Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
610/17.7T8CVL-B.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CRISTINA NEVES
Descritores: ALIMENTOS
ACORDO EXTRAJUDICIAL
ABUSO DE DIREITO
Data do Acordão: 03/08/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE FAMÍLIA E MENORES DA COVILHÃ DO TRIBUNAL JUDICIAL A COMARCA DE CASTELO BRANCO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA EM PARTE
Legislação Nacional: ARTIGOS 988.º, N.º 1, DO CPC, ARTIGO 42.º DO RGPTC E ARTIGOS 334.º E 1906.º, AMBOS DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: I - Tendo ocorrido a reconciliação dos progenitores, que passaram a residir como marido e mulher na mesma casa com os menores, não é devida a entrega de quantia pecuniária, a título de alimentos aos menores, por tais alimentos estarem a ser prestados em espécie.

II – O acordo extrajudicial sobre a regulação das responsabilidades parentais é válido desde que seja homologado por decisão judicial.
III – A circunstância de os alimentos não serem exigidos durante um determinado período de tempo não faz com que seja legítima a expectativa do devedor de que eles já não lhe seriam exigidos.
Decisão Texto Integral:


Acordam os Juízes na 3ª Secção do Tribunal da Relação de COIMBRA


RELATÓRIO

AA, mãe dos menores BB, CC e DD, veio em 10/12/21, ao abrigo do disposto nos artigos 41.º e 48.º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível, invocar o incumprimento do exercício das responsabilidades parentais pelo progenitor dos menores EE, alegando o não pagamento da prestação de alimentos devida aos menores nos meses de Outubro de 2016 a Abril de 2017 e no ano de 2020, à excepção do mês de Março, altura em que os menores residiram com o progenitor. Mais alega não terem sido pagas as despesas escolares tidas com os menores, no valor de € 216,45, tudo no valor global de € 4.608,00.

Peticiona, assim, que seja ordenado o cumprimento coercivo da pensão de alimentos através do imediato desconto no vencimento do Requerido das prestações vincendas, a remeter à Requerente, através do depósito na sua conta bancária com o IBAN ....


*

Notificado para alegações nos termos e para os efeitos do artº 43 do RGPTC, veio o progenitor Requerido invocar que após o divórcio os ex-cônjuges reconciliaram-se, passando a coabitar em condições análogas às dos cônjuges, desde inícios de 2017 a Fevereiro de 2020, razão pela qual não são devidas as prestações de alimentos referentes aos menores, por já prestados.

Mais alega que após a separação ocorrida em 2020, acordaram extra-judicialmente na guarda partilhada dos menores, suportando cada um os alimentos devidos nesses períodos, razão pela qual não está em dívida com qualquer quantia de alimentos.

Por último, alega que nunca lhe foram pedidas quaisquer despesas escolares dos menores e que já deu entrada da acção de alteração da regulação das responsabilidades parentais dos menores.


*


Designada data para audiência de julgamento foi proferida decisão no tribunal a quo na qual se julgou “procedente o presente incidente e, em consequência, declara-se o incumprimento do exercício das responsabilidades parentais pelo requerido – obrigação de pagamento de prestação de alimentos, incluindo despesas educação aos filhos, condenando-o no pagamento das pensões de alimentos supra mencionadas, no valor de € 5.400,00 (cinco mil e quatrocentos euros), acrescido do valor por despesas na quantia de € 108,20 (cento e oito euros e vinte cêntimos) o que perfaz o valor global de € 5.508,20 (cinco mil quinhentos e oito euros e vinte cêntimos)”.


***

Notificado da decisão proferida e não se conformando com a mesma, veio o requerido interpor recurso, formulando no final das suas alegações, as seguintes:

“IV- CONCLUSÕES:

I. O Recorrente não se conforma com a douta sentença proferida pelo Tribunal “A quo” que julgou a ação procedente, por provada e nessa medida, o condenou na totalidade do pedido, contudo entende que a mesma não faz justiça.

II. A douta sentença que, julgou procedente o incidente – o incumprimento do exercício das responsabilidades parentais condenou o, aqui recorrente, “no pagamento das pensões de alimentos supramencionadas, no valor de €5.400,00 (cinco mil e quatrocentos euros), acrescido do valor por despesas na quantia de €108,20€ (cento e oito e vinte cêntimos) o que perfaz o valor global de €5508,20€ (cinco mil e quinhentos e oito euros e vinte cêntimos).”

III. A douta Sentença de 1.a Instância incorreu em erros na apreciação de algumas questões suscitadas nos presentes autos e na sua apreciação global da prova produzida e junta aos autos, nomeadamente documental e testemunhal violando, assim, normas de direito substantivo e processual, como adiante se demonstrará, nomeadamente o artigo 334.º do Código Civil, Abuso de direito na modalidade de suppressio.

IV. Uma modalidade de abuso de direito que se inscreve no contexto da violação do princípio da confiança, que sucede quando o agente adota uma conduta inconciliável com as expectativas adquiridas pela contraparte, em função do modo como antes atuara.

V. Na verdade, o abuso do direito é de conhecimento oficioso, pelo que deve ser objeto de apreciação e decisão, ainda que não invocado, o que não foi objeto de apreciação pela douta sentença aqui em crise.

VI. A douta sentença desconsiderou o valor probatório de um documento – o acordo extrajudicial da Responsabilidades Parentais autenticado que – nos termos do artigo 369.º e artigo 371.º do Código Civil considera, este último, que os documentos autênticos fazem prova plena dos factos a que se referem.

VII. Ao olvidar os dois aspetos mencionados a douta sentença incorreu em erros na apreciação de algumas questões suscitadas nos presentes autos e na sua apreciação global da prova produzida e junta aos autos, o que aqui expressamente se recorre.

VIII. Ficou provado– matéria de facto provada – ponto 14 – e cita-se “Requerente e Requerido reconciliaram-se, após o divórcio, em abril de 2017, continuando a viver juntos, em comunhão de mesa, cama e habitação, em condições em tudo análogas às dos cônjuges, inclusivamente, no que concerne ao pagamento e suporte de despesas de ambos e dos seus filhos, até março de 2020.

IX. A 26 de junho de 2020, subscreveram acordo de alteração da regulação das responsabilidades parentais extrajudicialmente

X. A douta sentença, ao não se pronunciar sobre os dois aspetos – abuso de direito e o acordo extrajudicial por documento particular - está a penalizar desmesuradamente o aqui recorrente, condenando-o duplamente, na medida em que no período de reconciliação procedeu e promoveu alimentos e agora ao condená-lo valida o pagamento de mensalidades referentes ao período de reconciliação e a um período que as partes, quiseram, afastar e cessar aplicação do acordo da regulação das responsabilidades parentais.

XI. O Recorrente no período de reconciliação contribuiu para os alimentos/sustento e vivência familiar.

XII. Após a separação está a ser condenado a um pagamento que as partes não quiseram acordar, pensão de alimentos, mas quiseram, que pelo seu punho subscrever outro acordo que deveria prevalecer sobre os demais, tanto que o autenticaram.

XIII. A douta sentença deu como provado que o Requerido, aqui recorrente, não pagou a pensão de alimentos relativas aos meses – ponto 11 da A1 – Matéria de facto provada. – Períodos em que viveram em condições análogas às dos cônjuges e ainda, mutuamente, redigiram um acordo que afastava o pagamento de pensão de alimentos.

XIV. A 22 de abril de 2021, por apenso aos autos principais “foi homologado, por sentença, acordo de alteração das RRP”

XV. Perante a realidade de reconciliação duradoura, não se retira em momento nenhum que o progenitor faltou ao cumprimento da prestação de alimentos de forma culposa.

XVI. Não era exigível ao aqui Recorrente manter a obrigação alimentar, isto é, promovendo o pagamento da quantia de 300,00€, através de transferência, na medida em que diariamente os proporcionava aos seus filhos.

XVII. Entendeu o Tribunal a quo que o Recorrente deveria ter comparticipado, duplamente, com alimentos, quer através de pensão de alimentos acordada em determinado período, quer através da vivência em comum.

XVIII. O que é manifestamente abusivo, na medida em que no concerne à prova testemunhal o tribunal a quo entendeu que e cita-se “são todas coincidentes quanto ao lapso temporal em que a requerente e requerido viveram juntos” isto é “requerente e Requerido reconciliaram-se em 2017 e viveram junto até ao início da pandemia – março de 2020.”

XIX. Relativamente à prova documental junta aos autos, aqui em crise, o Tribunal a quo, salvo melhor opinião, desconsiderou –nomeadamente o valor probatório do documento – acordo extrajudicial de alterações da RRP, documento autêntico.

XX. A douta sentença condena o Recorrente como se não tivesse, nesse período de conciliação e depois por acordo contribuído de forma igual ao da Requerente.

XXI. O Tribunal a quo, entendeu na sua apreciação global e dentro das regras a que está adstrito que seria uma prática normal, de um homem médio, viver em condições análogas ao de um cônjuge, conjuntamente com os seus filhos, ter que a determinado dia de cada mês depositar na conta bancária da progenitora, que vivia na mesma casa, partilhando mesa, cama e habitação, a prestação de alimentos regulada quer por sentença quer pelo acordo extrajudicial.

XXII. Com o devido respeito, sérias dúvidas se levantam que a normalidade, o acima descrito seria o comportamento de um homem médio.

XXIII. Tal comportamento, salvo o devido respeito, era sim de equacionar hoje, perante o peticionado e a douta sentença, atendendo à surpresa que o incidente de incumprimento causou no aqui Recorrente.

XXIV. Na verdade, ao condenar da forma descrita o Tribunal a quo entendeu que a partilha de mesa, cama e habitação e o acordo extrajudicial firmado deviam, salvo o devido respeito, ser envolvidos num contexto de desconfiança, de não crença na relação familiar criada e do normal funcionamento familiar.

XXV. A normalidade permitiu, inclusive, neste período de conciliação, o nascimento de uma filha.

XXVI. Pelo que o Recorrente confiou e não programou a sua conduta ao longo dos tempos tendo por base que caso a relação terminasse teria que ter em conta que teria de provar que promoveu alimentos nos períodos em referência. (conciliação e acordo extrajudicial) e promover ainda a transferência bancária.

XXVII. Salvo melhor entendimento, não seria plausível que cumulativamente o indicado ocorresse ao longo destes anos.

XXVIII. Não era o comportamento padrão, de quem vive sobre a égide da confiança, da unidade familiar, da boa-fé.

XXIX. Ninguém, um Homem médio, fará um juízo de prognose que em caso de rotura da relação terá que provar, no futuro, que o tempo de vivência conjunta com a Requerente pagou a quantia acordada a título de pensão de alimentos a par de toda uma vida em economia comum (para não ser sentimental) em momento anterior à reconciliação.

XXX. Pelo que, a condenação em crise - a título de pensão de alimentos peticionada, após a separação definitiva, consiste no presente caso um evidente abuso de direito na modalidade de supressivo.

XXXI. Na medida em que foi criado uma conduta, continua, de um sujeito jurídico que, quis, objetivamente criar noutrem (recorrente) a convicção que nada peticionaria do período em que viveram em condições análogas ao dos cônjuges e ainda, depois da separação acordaram, por escrito, autenticando o documento, quais as regras que regulavam a relação desde junho de 2020.

XXXII. O peticionado nos períodos dados como provados no ponto 11 da matéria de facto provada vão além dos limites impostos pela boa-fé, na medida em colocam em causa a lealdade, probidade, respeito e consideração mútua que o Recorrente entendeu que era recíproco.

XXXIII. Ao peticionar as quantias a Requerente formula um caso típico de frustração da confiança e peticiona a quantia referente ao período a que diz respeito o acordo extrajudicial é em si – nesse ponto ainda evidencia mais que litiga em claro abuso de direito.

XXXIV. Nunca nesse período ou em qualquer outro do período de reconciliação a Requerente peticionou qualquer quantia a título de pagamento de pensão alimentos.

XXXV. A titular de um direito não exerceu durante um largo lapso temporal, significativo, um direito que lhe assiste.

XXXVI. Com a sua atuação, a Requerente, nesse lapso temporal, criou a convicção, perante a inação, no Recorrente a confiança que o mesmo não viria a ser exercido.

XXXVII. Como já foi dito, não era expectável que, cumulativamente, o Recorrente, que vivia em condições em tudo análogas às dos cônjuges, inclusivamente no que concerne ao pagamento e suporte de despesas de ambos e dos seus filhos suportasse o depósito mensal do depósito da quantia de 300,00€.

XXXVIII. Esta confiança criada, deve merecer a proteção da ordem jurídica, o que no caso em crise não teve e que aqui se apela.

XXXIX. O instituto do abuso do direito, consagrado no artigo 334.º do CC deve ser aplicado no caso em concreto.

XL. Na medida em que estão, no caso em concreto, reunidos todos os requisitos de aplicação desta figura, não exercício prolongado do direito, uma situação de confiança daí derivada para a contraparte, coadjuvada por elementos circundares que a sustentem, uma justificação para essa confiança.

XLI. Como é entendimento da doutrina e jurisprudencial os pressupostos não são necessariamente cumulativos, processando-se a sua articulação dentro da intensidade de cada um dentro do quadro factual existente.

XLII. Recorrido em momento algum, faltou com o sustento aos seus filhos, nunca o aqui Recorrido violou a dignidade da vida humana dos seus filhos tendo nesse período de reconciliação proporcionando os alimentos necessários aos menores.

XLIII. Acresce à factualidade descrita que em Junho de 2020, através subscreveram acordo de alteração da regulação das responsabilidades parentais extrajudicialmente, matéria dada como provada ponto 15.

XLIV. No mencionado acordo extrajudicial, relativamente aos três filhos, que quiseram, ambos, reduzir a escrito, numa clara e inequívoca manifestação de vontade, que quiseram inclusivamente autenticar e que nos termos do artigo 369.º e 371.º n.º 1 do Código Civil este documento é autêntico e faz, por isso, prova plena dos factos que sejam atestados pela entidade competente. (art. 371º, nº 1 do CCiv, criar um novo quadro de confiança e segurança jurídica.

XLV. Para o aqui recorrente este novo acordo assinado em 26 de junho de 2020, criou a confiança e que era o acordo que regia as suas relações no que dizia respeito às responsabilidades parentais e não outro formulado ou homologado.

XLVI. Na medida em que no acordo extrajudicial da RRP continha no seu corpo a resolução de questões fundamentais, nomeadamente: A questão da residência dos filhos; A questão do convívio dos filhos com os progenitores; A questão dos alimentos e despesas extraordinárias; A questão dos convívios e férias; A questão das comunicações entre progenitores.

XLVII. Chegando mesmo a regular sobre o “consenso” e cita-se “os pais comprometem-se a resolver, por mútuo consenso, todas as questões e as demais não previstas no presente acordo”

XLVIII. Como tal, salvo melhor entendimento, e com o devido respeito, que é muito, deviam as prestações, junho de 2020 a março de 2021 neste ponto em concreto – tendo por base o documento autenticado e porque o mesmo faz prova plena nos termos legais – não serem consideradas incumpridas e consequentemente não devidas pelo aqui Recorrente.

XLIX. Na medida em que, com base no circunstancialismo descrito e documentado, o Recorrente criou a convicção que não estava obrigado a prestar os alimentos pelo facto terem fixado o regime de guarda partilhada, e consequentemente, a desnecessidade de pagamento da pensão de alimentos.

L. A Requerente ao peticionar, neste ponto, neste período em concreto junho de 2020 a março de 2021, está a agir contra um facto, uma realidade, uma confiança, que a própria ajudou a criar, que inclusivamente assinou e autenticou em conjunto, sim em conjunto, com o aqui recorrente.

LI. Tendo por base os dois períodos aqui mencionados em conjugação com o documento particular autenticado a sentença aqui em crise violou o artigo 369.º e 371.º do CC

LII. No que respeita ao documento particular autenticado sempre dirá que deveria o Tribunal a quo ter considerado a força probatória material que se encontra fixada no artigo 376.º do Código Civil, isto é estabelecer que, reconhecido que o documento procede da pessoa a quem é atribuído, que é genuíno, fica determinado que as declarações dele constantes se consideram provadas. Sendo indivisível a declaração, nos termos que regulam a prova por confissão.

LIII. Pelo que e salvo melhor opinião, o Recorrente ao agir como regulado no acordo extrajudicial cumpriu com as responsabilidades parentais que estão espelhadas no princípio constitucional do direito e do dever de educação e manutenção dos filhos que sobre os pais impende nos termos do artigo 36.º n. º5 da Constituição da República Portuguesa e do artigo 1878.º do CC que prevê o conteúdo das responsabilidades parentais.

LIV. E como refere a douta sentença “o direito a alimentos um direito estruturalmente obrigacional, mas funcionalmente familiar.” É neste ponto – da funcionalidade familiar, na unanimidade criada e passada a escrito (autenticada inclusive por vontade dos progenitores) quiseram, ambos, que a realidade ali espelhada fosse a existente naquele núcleo familiar.

LV. Não era expectável nem exigível nos períodos em destaque que o recorrente se considerasse devedor de qualquer quantia.

LVI. E por último, que ao considerar este período de tempo (do período de março de 2020 a março de 2021) um período que desde junho de 2020 até abril de 2021 as partes quiseram fazer cessar os efeitos de decisões anteriores é abalar a certeza e a segurança do nosso ordenamento jurídico plasmado no artigo 2.º do Constituição da República Portuguesa.

LVII. Não podemos descorar que a regulação das responsabilidades parentais pressupõe a cessação da convivência em comum dos progenitores, exigindo, por isso a dissolução familiar, conforme se atesta da leitura dos artigos 1906.º, 1907.º, 1909.º e 1912.º do Código Civil, o que só aconteceu depois de Março de 2020.

LVIII. As partes ao longo do período de conciliação e no período após, através de documento particular autenticado, quiseram fazer cessar os efeitos da ação de regulação das responsabilidades parentais, não se conformando, pois, o Recorrente com a sua condenação no pagamento de qualquer quantia a título de pensão de alimentos à Recorrida.

LIX. Termos em que, deve ser dado provimento ao presente recurso, em consequência ser a ação considerada improcedente.

Termos em que e nos melhores de Direito deve a douta sentença em crise, ser

substituída por douto Acórdãos desse Venerando Tribunal da Relação de Coimbra, no qual seja determinado que nos períodos de Abril de 2017 a Março de 2020 e Junho de 2021 não é devida qualquer quantia, a titulo de pensão de alimentos pelo aqui Recorrente, tudo com as legais consequências e como da mais elementar

JUSTIÇA!”


*

Pelo Digno Magistrado do M.P. foi apresentada resposta ao recurso, no qual conclui da seguinte forma:

“Conclusões

1.

A figura do abuso de direito, inserto no artigo 334º do Código Civil, não é aplicável à função jurisdicional, muito em particular à decisão, pois que se trata do exercício da administração da justiça, com estrita obediência à lei;

2.

A apreciação e a decisão sobre a matéria de facto e a aplicação do direito, mesmo na jurisdição voluntária, obedece sempre à lei.

3.

Pode o recorrente não concordar com a decisão e, como o fez, lançou mão do presente recurso para expor os seus motivos, mas não pode afirmar que a decisão violou os limites da boa fé, os costumes e o fim social do presente litígio;

4.

Em suma, não existe abuso de direito, não tendo, por isso, sido violado o apontado artigo 334º do Código Civil;

5.

O documento que o recorrente entende que o tribunal deveria considerar (em relação aos dois menores mais velhor), constitui, como o próprio reconhece, uma alteração do exercício da regulação das responsabilidades parentais extrajudicial;

6.

Ao contrário do afirmado pelo recorrente, este acordo não possui força jurídica, e por isso, apenas reflete uma mera vontade das partes;

7.

Pois, uma vez que estando regulado o exercício da regulação das responsabilidades parentais, a sua alteração, como o próprio recorrente o designa, só poderia ser feita através do regime do artigo 42º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível (Lei 141/2015, de 8 de setembro), sendo que os progenitores têm legitimidade para tal;

8.

Além disso, sempre o Ministério Público teria que dar o seu consentimento, ou não, ao acordo nos termos do nº4 do artigo 14º do DL 272/2001, de 13 de outubro;

9.

Pois só assim, é possível assegurar o superior interesse dos menores, através do escrutínio e da decisão do Ministério Público, que defende os seus interesses;

10.

Ora, ao fazê-lo de forma unilateral, os progenitores impediram essa verificação do Ministério Público e bem assim, a prolação de decisão judicial a incidir e a decidir sobre esta questão;

11.

Mutatis Mutandis em relação à menor, DD, nascida a .../.../2018, cujo acordo veio a ser realizado através do processo 895/..., da Conservatória do Registo Civil ... – ponto 8. dos factos dados como provados;

11.

Pelo que o documento apresentado – acordo realizado pelos progenitores, à margem da posição do Ministério Público e do Tribunal, não tem o valor legal que o requerente pretende que tenha, por violação dos acima mencionados artigo 42º do RGPTC e 14º do DL 272/2001, de 13-10, ou seja, não tem valor probatório;

12.

Das prestações em dívida (contabilizadas em sede de sentença como dívida do requerido - incumprimento) Ano de 2016:

Meses de novembro de dezembro (200x2) € 400,00.

Tais valores não se mostram impugnados, sendo que a relação matrimonial findou em outubro de 2016 (ponto 5. dos factos dados como provados);

13.

Ano de 2017:

Meses de janeiro, fevereiro, março e abril (200x4) € 800,00.

Tais valores correspondem ao período de tempo em que os progenitores estiveram separados, e os dois filhos a viver com a mãe (ponto 14. dos factos dados como provados);

14.

Anos de 2018 e 2019: nada a registar, dado que os progenitores se encontravam a viver juntos e a contribuir ambos para o sustento dos filhos (ponto 14. dos factos dados como provados);

15.

Ano de 2020:

Foi considerado pelo tribunal, todos os meses deste ano, à exceção do mês de março, ou seja, (300x11) € 3.300,00.

Quanto ao mês não incluído, março, resulta dos factos dados como provados sob os pontos 12. e 14. dos factos dados como provados;

16.

Ano de 2021:

Foram considerados os meses de janeiro, fevereiro e março (300x3) € 900,00.

Nesta parte, teve-se em conta o período de tempo em que os três filhos estiveram só com a progenitora, conforme decorre da sequência dos factos descritos no ponto 14., até à decisão de alteração das responsabilidades parentais, ocorrida em 22 de abril de 2021, data em que se determinou a guarda partilhada, de acordo com os factos dados como provados sob os pontos 17. e 18. Dos factos dados como provados;

17.

Em suma, a globalidade destes valores corresponde a € 5.400,00, a que acresce a importância de 108,20 relativa a despesas, não impugnadas;

18.

Todavia, entende-se que relativamente ao ano de 2020, apesar do recorrente não ter pago nenhuma prestação daquele ano, para além da exceção corresponde ao mês de março, não contabilizada, também não deveria pagar, e por isso, não estar em incumprimento, relativamente aos meses de janeiro e fevereiro.

Vejamos:

Resulta dos factos dados como provados sob o ponto 14: Requerente e requerido reconciliaram-se, após o divórcio, em Abril de 2017, continuando a viver juntos, em comunhão de mesa e habitação, em condições em tudo análogas às dos cônjuges, inclusivamente no que concerne ao pagamento e suporte das despesas de ambos e dos seus filhos, até Março de 2020.

Ou seja, resulta inequívoco de que nestes meses de janeiro a março de 2020, este último mês já excecionado, o requerido pagou a sua parte das despesas com os três filhos.

Assim, neste período de tempo, requerente e requerido viveram juntos com os três filhos, como se tratassem de marido e mulher e ambos suportaram as despesas quotidianas deles e dos filhos. Não existe, pois, motivo para que o requerido pague novamente aquilo que já pagou.

É aliás, o que a progenitora entende, pois que não peticionou como incumprimento todo o tempo em que ela e o progenitor viveram juntos, como de marido e mulher se tratassem.

O que sucede, à que para a progenitora aquele período findou em dezembro de 2019, mas o tribunal deu como provado que, sem contar com o mês de março, ele findou no final de fevereiro;

19.

Deste modo, deve ser reduzido o pagamento na importância de € 600,00 (300x2) correspondente aos meses de janeiro e fevereiro de 2020, dado que não existiu incumprimento

neste período de tempo. Quanto às despesas, no montante de € 108,20, as mesmas, como antes referido, não foram impugnadas.

Em face do exposto, o recurso deverá ser parcialmente provido nos termos indicados, fazendo-se JUSTICA.”


***


QUESTÕES A DECIDIR

Nos termos do disposto nos artigos 635º, nº4 e 639º, nº1, do Código de Processo Civil, as conclusões delimitam a esfera de atuação do tribunal ad quem, exercendo uma função semelhante à do pedido na petição inicial.[1] Esta limitação objetiva da atuação do Tribunal da Relação não ocorre em sede da qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cf. artigo 5º, nº3, do Código de Processo Civil). Também não pode este Tribunal conhecer de questões novas que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas.[2]

Assim sendo, a questão a decidir subsume-se ao seguinte:

a) se da decisão recorrida resulta a duplicação de alimentos aos menores, por já prestados no período de reconciliação e vivência em comum dos seus progenitores;

b) da validade do acordo extrajudicial celebrado entre os progenitores em Junho de 2020.

c) Se existe abuso de direito da requerente, por violação da tutela da confiança. 


*

FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

O tribunal recorrido fixou a seguinte matéria de facto, que julgou pertinente à decisão do presente incidente e que se tem por fixada, por não impugnada, nos termos do artº 640 do CPC:

A1 - Matéria de facto provada:

1.BB nasceu em .../.../2022 do ano de 2012.

2.CC nasceu em .../.../2014.

3.DD em 12 de Setembro do ano de 2018.

4.São filhos de AA e EE.

5.A Requerente e Requerido foram casados entre si, tendo rompido o vínculo matrimonial em 11 de Outubro do ano de 2016.

6. Nesta senda, foi homologado naquela data, por sentença, o divórcio e o acordo respeitante à regulação do exercício das responsabilidades parentais relativamente a BB e CC.

7.No acordo a que se vem de aludir ficou determinado que os menores ficariam à guarda e cuidados da progenitora mãe, aqui a Requerente, sendo o exercício das responsabilidades parentais relativas aos atos da vida corrente das crianças seria exercido por ambos os progenitores.

A título de pensão de alimentos o progenitor pai, aqui o Requerido, obrigou-se a pagar a quantia mensal de € 200,00 (trezentos euros) sendo € 100,00 (cem euros) para cada um dos menores, a pagar no início do mês a que dizer respeito por meio de transferência bancária para a conta à ordem indicada e titulada pela Requerente.

8.Após o nascimento de DD, foi homologado a 12 de Outubro de 2018, no âmbito do processo 895/... que correu termos na Conservatória do Registo Civil ..., o acordo de regulação do exercício das responsabilidades parentais, daquela.

9.Ficou determinado que a menor DD, ficaria à guarda e aos cuidados da mãe, aqui a Requerente, sendo as questões de particular importância para a vida da menor seriam exercidas em comum por ambos os progenitores.

A título de pensão de alimentos o progenitor pai, aqui o Requerido, obrigou-se a pagar a quantia mensal de € 100,00 (cem euros) a pagar no início do mês a que dizer respeito por meio de transferência bancária para a conta à ordem indicada e titulada pela Requerente.

10.Em ambos as regulações do exercício das responsabilidades parentais, acordaram as partes no pagamento do valor de 50% das despesas extraordinárias de saúde e de educação.

11.O Requerido não pagou a pensão de alimentos relativa aos meses de:

Novembro e Dezembro do ano de 2016;

Janeiro, Fevereiro, Março e Abril de 2017;

Janeiro de 2020 a Dezembro de 2020,

Janeiro a Março do ano de 2021.

12. No ano de 2020 no mês de Março as crianças coabitaram de forma permanente com o pai, em virtude do internamento da mãe, devido a um acidente de trabalho.

13.O Requerido não procedeu ao pagamento de despesas escolares no valor total de € 216,45. 14.Requerente e Requerido reconciliaram-se, após o divórcio, em Abril de 2017, continuando a viver juntos, em comunhão de mesa, cama e habitação, em condições em tudo análogas às dos cônjuges, inclusivamente no que concerne ao pagamento e suporte de despesas de ambos e dos seus filhos, até Março de 2020.

15.Em junho de 2020 Requerente e o Requerido subscreveram acordo de alteração da regulação das responsabilidades parentais extrajudicialmente.

16.Nesse acordo extrajudicial acordaram passar a escrito que fixavam o regime da guarda partilhada com desnecessidade de pagamento de pensão de alimentos.

17.Em agosto de 2020 o requerido intentou acção de alteração do regime do exercício das responsabilidades parentais, autos apensos – A.

18.Em 22-04-2021 nos autos apensos de alteração da RRP – A, foi homologado, por sentença, acordo de alteração da RRP, aí se decidindo:

A - Exercício das Responsabilidades Parentais:

A.1 - As responsabilidades parentais, relativamente às questões de particular importância para a vida das crianças, serão exercidas por ambos os progenitores, salvo nos casos de urgência manifesta, qualquer um dos progenitores pode agir sozinho, devendo prestar informações ao outro logo que possível, nos termos do art.º 1906º, n.º 1 do C.C., salientando-se, nesta parte, que são consideradas «questões de particular importância para a vida» da criança, nomeadamente as seguintes: decisão sobre cuidados de saúde, nomeadamente intervenções cirúrgicas, saída da criança para o estrangeiro, quer em turismo, quer em mudança de residência com algum carácter duradouro, decisões sobre a educação, nomeadamente a escolha de estabelecimento de ensino, decisões de administração de bens, obtenção de licença de condução de ciclomotores, educação religiosa (até aos 16 anos), participação em programas de televisão, prática de atividades desportivas que importem riscos, autorização para contrair casamento, orientação profissional, propositura de ação – ou queixa – em sua representação processual.

A decisão nas questões da vida corrente das crianças será tomada pelo progenitor com quem as mesmas estiverem a residir nesse momento.

B - Progenitor com quem as crianças residem habitualmente:

B.1 – As crianças ficam confiadas e a residir alternadamente com pai e mãe.

B.2 - A alternância será por períodos de uma semana, com inicio à sexta-feira e términus às sextas-feiras, indo o pai ou mãe entregar as crianças, respetivamente, no estabelecimento de ensino ou no ATL.

B.3 - Este regime inicia-se na primeira semana do mês de maio, com início na sexta-feira de 07-05-2021, com a mãe, excepto quanto à DD, cuja residência alternada começará no dia 03-09-2021, com o progenitor com quem se iniciar a residência alternada nesse período.

B.4 - à quarta-feira as crianças jantarão com o progenitor com que não se encontrarem a residir.

B.4.1 - O pai ou a mãe irão buscar os filhos ao ATL ou estabelecimento de ensino e entregá-los-ão em casa do outro progenitor até às 20:30 horas no período letivo e em férias até às 22:00 horas.

B.5 – A progenitora será a encarregada de educação nos anos ímpares e o progenitor nos anos pares.

D - Férias e Festividades:

D.1 – As crianças passarão metade das suas férias escolares de Natal e Páscoa, com cada um dos progenitores.

D.2 – Nas férias escolares de verão, as crianças passarão um período de 15 dias com cada um dos progenitores, a combinar entre ambos até ao dia 30/06.

D.3 – Festividades do Natal, Fim de Ano e Pascoa.

D.3.1 - Nos anos ímpares:

- Páscoa e Passagem do ano: com a mãe.

- Natal: com pai.

D.3.2 - Nos anos pares:

- Páscoa e Passagem do ano: com o pai.

- Natal: com a mãe.

C.4 - No dia do pai e no aniversário do progenitor, as crianças farão uma refeição com o mesmo.

C.5 – No dia da mãe e no aniversário da progenitora, as crianças farão uma refeição com a mesma.

C.6 – As crianças passarão o dia dos seus aniversários com cada um dos progenitores, tomando uma refeição com cada um deles.

D - Prestação de Alimentos:

D.1 - A título de alimentos para a DD, e até ao início do regime de residência alternada desta (03-09-2021), o pai entregará à mãe, mensalmente, a importância de 80,00 € (oitenta euros), até ao dia 08 de cada mês, através de transferência bancária para a conta da mesma, com o IBAN ...84.

D.1.1 - A iniciar no próximo mês de maio.

D.2 - Todos os encargos escolares e circum-escolares, nomeadamente no que respeita ao material de apoio tido por necessário às crianças, serão suportados em idêntica proporção por ambos os progenitores (50% por cada um dos progenitores), sendo os recibos titulados em nome das crianças, que serão enviados pela progenitora ao progenitor, ou vice-versa, para os E-Mails:

- Progenitora: ...;

- Progenitor: ....

D.3 - As despesas de saúde, médicas e medicamentosas, relativas às crianças não cobertas pela Segurança Social, nem por qualquer outro sistema ou subsistema de saúde, serão suportadas, em idêntica proporção por ambos os progenitores (50% por cada um dos progenitores), sendo os recibos titulados em nome das crianças, que serão enviados pela progenitora ao progenitor ou vice-versa, para os E-Mails:

- Progenitora: ...;

- Progenitor: ....

D.4 - O progenitor e progenitora disporão do prazo de 8 dias para impugnar as despesas apresentadas sob pena de se entender, decorrido este lapso temporal, e nada dizendo, que as aceitam.

D.5 - A despesa deve ser comunicada por aquele que a efetuar no prazo de 30 dias.

D.6 – A quantia atinente a metade destas despesas a suportar pelo progenitor(a) será paga no prazo de 30 dias após o decurso do lapso temporal mencionado em “D.5”.

A2 - Matéria de facto não provada:

1.Já antes de Junho de 2020, mais precisamente, desde a separação, Requerente e Requerido praticavam o regime da guarda partilhada e residência alternada dos filhos.

2.Em Novembro e Dezembro a Requerente bloqueou o seu número de telemóvel para o Requerido, impedindo-o de ir buscar, estar ou sequer ver os seus filhos.

3.Até ser notificado do presente incidente nunca o Requerido teve conhecimento nem lhe foi pedido o pagamento de quaisquer despesas, designadamente as constantes do Requerimento Inicial.

4.É o Requerido que se encontra a suportar integralmente o pagamento da creche e ATL dos filhos.


*
A estes factos fixa-se ainda por recurso ao disposto no artº 662 nº1 do C.P.C., os seguintes factos porque resultantes dos autos de incumprimento das responsabilidades parentais, que correu termos contra o requerido com o nº610/17....:
19-Com data de 24/04/2017, foi intentada pelo M.P., em representação dos menores BB e CC, acção de incumprimento de responsabilidades parentais contra o ora requerido, alegando que desde Outubro de 2016 a Abril de 2017, não eram pagos alimentos aos menores pelo seu progenitor, ascendendo os alimentos em dívida, àquela data, ao montante de €1400,00.
20-Convocada conferência de pais, foi nesta, alcançado acordo em 01/06/2017, para pagamento dos alimentos em dívida e alteração dos alimentos a pagar aos menores nos seguintes termos:
“A – Prestação de alimentos:
1 – Os progenitores reconhecem que se encontram por pagar as quantias mencionadas na petição inicial no valor de 1400,00 €.
2 - O progenitor pagará, mensalmente, a importância de 50,00_€ (cinquenta euros) para cada um dos filhos (100,00 € no total) como prestação de alimentos, quantia esta, que será entregue à progenitora até ao dia 8 de cada mês, através de transferência bancária para a conta da mesma, com o IBAN ....
3 – Até perfazer o valor de 1400,00 € em dívida, ao montante mencionado em 2, acrescerá o valor de 20,00 € mensais.
21-Após, foi proferida sentença que homologou “o acordo, atinente à cláusula de alimentos, condenando as partes a observá-lo nos seus precisos termos.”

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FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO


Fixada a matéria de facto e passando à apreciação dos pressupostos do invocado incumprimento do regime de prestação de alimentos devidos aos memores, impugna o recorrido a decisão proferida pelo tribunal a quo, por entender que inexiste incumprimento, por duas ordens de razões:

-os alimentos peticionados e objecto da decisão recorrida, correspondem a momentos em que os progenitores viveram como marido e mulher, prestando o pai alimentos diariamente aos menores, não podendo existir duplicação desta obrigação, actuando a requerente em abuso de direito;

-os progenitores terem subscrito, após a separação ocorrida em 2020, acordo de alteração das responsabilidades parentais, que autenticaram e que, assim, faz prova plena dos factos dele constantes (artºs 369 e 370 do C.C.), resultando deste acordo que não seriam devidos alimentos, por os progenitores pretenderem a guarda partilhada dos menores;

a) Da existência de duplicação em relação aos alimentos devidos aos menores.

No que se reporta à primeira questão colocada em sede de recurso, lavra o recorrente em erro notório, uma vez que, da simples leitura da decisão proferida se verifica que esta não considerou em dívida alimentos devidos aos menores nos períodos indicados pelo recorrente como de convivência dos progenitores como marido e mulher, sem prejuízo de lapso do tribunal na contagem destes períodos e na desconsideração dos reais montantes pecuniários fixados a título de alimentos a estes menores, que efectivamente se verifica.

Verificado o incumprimento da obrigação de alimentos, o seu credor tem ao seu dispor, três meios de reacção: o incidente de incumprimento das responsabilidades parentais, previsto no artigo 41.º do RGPTC; o procedimento especial pré-executivo, constante do artigo 48.º do RGPTC; e a execução especial por alimentos, regulada nos artigos 933.º a 937.º do Código de Processo Civil. Intentado incidente de incumprimento da obrigação de prestação de alimentos fixados judicialmente, ao seu devedor incumbe o ónus de alegar e provar o cumprimento ou qualquer circunstância que afaste o incumprimento culposo da obrigação (artº 342 nº2 do C.C.).

Ora, a requerente, por meio do respectivo incidente de incumprimento das responsabilidades parentais, peticionou alimentos devidos aos menores correspondentes aos períodos em que alegadamente os seus progenitores se encontravam separados, não incluindo neste pedido aqueles períodos de convivência como marido e mulher. A decisão proferida pelo tribunal a quo, incidiu afinal sobre estes períodos alegados, mas sem atender aos períodos que deu como provados sob o nº 11 que, não sendo totalmente coincidentes com os indicados pela requerente, não abrangem, no entanto, os períodos indicados nas alegações como integrando esta decisão.

Por outro lado, desconsidera o recorrente que os alimentos fixados e devidos aos menores, são imprescritíveis, irrenunciáveis nos termos previstos no artº 2008 (sendo apenas admitida a renúncia a prestações vencidas, mas nunca a vincendas) e indisponíveis.

As características de irrenunciabilidade e indisponibilidade destes alimentos decorrem da sua natureza enquanto direito fundamental, com assento constitucional no artº 36.º, n.º 5 da CRP e estatuição normativa por via dos artsº 1878, 1880 e 1885 e 2003 do C.C.,[3] abrangendo quer o direito dos filhos a que lhes sejam prestados alimentos pelos seus progenitores, quer a correspondente obrigação destes de lhos prestarem.

Nesta medida, este “princípio constitucional da igualdade jurídica dos progenitores, criou a obrigação de ambos contribuírem para o sustento dos filhos, proporcionalmente, aos seus rendimentos e proventos, e às necessidades e capacidade de trabalho do alimentando, de modo a assegurar, dentro das suas possibilidades e disponibilidades económicas, as condições de vida necessárias ao desenvolvimento dos menores.

A natureza constitucional da obrigação de prestação de alimentos encontra expressão ordinária, quer a nível de tutela cível (artigos 1878.º, n.º 1 e 2009.º, n.º 1, al. c), ambos do CC), quer a nível de tutela penal, pois a violação do cumprimento daquela obrigação, em certas circunstâncias, tipifica um tipo legal de crime previsto no artigo 250.º do CP.[4]

Posto isto, “a quantificação da prestação alimentar a cargo do progenitor não guardião, haverá de considerar-se, para além do que se deixou dito em termos da especial qualificação da obrigação de alimentos a cargo dos progenitores, que essa obrigação recai por igual sobre ambos os progenitores, impondo-se por isso observar o princípio da proporcionalidade na repartição entre ambos do encargos com o sustento dos filhos menores - artigos 36°, n° 3, da Constituição da República., 1878°, n° 1, 1671º e 1676º, nº 1, do CC.

Por outro lado, e nesse contexto haverá, ainda, que atender-se a que o cumprimento da obrigação de alimentos que assim recai sobre ambos os progenitores cumpre-se não apenas através de prestações pecuniárias mensais necessárias ao sustento, saúde vestuário, habitação, educação e instrução do filho menor ou da comparticipação nesses gastos, mas também através dos cuidados tidos no lar, com a criação, educação e manutenção dos filhos menores.[5]

Em caso de divórcio ou separação de facto dos progenitores dos menores, ao progenitor com quem o menor não resida habitualmente, cabe o dever de contribuir proporcionalmente com os gastos do(s) menor(es), que englobam não só os gastos pessoais com o menor (vestuário, cuidados médicos, educação, actividades lúdicas, etc) como as normais despesas decorrentes dos maiores encargos com a habitação para o progenitor que tem a sua guarda (luz, telefone, água, internet, renda, etc).

Este dever de contribuir para os gastos com o menor pelo progenitor não residente, pode ser fixado de diversas formas, sendo a mais comum a monetária (ou envolvendo uma componente monetária), mas que não pode ser dissociada do seu objectivo último, de educação, cuidados e sustento do menor, credor e destinatário destes alimentos.

Por assim ser, justifica-se a sua prestação enquanto contribuição monetária a ser entregue ao outro progenitor, em caso de separação ou divórcio dos progenitores, devidos sempre e em qualquer caso, por aquele que não tem a sua guarda e enquanto a não coabitação com o menor se mantiver.

No caso em apreço, tendo os progenitores dos menores reiniciado a sua vida em comum, nas mesmas condições prévias à sua separação e divórcio, contribuindo ambos para os encargos dos menores consigo residentes, a obrigação de alimentos tem-se por cumprida por ambos os progenitores, porque directamente prestada a estes menores.

Assim o considerou a decisão recorrida, incorrendo no entanto, em dois erros relevantes: o primeiro consistente na contagem dos meses de Janeiro e Fevereiro de 2020 para cálculo da dívida de alimentos, data em que os progenitores ainda viviam em condições análogas às dos cônjuges, não sendo assim devidos alimentos, como contribuição pecuniária a entregar ao outro progenitor, porque já prestados aos menores; na total desconsideração do decidido no processo de incumprimento das responsabilidades parentais instaurado em Abril de 2017 pelo Ministério Público e referido nos pontos 20 e 21.

Nesses autos foi decidido por sentença proferida em 01/06/2017, fixar os alimentos devidos e não pagos até Abril desse ano em €1400 e alterar a cláusula de alimentos fixados em sede de divórcio por mútuo consentimento, referidos no ponto 7, reduzindo-os para o montante de € 50,00 mensais, para cada um.

Podendo embora considerar-se que o processo de incumprimento das responsabilidades parentais “não é o adequado a realizar alterações quanto às obrigações decorrentes do regime de regulação do exercício das responsabilidades parentais que se encontre em vigor, o que deverá ser efetuado em específico processo de alteração da regulação do exercício das responsabilidades parentais.”[6], neste caso, por sentença judicial transitada em julgado, foi alterado o montante devido a título de alimentos a estes menores, nos termos do artº 42 do RGPTC, reduzindo o seu montante para metade.

Não tendo existido qualquer outra decisão de alteração da obrigação de alimentos até à decisão proferida no apenso A, em 22/04/21, é este o montante a considerar relativamente aos menores BB e CC e não o inicialmente fixado.

Nestes termos, porque o incumprimento da prestação de alimentos se reporta àqueles que efectivamente foram fixados e homologados judicialmente, o montante em dívida relativamente aos menores BB e CC não é já de €200 mensais, mas sim de € 100,00 mensais (€ 50,00 para cada um), quantia a que acrescem os devidos e não pagos à menor DD, no montante de € 100,00 mensais.  

Assim sendo, impõe-se a rectificação da quantia em dívida, calculando-a da seguinte forma:

-meses de Novembro a Abril de 2017-€ 1200,00 (€ 200x6);

-meses de Abril de 2020 a Março de 2021 (já após a redução da clausula de alimentos) - € 2400 (€100+€50+€50 x12).

Por último, alega o recorrente que o tribunal desconsiderou o acordo extrajudicial celebrado pelos progenitores, em Junho de 2020, nos termos do qual os menores passariam a residir alternadamente com cada um dos progenitores.

b) da validade do acordo extrajudicial celebrado entre os progenitores.

A este respeito estatui o artº 988 do C.P.C., no seu nº1 e 42 do RGPTC que, tendo sido reguladas as responsabilidades parentais de filhos menores por decisão judicial, só pode ser alterado o decidido mediante nova decisão judicial, verificados os pressupostos exigidos por estes preceitos legais. No que à obrigação de alimentos respeita, esta só pode ser alterada se ocorrerem circunstâncias supervenientes relativas às necessidades dos menores ou à disponibilidade financeira dos seus progenitores.

Nesta medida, as obrigações que decorrem para os progenitores da regulação do exercício das responsabilidades parentais, vigoram nos seus precisos termos, até tal regulação ser judicialmente alterada.

Na verdade, conforme se refere em Ac. do TRE de 14/11/13[7], “mesmo que ambos os progenitores estejam de acordo quanto à alteração da regulação das responsabilidades parentais, designadamente no que concerne aos alimentos devidos ao filho, só uma nova decisão judicial poderia alterar o conteúdo das responsabilidades parentais que se encontravam determinadas por decisão judicial anteriormente proferida (cfr. artº. 1905º do Código Civil). Na verdade, o conteúdo do regime de exercício das responsabilidades parentais em relação à filha menor não está na livre disponibilidade dos progenitores. Sem dúvida que é importante - desde logo como garantia prévia do seu cumprimento - a adesão destes a uma solução tida por eficaz, mas esta só é homologada pelo Tribunal desde que salvaguarde os interesses da menor (artº. 177°, nº. 1 da OTM). Ora, é este interesse que se sobrepõe na definição do regime das responsabilidades parentais, se necessário com postergação de uma vontade comum dos seus progenitores.”

Com efeito, a necessidade de protecção dos interesses dos menores, impõe a necessidade de apreciação judicial e homologação de acordo extrajudicial celebrado entre os seus progenitores, não obstando sequer à necessidade desta homologação a inexistência de litígio, o que, no caso em apreço, conforme decorre do Apenso A. sequer ocorria, uma vez que tal acordo nunca foi posto em prática pelos progenitores, nem o recorrente o alega nestes autos.

Acresce que, a considerar a tese do recorrente, este acordo, apesar de nunca cumprido, sobrepor-se-ia de facto a uma decisão judicial, sem que ao mesmo tempo pudesse o progenitor não faltoso reagir por recurso aos meios coercivos para cumprimento, previstos no artº 41 do RGPTC.

Acresce ainda que, o artº 1906 do C.C. impõe expressamente que “Nos casos de divórcio, separação judicial de pessoas e bens, declaração de nulidade ou anulação de casamento, os alimentos devidos ao filho e a forma de os prestar são regulados por acordo dos pais, sujeito a homologaçãoe que esta é recusada se “o acordo não corresponder ao interesse do menor”.

Aliás, tendo o recorrente vindo requerer a homologação deste acordo no apenso A, o decidido quanto à regulação do poder parental não corresponde exactamente aos termos desse acordo extrajudicial, conforme resulta do aí decidido e da análise do teor do acordo junto aos autos com o requerimento inicial, nem este acordo foi sequer cumprido pelas partes, conforme resulta das alegações apresentadas nesses autos, pela ora requerente.

Nesta medida, não tem este acordo extrajudicial, ainda que autenticado (e a autenticação releva apenas para efeitos probatórios), a virtualidade de alteração da decisão judicial que regulou as responsabilidades parentais dos menores em causa, uma vez que “a jurisdição de menores está legalmente condicionada - por razões de ordem pública - a um controlo que transcende os eventuais acordos informais que os pais possam fazer em termos extrajudiciais: importa proteger aqui o superior interesse dos menores, libertando-o nomeadamente de constrangimentos afectivos que possam ainda estar presentes nas relações entre os pais: por isso impõe-se que se lance mão da alteração das responsabilidades parentais”.[8]

Por último, também se não pode retirar dos termos deste acordo alcançado entre os progenitores, uma renúncia aos alimentos vencidos, tal como o permite o artº 2008 do C.C., sendo que mesmo que deste constasse uma renúncia a alimentos vincendos, não seria tal renúncia válida por violadora da regra geral de irrenunciabilidade constante deste preceito.

O que o acordo extrajudicial previa era a guarda partilhada dos menores, sendo os alimentos devidos prestados pelos progenitores com quem os menores habitassem. Nada se consignou quanto aos vencidos.

 

c) Da existência de abuso de direito da requerente.

Alega ainda o recorrente que a recorrida acua em abuso de direito, na modalidade de supressio.

Desconsidera uma vez mais o requerente a natureza fundamental deste direito/obrigação a alimentos, que lhe torna inaplicável esta figura de abuso de direito, seja na modalidade de venire contra factum proprium seja na modalidade de supressio.

A este respeito, conforme refere MENEZES CORDEIRO[9], a supressio exige os seguintes requisitos: um não-exercício prolongado; uma situação de confiança, daí derivada; uma justificação para essa confiança; um investimento de confiança, e a imputação da confiança ao não-exercente. O que a distingue do venire contra factum proprium é a ausência de factum (conduta anterior), bastando o decurso de um período de tempo significativo suscetível de criar à contraparte a fundada expectativa de que o direito não mais será exercido. Assim, o comportamento reiteradamente omissivo da parte que poderia exercer o direito, seguido, ao fim de largo tempo, de um ato comissivo com que a contraparte legitimamente já não contava, constitui abuso de direito na modalidade da supressio.

Ora, o beneficiário e credor da prestação alimentar é o menor, embora seja o progenitor a quem foi confiada a sua guarda que goza de titularidade para intentar o presente incidente. Tal como refere Remédio Marques, o progenitor “age em substituição processual, parcial, representativa do menor». Age em nome próprio e, por isso, é parte processual.”[10]  

E, porque em causa estão os fundamentais e superiores interesses dos menores e não dos seus progenitores, não pode o progenitor obrigado a prestá-los, desonrar-se do seu cumprimento pelo facto de estes não lhe terem sido exigidos durante um determinado período de tempo.   

Conforme se refere em Ac. do TRG de 22/10/20[11]O crédito a alimentos é irrenunciável, incedível, não suscetível de compensação e impenhorável, pelo que não se crê como legítima, em tese, a expectativa do progenitor obrigado, ciente da sua obrigação de prestar alimentos, de não mais proceder ao pagamento, pelo simples facto de não ter sido exigido o cumprimento durante um lapso de tempo”.

Nesta medida procede parcialmente o recurso interposto, embora com outros fundamentos, impondo-se a rectificação da decisão proferida, fixando-se a quantia em dívida aos menores, a título de alimentos em € 3.600,00 a que acresce metade das despesas escolares não pagas pelo progenitor recorrente, no montante de € 108,20.

           


*

DECISÃO

Pelo exposto, acordam os Juízes que compõem a 3ª secção desta Relação em julgar parcialmente procedente a apelação, embora com fundamentos diversos do alegado e, em consequência:
A) condena-se o recorrente a pagar à recorrida, a título de prestação de alimentos aos menores em dívida até Março de 2021, a quantia de € 3.600,00, acrescido este valor de despesas escolares no montante de €108,20.
***
Custas pela apelante e pelo apelado na proporção do decaimento, sem prejuízo do apoio judiciário de que goza o apelante (artº 527 nº1 do C.P.C.).

                                                           Coimbra 08/03/22


[1] Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2013, pp. 84-85.
[2] Abrantes Geraldes, Op. Cit., p. 87.
Conforme se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7.7.2016, Gonçalves Rocha, 156/12, «Efetivamente, e como é entendimento pacífico e consolidado na doutrina e na Jurisprudência, não é lícito invocar nos recursos questões que não tenham sido objeto de apreciação da decisão recorrida, pois os recursos são meros meios de impugnação das decisões judiciais pelos quais se visa a sua reapreciação e consequente alteração e/ou revogação». No mesmo sentido, cf. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 4.10.2007, Simas Santos, 07P2433, de 9.4.2015, Silva Miguel, 353/13.

[3] De igual forma, a Convenção sobre os Direitos da Criança dispõe no n.º 2 do artigo 27.º, que compete primacialmente aos pais a responsabilidade de assegurar, dentro das suas possibilidades e disponibilidades económicas, as condições de vida necessárias ao desenvolvimento da criança; por sua vez, a Declaração dos Direitos da Criança, no seu Principio IV refere que deve a criança poder crescer e desenvolver-se de forma sã, devendo ser-lhe assegurado cuidados especiais, neles se incluindo o direito a alimentação, alojamento, recreio e cuidados médicos adequados.
[4] Maria Aurora Vieira de Oliveira, “Alimentos Devidos a Menores”, Dissertação apresentada à Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra no âmbito do 2.º Ciclo de Estudos em Direito (conducente ao grau de Mestre), na área de Ciências Jurídico-Forenses, Coimbra 2015
[5] Acórdão do T.R.P de 08/03/18, proferido no Proc. nº 419/17.8T8AVR.P1, disponível para consulta in www.dgsi.pt
[6] Ac. do TRC de 08/07/21, relator Vítor Amaral, proc. nº 1545/18.1T8FIG-J.C1.
[7] Proferido no Proc. nº 1271/07.7TBPTM-D.E1, relator Cristina Cerdeira, disponível in www.dgsi.pt
[8] Ac. do TRL de 10/12/15, relatora Maria Amélia Ribeiro, proferido no Proc. nº . No mesmo sentido vide ainda o Ac. do TRC de 17/05/2011, proferido no proc. nº. 76/10.2T6AVR-A, ambos disponíveis in www.dgsi.pt, o qual considerou  não ser válido acordo extrajudicial celebrado pelos progenitores, posterior a um acordo homologado judicialmente, por violação de procedimento formal necessário (artºs 1905º, 219º e 220º todos do Código Civil)
[9] Litigância de Má-Fé, Abuso de Direito de Acção e Culpa In Agendo, Almedina, página 58.
[10] REMÉDIO MARQUES, Algumas Notas Sobre Alimentos, Almedina, págs. 297 e 298.
[11] Proferido no Proc. nº 2216/19.7T8BCL.G1, relatora Maria da Conceição Sampaio, disponível in www.dgsi.pt