Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
303/20.8T8MGL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALBERTO RUÇO
Descritores: PROCESSO DE INVENTÁRIO
EXCESSO DE LICITAÇÃO
COMPOSIÇÃO DOS QUINHÕES
Data do Acordão: 03/14/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DE MANGUALDE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 929.º, 2 E 1116.º, DO CPC
ARTIGOS 1376.º E 1412.º, 1 E 2, DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: As normas constantes do artigo 1116.º (Oposição ao excesso de licitação) do Código de Processo Civil permitem que o licitante escolha uma única verba entre aquelas que licitou, mesmo que essa verba, ao contrário de outras, exceda largamente o seu quinhão.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra,

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Juiz relator…………....Alberto Augusto Vicente Ruço

1.º Juiz adjunto………José Vítor dos Santos Amaral

2.º Juiz adjunto……….Luís Filipe Dias Cravo


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(…)

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Recorrentes ………………………AA e esposa BB;

…………………………………….…CC e esposa DD;

………………………………………..EE e esposa FF; e

……………………………………….GG e esposa FF.

Recorrido…………………………..HH.

Todos melhor identificados nos autos.


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I. Relatório

a) O presente recurso insere-se num processo de inventário e vem interposto da sentença homologatória da partilha, mas visa o despacho «…datado de 06/Julho/2021, que deu origem ao mapa da partilha de fls. 615 a 618, (…) onde, entre o mais, se decidiu julgar parcialmente procedente a oposição ao excesso de licitação…»

As conclusões do recurso são as seguintes:

1ª) Em função de todos os factos supra alegados e da fase processual em que se encontra o presente inventário, na tramitação do instituto de oposição ao excesso de licitação, verifica-se que o Tribunal a quo fez uma incorrecta interpretação do regime preceituado no artº 1116º do CPC. É que,

2ª) O Tribunal “a quo” decidiu no sentido de permitir que o licitante em excesso possa exercer o direito de escolha sobre bens que excedem, em muito, o valor do seu quinhão, sustentando tal entendimento na necessidade de não se defraudar o direito de escolha daquele, contanto que manifestou expressamente interesse na adjudicação, em primeiro lugar, dos bens que licitou, ao contrário dos ora recorrentes.

3ª) Salvo o devido respeito, tal entendimento desvirtua em absoluto o espírito e ratio do instituto da oposição ao excesso de licitação. Com efeito,

4ª) A oposição ao excesso de licitação constitui um mecanismo de correcção dos efeitos do excesso de licitações, por forma a obter uma partilha igualitária e justa, com o possível equilíbrio entre os bens destinados a preencher cada um dos quinhões, visando assim prevenir o apossamento do acervo hereditário por parte do interessado que, em face da sua maior capacidade económica, licite em diversos bens. Logo,

5ª) Ilógico se revela que o sentido decisório vertido no despacho e na sentença recorridos seja o de proteger os interesses do licitante por excesso, não defraudando o direito de escolha daquele, contanto que manifestou expressamente interesse na adjudicação, em primeiro lugar, ao invés daqueles que, efectivamente por não terem meios económicos, não tiveram capacidade para licitar, o que se assume como o escopo essencial da norma em apreço.

6ª) Por outro lado, não colocam os recorrentes em crise o direito de escolha do licitante por excesso, desde que o exercício de tal direito seja manifestado à luz do disposto no artº 1116º, nº 2 do CPC, o que não foi respeitado na decisão recorrida. Com efeito,

7ª) Ao abrigo do disposto no artº 1116º, nº 2 do CPC concede-se ao licitante o direito de escolher, de entre todas as verbas ou lotes em que licitou, as suficientes para o preenchimento da quota que lhe cabe no património hereditário. Assim,

8ª) Só depois da reserva do direito da escolha deste credor é que o credor de tornas interessado na composição com bens licitados pode fazer a escolha das restantes, sendo que caso indique a sua preferência nos bens que pretende, tal indicação não vinculará o licitante em excesso. Não obstante,

9ª) Se é verdade que o direito de escolher recai, por força do preceituado no artº 1116º, nº 2 do CPC, sobre o licitante em excesso, não menos verdade é que tal direito não é um direito absoluto, porquanto se encontra limitado pelo mesmo preceito legal. Com efeito,

10ª) A lei condiciona duplamente o exercício do direito de escolha:

a) a escolha deve ser feita entre as verbas em que licitou e deve recair só nas verbas necessárias para compor o quinhão;

b) a escolha é presidida pelo princípio do justo equilíbrio das quotas.

11ª) O escopo legal do instituto de oposição ao excesso de licitação reside na atribuição ao licitante de verbas que preencham quantitativamente a sua quota, ou, não sendo possível – como raras vezes o será – as que com menos diferença a excedam.

12ª) Permite-se assim que o licitante escolha pela forma que a própria licitação lhe garantia mas com o limite da medida do seu quinhão, ou com escasso excesso dele, mas sempre por forma a que da escolha não resulte para os requerentes obrigação de tornarem por sua vez.

13ª) Em face das restrições ao direito de escolha do licitante por excesso mas também da garantia do justo equilíbrio das quotas, na ponderação dos direitos em conflito, o direito à escolha do licitante por excesso e o direito dos restantes herdeiros a bens em espécie, deve dar-se primazia a estes últimos, pois o sistema de preenchimento de quinhões está ordenado para satisfazer este direito e não permitir que alguns dos herdeiros sejam desapossados dos bens por não terem meios financeiros para os licitar. (v.g Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 22/Nov/2018, consultável em www.dgsi.pt). É que,

14ª) Tendo em conta os fins visados pela composição dos quinhões, não seria difícil aos herdeiros mais abonados fazer subir os valores das licitações, de modo a que os bens com efectivo valor material, ultrapassassem em valor o quinhão dos não licitantes, inibindo-os de aceder à composição da respectiva quota. (v.g Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 02/Junho/2009, consultável em www.dgsi.pt)

15ª) In casu, considerando o valor do quinhão do licitante por excesso, HH, € 3.551,89 e considerando os valores dos restantes bens por ele licitados:

- verba nº 1 - € 7.500,00,

- verba nº 3 - € 100,00;

- verba nº 4 - € 500,00;

- verba nº 5 - € 3.000,00; e

- verba nº 7 - € 700,00.

é por demais evidente que a escolha do cabeça de casal sobre a verba nº 2 a que se atribuiu o valor de € 12.500,00, excede em muito o valor do seu quinhão, existindo outros bens com valores que se aproximam do valor do seu quinhão, podendo, inclusivamente, licitar em mais do que um bem para preenchimento do valor do seu quinhão.

16ª) O preenchimento do quinhão do licitante por excesso com uma verba que tem um valor € 12.500,00, determina, em termos quantitativos, que o mesmo está escolher um bem de montante quase quatro vezes superior àquele que teria de preencher.

17ª) Com o preenchimento do quinhão do cabeça de casal nos termos determinados na decisão recorrida continua assim promover-se uma licitação excessiva e manifestamente desproporcional relativamente aos restantes interessados. É que,

18ª) A decisão recorrida constituiu os ora recorrentes, não licitantes, na obrigação de pagamento de tornas em cerca de € 2.900,00, o que contraria manifestamente o espírito correctivo e de promoção de igualação da partilha ínsito ao preceituado no artº 1116º do CPC.

Pelo que,

19ª) Ao invés, a proposta de adjudicações/partilha apresentada pelos recorrentes em 22/Abril/2021 (refª 4632658), não atinge ou excede o total preenchimento dos seus quinhões e o cabeça de casal procederia à devolução de apenas € 993,11, a título de tornas.

20ª) Esta proposta é, sem margem para dúvidas, aquela que resulta no maior equilíbrio dos lotes entre os interessados e que permitia o maior preenchimento do quinhão dos ora recorrentes com bens, sem exceder o respectivo montante ( - como é seu direito) .

21ª) Não obstante o grau de discricionariedade do Tribunal na escolha dos bens que preencherão o quinhão dos interessados, compete igualmente ao Tribunal que a todos os interessados sejam atribuídos bens com o maior equilíbrio entre os mesmos. Assim,

22ª) Mal andou o Tribunal a quo ao determinar o preenchimento do quinhão do interessado HH, licitante por excesso, com um bem que excede largamente o valor do quinhão, constituindo, aliás, o bem, de todos os licitados, com o valor mais elevado, determinando uma solução injusta, desequilibrada e desproporcional no preenchimento dos quinhões de todos os interessados. Pelo que,

23ª) A decisão recorrida viola flagrantemente a letra, o espírito e finalidades do regime da oposição ao excesso, designadamente o preceituado no artº 1116º, nº 2 do CPC.

Pelo exposto

e pelo mais que doutamente será suprido, deve conceder-se  provimento a este recurso e, revogando-se o douto despacho de 6/julho/2021 e, consequentemente, a douta sentença recorrida, substituindo-se por outro que determine uma partilha mais igualitária do acervo hereditário a partilhar, designadamente onde o cabeça da casal escolha um bem que não exceda o valor do seu quinhão hereditário (- ou que o exceda no mínimo possível) e onde não se verifique lugar ao pagamento de tornas ou estas sejam no mínimo possível, com o que esse Venerando Tribunal uma vez mais fará JUSTIÇA !»

b) O recorrido respondeu ao recurso e concluiu neste sentido:

«a) O requerimento de composição de quinhões apresentado pelos recorridos nos autos em 22.04.2021 (referência 4632658) reproduz integralmente o requerimento de composição de quinhões apresentado 01.06.2017 (fls. …).

Decorre do teor do acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, transitado em julgado, que na composição de quinhões a efetuar nos autos não tem que se ter em conta o requerimento de adjudicação de determinadas verbas apresentado pelos recorrentes.

O reiterar de pretensão dos recorrentes de adjudicação das verbas 2, 3, 4 e 7 é manifestamente infundado, consubstanciando violação de caso julgado – Artigos 621.º e 628.º do CPC.

Reiterando tal pretensão nas conclusões do presente recurso deverá ser este indeferido.

Sem prescindir, por mera cautela de patrocínio:

b) Ao recorrente AA não assiste o direito de requerer a composição do seu quinhão com bens que excedam as tornas de que é credor, ficando devedor de tornas, devendo ser indeferida a pretensão de composição do quinhão em bens dos recorrentes.

c) Tendo os recorrentes AA, CC, EE e GG em conjunto requerido a adjudicação de verbas, na proporção de 1/4 para cada um, excedendo a pretendida adjudicação o quinhão do interessado AA, deve ser indeferida a pretensão de todos os recorrentes de adjudicação de verbas por não poder ser alterada ou considerada parcialmente tal proposta.

d) A adjudicação da verba 2 ao recorrido é a que permite em simultâneo respeitar o seu direito de escolha, previsto no art.º 1116.º n.º 2 CC, e o direito de composição do quinhão dos licitantes/recorrentes e a composição mais adequada possível de quinhões não licitantes – Artigo 1117.º CPC.»

II. Objeto do recurso.

A questão colocada pelo recurso consiste em verificar se a decisão que definiu a composição dos quinhões viola flagrantemente a letra, o espírito e finalidades do regime previsto no n.º 2 do artigo 1116.º, do CPC, dado que, no entendimento dos recorrentes, o quinhão do cabeça da casal deve ser preenchido com um bem que não exceda o valor do seu quinhão hereditário (ou que o exceda no mínimo possível) e não deve haver lugar ao pagamento de tornas ou, não sendo isso viável, serem estas no montante mínimo possível.

III. Fundamentação

a) Factualidade processual

1. Os interessados no inventário e respetivas quotas são os seguintes:

(I) HH…………………………………….3.551,89€

(II) CC……………………………………..4.735,85€

(III) EE…………………………....4.735,85€

(IV) GG…………………………...4.735,85€

(V) II…………………….……3.551,89€

(VI) AA………………………………….3.551,89€

(VII) JJ……………………………………3.551,89€

2. Bens da Herança:

Direitos de crédito (relativos às verbas 1 e 2 do ativo)..........3.598,10 €

Verba nº. 1 (um - imóvel)........................................................7.500,00 €

Verba nº. 2 (dois- imóvel).....................................................12.500,00 €

Verba nº. 3 (três - imóvel)..........................................................100,00 €

Verba nº. 4 (quatro - imóvel).....................................................500,00 €

Verba nº. 5 (cinco - imóvel)....................................................3.000,00 €

Verba nº. 6 (seis - imóvel).........................................................700,00 €

Verba nº. 7 (sete - imóvel).........................................................700,00 €

Total do Activo.......................................................................28.598.10€

Passivo Reconhecido.............................................................. - 183,00€

Valor Líquido da Herança…………………………………..…..28.415,10€

3. O interessado HH licitou os seguintes bens, pelos seguintes valores:

Verba nº. 1 (um - imóvel)........................................................7.500,00 €

Verba nº. 2 (dois- imóvel).....................................................12.500,00 €

Verba nº. 3 (três - imóvel)..........................................................100,00 €

Verba nº. 4 (quatro - imóvel).....................................................500,00 €

Verba nº. 5 (cinco - imóvel)....................................................3.000,00 €

Verba nº. 7 (sete - imóvel).........................................................700,00 €

4. O interessado CC licitou a verba n.º 6 pelo valor de  700,00€.

5. No âmbito dos autos, em 15.10.2019, foi proferido acórdão pelo Tribunal da Relação de Coimbra, transitado em julgado, o qual determinou o seguinte:

«Face ao exposto, acorda-se em julgar procedente o recurso interposto, revogando-se o despacho de 30/05/2017 e bem assim a subsequente sentença homologatória da partilha, com vista a dar-se cumprimento ao disposto no nº 4 do artº 61º do RJPI, isto é, para que o notário decida por forma a conseguir o maior  equilíbrio dos lotes, podendo mandar proceder a sorteio ou autorizar a adjudicação em comum na proporção que indicar, não tendo que ter em conta o requerimento de adjudicação de determinadas verbas apresentado pelos Recorrentes.»

6. O requerimento dos recorrentes datado de 19.05.2017 (fls. …) que o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra determinou não fosse tido em conta tem o seguinte teor:

a) Ao abrigo do disposto no artº 61º, nº 2 do RJPI, a composição do quinhão dos ora requerentes;

b) Pelo exposto anteriormente e em conformidade com o estatuído no artº 61º nº 2 do RJPI, que sejam adjudicadas em comum e partes iguais indivisas aos ora requerentes as verbas nºs 2, 3, 4 e 7 pelos valores por que foram licitadas pelo interessado HH.”

7 - Em 13.05.2021, foi proferido o seguinte despacho:

«Ora, em face do supra exposto, óbvia é a conclusão de que todo o processado anterior já transitou em julgado, vinculando as partes, pelo que, por ora, importa exclusivamente dar cumprimento ao decido no douto Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, e por ser compatível com o previsto no n.º 1 do art. 1116.º, em face do disposto no n.º 1 do art. 11.º, ambos do Código de Processo Civil, determino a notificação de HH para, no prazo de 10 dias, escolher, de entre todas as verbas em que licitou, as suficientes para o preenchimento da quota que lhe cabe no património hereditário, nos termos do n.º 2 do inciso.»

8. Na sequência deste despacho os recorridos apresentaram em 22.04.2021 (4632658), requerimento de composição de quinhões, com o seguinte teor:

“- REQUER-SE

a) Ao abrigo do disposto no artº 61º, nº 2 do RJPI, a composição do quinhão dos ora requerentes;

b) Pelo exposto anteriormente e em conformidade com o estatuído na supra citª norma, que sejam adjudicadas em comum e na proporção dos seus quinhões, aos ora requerentes as verbas nºs 2, 3, 4 e 7 pelos valores por que foram licitadas pelo interessado.»

9. Na sequência do mesmo despacho o recorrido apresentou requerimento nos autos em 28.05.2021 (referência 4706787), em que requereu que o seu quinhão fosse composto com a verba n.º 2, no valor de €12.500,00.

6.  No despacho recorrido de 06.07.2021, foi decidido o seguinte:

“Conforme supra se aludiu, embora os interessados tenham indicado as verbas 2, 3, 4 e 7 para o preenchimento em comum e na proporção do seu quinhão hereditário, o certo é que, é imprescindível atender à escolha feita pelo licitante, não podendo este ser defraudado do seu direito, contando que manifestou expressamente interesse na adjudicação, em primeiro lugar, dos bens que licitou, ao contrário destes.

Por tal motivo, e porque a escolha do licitante, também cabeça de casal, recaiu sobre a verba 2, a que atribuiu o valor de €12.500,00, em detrimento dos demais bens que licitou, ainda que seja superior ao valor do quinhão (€3.551,89), o mesmo deve ser admitido.

Pois, refira-se que o abuso do direito, enquanto exceção perentória imprópria de conhecimento oficioso, está legalmente previsto em termos de ser ilegítimo o exercício de um direito quando o seu titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito, em conformidade com o disposto no art. 334.º do Código Civil.

Rege este normativo as situações concretas em que é manifesta e exorbitante a contrariedade entre o resultado prático da aplicação do direito subjetivo exercitado e os princípios a que aquele normativo se reporta, pensados para uma comunidade de cidadãos em convivência solidária.

Nesta senda, conforme acima se referiu, o direito de composição dos quinhões dos não licitantes, aqui requerentes, não se mostra afetado em função da escolha pelo licitante, já que, em face do valor (€14.793,11) o seu quinhão poderá ser preenchido com as restantes verbas, designadamente a verba 1, a que foi atribuído o valor de €7.500,00, a verba 3, a que foi atribuído o valor de €100,00; a verba 4, a que foi atribuído o valor de €500,00; a verba 5, a que foi atribuído o valor de €3.000,00; e a verba 7 a que foi atribuído o valor de €700,00, pois que totalizam o montante de €11.800,00.

Pelo que, em comum e na proporção do seu quinhão individual, determina-se a adjudicação, das verbas 1, 3, 4, 5 e 7, pelos valores que foram licitados, cabendo ainda a estes a entrega de tornas, a determinar oportunamente em sede de mapa de partilha.

Em face do supra exposto, decido julgar parcialmente procedente a oposição ao excesso de licitação e, em consequência:

a) Determino o preenchimento do quinhão hereditário do interessado HH, com a verba 2, pelo valor de 12.500,00, devendo este proceder à entrega de tornas correspondentes;

b) Determino o preenchimento dos quinhões hereditários dos interessados AA, CC, EE e GG, em comum e na proporção dos seus quinhões, das verbas 1, 3, 4, 5 e 7, pelo valor total de €11.800,00, cabendo a estes a entrega de tornas, em proporção do seu preenchimento.”

c) Apreciação da questão objeto do recurso

Apesar de não existir controvérsia nos autos sobre a matéria, antes de iniciar a apreciação da questão colocada pelo recurso cumpre referir que não conta da «Conferência Preparatória» realizada no Cartório Notarial, no dia 6 de janeiro de 2017, qualquer ato de licitação.

O que consta é o seguinte:

«Foi deliberado por maioria de dois terços dos titulares á herança o Seguinte:

(…)

b) Que fazem as seguintes adjudicações:

Ao interessado HH os bens das verbas Um (no valor atribuído de sete mil e quinhentos euros), Dois (no valor atribuído de doze mil e quinhentos euros), Três (no valor atribuído de cem euros), Quatro (no valor atribuído de quinhentos euros), Cinco (no valor atribuído de três mil euros) e Sete (no valor atribuído de setecentos euros), no valor global de 24.300,00 € (vinte e quatro mil e trezentos euros).

Ao interessado CC o bem da verba 6 (no valor atribuído de setecentos euros), no valor global atribuído de 700,00€ (setecentos euros).

Os direitos de crédito…»

Porém, como todos os interessados falam em licitações tal significa que existiram, mas não foram retratadas na ata, ficando a constar apenas o resultado nos termos acabados de transcrever.

Seguidamente na fase notarial foi dado cumprimento ao disposto no artigo 61.º do Regime Jurídico do Processo de Inventário (Lei n.º 23/2013, de 05 de março), que pressupõe precisamente a composição de quinhões na sequência das licitações.

E isto mesmo foi entendido e determinado pelo acórdão desta Relação de 15.10.2019, que ordenou o cumprimento do disposto no nº 4 do artigo 61.º do Regime Jurídico do Processo de Inventário, isto é, «…para que o notário decida por forma a conseguir o maior equilíbrio dos lotes, podendo mandar proceder a sorteio ou autorizar a adjudicação em comum na proporção que indicar, não tendo que ter em conta o requerimento de adjudicação de determinadas verbas apresentado pelos Recorrentes.»

Concluindo: a questão colocada pelo recurso visa a composição dos quinhões na sequência das licitações.

Vejamos então.


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Desde já se adianta que não assiste razão aos recorrentes, ou seja, o recorrido tem direito a escolher qualquer bem entre aqueles que licitou, mesmo que o bem escolhido seja o mais valioso e implique, por isso, pagar tornas mais avultadas aos interessados credores de tornas.

As razões são as seguintes:

1 – O atual artigo 1116.º (Oposição ao excesso de licitação) do Código de Processo Civil, tem a seguinte redação:

«1 - Se algum dos interessados licitar numa pluralidade de verbas ou lotes cujo valor, no seu conjunto, ultrapasse o necessário para o preenchimento da sua quota, pode qualquer dos outros interessados opor-se ao excesso, requerendo que as verbas em excesso ou algumas delas lhe sejam adjudicadas pelo valor resultante da licitação, até ao limite do seu quinhão.

2 - Cabe ao licitante escolher, de entre todas as verbas ou lotes em que licitou, as suficientes para o preenchimento da quota que lhe cabe no património hereditário.

3 - Se o requerimento for feito por mais de um interessado e se não houver acordo entre eles sobre a adjudicação, o juiz decide, por forma a conseguir o maior equilíbrio dos lotes, podendo abrir licitações entre esses interessados ou mandar proceder a sorteio.»

Esta redação consagra soluções idênticas às constantes do anterior Código de Processo Civil (Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12 de dezembro), em cujo artigo 1377.º (Opções concedidas aos interessados) se dizia o seguinte:

«1- Os interessados a quem hajam de caber tornas são notificados para requerer a composição dos seus quinhões ou reclamar o pagamento das tornas.

2 - Se algum interessado tiver licitado em mais verbas do que as necessárias para preencher a sua quota, a qualquer dos notificados é permitido requerer que as verbas em excesso ou algumas lhe sejam adjudicadas pelo valor resultante da licitação, até ao limite do seu quinhão.

3 - O licitante pode escolher, de entre as verbas em que licitou, as necessárias para preencher a sua quota, e será notificado para exercer esse direito, nos termos aplicáveis do n.º 2 do artigo anterior.

4 - Sendo o requerimento feito por mais de um interessado e não havendo acordo entre eles sobre a adjudicação, decide o juiz, por forma a conseguir o maior equilíbrio dos lotes, podendo mandar proceder a sorteio ou autorizar a adjudicação em comum na proporção que indicar.»

Resulta destes normativos que havendo licitações e tendo um licitante licitado em mais bens que os necessários para compor o seu quinhão, daí não se segue que lhe sejam adjudicados todos esses bens, podendo os não licitantes requerer que os seus quinhões sejam preenchidos com bens licitados em excesso.

Para alcançar esta finalidade, o não licitante há de manifestar vontade nesse sentido, requerendo a composição do seu quinhão com bens licitados em excesso.

Mas como o licitante tem direito a escolher os bens, entende-se que os não licitantes não podem no seu requerimento fazer referência a bens concretos, pois podem indicar um bem que depois o licitante vai escolher ou então, se tal escolha for feita em bens individualizados dever-se-á entender que esta escolha não é oponível ao licitante [ Neste sentido, entre outros, o acórdão do TRC de 12 de abril de 2005 (Ferreira de Barros), no processo n.º 680/05: «1. O interessado a quem haja de caber tornas deverá requerer a composição do seu quinhão em abstracto, sem concretizar bens, mas nada obsta a que, logo no seu requerimento, indique a verba ou verbas que desejaria para preenchimento do seu quinhão, e apenas até ao limite do seu quinhão, mas tal indicação não vincula o devedor de tornas.

2. É ao interessado que haja licitado bens excedendo a sua quota que cabe escolher, de entre as verbas que licitou, as necessárias para preencher a sua quota (…)» (Sumário) – consultável em www.dgsi.pt].

2. A letra do n.º 1 do artigo 1116.º ao dizer «Se algum dos interessados licitar numa pluralidade de verbas ou lotes cujo valor …», mostra que caso o licitante licite apenas uma só verba, ainda que o valor seja muito superior ao seu quinhão, os outros interessados não podem «opor-se ao excesso», requerendo que as verbas em excesso lhes sejam adjudicadas.

Neste caso, não há licitação «numa pluralidade de «verbas ou lotes» em excesso, como se diz no referido artigo, porque só foi licitada uma verba.

Ora, esta situação é materialmente idêntica à dos autos, pois o licitante recorrido ao escolher apenas uma única verba, a verba 2, para preencher o seu quinhão, fica numa situação igual aquela em que estaria se tivesse licitado apenas na verba 2.

Por conseguinte, para situações iguais, soluções iguais.

3. Os recorrentes reconhecem na conclusão 6.ª o seguinte:

«… não colocam os recorrentes em crise o direito de escolha do licitante por excesso, desde que o exercício de tal direito seja manifestado à luz do disposto no artº 1116º, nº 2 do CPC, …»

Se não colocam em causa o direito de escolha, então devem aceitar o resultado dessa escolha, pois a única restrição ao direito de escolha do licitante que é feita nesta norma (artigo 1116.º - Oposição ao excesso de licitação - do Código de Processo Civil) é a da suficiência, no sentido de que preenchido o quinhão com duas ou três verbas, o licitante não pode escolher, respetivamente, uma terceira ou quarta verbas porque o seu quinhão já está preenchido.

Por outras palavras, a lei não obriga o licitante a escolher as verbas que impliquem o pagamento do menor volume de tornas.

Se a lei pretendesse isso, teria dito algo como: «O licitante deve escolher as verbas licitadas que impliquem pagar menos tornas».

Mas não diz isso, a lei concede ao licitante, em homenagem ao facto de ter sido ele a valorizar os bens, o direito de escolher os bens que hão de preencher o seu quinhão, muito embora só venha a adquiri o respetivo direito de propriedade com a sentença sobre a partilha [Nas palavras de Capelo de Sousa, trata-se de um direito: «O licitante adquire pela licitação um direito à adjudicação, que aliás não é absoluto…» - Lições de Direito das Sucessões, Vol. II. Coimbra, 1980, pág. 251. Neste sentido, no âmbito das versões anteriores do processo civil, Manuel Flamino dos Santos Martins. Processo Sucessórios, Vol. II, Edição de Autor, 1951, pág. 231].

Se se der o caso de um só bem preencher o quinhão, mesmo que o exceda largamente o quinhão, o que não sucederia se tivesse escolhido outra verba ou verbas, nem por isso lhe será negada essa escolha e respetivo efeito jurídico.

Se não fosse assim, não se respeitaria o direito de escolha do licitante.

Com efeito, se a escolha de um certo bem (mais valioso) lhe fosse negada, isso implicava excluí-lo em abstrato e sem fundamento material da possibilidade de adquirir bens certos e determinados da herança, apenas pela simples razão de ter licitado, o que seria ainda mais arbitrário se tivesse licitado apenas num único bem.

Ora, nos casos em que é licitado um único bem não se pode colocar em dúvida a adjudicação desse bem ao licitante.

 Neste sentido Lopes Cardoso, dando notícia genérica de decisões jurisprudenciais, quando diz «Mais se decidiu que o licitante poderá escolher, de entre as verbas que licitou, uma única que tenha valor superior ao do seu quinhão, pois fica em situação equivalente à do licitante numa única verba» - Partilhas Judiciais, Vol. II. 4.ª Edição. Coimbra, 1990, pág. 425.

Também no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 28 de junho de 1988, in Colectânea de Jurisprudência, Ano XIII, Tomo III, pág. 96, se sustentou o mesmo:

«Na verdade, se a verba é só uma, se sobre ela incidiu a licitação do devedor de tornas, este só pode escolher aquela mesma e mais nenhuma. Ora, sendo assim, se a escolha se reduz à unidade e não restam por definição, outras verbas sobre que tenha incidido a licitação, que os credores de tornas possam optar, tem-se como solução única a de que, neste caso, aos credores apenas resta receber as próprias tornas, sem possibilidade de poder requerer a opção de quinhões. O que equivale a dizer, que o dispositivo do artigo 1377.º não tem aplicação neste caso concreto.»

Ora, não se vê que ocorra qualquer diferença material entre os casos em que o licitante licitou apenas uma verba e aqueles em que tendo licitado em várias, escolhe depois apenas uma verba com a qual preenche o seu quinhão.

Se a escolha exceder em muito ou em pouco o quinhão, isso não assume relevo porque se trata de uma só verba.

Pela mesma razão, porque o licitante tem direito de escolher qualquer uma das verbas, também não pode ser obrigado a preencher o seu quinhão com outra das verbas licitadas que exceda o seu quinhão em menor grau.

Se esta fosse a regra, estaria claramente indicada na lei e não está, pois, se estivesse, o licitante limitava-se a licitar apenas uma das verbas, aquela que mais lhe interessasse.

Sucede que esta solução legislativa não está na lei porque é contrária à finalidade das licitações, que consiste em atribuir aos bens, a todos eles, o seu justo valor, pois inibiria os interessados de licitar em mais que uma verba, promovendo-se afinal uma postura de não licitação.

Concluindo, o licitante pode escolher uma só verba entre as licitadas, qualquer uma, para preencher o seu quinhão, desde que o exceda.

4. Cumpre ainda referir que o nosso sistema de direito civil promove a concentração da propriedade num só titular.

Com efeito, resulta do n.º 1 do artigo 1412.º do Código Civil, «Nenhum dos comproprietários é obrigado a permanecer na indivisão, salvo quando se houver convencionado que a coisa se conserve indivisa». Neste caso, «O prazo fixado para a indivisão da coisa não excederá cinco anos; mas é lícito renovar este prazo, uma ou mais vezes, por nova convenção» - n.º 2 do mesmo artigo.

No caso dos autos, qualquer atribuição da verba n.º 2 a um dos herdeiros excederia em muito o seu quinhão, pelo que estariam todos em igualdade de circunstâncias, sendo o critério da licitação o adequado para decidir a favor de um deles, neste caso do licitante.

Se se atribuísse a verba n.º 2 a vários herdeiros, em compropriedade, qualquer um deles podia mais tarde pedir o fim da compropriedade, como resulta do n.º 1 do artigo 1412.º do Código Civil.

Sendo a verba n.º 2 uma terra de regadio e pastagem, com 0,626700 hectares (artigo matricial ..., da freguesia ..., concelho ...), é indivisível face à unidade de cultura estabelecida pela Portaria n.º 219/2016, de 9 de agosto, que é de 4 hectares para as regiões da «Beira Baixa», «Beiras e Serra da Estrela» e ao disposto no artigo 1376.º do Código Civil.

Neste caso, sendo a coisa indivisível, como é, quando algum dos interessados quisesse, a propriedade reverteria apenas para uma só pessoa, ou um dos interessados ou um terceiro, como resulta do disposto no n.º 2 do n.º 2 do artigo 929.º do Código de Processo Civil, onde se prevê que «Sendo a coisa indivisível, a conferência tem em vista o acordo dos interessados na respetiva adjudicação a algum ou a alguns deles, preenchendo-se em dinheiro as quotas dos restantes. Na falta de acordo sobre a adjudicação, é a coisa vendida, podendo os consortes concorrer à venda.»

Quer com isto dizer-se que a opção do legislador no sentido de atribuir a um dos interessados a titularidade de um bem por ele licitado, que excede em muito o seu quinhão, está de acordo ou, pelo menos, não contradiz os valores que estruturam o direito civil português.

5. Concluindo, o disposto no artigo 1116.º do Código de Processo Civil, permite que o licitante escolha uma única verba entre aquelas que licitou, mesmo que essa verba, ao contrário de outras, exceda largamente o seu quinhão.

O que fica dito harmoniza-se com aquilo que é afirmado pelos recorrentes quando dizem nas conclusões 4.ª  e 5.ª que « A oposição ao excesso de licitação constitui um mecanismo de correcção dos efeitos do excesso de licitações, por forma a obter uma partilha igualitária e justa, com o possível equilíbrio entre os bens destinados a preencher cada um dos quinhões, visando assim prevenir o apossamento do acervo hereditário por parte do interessado que, em face da sua maior capacidade económica, licite em diversos bens.», «…ao invés daqueles que, efectivamente por não terem meios económicos, não tiveram capacidade para licitar, o que se assume como o escopo essencial da norma em apreço.»

Bem se vê que não sendo adjudicados ao recorrido, como não são, todos os bens em que licitou, isso permite que os restantes bens não escolhidos pelo licitante, componham os outros quinhões.


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Face ao exposto, verifica-se que a decisão recorrida não padece da incorreção apontada pelos recorrentes, pelo que improcede o recurso.

IV. Decisão

Considerando o exposto, julga-se o recurso improcedente e mantém-se a decisão recorrida. Custas pelos recorrentes.


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Coimbra, 14 de março de 2023