artigos 625º, 666º, 670º a 676º, 678º, 692º, 694º a 699º, 730º, 754º e 758º, todos do Código Civil.

    

     Contra-alegaram os apelados pugnando pela confirmação do julgado.

     Corridos os vistos legais, cumpre decidir.

                           *

     2. FUNDAMENTOS.

     2.1. Reapreciação da matéria de facto.

     Insurge-se a apelante contra a resposta aos quesitos 4º, 9º e 10º da Base Instrutória.

     Perguntava-se nos quesitos em análise respectivamente o seguinte:

     Quesito 4º: Era a Ré B... quem escolhia as oficinas para efectuar as suas reparações?

     Quesito 9º: Na desmontagem para elaborar o orçamento foram gastas 8 horas de serviço?

     Quesito 10º: A hora de serviço na oficina da Autora custa € 20,00 ao que acresce o IVA à taxa legal em vigor? 

     O Tribunal respondeu negativamente a todos os quesitos supracitados.

     Entende a apelante que deverá ser conferida resposta positiva aos referidos quesitos.

     Vejamos:

     Nenhuma das testemunhas em causa respondeu concretamente à matéria do quesito 4º: D..., que faz a contabilidade da Autora, de palpável refere ter visto a viatura ... na oficina desta última e que o marido de D... lhe disse que o carro se encontrava ali para reparação. No que à testemunha E... concerne, também nada de concreto a este respeito sabemos mas apenas que o mesmo manda arranjar os seus carros na oficina da Autora e que o F...lhe terá referido que o carro da mulher se encontrava no local para arranjo. O mesmo se poderá dizer da testemunha G...; a mesma referiu ter visto o carro na viatura com a frente danificada e não lhe consta que alguém tivesse lá ido buscar o veículo.

     Quanto ao quesito 9º não há testemunhas que fornecessem elementos concretos com vista à respectiva confirmação.

     Finalmente no que respeita ao quesito 10º, são fortes as divergências quanto ao preço da hora de serviço na oficina sendo certo que os valores apontados € 20, € 22 (E...) foram adiantados sem grande convicção e conhecimento de causa.

     Improcede pois pelo exposto a pretensão do Autor em ver alterada a matéria de facto.

                            

     Nesta conformidade esta Relação entende dar como provados os seguintes,

     2.2. Factos.

     2.2.1. A Ré B... efectuou um contrato de compra e venda de um veículo automóvel de marca ..., matrícula ....

     A compra foi feita com reserva de propriedade e a Ré B... usava a viatura como sua proprietária (1., 2. e 3.).

     2.2.2. No dia 14-01-2005, a R. B... mandou efectuar a desmontagem do veículo para execução de relatório para elaboração do orçamento (6.).

     2.2.3. A A. é uma empresa que se dedica a efectuar reparações de veículos automóveis e cobra pelo parqueamento de viaturas que fiquem na garagem a quantia de € 25 (vinte e cinco euros) por dia (11. e 12.).

     2.2.4. A R. B... não procedeu ao pagamento da reparação da viatura, não veio buscar a viatura, nem procedeu ao pagamento das despesas do parqueamento (13.).

     2.2.5. Por contrato de financiamento para aquisição a crédito celebrado em 09 de Janeiro de 2004 (contrato número 200400054401), o C..., S.A., a solicitação da 1ª Ré B..., acordou mutuar-lhe a quantia de € 23.823,40 (vinte e três mil oitocentos e vinte e três euros e quarenta cêntimos) (18.).

     2.2.6. Tal financiamento destinou-se à aquisição de automóvel ligeiro de passageiros, marca ..., matrícula ..., tendo a 1ª Ré B... recebido efectivamente o bem que adquiriu, tendo-o usado da forma que bem entendeu (18., 20. e 21.).

     2.2.7. A reserva de propriedade referida em 1. foi constituída pela 1ª Ré a favor do C..., S.A., sobre o veículo automóvel ligeiro de passageiros, marca ..., matrícula ..., em garantia do bom e pontual pagamento do aludido financiamento, no montante de € 23.823,40, dos juros contratuais e moratórios devidos no seu reembolso, bem como de outros eventuais encargos

computados para efeitos de registo em € 748,20 (22.).

     2.2.8. O financiamento referido em 5. seria amortizado em 60 prestações mensais, vencendo-se a primeira em 15 de Fevereiro de 2004 e as restantes em igual dos meses subsequentes até efectivo e integral pagamento (23.).

     2.2.9. Mais se estabeleceu que o incumprimento por parte da 1ª Ré B... de qualquer obrigação emergente do contrato determina o incumprimento definitivo e a resolução do contrato e, consequentemente, o imediato vencimento de todas as prestações vincendas (24.).

     2.2.10. A Ré B... apenas liquidou as primeiras 12 prestações, não tendo pago quaisquer outras prestações depois de 25 de Janeiro de 2005 até à presente data. Em consequência, o C..., S.A. enviou carta registada com Aviso de Recepção datada de 30 de Novembro de 2005 à 1ª Ré a comunicar a resolução do contrato referido em 5. (25. e 26.).

     2.2.11. Para garantia pontual do capital emprestado, respectivos juros e demais encargos do contrato de empréstimo, a 1ª Ré B..., de acordo com a cláusula 10ª do referido contrato de crédito, entregou ao Banco uma livrança (29.).

     2.2.12. Ao C..., S.A. não foi dado conhecimento do contacto telefónico e da carta remetida pela Autora à Ré B... (30.).

     2.2.13. A ora Autora não contactou a 2ª Ré para que efectuasse o pagamento da dívida e levantasse a viatura, nem diligenciou qualquer forma de resolução da situação (31.).

     2.2.14. A C..., S.A. não manifestou vontade de celebrar um contrato com a Autora, nem entregou coisa alguma à Autora, nem solicitou qualquer tipo de orçamento ou reparação (32. e 33.).

                           +

     2.3. O Direito.

     Nos termos do preceituado nos artsº 660º nº 2, 684º nº 3 e 690º nº 1 do Código de Processo Civil, e sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha, as conclusões da alegação de recurso delimitam os poderes de cognição deste Tribunal. Nesta conformidade e considerando também a natureza jurídica da matéria versada, cumpre focar os seguintes pontos:

     - O Direito de retenção sua natureza e requisitos de funcionamento.

     - A cláusula de reserva de propriedade; sua natureza e oponibilidade a terceiros.

     O caso concreto.

                           +

     2.3.1. O Direito de retenção sua natureza e requisitos de funcionamento.

     A Autora A... intentou a presente acção contra as Rés B... e “ C..., S.A.” em que pede o pagamento por parte da primeira de determinadas importâncias resultantes dos serviços que a Autora lhe prestou no concernente à viatura de marca ... matrícula .... Pede ainda a condenação de ambas Rés a reconhecer que a Autora tem em seu poder o veículo automóvel da marca ..., matrícula ...; e que se declare o direito de serem ambas as Rés condenadas a reconhecer que a Autora tem o direito de retenção sobre o aludido veículo, podendo a Autora proceder à venda do carro e ser paga pelo montante que resultar da venda.

     A Autora intentou a acção também contra a 2ª Ré C... em virtude de a mesma gozar do "direito de reserva de propriedade" sobre a viatura em causa, que se deve em traços gerais ao seguinte:

     Por contrato de financiamento para aquisição a crédito, celebrado em 09 de Janeiro de 2004 (contrato número 200400054401), o C..., S.A., a solicitação da 1ª Ré B..., acordou mutuar-lhe a quantia de € 23.823,40 (vinte e três mil oitocentos e vinte e três euros e quarenta cêntimos).

     Tal financiamento destinou-se à aquisição de automóvel ligeiro em análise ..., tendo a 1ª Ré B... recebido efectivamente o bem que adquiriu.    

     A reserva de propriedade referida em 1. foi constituída pela 1ª Ré a favor do C..., S.A., sobre o veículo automóvel ligeiro de passageiros, marca ..., matrícula ..., em garantia do bom e pontual pagamento do aludido financiamento, dos juros contratuais e moratórios devidos no seu reembolso, bem como de outros eventuais encargos computados para efeitos de registo em € 748,20.

     A Ré B... apenas liquidou as primeiras 12 prestações, não tendo pago quaisquer outras depois de 25 de Janeiro de 2005 até à presente data. Em consequência, o C..., S.A. enviou carta registada com Aviso de Recepção datada de 30 de Novembro de 2005 à 1ª Ré a comunicar a resolução do contrato.

     Nunca a Autora contactou a Ré C..., a qual é estranha aos contratos entre aquela e a 1ª Ré.

     O "direito de retenção" pertence à categoria dos direitos de garantia, encontrando-se enunciado no artigo 754º do Código Civil – Diploma ao qual pertencerão os restantes normativos a citar sem menção de origem - onde se lê que "O devedor que disponha de um crédito contra o seu credor goza do direito de retenção se, estando obrigado a entregar certa coisa, o seu crédito resultar de despesas feitas por causa dela ou de danos por ela causados".

     Decorre ainda do normativo citado e ainda dos artigos 754º, 755º e 756º serem momentos fundamentais do instituto 1) Que o devedor seja obrigado a entregar uma coisa susceptível de penhora; 2) que seja simultaneamente titular de um crédito sobre a pessoa a que esteve obrigado a entregar a coisa; 3) Que exista uma conexão causal entre a coisa e o crédito sobre a pessoa que a deva receber podendo essa conexão resultar de despesas feitas por causa da coisa ou danos por ela causados (754º) ou de uma relação legal ou contratual que tenha implicado a detenção da coisa e cuja garantia que a lei atribua a esse efeito ou de uma relação legal ou contratual que tenha implicado a detenção da coisa a cuja garantia que a lei atribua esse efeito.

     No caso em análise a Autora arroga-se a esse direito não apenas perante a 1ª Ré como também perante o C... que por seu turno tem registada a seu favor a cláusula de "reserva de propriedade" sobre a viatura, havendo pois que analisar o funcionamento do "direito de retenção" face àquela garantia.

                           +

     2.3.2. A cláusula de "reserva de propriedade"; sua natureza e oponibilidade a terceiros.

     O caso concreto.

     A cláusula de "reserva de propriedade" constitui uma garantia que pretende conciliar o direito do credor em ver assegurado o seu crédito com o do devedor em poder utilizar a coisa que adquiriu mas ainda pendente de completa liquidação; caso assim não fosse o adquirente do bem tornar-se-ia de imediato proprietário da coisa, podendo aliená-la livremente, o que dificultaria de sobremaneira a conclusão dos negócios em que o preço não está satisfeito[1]. Estatui o artigo 409º nº 1 do Código Civil que "1. Nos contratos de alienação é lícito ao alienante reservar para si a propriedade da coisa até ao cumprimento total ou parcial das obrigações da outra parte ou até à verificação de qualquer outro evento".

     Os interesses do titular da reserva de propriedade entram não raro em conflito com os do beneficiário da excepção do não cumprimento do contrato, colocando-se o problema de aquilatar da respectiva prevalência. Esta questão está todavia resolvida no caso vertente, pois nos termos do nº 2 do mencionado preceito legal "Tratando-se de coisa imóvel, ou de coisa móvel sujeita a registo, só a cláusula constante do registo é oponível a terceiros". Ora uma viatura automóvel está sujeita a registo bem como os respectivos ónus e encargos como expressamente se lê no artigo 46º do Código de Registo e Notariado[2]. Assim sendo, a pretensão da A... contra o C... não pode obter acolhimento, nomeadamente na parte que em pretende sobrepor-se àquela cláusula com prevalência seu direito de retenção que é inoponível a esta Ré. Isto porque na verdade o vendedor continua a ser o titular do direito de propriedade da coisa objecto mediato do contrato, enquanto o comprador goza de uma expectativa jurídica de aquisição do direito de propriedade sobre ela. O adquirente do veículo é no fundo um proprietário sob condição suspensiva; e não tendo a titular do direito de reserva de propriedade intervindo no contrato de empreitada celebrado entre a primeira Ré e a Autora, o mesmo é relativamente ao C... res inter alia, não lhe podendo ser oposto.

     As considerações supra-expostas são pois o bastante para que se possa concluir que a apelação está votada ao malogro.

     Poderá então assentar-se no seguinte:

     1) O "direito de retenção" pertence à categoria dos direitos de garantia, encontrando-se enunciado no artigo 754º do Código Civil.

     2) São momentos fundamentais do instituto 1) Que o devedor seja obrigado a entregar uma coisa susceptível de penhora; 2) que seja simultaneamente titular de um crédito sobre a pessoa a que esteve obrigado a entregar a coisa; 3) Que exista uma conexão causal entre a coisa

e o crédito sobre a pessoa que a deva receber podendo essa conexão resultar de despesas feitas por causa da coisa ou danos por ela causados (754º) ou de uma relação legal ou contratual que tenha implicado a detenção da coisa e cuja garantia que a lei atribua a esse efeito ou de uma relação legal ou contratual que tenha implicado a detenção da coisa a cuja garantia que a lei atribua esse efeito.

     3) Os interesses do titular da reserva de propriedade entram não raro em conflito com os do beneficiário da excepção do não cumprimento do contrato, colocando-se o problema de aquilatar da respectiva prevalência.      Nos termos do nº 2 do mencionado preceito legal "Tratando-se de coisa imóvel, ou de coisa móvel sujeita a registo, só a cláusula constante do registo é oponível a terceiros".

     4) Nesta conformidade mau grado a reparadora de uma viatura tenha direito de retenção sobre a mesma pelo valor da reparação, certo é que estando o veículo em causa cativo de "reserva de propriedade" registada a favor do Banco que mutuou determinada importância ao adquirente da mesma que por seu turno contratou com o responsável pela oficina a reparação do veículo tal cláusula prevalece sobre o direito de retenção desta última.

                           *

     3. DECISÃO.

     Nesta conformidade acorda-se em julgar a apelação improcedente confirmando destarte a sentença apelada.

     Custas pela apelante.

      [1] Cfr. sobre este e outros problemas que a garantia envolve, Luís Manuel Telles de Menezes Leitão "Garantias das Obrigações", Almedina, Coimbra, 2006, pags. 255 ss e Luís Lima Pinheiro "A cláusula de Reserva de Propriedade", Almedina Coimbra, 1988, 23 ss.   

      [2] Cfr. Cfr. Luís Lima Pinheiro "A Cláusula de Reserva de Propriedade", Almedina, Coimbra, 1988, pags. 72 ss; Gabriela Figueiredo Dias "Reserva de Propriedade" in "Comemorações dos 35 Anos do Código Civil" III Direito das Obrigações, Coimbra Editora, pags. 435 ss,

      Ac. do S.T.J. nº 10/2008 de 09-10-2008 (P. 3965/07) in Diário da República nº 222, Série I, págs. 7971 a 7989; de 14-2-2006 (P. 4209/2005) in Col. de Jur., 2006, I, 67; da Rel. de Lisboa de 23-11-2000 (R. 7342/00) in Col. de Jur., 2000, 5, 99; da Rel. do Porto de 15-1-2009 (P. 7203/2008) in Col. de Jur., 2009, I, 208.