Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
255/09.5TAVIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JOSÉ EDUARDO MARTINS
Descritores: DISPENSA DE PENA
Data do Acordão: 06/29/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE VISEU - 1º JUÍZO CRIMINAL
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART.º 22º, N.º 1, AL. B), DO R.G.I.T.
Sumário: Para que se verifique o pressuposto da dispensa de pena previsto na al. b), do n.º 1, do art.º 22º, do Regime Geral das Infracções Tributárias (R.G.I.T.), exige-se uma reposição (já concretizada), não sendo bastante, para o efeito, um acordo de pagamento a ser efectuado no futuro.
Decisão Texto Integral: I. RELATÓRIO:   
No âmbito do processo comum (tribunal singular) n.º 255/09.5TAVIS que corre termos no Tribunal Judicial de Viseu, 1.º Juízo Criminal, a fim de serem julgados em processo comum, com intervenção do tribunal singular, o Ministério Público acusou:                                 SC..., casado, motorista, residente no …, Viseu;                    
VF..., casado, industrial, residente na Rua …, Viseu;                                                                                  “XXX.... Limitada, pessoa colectiva n.º …, com sede na Rua …, Viseu,                                                     imputando a prática, aos arguidos SC...e VF…, de um crime continuado de abuso de confiança contra a Segurança Social, p. p. pelos art.ºs 30.º, n.º 2, do Código Penal, e 105.º, n.º 1, e 107.º, n.º 1, do Regime Geral das Infracções Tributárias (Lei n.º 15/2001, de 05 de Junho) – RGIT –; e, à sociedade arguida, a prática de um crime continuado de abuso de confiança contra a Segurança Social, p. p. pelos art.ºs 30.°, n.º 2, do Código Penal, e 7.º, n.º 1, 105.º, n.º 1, e 107.°, n.º 1, do RGIT, nos termos constantes da acusação deduzida nos autos, que aqui se dá por reproduzida.                                                                                               O “Instituto da Segurança Social, I.P., Centro Distrital de Viseu” deduziu pedidos de indemnização civil contra os arguidos, pedindo a condenação solidária destes no pagamento da quantia de € 16.436,84, esta relativa a cotizações pagas aos seus trabalhadores e gerentes, sendo € 12.881,49 de cotizações propriamente ditas e € 3.555,35 relativos a juros vencidos até 11.02.2010, quantia essa acrescida de juros vencidos desde então e vincendos até integral e efectivo pagamento.                                                                                                                               Já no decurso do julgamento, veio o demandante informar nos autos, e assim se documentou, que, no âmbito dos processos de execução fiscal onde a quantia pedida nestes autos é, também, quantia exequenda, foi celebrado acordo para pagamento em prestações com o arguido VF..., pedindo, por via disso a extinção da instância cível por inutilidade superveniente da lide, o que veio a ser declarado na sentença de fls. 335 a 349, prosseguindo os autos apenas para apreciação da responsabilidade penal.
*

Na sequência disso, efectuada que foi a audiência de julgamento, em 7/1/2011, foi proferida sentença, cujo Dispositivo é o seguinte:

“1. Condenar o arguido VF..., pela prática de um crime de abuso de confiança em relação à Segurança Social, na forma continuada, p. e p. pelo artigo 107.º do RGIT, na pena de 250 (duzentos e cinquenta) dias de multa, no quantitativo diário de € 10,00 (dez euros), perfazendo o montante global de € 2.500,00 (dois mil e quinhentos euros).

2. Condenar a sociedade arguida XXX... Limitada, como responsável penal pelo crime de abuso de confiança em relação à Segurança Social, na forma continuada, p. e p. pelo artigo 107.º do RGIT, na pena de 350 (trezentos e cinquenta) dias de multa, no quantitativo diário de € 5,00 (cinco euros), perfazendo o montante global de € 1.750,00 (mil setecentos e cinquenta euros).

3. (…)

Mais decido julgar parcialmente improcedente a acusação e, em consequência:

4. Absolver o arguido SC... da prática do crime de abuso de confiança em relação à Segurança Social, na forma continuada, p. e p. pelo artigo 107.º do RGIT, de que vinha acusado.”

(…)”

                                                                    ****

Inconformado com a decisão, dela veio interpor recurso o arguido VF..., em 10/2/2011, defendendo a revogação da sentença recorrida, e sua substituição por outra decisão que o absolva, por extinção do procedimento criminal, ou, caso assim não suceda, que reduza ao mínimo legal a pena de multa que lhe foi aplicada, ou, até mesmo, que o dispense de pena, extraindo da sua motivação as seguintes Conclusões:                                            1. Considerando os elementos constantes do processo, muitos deles, até, relevados na douta sentença e outros resultantes da apreciação da prova gravada e produzida em julgamento, deve a douta sentença ser revogada e substituída por outra decisão que absolva o recorrente da prática do crime de que vinha acusado, ou reduza o montante da pena de multa aplicada, ou, até mesmo, que dispense o recorrente de uma pena.

2. O Tribunal a quo considerou, e bem, como provado, no ponto 10 do quarto parágrafo da sentença recorrida que «no âmbito do processo de execução fiscal onde a quantia em dívida a título de cotizações nestes autos é também quantia exequenda, e na sequência da reversão nos termos do artigo 160.º do CPPT contra o arguido VF..., foi celebrado acordo entre este e a Segurança Social para pagamento da mesma em prestações».

3. Todavia, o Tribunal a quo olvida na sentença recorrida que tal acordo, celebrado entre o arguido VF... e a Segurança Social, foi-o com a garantia do imóvel inscrito na matriz predial urbana sob o artigo …, Viseu, facto que resulta a fls. dos presentes autos.

4. Deveria, pois, ter sido dado como provada a prestação de garantia pelo recorrente, para cumprimento do referido acordo de pagamento da dívida em prestações, facto que não deixa de ser da maior relevância, no que às finalidades preventivas especiais da punição diz respeito e que, no caso concreto, se possam fazer sentir, já que poderia, a nosso ver, ter servido como circunstância excludente da pena.

5. No mais considerou, ainda, o Tribunal a quo, nos pontos 23 e 24 do sexto parágrafo da sentença recorrida que «quanto à situação pessoal do arguido VF..., prova-se que (…)23. Vive numa casa, há cerca de 15 anos a esta parte, casa essa registada em nome do filho, o arguido VF..., seu único filho. 24. O arguido VF... é dono, não obstante, de outras casas. (…)»;

6. Deve corrigir-se o ponto 23 do sexto parágrafo da sentença recorrida, pois, onde se lê «casa essa registada em nome do filho, o arguido VF..., seu único filho», deve ler-se “casa essa registada em nome do filho, o arguido SC..., seu único filho”.

7. Quanto ao ponto 24, do sexto parágrafo da sentença recorrida, verifica-se ter incorrido em erro o Tribunal a quo, ao dar como provado que «o arguido VF... é dono, não obstante, de outras casas», pois o que resulta das suas declarações é que morou em outras casas e não que é dono de outras casas, pelo que se impõe a sua correcção.

8. Foi, também, considerado como provado pelo Tribunal a quo, no ponto 6 do quarto parágrafo da sentença recorrida que «as cotizações retidas nas remunerações efectivamente pagas dizem respeito ao período de Fevereiro de 2007 a Agosto de 2008 e totalizam o montante global de quinze mil cinquenta e nove euros e sessenta e oito cêntimos».

9. Resulta da certidão de dívida que integra o pedido de indemnização civil deduzido pela Segurança Social, a fls., que o montante das cotizações mensais retidas é inferior a sete mil e quinhentos euros, valor mínimo do qual depende a relevância penal do facto.

10. “Coma Lei 64-A/2008, de 31-12, foi dada nova redacção ao n.º 1 do artigo 105.º do RGIT, introduzindo-se a locução “de valor superior a € 7500”, com o que o legislador criou um novo elemento objectivo do tipo, eliminando o número de infracções criminais de abuso de confiança fiscal as condutas omissivas traduzidas na não entrega de prestações tributárias deduzidas desde que o respectivo montante seja igual ou inferior àquele valor, passando a configurar o crime em questão apenas as condutas “desviantes” de prestações de valor superior àquele quantitativo; o limite mínimo constitutivo do crime passou assim a ser substanciado por “descaminho” de prestação tributária de valor superior a € 7500; V – Só fará sentido considerar a descriminalização, desde que se acolha a tese da relevância, nesta sede, dos valores individualizados de cada prestação que é o critério legal constante do n.º 7 do artigo 105.º do RGIT, sendo que a consideração de crime continuado ou de um único crime não afasta esse dispositivo; a regra da relevância do valor de cada declaração consta de forma directa nos artigos 103.º, n.º 3 e 105.º, n.º 7, este reproduzindo ipsis verbis, e por remissão, o n.º 7 do artigo 105.º, é aplicável aos crimes de fraude e abuso de confiança contra a segurança social – artigos 106.º, n.º 2 e 107.º, n.º 2. Significa isto que prevalecerá a norma do n.º 7 do artigo 105.º e sendo assim ter-se-ão em conta os valores individuais de cada declaração. XXXVI – Neste sentido, o artigo 107.º contém uma norma em branco, sendo preenchido em aspectos normativos em função da remissão para o artigo 105.º que tipifica o crime congénere, com a mesma matriz, de abuso de confiança fiscal. XXXVII – Essa dependência do tipo do artigo 107 só pode significar que a sua completude apenas será atingida se reportada a todos os seus elementos normativos do “tipo integrador”, incluindo os valores mínimos determinativos da qualificação – o que já era – e agora da própria incriminação (cfr. Ac. STJ, de 04-02-2010, dgsi.pt).

11. Nesta matéria, perfilhamos o entendimento do Conselheiro Santos Cabral, aderindo aos fundamentos apresentados no seu voto de vencido ao Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.º 8/2010, DR 186, Série II, de 2010-09-23, que fixou jurisprudência no sentido de que a exigência do montante mínimo de € 7500, de que o n.º 1 do artigo 105º do RGIT (…) faz depender o preenchimento do tipo legal de crime de abuso de confiança fiscal não tem lugar em relação ao crime de abuso de confiança contra a segurança social previsto no artigo 107 n.º 1 do mesmo diploma.

12. Somos da opinião de que o propósito de harmonização entre as duas previsões (artigos 105º e 107 do RGIT) se acha bem patente com a construção de um novo tipo contra-ordenacional, previsto no Código do Regime Contributivo Previdencial para a Segurança Social, constante da Lei n.º 11/2009, de 19 de Setembro, o qual refere no artigo 42.º que «sem prejuízo do disposto no RGIT, a violação do disposto nos n.ºs 1 e 2 constitui contra-ordenação leve quando seja cumprida nos 30 dias subsequentes ao termo do prazo e constitui contra-ordenação grave nas demais situações».

13. A qualificação de um facto como contra-ordenação significa eo ipse a denegação da dignidade penal e da carência da tutela penal; dignidade e carência que não podem atribuir-se com a outra mão, ao elevar o mesmo facto ao estatuto e ao regime de ilícito criminal (Declaração de voto do Sr. Conselheiro Santos Cabral, AUJ n.º 8/2010).

14. A grande consequência a retirar da entrada em vigor do Código do Regime Contributivo Previdencial para a Segurança Social traduzir-se-á numa rápida desactualização da jurisprudência ora fixada, na medida em que pode acarretar a sobredita inconstitucionalidade material de uma posição que pugna por uma idêntica e simultânea qualificação da mesma conduta como crime e contra-ordenação.

15. No essencial, e comungando das razões apresentadas pelo Conselheiro Santos Cabral, deve entender-se que «a discrepância entre os textos legais deriva de uma clara inépcia legislativa de um feitor de lei que – a reparar na existência do artigo 107º do RGIT – teria operado uma paralela remissão no crime de abuso à segurança social para o referencial do valor de € 7500 como limiar mínimo de tipicidade. Mas mesmo que o intérprete considere que tal conclusão não se mostra passível de ser inequivocamente retirada das alterações legislativas concretizadas, temos que a transposição da mesma grandeza para o artigo 107º do RGIT se continua a impor em função da interpretação das normas em confronto».

16. Existe, assim, uma lacuna de natureza axiológica que deverá se resolvida aplicando ao crime de abuso de confiança à segurança social o elemento do tipo do crime de abuso de confiança fiscal constante do artigo 105., n.º 1 do RGIT, o que exclui a sua integração típica quando a prestação tributária não for superior a € 7500. Analogia axiológica in bonam partem que não viola o princípio da legalidade e que deverá subsistir enquanto o legislador não se pronunciar, de forma isenta de qualquer dúvida, em sentido diferente.

17. Entendemos ser aplicável ao crime de abuso de confiança contra a segurança social, p. e p. no n.º 1 do artigo 107º do RGIT, o limite de € 7500 estabelecido no n.º 1 do artigo 105º do mesmo diploma legal, na redacção dada pela Lei n.º 64-A/2008, de 31 de Dezembro, pelo que, in casu, uma vez verificada tal condição de punibilidade, deve o recorrente ser absolvido da prática do crime de que foi acusado.

18. Sem prescindir, da análise da prova produzida e examinada em audiência de julgamento, conjugada com as regras da lógica, experiência e senso comum, resulta que a pena de multa aplicada ao recorrente no montante de €2500 é injusta, desadequada e desproporcional, porque excessiva em face das circunstâncias do caso concreto.

19. O Tribunal a quo não atendeu, como a nosso ver devia, ao facto de o recorrente ter acordado num pagamento a prestações da dívida à segurança Social, com garantia, o que demonstra a intenção de reparação do dano.

20. O Tribunal a quo, consequentemente, não aferiu como devia da intensidade da culpa tida pelo recorrente, já que o mesmo justificou as razões que o levaram a não entregar à segurança social as quantias que lhe eram devidas.

21. O Tribunal a quo deveria ter apreciado com maior rectidão as principais causas que levaram à ruína financeira da empresa de que era gerente, a arguida XXX..., Lda.

22. Nos termos do artigo 40.º do C. P., toda a pena tem como finalidade a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade, e, em matéria de culpabilidade, diz o n.º 2que, em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa.

23. Ora, a referência legal aos bens jurídicos conforma uma exigência de proporcionalidade entre a gravidade da pena e a gravidade do facto praticado.

24. A doutrina vem defendendo que, se as finalidades da aplicação de uma pena residem primordialmente na tutela de bens jurídicos e, na medida do possível, na reinserção do agente na comunidade, então, o processo de determinação da pena concreta a aplicar reflectirá, de um modo geral, a seguinte lógica: a partir da moldura penal abstracta procurar-se-á encontrar uma sub-moldura para o caso concreto que terá como limite superior a medida óptima de tutela dos bens jurídicos e das expectativas comunitárias e como limite inferior o quantum abaixo do qual «já não é comunitariamente suportável a fixação da pena sem pôr irremediavelmente em causa a sua função tutelar» (Figueiredo Dias, Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime, p. 229).

25. Quanto à culpa, para além de suporte axiológico-normativo de toda e qualquer repressão penal, compete-lhe estabelecer o limite inultrapassável da medida da pena a aplicar.

26. Assim, na determinação da medida da pena, o requisito legal de que sejam levadas em conta as exigências de prevenção satisfaz a necessidade comunitária de punir o crime e, consequentemente, de realizar as finalidades da pena; o requisito legal de que seja considerada a culpa do agente satisfaz a exigência de que a vertente pessoal do crime, decorrente do respeito pela dignidade da pessoa do agente da prática do crime, limite as exigências de prevenção (Maria João .Antunes, in Consequências Jurídicas do Crime, 2007-2008, p. 22).

27. Considerando a factologia dada como provada pelo Tribunal a quo, nomeadamente, as razões que levaram o recorrente a não pagar à Segurança Social as quantas provadas; as dificuldades que a empresa atravessava, explicadas, entre outras, com o facto de ter sido realizada uma obra que “empatou” todo o dinheiro da empresa e que nunca foi paga; a culpa diminuta do agente, pois estamos perante um crime continuado; a ausência de antecedentes criminais; as finalidades dadas às quantias deduzidas, já que não o foram para proveito próprio do recorrente; a celebração de um acordo para pagamento da dívida em prestações, com garantia; a confissão integral e sem reservas do arguido que demonstra uma atitude colaborante com a justiça, sendo um sinal poderoso no sentido da inexistência de necessidades preventivas, e;

28. Considerando, quanto à situação pessoal e económica do recorrente, sem olvidar, claro está, que deve, como já supra referido, ser corrigido o ponto 24 do quarto parágrafo da sentença recorrida, uma vez que o recorrente não é, ao contrário do que vem vertido na sentença recorrida, dono de outras casas;

29. Concluímos, para já, que o quantum da pena determinado pelo tribunal a quo é desajustado, devendo aquela ser reduzida para uma outra mais próxima do mínimo legal, por se afigurar mais justa e consentânea com os factos apurados, as condições pessoais do agente e a sua situação económica, sem que com isso ficasse descorada a necessidade de prevenção geral de integração, assegurando as finalidades essenciais, punitivas e ressocializadoras da pena e no seu sentido pedagógico e ressocializador.

30. De igual modo, a medida da taxa diária é excessiva, não só atendendo ao crime em concreto e às suas consequências, mas especialmente atendendo à capacidade económica do recorrente, razão pela qual a redução do montante da taxa para um valor mais próximo do mínimo legal não deixaria de ser sentido pelo recorrente como um verdadeiro esforço e sacrifício, no sentido de efectivamente sentir e valorar a pena.

31. Existiu, pois, violação do disposto nos artigos 47.º, n.º 1, e 71.º, n.ºs 1, als. b), d) e e) e 2, ambos do C. Penal. 

32. Sem prescindir, também, verificam-se, no caso em apreço, os elementos para a aplicação da dispensa de pena, ao abrigo do disposto nos artigos 22.º do RGIT e 74.º, n.ºs 1 e 3 do C. Penal.

33. O Tribunal a quo não atendeu ao facto de o recorrente ter prestado uma garantia, na celebração do acordo com a Segurança Social, para pagamento em prestações da dívida em causa.

34. Não obstante a dispensa de pena prever como requisito de aplicabilidade o pagamento da prestação tributária e demais acréscimos legais – al. b) do n.º 1 do artigo 22º do RGIT – o facto de existir, in casu, a prestação de uma garantia, no sentido de assegurar a satisfação da dívida à segurança Social, revela, inequivocamente, por parte do recorrente, a intenção de reparação económica do ilícito.

35. Aliás, a Segurança Social não teria solicitado a extinção da instância cível por inutilidade superveniente da lide, como fez a fls. dos presentes autos, se não tivesse a certeza de que a sua pretensão iria ser satisfeita fora do âmbito dos presentes autos.

36. De resto, verificam-se, in casu, os demais pressupostos de que depende a aplicação da dispensa de pena, ou seja, a ilicitude do facto e a culpa do agente não são muito graves – al. a) do n.º 1 do artigo 22º do RGIT -, na medida em que estamos perante um crime continuado (existência de circunstâncias, internas e externas, que diminuem a exigibilidade do comportamento alternativo, ou seja, diminuem consideravelmente a culpa do agente), para além disso, as quantias deduzidas não o foram para proveito próprio do recorrente, mas sim, como se refere no ponto 7 do quarto parágrafo da sentença recorrida para serem «integradas no giro comercial da sociedade arguida, o que o arguido VF... fez por dificuldades económicas por que aquela passava».

37. Depois, à dispensa de pena não se opõem razões de prevenção – al. c) do n.º 1 do artigo 22º do RGIT -, designadamente, de prevenção especial, se consideradas as razões que, afinal, não se tenha concretizado o pagamento à segurança Social e se considerado o facto de ter sido acordado um pagamento da dívida em prestações.

38. A dispensa de pena permite ao tribunal, verificados certos pressupostos, declarar o arguido culpado mas não aplicar qualquer pena, sendo que há da parte do arguido um comportamento típico, ilícito, culposo e punível que, no entanto, não determina a aplicação de uma qualquer pena – só a declaração de que é culpado -, em virtude do carácter bagatelar daquele comportamento e da circunstância de a pena não ser necessária, perante as finalidades que deveria cumprir (cfr. n.º 1 do artigo 40º do C. Penal).

39. Dispõe o artigo 22º do RGIT que “se o agente repuser a verdade sobre a situação tributária e o crime for punível com pena de prisão igual ou inferior a três anos, a pena pode ser dispensada se: (…) b) a prestação tributária e demais acréscimos legais tiverem sido pagos (…).”

40. De iure condendo, e fazendo apelo a uma interpretação analógica, poder-se-ia, a nosso ver, considerar como abrangida na al. b) do n.º 1 do artigo 22º do RGIT a hipótese dos presentes autos, em que o arguido acorda no pagamento da dívida, prestando uma garantia.

41. Toma-se neste contexto o conceito de analogia como aplicação de uma regra jurídica a um caso concreto não regulado pela lei através de um argumento de semelhança substancial com os casos regulados – a chamada analogia legis.

42. Como expende Figueiredo Dias, face ao fundamento, à função e ao sentido do princípio da legalidade, a proibição de analogia vale relativamente a todos os elementos, qualquer que seja a natureza, que sirvam para fundamentar a responsabilidade ou para a agravar; a proibição vale pois contra reum ou in malem partem e não favore reum ou in bonam martem.

43. Deste modo, a proibição abrange, antes de tudo, os elementos constitutivos dos tipos legais de crimes descritos na Parte Especial do C. Penal ou em legislação penal extravagante, valendo ainda para certas normas da Parte geral do C. Penal: para aquelas que constituem alargamentos da punibilidade de comportamentos previstos como crimes na Parte Especial.

 44. Um problema especial é aqui constituído pelas causas de justificação e pelas causas de exclusão (ou atenuação) da culpa e da punibilidade. Tratando-se nelas de situações que não fundamentam ou agravam a responsabilidade do agente, mas pelo contrário a excluem ou a atenuem, o recurso à analogia è legítimo sempre que o resultado seja o do alargamento do seu campo de incidência; mas já será ilegítimo se tiver como consequência a diminuição daquele campo – Figueiredo dias, in Direito Penal, Questões Fundamentais, A doutrina geral do crime, Universidade de Coimbra, Faculdade de direito, 996, pp 180-181.

45. Por maioria de razão, tal entendimento deve estender-se aos casos de dispensa de pena e, consequentemente, ao caso dos presentes autos, já que, tratando-se de uma situação que afasta a aplicação de uma pena ao agente, o recurso à analogia é considerado legítimo.

46. Pelo exposto, deveria o tribunal a quo, salvo melhor entendimento, ter decidido pela aplicação da dispensa de pena ao recorrente, fazendo uma interpretação analógica, in bonam partem, da al. b) do n.º 1 do artigo 22º do RGIT.

47. Nestes termos, deve, pois, a douta sentença ser revogada e, em consequência, absolver o recorrente, por extinção do procedimento criminal, ou reduzir ao mínimo legal a pena de multa que lhe foi aplicada ou, até mesmo, dispensar o recorrente de pena.

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 O Ministério Público junto do Tribunal recorrido, em 22/3/2011, apresentou resposta, sem apresentar conclusões, defendendo a improcedência do recurso, sendo de salientar, em resumo, o seguinte do teor daquela:                                                             1. Deve ser seguida a orientação expressa no acórdão de fixação de jurisprudência do S.T.J. proferido no processo n.º 6463/07.6TDLSB, 5ª Secção, publicado no DR – I Série, 186, de 23-9-2010.

2. A impugnação da matéria de facto não obedece às exigências legais.

3. Não há fundamento para a dispensa de pena.

4. A pena aplicada é adequada.

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            O recurso foi, em 24/3/2011, admitido.

            Os autos subiram, em 1/4/2011, a este Tribunal da Relação de Coimbra.

Nesta Relação, a Exma. Procuradora-Geral Adjunto, em 14/4/2011, emitiu douto parecer no sentido da improcedência do recurso, acompanhando integralmente a resposta ao recurso acima mencionada.

Cumpriu-se o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do CPP, não tendo sido exercido o direito de resposta.

Efectuado o exame preliminar e colhidos os vistos, teve lugar conferência, cumprindo apreciar e decidir.


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II. Decisão Recorrida:

(…)

Da audiência de julgamento emergiram, por provados, os seguintes factos.

1. XXX...é uma sociedade por quotas que se dedica à construção civil e obras públicas, pavimentação de ruas, comércio de materiais de construção e extracção e transformação de granitos e encontra-se inscrita no Registo Nacional de Pessoas Colectivas com o nº ….

2. O arguido VF..., no período a que se reportam os factos, exercia as funções de gerente da sociedade arguida,

3. No exercício das quais dava ordens aos trabalhadores, representando a sociedade no contacto com clientes e fornecedores, decidindo quanto aos pagamentos, entre outras tarefas, e auferindo renumerações relativas à gerência com aplicação da taxa legalmente prevista para os membros dos órgãos estatuários às renumerações base de incidência.

4. O arguido VF..., nessa qualidade de gerente da sociedade XXX…Lda, procedeu ao desconto das contribuições devidas à Segurança Social pelos trabalhadores e gerentes, nas renumerações efectivamente a estes pagas, nos períodos e montantes discriminados nos mapas de valores de fls. 42 a 44 dos autos, que aqui se dão por integralmente reproduzidos,

5. Sem que tivesse procedido à sua entrega na Segurança Social, nem nos prazos legalmente estipulados, isto é, até que ao dia 15 do mês seguinte àquele a que respeitam, nem nos noventa dias posteriores, nem mesmo depois de notificados para, no prazo de 30 dias proceder ao pagamento das cotização retidas e respectivos juro de mora, nos termos e para efeito do disposto na al. b) do nº 4 do artº 105 do RGIT, com a alteração introduzida pelo artº 95 da lei nº 53 A/2006 de 29/12.

6. As cotizações retidas nas renumerações efectivamente pagas dizem respeito ao período de Fevereiro de 2007 a Agosto de 2008 e totalizam o montante global de € 15.059,68 (quinze mil, cinquenta e nove euros e oito cêntimos).

7. As quantias deduzidas nas remunerações foram integradas no giro comercial da sociedade arguida, o que o arguido VF... fez por dificuldades económicas por que aquela passava.

8. Agindo de forma descrita, em nome da sociedade arguida e em favor dos seus interesses o arguido VF..., agiu de forma reiterada e sucessiva, sempre da mesma maneira e através do mesmo meio e dentro de idêntico circunstancialismo factual, facilitado pelo facto de não ter sido sujeito a fiscalização pela Segurança Social, fazendo da sociedade XXX...a referida quantia, bem sabendo que as mesmas não lhes pertenciam e que actuavam contra a vontade da Segurança Social.

9. Agiu o arguido VF..., livre e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.

Mais se provou:

10. No âmbito de processo de execução fiscal onde a quantia em dívida a título de cotizações nestes autos é, também, quantia exequenda, e na sequência da reversão nos termos do art. 160.º do CPPT contra o arguido VF..., foi celebrado acordo entre este e a Segurança Social para pagamento da mesma em prestações.

11. Quanto á situação pessoal do arguido SC... prova-se que é funcionário público, exercendo funções de motorista.

12. Tem o salário mensal de 600,00€, embora variável consoante as horas prestadas.

13.  A esposa, por sua vez é oficial de justiça, auferindo uma remuneração mensal que ronda os 1.000,00€.

14. Tem um filho de 10 anos, em idade escolar.

15. Vive em casa própria,

16. Além das despesas em bens essenciais para crédito bancário de aquisição da casa, que ronda 500,00€.

17. Tem viatura própria.

18. Tem o 12 ano.

19. Não tem antecedentes criminais.

20. Quanto à situação pessoal do arguido, VF..., prova-se que

21. Continua a trabalhar como gerente de uma outra sociedade, unipessoal, com o mesmo objecto daquela XXX…Lda, à excepção da extracção de pedra e com parte dos trabalhadores que também trabalhavam para aquela sociedade.

22. É casado, sendo a esposa é doméstica.

23. Vive numa casa, há cerca de 15 anos a esta parte, casa essa registada em nome do filho, o arguido VF..., seu único filho.

24. O arguido VF...  é dono, não obstante, de outras casas.

25. Nas suas funções de gerente o arguido aufere, pelo menos, a quantia 750,00€.

26. A actividade da sociedade que gere tem produzido rendimentos para as despesas que suporta.

27. Tem viatura própria.

28. Tem de escolaridade tem a 4.ªa classe.

29. Quanto à sociedade arguida, prova-se que não exerce actualmente qualquer actividade.


§

Não se provou:

Que o arguido SC..., fosse também, com o VF..., gerente de facto da sociedade arguida e, com aquele, praticado os actos de que vinha acusado.


§

Fundou o julgador a sua convicção na apreciação crítica, conjugada e ponderada da prova produzida e examinada em audiência de julgamento, conjugada com as regras da lógica, experiência e senso comum.

Quanto aos factos provados, que lhe vinham imputados na acusação, o arguido VF... acabou por admiti-los, no que à sua pessoa diz respeito, explicando ainda, nos termos provados, as razões que o levaram a não pagar à Segurança Social as quantias provadas.

Também da sua autoria é a afirmação, nos termos provados, de que constituiu outra sociedade unipessoal com parte dos  trabalhadores que tinha antes ao serviço da sociedade XXX…Lda, à excepção da extracção de pedra por, nas suas palavras, ser a causa do prejuízo e que levou à ruina financeira desta, juntamente com a diminuição do trabalha (que o levou a reduzir o número de trabalhadores) e uma dívida avultada de um cliente que não lhe pagou.

Aliás, e no aspecto das causas para o não pagamento, nos termos provados, no clima de crise económica que vem sendo o apanágio dos últimos anos, facto que se pode considerar notório e do conhecimento comum, a afirmação feita pelo arguido das dificuldades económicas porque passou e que levaram à cessação da actividade, complementado com as declarações da testemunha NN..., que afirmou ter sido despedido por não haver trabalho, mereceu credibilidade o afirmado pelo arguido e daí, a sua afirmação. Neste quadro é também credível, e por isso se considerou provado, o destino dado às quantias que deveriam ser entregues na segurança social.

Confirmou também o arguido  VF... a assunção do pagamento em prestações da dívida peticionadas nos autos pela Segurança Social.

Finalmente, afirmou, e assim se atendeu, a sua situação pessoal.

Para além das declarações do arguido atendeu-se ainda nos documentos elencados na matéria de facto provada para a afirmação das quantias em dívida e, bem assim, no documento de fls. 45 e 46 e 48,e 66 a 68 este relativo à sociedade e definidora do seu objecto, nos extractos de remunerações de fls. 137 a 166.

Ainda nos documentos de fls. 293 e 326 a 329.

As circunstâncias da acção, conjugadas com as declarações do arguido e com as próprias razões que levaram ao início da acção inspectiva, documentadas fls. 7,  e, bem assim com as declarações da Testemunha MC..., na parte em precisou os procedimentos que levaram à detecção do incumprimento, permitiram concluir pelo aproveitamento, pelo arguido, da facilidade com que, depois de não ter pago a primeira das prestações ter repetido a conduta, no mesmo quadro exterior de facto, este propiciado pela forma com as contribuições à Segurança Social são declaradas e pagas, com particular ênfase para a relação de confiança que é depositada pelo contribuinte, por um lado, e pela inexistência de meios para, mensalmente e em relação a casa contribuinte, verificar se efectivamente são entregues as contribuições deduzidas.

O passado criminal dos arguidos resultou dos respectivos CRC de fls. 259 a 260.

Quanto aos factos não provados, que redundam na imputação da gerência de facto ao arguido SC..., resultam eles da insuficiência da prova produzida para a sua afirmação.

Efectivamente, quer este quer o arguido VF... negaram essa gerência de facto no período em causa e explicaram a razão, com um fundo de credibilidade, para ainda assim, o arguido SC... ter assinado cheques – recondutível, em síntese, ao impedimento temporário deo arguido VF...usar cheques. Também com um fundo de credibilidade um e outro explicaram as razões para o arguido SC... se ter afastado da gerência.

 A prova testemunhal produzida veio secundar o que os arguidos afirmaram neste particular, pese embora em alguns dos depoimentos, nomeadamente quanto às formas de pagamento de salários, fossem de frágil credibilidade.

Ainda assim, da testemunha NN... resultou a afirmação de que o arguido VF...é que tratava dos trabalhos a ajustar enquanto o arguido SC...tinha “o trabalho dele”, pese embora tivesse recebido cheques assinados por ele, cheques esse entregues pelo primo do arguido SC…, que estava no escritório.

Da testemunha VF..., que foi também, em tempo gerente e agora trabalhador da sociedade arguida resultou a afirmação de que o arguido SC...nunca “trabalhou” na sociedade XXX...Lda, assinando apenas alguns cheques e sempre foi o arguido VF...que esteve á frente da sociedade, que sempre foi o patrão, dava instruções, ordens, conduzia o pessoal para as obras e tratava com os fornecedores, tudo coisas que o arguido SC...nunca fez.

Da testemunha AA…, trabalhador da sociedade arguida no período em causa resultou a afirmação de que nunca recebeu ordens do arguido SC..., sendo o arguido VF...quem “... distinguia tudo ...”,

Das testemunhas SC..., VF..., todos trabalhadores da sociedade arguida, resultou a afirmação de que o seu patrão, de quem recebiam ordens, era o arguido VF....

 É claro que as declarações de remuneração documentadas nos autos, o facto de assinar alguns documentos (cheques), a qualidade formal do arguido SC..., como gerente de Direito até determinado período temporal, da sociedade arguida, – neste particular merecendo reparo, por ser estranho, a diferença temporal entre a declaração de renuncia à gerência e a transposição desse facto para o registo, por ser susceptível de ser o produto de uma simulação - bem assim a proximidade familiar e mesmo física com o arguido VF..., é susceptível de indiciar, pelo menos, o conhecimento pelo arguido SC...da vida da sociedade ou até do assentimento ou acordo aos actos praticados pelo seu pai, o arguido VF....

Todavia, fica em aberto a possibilidade de assim não ser – pelas razões que se deixam expostas – e afinal a “presença” do arguido SC...na sociedade ser meramente formal. É claro que não se trataria de alcançar a evidência absoluta na prova, mas pelo menos haveria de alcançar-se uma certeza, mínima que fosse.

 Mas esse mínimo não se alcançou. De facto, não havia de sobrar a dúvida que sobra para se poder julgar provada a comparticipação na gerência de efectiva da sociedade arguida – fosse por actos exteriorizados de gestão, fosse por actos reveladores do assentimento ou concordância com essa gestão.

Tudo para dizer, então, que se é verdade que os elementos documentais deixam certa a declaração de remunerações como gerente do arguido SC..., e há indícios susceptíveis de revelar conhecimento da gerência de facto ou mesmo assentimento a essa gerência pelo arguido VF..., também é verdade que esses indícios, perante o declarado pelos arguidos, e afirmado pelas testemunhas, saem abalados e nessa medida enfraquecidos, deixando em aberto, com suficiente grau de probabilidade, que o arguido SC...não tenha praticado os actos de que vinha acusado. Logo são indícios insuficientes para conseguir atingir um mínimo de certeza para a afirmação da prática de factos típicos de quem tem poder de determinar as decisões da sociedade, e ainda que indirectamente, também participa na decisão, de facto, sobre os actos a praticar pela sociedade arguida.

Daí a apontada insuficiência da prova que, necessariamente, redundou na consideração como não provado que o arguido SC... fosse também, com o VF...de Jesus, gerente de facto da sociedade arguida e, com aquele, praticado os actos de que vinha acusado.


§

Pratica o crime imputado aos arguidos - art. 107.º, n.º 1, do RGIT - a entidade empregadora que, tendo deduzido do valor das remunerações devidas a trabalhadores e membros dos órgãos sociais o montante das retribuições por estes legalmente devidas, não o entregue, total ou parcialmente, às instituições de segurança social.

As penas para tal conduta são as previstas nos n. 1 e 5 do art. 105.º do RGIT, neste particular sendo punível, com pena de prisão até 3 anos ou multa até 360 dias  na sua forma de base, e quando o valor da prestação for superior a 50.000,00€ com a pena de prisão de um a cinco anos e de multa e 240 a 1200 dias para as pessoas colectivas.

Para efeitos de determinação da pena, o valor a considerar são os que, nos termos da legislação aplicável, devam constar de cada declaração a apresentar à administração tributária. - n.º 7 do art. 105.º do RGIT.

Os legais representantes das entidades empregadoras respondem nos termos do ar. 6.º do RGIT e estas, nos termos do art. 7.º, n.º 1, do mesmo RGIT.

Quanto aos elementos objectivos do tipo há que verificar-se a dedução das contribuições devidas, a não entrega (apropriação) nos prazos legalmente determinados no art. 5.º, n.º 2, 3 e 6 do Decreto-Lei n.º 103/80, de 9 de Maio e art. 10.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 199/99, de 8/06, ou seja até ao dia 15 do mês seguinte aquele a que aquelas contribuições respeitavam.

Para o que seja a apropriação, há que considerar que antes do art. 107.º, n.º 1, do RGIT, estava em vigor o  art. 27º.-B do RJIFNA, aprovado pelo DL n.º. 20-A/90, de 15/01, com as alterações introduzidas pelos DL n.ºs. 394/93, de 24/11 e 140/95, de 14/06 que estatuía o seguinte: “As entidades empregadoras que, tendo deduzido do valor das remunerações pagas aos trabalhadores o montante das contribuições por este legalmente devidas, não o entregarem, total ou parcialmente, às instituições de segurança social, no período de 90 dias, do mesmo se apropriando, serão punidos com as penas previstas no art. 24.º”. O RGIT, que revogou aquele diploma, descreve agora no seu art. 107º, n.º 1, repete-se, o ilícito penal, dispondo: “as entidades empregadoras que, tendo deduzido do valor das remunerações devidas a trabalhadores e membros dos órgãos sociais o montante das retribuições por estes legalmente devidas, não o entreguem, total ou parcialmente, às instituições de segurança social, são punidas com as penas previstas nos n. 1 e 5 do art. 105º.

Da análise comparativa, sempre útil, do novo normativo, resulta que a incriminação, nos seus elementos (objectivos e subjectivos) manteve-se quase integralmente no actual RGIT, tendo apenas sido eliminado o segmento “do mesmo se apropriando”.

Ora, há que realçar que, neste particular, a “apropriação” se concretiza com a não entrega no prazo que a lei penal fixou.

No crime de abuso de confiança em relação à Segurança Social o termo apropriação, a que se referia o art. 27-B, como vem entendendo a doutrina e a jurisprudência, apenas pode querer significar que o agente não cumpriu a obrigação no prazo que a lei penal lhe fixou e independentemente da finalidade que lhe venha a ser dada já que não é necessário que o agente retire um proveito directo das quantias retidas. Daí que, no novo regime (o RGIT) a apropriação (“do mesmo se apropriando”) tenha sido suprimida do tipo legal (por desnecessária.)

Por força da alteração legislativa operada pela entrada em vigor da Lei 53-A/2006, de 29.12, foi acrescentada ao artigo 105.º, n.º 4, uma alínea b) que determina que os factos só são puníveis se a prestação comunicada à administração tributária, através da correspondente declaração, não for paga, acrescidas dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após notificação para o efeito, o que foi cumprido, no caso dos autos.

Neste ponto, considerados os factos não provados cumpre reconhecer que não se tenho provado, quanto ao arguido SC..., a prática de acção criminal relevante, não pode o mesmo ser condenada pela prática do crime de que vem acusado.

Já quanto aos demais arguidos, há que considerar que da matéria de facto resulta que foram pagos os salários e as remunerações, deduzidas deles as quantias devidas à Segurança Social nos temos da lei, quantias essas que não foram entregues na Segurança Social nos prazos legalmente estipulados. Assim, estão preenchidos os elementos objectivos deste tipo de ilícito.

Resulta também provado que foi feita a notificação nos termos do art. 105.º, n.º 4, al. b), do RGIT, não tendo sido feito o pagamento das contribuições.

Mais resulta que o arguido VF... sabia que as quantias deduzidas não pertenciam à sociedade arguida e que estava obrigado a entrega-las à Segurança Social, tendo agido com o propósito de não o fazer, antes as integrando no património daquela. Agiu, pois, dolosamente.

Verifica-se, portanto, estarem preenchidos todos os elementos (objectivos e subjectivos), do tipo de ilícito que vem imputado ao arguido VF...Correia e à Sociedade.

Da factualidade apurada resulta ainda que a actividade delituosa perdurou por um período de tempo vasto. Além disso, resulta também apurado que, após não terem entregue, pela primeira vez, os montantes destinados à Segurança Social que haviam deduzido nas remunerações, o arguido praticou o mesmo tipo de conduta ao longo dos períodos dos anos seguintes, movido pela facilidade com que sucessivamente lograva os seus intentos, sem que fossem sujeitos a fiscalização pelo ISS. 

Por outro lado essa actuação surgiu contextualizada do ponto de vista externo (do agente) pelas dificuldades económicas por que passava a sociedade arguida, tendo as quantias deduzidas sido usadas no giro comercial daquela.

Atento o disposto no art. 30.º, n.º 2, do Código Penal concluí-se pela existência de circunstâncias, internas (do agente) e externas que, efectivamente, diminuem a exigibilidade do comportamento alternativo, o que vale por dizer, diminuiu a culpa consideravelmente a sua culpa.

Por isso, conclui-se que o crime foi praticado na forma continuada.

Inexistem causas de exclusão da ilicitude e da culpa, pelo que estão reunidos os necessários pressupostos para aplicação de uma pena ao arguido VF....

Atentos os montantes da cotizações individualmente devidas e as regras de punição do crime continuado, a moldura da pena é a prevista no n.º 1 do 105.º do RGIT, de prisão até 3 anos ou pena de multa até 360 dias para o arguido VF....

Quanto à sociedade arguida, o crime é punível apenas com a pena de multa até 720 dias (art. 107.º, n.º 1, 105.º, n.º 1, 12.º, n.º 3 e 7.º, n.º 1.).

Assim há que considerar, quanto ao arguido VF..., nos termos do art. 70.º do Código Penal, o tribunal deve dar preferência à pena de multa sempre que esta realize de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, ou seja, a protecção do bem jurídico lesado e a reintegração do agente na sociedade.

Concretizando, estas finalidades reconduzem-se, por um lado, a necessidades de prevenção geral positiva, ou seja, de reintegração (tutelar) do bem jurídico protegido, de salvaguarda das exigências de confiança da comunidade na força de vigência das suas normas de tutela e de revelação da inquebrantabilidade da ordem jurídica, apesar da violação que teve lugar.

Por outro lado, reconduzem-se a necessidades de prevenção especial, que se alcançam quer pela vertente negativa de advertência individual ou dissuasão, quer pela criação de condições idóneas a reintegrar socialmente o agente do crime, ou de socialização - independentemente das suas concepções sobre a vida e o mundo ou da sua posição individual face aos juízos de valor do ordenamento jurídico - criando, dessa forma, as condições para que, no futuro, ele não volte a praticar crimes.

A primazia da pena de multa, como pena por excelência, resulta de uma opção do legislador, ao constar que o isolamento psico-sociológico, da (efectiva) reclusão, pode conduzir à auto e hetero-exclusão social, e que a consequente desintegração social é (ela própria) criminógena. Obviamente que esta é uma visão global e extrema (diga-se, talvez, de política criminal) já que, depois de escolhida a pena de prisão e até ao momento (limite) da efectiva reclusão, pode ainda ser aquela substituída, abrindo-se por essa via das penas de substituição uma fase, intermédia, no caminho que tem como ponto de partida a pena de multa pura e simples e como ponto de chegada a prisão pura e simples.

Daí que a pena de prisão, como pena possível, deva ser encarada como pena adequada quer quando a reclusão se propõe como necessária, quer quando as penas de substituição dessa mesma prisão se assumam, antes, adequadas e suficientes. Uma visão neste espectro global, mais amplo, atenua o radicalismo aparente da escolha da pena, melhor se compreendendo a pena de prisão deva ser o último recurso do sistema penal sancionatório e, quando esta se imponha por necessária às necessidades de prevenção, devam as estruturas dos serviços prisionais evitar a dessocialização ou agravamento dessa dessocialização.

No caso dos autos, o arguido não tem antecedentes criminais.

Por outro lado, as circunstâncias da acção, sobretudo ao nível da ilicitude e da culpa, não são demonstrativas de necessidades de prevenção especial que demandem a opção pela pena de prisão, apesar do montante em causa, se consideradas as razões para que, afinal, não se tenha concretizado o pagamento.

Assim, inexistem razões para opta-se pela pena de prisão, havendo que concluir que a multa, satisfaz adequadamente as finalidades da punição.

Nos termos do disposto no art. 71.º, n.º 1, do Código Penal, a determinação da medida concreta da pena é feita em função da culpa do agente, pressuposto (não o fundamento) e limite inultrapassável da sua medida e das exigências de prevenção da prática de futuros crimes.

Neste pressuposto, quantificar-se-á a pena entre a medida óptima de tutela dos bens jurídicos e das expectativas comunitárias que a pena se deve propor alcançar (o limite superior), e o limiar mínimo irrenunciável e indispensável de tutela dos bens jurídicos, abaixo do qual, no fundo, deixaria de a haver tutela (limite inferior).

E, nesta baliza de definição do quantum da pena, achar-se-á aquela tendo em conta as necessidades de prevenção especial - positiva (primordialmente) ou negativa - ou de socialização.

De um forma simples, ou simplificada, dizer-se, então, que o “Homem deve responder por aquilo que faz, na base daquilo que é” em sociedade: quer dizer, responderá na medida da liberdade individual de realização do facto - na pura relação subjectiva agente - facto - e  também pela forma como, inserido numa vivência comunitária pautada por uma “tábua” de valores constitucionalmente consagrados de Estado de Direito Democrático, viola os deveres sociais ou ético-sociais dele decorrentes e os imperativos de prevenção geral positiva: culpa pela personalidade - manifestada no facto.

 Para achar a medida concreta, manda a lei ( art. 71.º, n.º 2, do CP) que se atente a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, designadamente aos factores exemplificativos enunciados nas alíneas do n.º 2 do referido art. 71.º, do Código Penal, e que se reportam a três núcleos essenciais: a gravidade da ilicitude, a culpa do agente e a influência (previsível) da pena sobre o agente[1].

Isto considerado, as necessidades de prevenção são elevadas e, por isso, colocam o liminar mínimo irrenunciável de tutela do bem jurídico num patamar que faz com que o mínimo da pena concreta a aplicar seja substancialmente superior ao mínimo legal.

Há que considerar, ainda que o bem jurídico protegido, com este crime é o interesse tributário do Estado, pese embora, dentro desse interesse tributário em particular se protejam os interesses patrimoniais da Segurança Social.

São conhecidas as dificuldades financeiras com que se debate a Segurança Social - noticiadas amiúde na comunicação social e que são do conhecimento público - dificuldades estas que põem em causa quer a função assistencial do Estado (nas baixas por doença, por exemplo), quer as próprias reformas dos trabalhadores num futuro próximo. Esta frágil situação é causada, em parte considerável, pela fuga às obrigações legais de entrega das quantias descontadas nos salários, sendo cada vez mais frequente a prática deste tipo de ilícitos penais, não obstante a opção legislativa pela criminalização, o que indicia uma desvalorização da conduta por parte dos agentes: quando confrontados com dificuldades financeiras, os agentes económicos (pessoas colectivas ou singulares) optam sempre, e em primeiro lugar por reter as contribuições devidas à Segurança Social, usando-as, como forma válida de financiamento da própria actividade, desprezando o dano insidioso que causam a toda colectividade.

Além do mais, este tipo de comportamento constitui manifesta concorrência desleal para com as empresas que, criteriosamente, cumprem as suas obrigações e que têm de se confrontar no mercado com alguém que, ilegitimamente, consegue produzir produto idêntico ao seu com um custo menor (exactamente porque usou, para se financiar, dinheiro que não lhe pertencia).

Dentro deste quadro de necessidades de tutela do bem jurídico, há que considerar o grau da ilicitude, plasmado no quantitativo global com que ficou lesada a Segurança Social, bem assim como o período de tempo em que perdurou a conduta.

De considerar, por outro lado as finalidades dadas às quantias deduzidas.

Ainda, o facto de a Segurança Social não ter ainda sido ressarcida, pese embora o arguido tenha acordado o pagamento em prestações, o que sempre demonstra a intenção de reparação económica do ilícito, o que depõe a seu favor.

Depois, há que considerar a situação pessoal do arguido e da sociedade arguida.

No que se refere ao arguido, assume relevo o facto de não ter antecedentes criminais, o que igualmente depõe a seu favor, mas continua a exercer uma actividade profissional de gerente de uma outra sociedade, com o mesmo objecto, o que exponencia a probabilidade do risco de repetição do ilícito, havendo a pena, por essa razão, de ser mais assertiva (para poder ser também mais pedagógica).   

 Quanto à sociedade arguida, assume relevo o facto de não ter actualmente qualquer actividade, apesar de não dissolvida, diminuindo o risco de diminuição do ilícito, pese embora a actividade possa ser retomada.

A favor do arguido milita, finalmente, a confissão dos factos, esta expressão de consciência crítica perante a ilicitude penal da conduta.

Tudo ponderado, considera-se adequado fixar a moldura da pena de multa em relação ao arguido SC… em 250 (duzentos e cinquenta) dias de multa e, em relação à sociedade arguida em 350 (trezentos e cinquenta) dias de multa.

No atinente ao quantum diário da multa, dispõe o art. 15.º do RGIT que o mesmo é fixado pelo tribunal em função da situação económica e financeira do condenado e dos seus encargos pessoais entre o limite de 1,00€ e 500,00€ para as pessoas singulares e 5,00€ e 5.000,00€ para as pessoas colectivas.

Considerando a situação económica da sociedade arguida, patente no seu actual considera-se adequado fixar o montante diário da pena de multa em 5,00€ (cinco euros).

Quanto ao arguido VF..., considera-se adequado fixar o quantitativo da multa em 10,00€ (dez euros).                                                                                                          (…)”

****

III. Apreciação do Recurso:

De harmonia com o disposto no n.º1, do artigo 412.º, do C.P.P., e conforme jurisprudência pacífica e constante (designadamente, do S.T.J. – Ac. de 13/5/1998, B.M.J. 477/263, Ac. de 25/6/1998, B.M.J. 478/242, Ac. de 3/2/1999, B.M.J. 477/271), o âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas pelos recorrentes da motivação apresentada, só sendo lícito ao tribunal ad quem apreciar as questões desse modo sintetizadas, sem prejuízo das que importe conhecer, oficiosamente por obstativas da apreciação do seu mérito, como são os vícios da sentença previstos no artigo 410.º, n.º 2, do mesmo diploma, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (Ac. do Plenário das Secções do S.T.J., de 19/10/1995, D.R. I – A Série, de 28/12/1995).

            São só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões, da respectiva motivação, que o tribunal ad quem tem de apreciar – artigo 403.º, n.º 1 e 412.º, n.º1 e n.º2, ambos do C.P.P. A este respeito, e no mesmo sentido, ensina Germano Marques da Silva, “Curso de Processo Penal”, Vol. III, 2ª edição, 2000, fls. 335, «Daí que, se o recorrente não retoma nas conclusões as questões que desenvolveu no corpo da motivação (porque se esqueceu ou porque pretendeu restringir o objecto do recurso), o Tribunal Superior só conhecerá das que constam das conclusões». 

Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões extraídas da correspondente motivação (artigos 403.º, n.º 1 e 412º, nº 1 do Código de Processo Penal), as questões que vêm colocadas pelos recorrentes são as seguintes:

1) Saber se é aplicável ao crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, p. e p. no n.º 1 do artigo 107.º do RGIT o limite de sete mil e quinhentos euros estabelecido no n.º 1 do artigo 105.º do mesmo diploma legal, na redacção dada pela Lei n.º 64-A/2008, de 31 de Dezembro;

            2) Saber se há erro de julgamento quanto a determinados factos dados como provados;

            3) Saber se há violação do disposto nos artigos 47.º e 71.º, ambos do Código Penal, por ser excessiva a concreta pena aplicada ao recorrente;

            4) Saber se há motivo para aplicação da dispensa da pena.

                                               ****

1) Da aplicação ao crime p. e p. no n.º 1, do artigo 107.º, do RGIT, da alteração introduzida pelo artigo 113.º, da Lei 64/A/2008, de 31 de Dezembro, no artigo 105º, n.º 1, do RGIT, (descriminalizando a não entrega, total ou parcial, à administração tributária, de prestação tributária igual ou inferior a sete mil e quinhentos euros):

         Estamos perante uma questão que levantou acentuada divergência nos tribunais, a tal ponto que o S.T.J., sobre tal matéria, proferiu acórdão de fixação de jurisprudência, aliás, citado pelo arguido no seu recurso.

            Temos bem presente que, de acordo com o artigo 445.º, n.º 3, do CPP, “ a decisão que resolver o conflito não constitui jurisprudência obrigatória para os tribunais judiciais, mas estes devem fundamentar as divergências relativas à jurisprudência fixada naquela decisão”.

            Acontece que, nesta questão, a orientação seguida pelo Tribunal da Relação de Coimbra sempre foi no sentido que veio a obter vencimento no aludido acórdão.

Como exemplo disso, passamos a citar o acórdão, subscrito pelos abaixo signatários, datado de 29/9/2010, Processo n.º 91/06.0TAFAG.C1:

            “Estamos perante uma matéria que não tem merecido unanimidade na nossa jurisprudência, como, aliás, bem é salientado na decisão recorrida.

Se esta afirmação é certa, não é menos verdade que este Tribunal da Relação de Coimbra tem seguido, de maneira uniforme (ver www.dgsi.pt., relativamente a 2009 e 2010), a orientação defendida pelo recorrente.

            A título de exemplo, cite-se o Acórdão, de 20/1/2010, Processo n.º 7909/05.3TDLSB.C1, relatado pelo Exmo. Desembargador Paulo Guerra, onde a questão se encontra, de um modo profundo, tratada:

3.2. Antes da alteração introduzida pela Lei n.º 64-A/08, de 31/12, REZAVA assim o n.° 1, do artigo 105º, do RGIT (aprovado pela Lei n.º 15/2001 de 5/6):                                         «1. Quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, a prestação tributária deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar, é punido com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias».                                                             Entrou, entretanto, em vigor a Lei n.º 64-A/2008, de 31 de Dezembro, que aprovou o Orçamento de Estado para 2009, que introduziu alterações ao Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT), nomeadamente no crime de abuso de confiança fiscal.                            A alteração consagrada no artigo 113° da mencionada Lei introduziu um limite ao valor da prestação tributária ali considerada, passando a exigir-se que seja ela de valor superior a 7500 euros e revogou ainda o n.º 6 daquele artigo 105º, consignando-se agora que:                                                                                                                                             “Quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, prestação tributária de valor superior a €7500, deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar é punido com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias”. Por sua vez, o artigo 107º do RGIT, que não sofreu qualquer alteração pela Lei n.º 64-A/08, prescreve:                                                                                                                             «1. As entidades empregadoras que, tendo deduzido do valor das remunerações devidas a trabalhadores e membros dos órgãos sociais o montante das contribuições por estes legalmente devidas, não o entreguem, total ou parcialmente, às instituições de segurança social, são punidas com as penas previstas nos n.ºs 1 e 5 do artigo 105º.                2. É aplicável o disposto nos n.ºs 4, 6 e 7, do artigo 105º».                                                      Temos por adquirido que a Lei n.º 64-A/2008, de 31 de Dezembro, ao introduzir este limite[, descriminalizou (consistindo tal descriminalização na forma radical de extinção do procedimento criminal, pela passagem do facto ao mundo naturalístico, operando tanto por declaração expressa do legislador como por manipulação dos elementos da factualidade típica) as condutas omissivas de entrega de prestações fiscais de montante igual ou inferior a €7.500 (tem-se entendido que este limite se reporta a cada uma das prestações individuais, que foram declaradas e não pagas à administração tributária, daqui derivando que não preenche o crime de abuso de confiança fiscal se cada uma das prestações tributárias não entregues for de valor não superior a €7.500, independentemente da soma do seu valor total – Cfr. ainda o n.º 7 do artigo 105º que dá força a esta tese já pacífica entre nós).                 A questão que está em cima da nossa mesa é a de descortinar se a alteração introduzida no n.º 1 do artº 105º se estende ao crime de abuso de confiança contra a Segurança Social previsto no artº 107º, ou seja, se, no caso deste crime, também se restringiu a esfera de punição às contribuições devidas de montante superior a 7.500€.            É ESTA A QUESTÃO A RESOLVER, já o sabemos.                                                                                         3.3. A resposta à questão formulada terá de passar, não o ignoramos, por via interpretativa, assente que ela tem vindo a suscitar divergências de base na jurisprudência, originadas, mais uma vez, não o cansamos de o dizer, pela absoluta imperfeição técnica, a nível legislativo, não acatando o seu primeiro dever que deve ser o da clareza e da inequivocidade do estatuído em forma de lei.                                                                             Temos como certa a asserção de que a interpretação a partir da lei não se deve cingir à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada (cfr. artº 9º, n.º 1, do CC), e ainda que na fixação e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas (cfr. artº 9º,n.º 3, do CC).                                                                                                      É certo que a nova redacção conferida ao artigo 105º n.º1 do RGIT pelo artigo 113º da Lei n.º 64-A/2008, de 31.12.2009, introduziu uma (mais uma) condição de punibilidade.    Parece-nos, contudo, lida a remissão plasmada na parte final do artigo 107º n.º 1 do RGIT para o artigo 105º do mesmo diploma legal, que a mesma se restringe única e exclusivamente à aplicabilidade das molduras penais previstas no artigo 105º, n.ºs 1 e 5 do RGIT e ao preceituado nos seus n.ºs 4, 6 e 7, não abrangendo a descrição da conduta que preenche a infracção criminal, ou seja, a sua previsão, «Tatbestand”, na expressão alemã).   De resto, tal é concordante com o facto de as condutas de abuso de confiança (fiscal) ora despenalizadas, terem passado a constituir ilícito contra-ordenacional, o que não se passou no domínio do crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, ficando as mesmas, se fosse possível ter como boa a interpretação propugnada pelo despacho recorrido, reduzidas à total impunidade, o que, em tempos de redobrados esforços no sentido da sustentabilidade do sistema e do nosso Estado Previdência (tão em ruptura), não se afigura, de todo, que possa ter sido opção do legislador (como se refere num dos acórdãos do TC abaixo referenciado, «numa altura em que se discute, se questiona e se pretende essencialmente assegurar e defender a sustentabilidade da segurança social, objectivo que ganhou foros de princípio fundamental do Estado Previdência e como garante de satisfação do pagamento das prestações sociais e reformas dos seus beneficiários»).                                   Repete-se: a remissão a que alude o artigo 107º n.º1 é apenas referente à pena prevista nos n.ºs 1 e 5 do artigo 105º do RGIT, sendo que o tipo legal de crime – elementos objectivos e subjectivo do tipo – é autonomamente previsto no n.º 1 do artigo 107º.                       Por seu lado, o n.º 2 do artigo 107º apenas faz remissão para o disposto nos n.ºs 4, 6 e 7.                                                                                                                                                 Não tendo sido expressamente alterada a redacção do n.º 1 do artigo 107º, torna-se claro que o tipo legal se mantém com a redacção original do RGIT.                                    Defende-se que houve aqui, em 2008, um lapso do legislador.                                        Mas o que é certo que não compete ao julgador/intérprete alterar a redacção legal quando a interpretação não tiver um mínimo de correspondência na letra da lei.
Para nós, e para aqueles que defendem esta tese, contrária à do despacho recorrido (tese que não pode ser considerada “crassamente positivista”, sendo antes a tese contrária facilitista e indutora de uma estranha e indesejável impunidade), a omissão da previsão em relação ao tipo legal de crime previsto no artigo 107º do RGIT foi, de facto, intencional (assente que se o legislador, apesar da sempre propagada criticável técnica legislativa, pretendesse aplicar a alteração ao crime de abuso de confiança contra a SS, tê-lo-ia expressamente determinado,
não tendo feito).                                                                                                                               Na realidade, tais DOIS tipos legais de crime não só protegem bens jurídicos diferentes como têm previsões especiais e diversas (exactamente porque o artigo 107.° tutela o erário da Segurança Social, numa lógica de afectação de receitas a fins específicos de beneficio, e de necessidade de garantia do respectivo equilíbrio financeiro, enquanto o artigo 105.º, incide sobre a receita que o Estado se propõe cobrar para satisfação de necessidades indiferenciadas).                                                                                                                             Caso assim não se entendesse, não faria sentido a previsão legal do crime constar de dois artigos diferentes, podendo um só e único preceito legal prever a situação de abuso fiscal e de abuso à Segurança Social.                                                                                               Ora, tais tipos legais foram, desde sempre, diferenciados.                                                            Por outro lado, e como já aqui se entendeu, não prevê o RGIT a imputação a título de contra-ordenação para o crime de abuso de confiança à Segurança Social, à semelhança do que acontece com o artigo 114º do referido diploma legal. O que significa que, caso se considerasse aplicável, aqui, a descriminalização, a omissão da entrega das quantias devidas até €7.500 ficaria totalmente sem qualquer tutela, seja como ilícito penal, seja como ilícito contra-ordenacional.                                                                                                                              Estando em causa, como acima se deixa opinado, tipos legais autónomos que, sob diferente teleologia, pretendem tutelar bens jurídicos diferentes, o que pode coarctar o legislador na adopção das medidas adequadamente diferenciadas relativamente aos diferentes interesses subjacentes?                                                                                                    Defendeu-se no Acórdão n.º 242/09 de 12.05.2009 do Tribunal Constitucional que:«…. cabe no âmbito da liberdade de conformação do legislador a determinação das condutas que devem ser criminalizadas. Necessário é, naturalmente, que a opção se não faça em violação das regras princípios constitucionais relevantes na matéria».                       Adiantou o Acórdão n.º 1146/96 do mesmo Tribunal que: «a Constituição não contém qualquer proibição de criminalização, e, observados que sejam certos princípios, como sejam o princípio da justiça, o princípio da humanidade e o princípio da proporcionalidade […], o legislador goza de ampla liberdade na individualização dos bens jurídicos carecidos de tutela», acabando por concluir que «as condutas incriminadas (actualmente) pelos artigos 105º (abuso de confiança fiscal) e 107º (abuso de confiança contra a segurança social) põem em causa interesses de tal forma relevantes que legitimam a opção pelo legislador».                                                                                                    Escreve-se lucidamente no Acórdão da Relação de Lisboa de 20/7/2009:
«É verdade que o legislador não levou em devida conta que o n.º 6 do artigo 105º foi expressamente revogado E essa é a única conclusão que se pode retirar deste manifesto lapso do legislador – ou seja, que foi, de facto, revogado tal n.º 6., acabando por manter a remissão para o citado n.º 6 operada pelo n.º 2 do artº 107, ou seja, manteve uma remissão para uma norma revogada (havendo que fazer uma interpretação abrogante daquela remissão).                                                                                                                                         Mas esta circunstância, conforme maioritariamente tem vindo a ser entendido pela jurisprudência, não pode conduzir a outra conclusão senão a de que foi intenção do legislador não querer alterar o crime de abuso de confiança fiscal contra a segurança social, designadamente, não querer tornar extensível aquele limite de €7.500 ao crime de abuso de confiança fiscal.                                                                                                                                 Tanto assim que nem o reconstruiu, não alterando em nada o desenho da factualidade típica.                                                                                                                               Por outro lado, ao manter o mesmo regime punitivo, apesar do limite dos €7.500 introduzido no n.º 1 do artº 105º, poderia inculcar a ideia que o legislador teria querido estender aquele limite também aos crimes de abuso de confiança contra a segurança social para manter a identidade de punições que sempre se verificou.                                                            Mas não nos parece que seja um elemento de peso capaz de afastar a interpretação que resulta logicamente do elemento literal já analisado porque a verdade é que os tipos legais em causa são autónomos, havendo razões para manter tal diferenciação ao nível do regime punitivo.                                                                                                                                   E conforme vem referido no estudo do Exmº Desembargador do Tribunal da Relação de Guimarães, Dr. Cruz Bucho, a propósito da autonomia deste tipo de crime refere “…o diferente limite mínimo a partir do qual a conduta é punível, que no crime de fraude fiscal é de €15,000 (artigo 103º, n.º 5, na redacção que lhe foi conferida pelo artigo 60º da Lei n.º 60-A/2005, de 30 de Dezembro) e no crime de fraude contra a segurança social se mantém em €7.500 (artigo 103º, n.º 2), a consagração de um regime sancionatório contra-ordenacional especial previsto em legislação extravagante (ressalvado pelo n.º 2 do artigo 1º da Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho e reafirmado na parte final da alínea d) do artigo 1º do RGIT), a circunstância de a falta de entrega de prestação tributária igual ou inferior a €7,500 constituir contra-ordenação prevista no artº 114º do RGIT enquanto a falta de entrega de quotizações deduzidas à segurança social não constituir contra-ordenação social”.                       Por último, como razão distintiva destes crimes, refira-se o fim específico das contribuições para a segurança social, de que não beneficiam sequer todos os cidadãos, constituindo algumas das prestações sociais a contrapartida das quotizações dos trabalhadores, sendo aqui o bem jurídico tutelado o património da Segurança Social, pelo que se atendermos ao bem jurídico protegido e ao fim específico das contribuições, não vemos razão justificativa para o legislador despenalizar as omissões de entregas de contribuições até €7.500. E se no caso do abuso de confiança fiscal se compreende que o Estado, por razões de eficiência, retire dos tribunais estes processos de menor gravidade, transferindo o combate à evasão fiscal através do procedimento contra-ordenacional, essa justificação no que se refere ao crime de abuso de confiança contra a segurança social não colhe pelas razões específicas já aludidas e até de sustentabilidade da Segurança Social».     O aludido estudo sobre «A Lei do OE 2009 e o crime de abuso de confiança contra a Segurança Social» refere ainda que:                                                                                        «Este reforço da autonomia do regime punitivo das infracções contra a Segurança Social funda-se e justifica-se na necessidade premente de defesa da sustentabilidade da segurança social fortemente ameaçada, em Portugal como na generalidade dos países europeus, pelo efeito conjunto de várias situações, nomeadamente o crescente envelhecimento da população, a redução da taxa de natalidade, o aumento progressivo do período contributivo (amadurecimento do sistema) e o crescimento das pensões a um ritmo superior ao das contribuições (cfr., v.g., o “Relatório Técnico sobre a Sustentabilidade da Segurança Social”, apresentado pelo Governo aos parceiros sociais, em Maio de 2006), as quais fazem perigar a própria manutenção do Estado Social.                                                      Assim, quanto ao crime de abuso de confiança fiscal compreende-se que, por razões de eficiência, se retirem dos tribunais, contribuindo deste modo para o seu descongestionamento, processos de natureza bagatelar por não se justificar que o Estado afecte recursos humanos e materiais na perseguição criminal de ilícitos fiscais em que a prestação não entregue é igual ou inferior a €7500, mas em que fica ressalvada a luta contra evasão fiscal (onde, de resto, se têm vindo a realizar grandes progressos), desde logo por via do procedimento contra-ordenacional (em que o valor mínimo da coima aplicável corresponde ao valor da prestação em falta, se o arguido for pessoa singular, e duas vezes esse valor, se o arguido for pessoa colectiva - cfr. artigos 114º, n.º1 e 26º, n.º1, ambos do RGIT).                                                                                                                                    Mas, a mesma justificação não colhe no que se refere ao abuso de confiança contra a segurança social no que toca à não entrega das quotizações deduzidas de valor igual ou inferior a €7500, já que o orçamento do IGFSS assenta ainda primordialmente nas receitas advenientes das contribuições resultantes dos descontos nas remunerações devidas – cfr. artigos 54º, 90º, n.º 2 e 92º todos da Lei n.º 4/2007, de 16 de Janeiro, que aprova as bases gerais do sistema de segurança social e Gomes Canotilho-Vital Moreira, CRP Anotada, 4ª ed., vol. I, Coimbra, 2007, págs. 817- 818 e 1105-1106».                                                            Aluda-se ainda a um argumento de ordem sistemática.                                                   Na realidade, se atendermos à inserção sistemática do art. 113° da Lei 64-A/2008, de 31/12, facilmente constatamos que se integra na sua secção II -"Procedimento e Processo Tributário" do Capítulo XI -"Procedimento, processo tributário e outras disposições", enquanto as alterações legislativas que o OE contempla para o regime da Segurança Social se inserem no seu Capítulo V -"Segurança Social" (art.s 55° e seguintes), pelo que seria neste âmbito que o legislador poderia proceder a alterações aos crimes contra a segurança social,
o que deliberadamente não fez.                                                                                    Em conclusão:                                                                                                               A opção política subjacente à escolha do legislador não viola os princípios, constitucionalmente consagrados, da legalidade, tipicidade, proporcionalidade e adequação.      Ora, como se escreveu em Acórdão por nós assinado como adjunto, «se nos crimes fiscais, os deveres impostos aos contribuintes convergem para a revelação da real capacidade contributiva de cada um e de todos os cidadãos obrigados a pagar impostos, tendo em vista a realização da igualdade e justiças tributárias, reconduzindo-se assim a um mais amplo bem jurídico tutelado, qual seja "a confiança da administração fiscal na verdadeira capacidade contributiva do contribuinte", já no crime de Abuso de Confiança contra a Segurança Social, não é o Estado/Administração Fiscal o destinatário desses montantes, mas sim o Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, com personalidade jurídica e património próprio, dotado de autonomia administrativa e financeira para a gestão dos interesses de segurança social que lhe estão cometidos defender e prosseguir, e cujo orçamento próprio assenta fundamental e prioritariamente nas receitas provenientes das prestações sociais resultantes dos descontos efectuados, sendo pois esta efectiva arrecadação o bem jurídico tutelado».                                                                              O legislador está legitimado para «…eleger dentre as acções ou omissões violadoras de obrigações fiscais, aquelas cuja criminalização postula a cominação de penas de prisão…», mas o seu critério «…terá necessariamente que passar pela ressonância ética dos bens e interesses a proteger, pela gravidade objectiva e subjectiva de tais comportamentos e pela lesão ou perigo de lesão dos valores a preservar» – Alfredo José de Sousa “ Direito Penal Fiscal – uma prospectiva” - DPEE, Vol II Coimbra 1999, pág 160.                               Ora, não equipare o intérprete aquilo que o legislador, lucidamente, quis diferenciar!          A finalizar, diremos que está vedado ao intérprete fazer uma aplicação analógica ou extensiva da lei penal, ainda que a favor do arguido, quando no caso, diremos nós, como o presente, tal interpretação não encontra assento mínimo nas palavras da lei, antes implicando um «criar ou inovar direito», completamente inadmissível em Direito Penal.       E o princípio da legalidade nos agradecerá…                                                                      Isso mesmo decidiu muito recentemente o Acórdão do STJ, datado de 17/12/2009 (Pº 331/01.2TAVCD.S1), relatado pelo Insigne Juiz Conselheiro Armindo dos Santos Monteiro – aí se entendeu que:                                                                                                                               I- Remanesce do elemento literal e da interpretação sistémica de preceitos, atinente à recente alteração ao artigo 105º do RGIT, que só é imposta pena quando o valor das prestações tributárias é superior a € 7500.                                                                                        II- Ao contrário, quanto às prestações sociais, não se estabelece qualquer limitação pecuniária na norma de previsão do artigo 107º do RGIT.                                                     III- Se fosse de referenciar como obstáculo punitivo do crime de abuso de confiança contra as instituições de Segurança Social o segmento atinente ao valor em débito, transpondo-o sem mais para o artigo 107º, estar-se-ia a introduzir no tipo uma circunstância que aí não figura, construindo-se, pura e simplesmente, um tipo legal novo, inserto num diploma de aprovação do Orçamento Geral do Estado, acabando por se arvorar o legislador orçamental em legislador penal, em postura próxima da usurpação de poderes.                          3.4. Entendemos assim, concordando com a posição dos dois recorrentes, e na esteira do entendimento perfilhado por inúmeros arestos dos nossos tribunais superiores [cfr., a título meramente exemplificativo, todos os acórdãos, a que tivemos acesso, redigidos nesta Relação, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 25/3/2009, referenciado nas alegações do MP, o Acórdão do Tribunal da Relação de Porto de 23/9/2009 (267/02.0IDBRG-B.P1) e o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 20/7/2009 (7867/2008-3)], que a despenalização prevista no n.º 1 do artigo 105º do RGIT não é aplicável aos crimes de abuso de confiança à Segurança Social, ou seja, que o limite de 7500 euros consagrado no n.º 1, do artigo 105º, do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT), na redacção que lhe foi dada pelo artigo 113º da Lei n.º 64-A/2008, de 31 de Dezembro, não é aplicável ao crime de abuso de confiança contra a Segurança Social previsto no artigo 107º, do RGIT, inexistindo a despenalização sustentada no despacho recorrido.

                                                        ****

Pois bem, há que deixar aqui consignado que nada nos afasta da posição acabada de transcrever, sendo certo que a mesma, dada a sua proficiência, dispensa qualquer aditamento, sempre com o maior respeito, como é evidente, por aqueles que defendem a posição contrária, expressa na decisão recorrida.

Pelo exposto, não há que considerar descriminalizados os factos constantes da acusação, como o fez a decisão recorrida.

Logo, não há motivo que imponha a extinção do procedimento criminal.

Acresce que, e como argumento final e decisivo, no passado dia 23 de Setembro de 2010 (já após ter sido inscrita em Tabela a conferência dos presentes autos), foi publicado no D.R., 1ª Série, n.º 186, o Acórdão do S.T.J. n.º 8/2010, de 14/7/2010, Processo n.º 6463/07.6TDLSB.L1 – A.S1 (Recurso para fixação de jurisprudência), no qual foi decidido o seguinte:

Fixar jurisprudência, no sentido de que, a exigência do montante mínimo de 7500 euros, de que o n.º 1 do artigo 105.º do Regime Geral das Infracções Tributárias – RGIT (aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho, e alterado, além do mais, pelo artigo 113.º da Lei n.º 64-A/2008, de 31 de Dezembro) faz depender o preenchimento do tipo legal de crime de abuso de confiança fiscal, não tem lugar em relação ao crime de abuso de confiança contra a segurança social, previsto no artigo 107.º, n.º 1 do mesmo diploma.

         Face ao exposto, uma vez que não temos divergências relativas à jurisprudência fixada no mencionado Acórdão n.º 8/2010, e sem necessidade de mais considerações, forçoso é concluir que a pretensão do arguido tem de soçobrar.

                                                                       ****

2) Do erro de julgamento:                                                                       Em sede de impugnação da matéria de facto, o recorrente pode invocar vícios oficiosos do artigo 410.º, do CPP (insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão e erro notório na apreciação da prova), ou pode visar a reapreciação  da matéria dada como provada, nos termos do artigo 412.º, n.º 3, do CPP.                                                                                                                       Não há que confundir estas duas formas de impugnação da matéria factual – por um lado, a invocação dos vícios previstos no artigo 410º, n.º 2, alíneas a). b) e c), e, por outro, os requisitos da impugnação – mais ampla - da matéria de facto a que se refere o artigo 412º, n.º 3, alíneas a), b) e c), todos do CPP.                                                                                                                                                                  ****                                                              

O Ministério Público junto da 1ª instância, na sua resposta ao recurso, suscita a questão do recorrente não ter dado cumprimento ao disposto no artigo 412.º, n.º 3, als. a), b) e c) e n.º 4, do CPP, relativamente à impugnação da matéria de facto, tendo mesmo defendido que deveria ser dado cumprimento ao disposto no artigo 417.º, n.º 3, do CPP.

Na realidade, a linguagem do recorrente, salvo o devido respeito, é, neste campo, elíptica, na medida em que não chega a esclarecer em que termos baseia a alteração pretendida da matéria de facto, dela decorrendo apenas que a sentença merece “alguns reparos”.

No entanto, dada a simplicidade da matéria a conhecer, e por questões de economia processual, este Tribunal achou por desnecessário o cumprimento do artigo 417.º, n.º 3, do CPP.

Avancemos.

Liminarmente, relativamente ao artigo 23 dos factos provados, nem sequer se coloca uma questão de impugnação da matéria de facto, mas sim de simples correcção da sentença, nos termos do artigo 380.º, n.º 1, al. b), do CPP.

Como é evidente, estamos perante um lapso que não importa modificação essencial, o qual resulta manifesto do próprio texto da sentença.

Por conseguinte, oportunamente, será ordenada a respectiva alteração.

                                                           ****

Já quanto aos outros factos colocados em causa pelo recorrente, há que os analisar em sede de erro de julgamento que, de acordo com o disposto no artigo 412º, nº 3, do CPP, ocorre quando o tribunal considere provado um determinado facto, sem que dele tivesse sido feita prova pelo que deveria ter sido considerado não provado ou quando dá como não provado um facto que, face à prova que foi produzida, deveria ter sido considerado provado.                    Aqui, nesta situação de erro de julgamento, o recurso quer reapreciar a prova gravada em 1ª instância, havendo que a ouvir em 2ª instância.                                                                     Neste caso, a apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no cumprimento do ónus de especificação imposto pelos n.º 3 e 4 do art. 412.º do CPP.                                                                                   Nos casos de impugnação ampla, o recurso da matéria de facto não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, agora com base na audição de gravações, antes constituindo um mero remédio para obviar a eventuais erros ou incorrecções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, na perspectiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente.                                                                                                              E é exactamente porque o recurso em que se impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não constitui um novo julgamento do objecto do processo, mas antes um remédio jurídico que se destina a despistar e corrigir, cirurgicamente, erros in judicando ou in procedendo, que o recorrente deverá expressamente indicar, é que se impõe a este o ónus de proceder a uma tríplice especificação, estabelecendo o artigo 412.º, n.º3, do C.P.Penal:                    «3.Quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, o recorrente deve especificar:                                                                                                                                       a)- Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;                              b)-As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;                                            c)-As provas que devem ser renovadas».                                                                                   A dita especificação dos «concretos pontos de facto» traduz-se na indicação dos factos individualizados que constam da sentença recorrida e que se consideram incorrectamente julgados, só se satisfazendo tal especificação com a indicação do conteúdo especifico do meio de prova ou de obtenção de prova e com a explicitação da razão pela qual essas «provas» impõem decisão diversa da recorrida.

                                               ****

No caso dos autos, já vimos que o recorrente não primou pela clareza no que diz respeito ao ónus de especificação. No entanto, acaba por ser entendido, ainda que de uma forma minimalista, o que é pretendido.

No que concerne ao artigo 10 dos factos provados, o arguido entende que deveria ser acrescentado ao mesmo “mediante a garantia do imóvel inscrito na matriz predial urbana sob o artigo … da freguesia de …, Viseu”.

Para tanto, faz alusão a um documento junto aos autos (fls. 329).

            O aditamento pretendido é inócuo.

            Mais à frente, quando for abordada a questão da dispensa de pena, perceberemos melhor o motivo da afirmação que acaba de ser feita.

            O facto relevante é a existência do acordo com a Segurança Social. E esse consta dos factos provados.

            Por conseguinte, não há lugar, nesta matéria, a qualquer alteração da matéria de facto.

            No que tange ao artigo 24 dos factos provados, o arguido entende que, com base nas suas declarações (sessão de 25/11/2010 – gravada através do sistema integrado de gravação digital em uso no tribunal das 9:53:11 às 9.57:27), não pode ser dado como provado que o mesmo é dono de outras casas, mas sim que morou em outras casas.

            Resulta, efectivamente, da gravação que o arguido, na sequência de uma pergunta feita pela Magistrada do Ministério Público, respondeu que morou em outras casas.

            Além disso, não consta dos autos prova documental que demonstre que o arguido é dono de outras casas.

            Tal é indesmentível.

            Quanto muito, do citado documento de fls. 329, pode ser retirada a ideia de que o arguido é dono de um imóvel.

            Saliente-se, a este respeito, que a alteração da matéria de facto pretendida pelo recorrente é irrelevante.

            Na verdade, nenhum efeito útil tem levar aos factos provados que o recorrente “morou em outras casas”.

            Não há, pois, que proceder à alteração pretendida.

             De qualquer das formas, uma vez que, efectivamente, não existe prova suficiente nos autos de que o recorrente é “dono de outras casas”, entende-se por bem que deve ser eliminado o facto 24 dos factos provados, passando o mesmo a constar dos factos não provados.

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3) Da violação do disposto nos artigos 47.º e 71.º, ambos do Código Penal:

          Façamos, desde já, uma breve análise sobre as finalidades legais das penas com reflexos no seu doseamento e nos critérios legais concretos a observar neste doseamento.

Como dispõe o artigo 40.º, n.º 1, do Código Penal, a aplicação de penas visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade. As finalidades das penas, na previsão, na aplicação e na execução, são assim na filosofia da lei penal vigente a protecção de bens jurídicos e a integração do agente do crime nos valores sociais afectados.

Na protecção de bens jurídicos está ínsita uma finalidade de prevenção de comportamentos danosos que afectem tais bens e valores (prevenção geral) como também a realização de finalidades preventivas que sejam aptas a impedir a prática pelo agente de futuros crimes (prevenção especial negativa).

As finalidades das penas na sua vertente de prevenção positiva geral e de integração ou prevenção especial de socialização conjugam-se na prossecução do objectivo comum de, por meio da prevenção de comportamentos danosos, proteger bens jurídicos comunitariamente valiosos cuja violação constitui crime.

No caso concreto a finalidade de tutela e protecção de bens jurídicos há-de constituir o motivo fundamento da escolha do modelo e da medida da pena, da tutela da confiança das expectativas da comunidade na validade das normas e especificamente na validade e integridade das normas e dos correspondentes valores concretamente afectados.

Por seu lado, a finalidade de reintegração do agente na sociedade há-de ser em cada caso prosseguida pela imposição de uma pena cuja espécie e medida, determinada por critérios derivados das exigências de prevenção especial, se mostre adequada e seja exigida pelas necessidades de ressocialização do agente, ou pela intensidade da advertência que se revele suficiente para realizar tais finalidades.

Nos limites da prevenção geral de integração e de prevenção especial de socialização será encontrada a medida concreta da pena, sempre de acordo com o princípio da culpa que, nos termos do artigo 40.º, n.º 2 do Código Penal, constitui limite inultrapassável da prevenção a realizar através da pena (cfr. nomeadamente Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, 1ª edição, pags. 238 a 255).

Postas estas considerações gerais, que devem estar presentes no juízo conducente à pena concreta e adequada, o artigo 71.º, n.º 1, do Código Penal, preceitua, na senda do citado artigo 40.º, que a determinação concreta da pena, dentro dos limites legalmente definidos, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção e o n.º 2 do mesmo artigo determina que o tribunal atenda a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor ou contra o agente, enumerando algumas a título exemplificativo, circunstâncias estas que nos darão a medida das exigências de prevenção em concreto a realizar porque indicadoras do grau de violação do valor em causa e da prognose de no futuro o agente se poder determinar com o respeito pelo valor penalmente protegido (a necessidade da pena revela-se desse modo em função da menor ou maior exigência do exercício da prevenção e da reintegração).

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Revertendo ao caso dos autos, o recorrente coloca em causa o número de dias de multa determinado na sentença, assim como o respectivo quantitativo diário.

Não é colocada em causa a primazia da pena de multa.

Assim sendo, a moldura penal a ter em consideração vai até 360 dias.

Há, então, justificação para os 250 dias aplicados?

No que concerne ao crime em causa, as exigências de prevenção geral são elevadas, ponderando que a evasão fiscal, em sentido amplo (Segurança Social englobada), configura um fenómeno generalizado e responsável por flagrantes injustiças de ordem social, na medida em que os trabalhadores dependentes, impedidos de se furtar às suas obrigações fiscais (uma vez que vêem as quantias devidas serem retidas na base do vencimento), acabam por ter que suportar encargos fiscais por aqueles que se evadem ao cumprimento das suas obrigações tributárias. Esta conjuntura conduz precisamente o Estado a rodear de especiais garantias os créditos de natureza fiscal, em sentido lato.

Com efeito, a confiança da Administração Fiscal na real capacidade contributiva dos cidadãos, configura um bem jurídico com assento Constitucional (art.º 103.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa) e reclama que seja garantido o seu respeito de forma efectiva.

Por via da conduta do arguido, viu-se frustrada a satisfação do crédito do Estado, repercutindo-se essa situação na satisfação das necessidades sociais dos demais cidadãos que cumprem as suas obrigações fiscais e contribuem para o bem-estar sócio-económico da restante comunidade, o que não pode nem deve ser minimizado.

Por outro lado, mostram-se reduzidas as exigências de prevenção especial, em face da ausência de antecedentes criminais do arguido, em conjugação com a sua inserção sócio-profissional e familiar.

Em resumo, pois, a determinação da medida concreta da pena deverá ocorrer entre estes dois vectores fundamentais previstos no art.º 40.º, n.º 2 e 71.º, n.º 1, do Código Penal – culpa do agente e exigências de prevenção –, tomando-se em consideração todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime (proibição da dupla valoração), depuserem a favor do agente ou contra ele (art.º 71.º, n.º 2, alíneas a) a f), do Código Penal).

De outro lado, o art.º 13.º, do R.G.I.T. estipula que “Na determinação da medida da pena atende-se, sempre que possível, ao prejuízo causado pelo crime.”.

A favor do arguido pugnam as seguintes circunstâncias:

- Os motivos subjacentes aos factos, patenteados numa situação de precariedade de ordem financeira, tendo em conta as dificuldades pelas quais passou a sociedade arguida que, actualmente, não exerce qualquer actividade;

- A inserção profissional e sócio-familiar do arguido.

- A sua ausência de antecedentes criminais.

- A situação financeira do arguido, a qual se reputa mediana.

- O acordo obtido com a Segurança Social para pagamento da quantia em dívida.

E depõem contra o arguido as seguintes circunstâncias:

- O grau de ilicitude, que se reputa algo acima da média, sendo manifestado no valor total das quantias retidas e no adjacente prejuízo causado à Segurança Social, bem como na extensão do período de perpetração da conduta típica (Fevereiro de 2007 a Agosto de 2008);

- O dolo intenso, porquanto directo.

Nesta confluência e ponderando quanto acima ficou exposto, julga-se proporcional e adequada a pena aplicada ao recorrente, tendo em conta a fundamentação constante da sentença que não merece qualquer censura.

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No que tange ao quantitativo diário da multa, há que atender a alguns aspectos.

Sempre que esteja definida a pena concreta de multa, haverá que determinar a respectiva taxa diária.

Como defende o Professor Figueiredo Dias (Direito Penal Português, pág. 127), todas as considerações atinentes quer à culpa, quer à prevenção geral quer à especial, devem exercer influência sobre a determinação da pena e, por via disso, sobre os dias de multa, e não sobre o quantitativo diário. Em contrapartida, tudo quanto respeite à situação económica-financeira do condenado deve ser considerado na fase de fixação do quantitativo diário da multa.

A lei alemã determina expressamente que o julgador parta em regra do rendimento bruto que o agente, em média, tem, ou poderia ter, diariamente. Na obra acima mencionada, o Professor Figueiredo Dias refere que, podendo tal critério ser considerado como demasiado rigoroso, o mesmo deve ser substituído por um critério de retirada, ou da diminuição, segundo o qual o juiz deve calcular a quantia que, em cada dia, o agente pode economizar, ou que lhe pode ser retirada sem dano para os gastos indispensáveis.

   A nossa lei (artigo 47.º, n.º 2, do C. Penal) aponta neste segundo sentido, ou seja, vai para além de uma visão puramente economicista e contempla critérios de razoabilidade e exigibilidade. Assim, se é verdade que a pena de multa terá de representar uma censura do facto, e ao mesmo tempo uma garantia para a comunidade da validade e vigência da norma violada, não é menos certo que deverá sempre ser assegurado ao condenado o nível existencial mínimo adequado às suas condições sócio-económicas.

Daí que deva o juiz partir, para a determinação do montante da multa, do chamado rendimento líquido, isto é, a diferença entre o rendimento bruto e as despesas que advêm do seu ganho.

No primeiro parâmetro (rendimento bruto), deverão entrar todos os rendimentos próprios auferidos pelo condenado qualquer que seja a sua fonte (por exemplo, salário, lucro comercial, rendas, juros).

Contudo, a pena de multa não pode transformar-se numa pena de confisco, pelo que, conforme dizem Jeschek (Tratado de Derecho Penal, pág. 709) e Figueiredo Dias (obra citada, pág. 129), devem ser privadas de influência na determinação do quantitativo diário circunstâncias como as de o condenado viver com sua família num imóvel de alto valor e pagar altíssimos prémios de seguros de vida ou encargos análogos.

Em resumo, deve o juiz ter sempre presente que o património do condenado pode não ter correspondência no seu rendimento líquido.

É este o momento que entendemos por conveniente para afirmar que, ao fim e ao cabo,  a eliminação do artigo 24 dos factos provados acaba por ter um nulo efeito prático na apreciação das condições sócio-económicas do arguido, do mesmo modo que a manutenção do mesmo também o teria, visto que sempre estaríamos apenas no domínio do património sem uma concretização ao nível do rendimento disponível, esse sim importante.

Por conseguinte, antes de determinar a taxa diária da multa, tem o tribunal de encontrar, na medida do possível, sempre um rendimento disponível com o qual o condenado vai fazer frente às despesas inerentes à satisfação das necessidades económicas próprias e daqueles que de si dependem. Tais necessidades, no fundamental, correspondem a direitos fundamentais que não podem ser colocados em causa, como a educação e a alimentação. Podem, ainda, dizer respeito ao cumprimento de obrigações de pagamento cuja razoabilidade resulta da própria vida em sociedade, como o caso de um empréstimo para compra de habitação.

Deverá, pois, ser sobre o montante obtido da diferença entre o citado rendimento disponível e as despesas e obrigações englobadas naquele núcleo essencial acabado de ser mencionado que será equacionada a fixação da taxa diária da multa.

Em síntese, o n.º 2, do artigo 47.º, do C. Penal, consagra que o respectivo montante deve ser fixado em função da situação económica e financeira do condenado e dos seus encargos pessoais.  

Como é entendimento corrente, a taxa diária da multa deve ser fixada de uma forma que represente um sacrifício real para o condenado, para que mantenha a sua característica de verdadeira pena, pois de outro modo não será possível, através da sua aplicação, realizar as finalidades da punição.                                                                                  Na ponderação do quantitativo ajustado ao caso concreto não entram unicamente em linha de conta os rendimentos mensais, apurados ou declarados, mas também todos os outros rendimentos, bens e encargos que definem uma situação económica e que permitem avaliar a repercussão que nela vai ter a pena encontrada, de forma a poder-se concluir se a mesma é, efectivamente e como deve ser, adequada para sancionar a concreta gravidade do facto.                    Ora, relativamente à condição económica do recorrente, foram dados como provados os factos 21, 25, 26, 27 (sentença ora em crise).                                      Ponderando a condição económica apurada, o tribunal recorrido fixou a taxa diária em dez euros, tendo em consideração os limites constantes do artigo 15.º do RGIT.

Isso merece algum reparo?                                                                                                 Cabe à jurisprudência evitar que a aplicação de montantes ridiculamente baixos redunde no descrédito e ineficácia da pena de multa.

         Ora, no caso concreto, encontra-se apurado que o recorrente é gerente de uma sociedade, auferindo um vencimento mensal de, pelo menos, setecentos e cinquenta euros, tem viatura própria, vive numa casa registada em nome do filho, sendo certo que não lhe são conhecidos encargos especiais a título de alimentos ou de empréstimos bancários.

            Destes elementos, não resulta, de modo algum, que o arguido esteja impossibilitado de suportar o pagamento do quantitativo em causa, por falta de rendimento disponível.

            Assim sendo, é manifesto que nada de excessivo existe no quantitativo diário que consta da sentença recorrida, tanto mais que a lei sempre permite o pagamento da pena de multa em prestações, sempre que a situação económica e financeira do condenado o justificar.

                                                                       * * * *

         4) Da dispensa de pena:

         Por último, o recorrente defende que, a ser condenado, deve ser dispensado de pena.

            O artigo 22.º, do RGIT, consagra o seguinte:

            “1 – Se o agente repuser a verdade sobre a situação tributária e o crime for punível com pena de prisão igual ou inferior a três anos, a pena pode ser dispensada se:

a) A ilicitude do facto e a culpa do agente não forem muito graves;

b) A prestação tributária e demais acréscimos legais tiverem sido pagos, ou tiverem sido restituídos os benefícios injustificadamente obtidos;

c) Á dispensa da pena se não opuserem razões de prevenção.

2 – A pena será especialmente atenuada se o agente repuser a verdade fiscal e pagar a prestação tributária e demais acréscimos legais até à decisão final ou no prazo fixado.”

Por sua vez, o artigo 74.º, do Código Penal, dispõe o seguinte:

“1 – Quando o crime for punível com pena de prisão não superior a seis meses, ou só com multa não superior a 120 dias, pode o tribunal declarar o réu culpado mas não aplicar qualquer pena se:

a) A ilicitude do facto e a culpa do agente forem diminutas;

b) O dano tiver sido reparado;

c) Á dispensa da pena se não opuserem razões de prevenção.

2 – Se o juiz tiver razões para crer que a reparação do dano está em vias de se verificar, pode adiar a sentença para reapreciação do caso dentro de um ano, em dia que logo marcará.

3 – Quando uma outra norma admitir, com carácter facultativo, a dispensa de pena, esta só tem lugar se no caso se verificarem os requisitos contidos nas alíneas do n.º 1.”

Referindo-se, em termos gerais, à dispensa de pena, ensina Figueiredo Dias (Direito Penal Português – As consequências jurídicas do crime, Aequitas-Editorial Notícias, 1993, p. 319 e segs.):                                                                                                                                   «Do ponto de vista da prevenção especial, o conjunto de pressupostos mencionados dá imediatamente a perceber que não tenha sentido falar-se de exigências de “neutralização” ou “inocuização” do delinquente, ou de “segurança” face a ele: tais exigências são não só obviadas primacialmente através de medidas de segurança, antes que de penas, como pressupõem um mínimo de gravidade objectiva do facto para que este assuma função indiciadora de uma perigosidade criminal (….)                                                                        O que aqui pode estar em questão é pois, unicamente (como de resto o confirma o texto do art. 75.º - 1), a exigência de prevenção especial de socialização: esta pode, na verdade, opor-se a que se dispense a pena, apesar da verificação dos restantes pressupostos, v. g., a um condutor de veículo inconsiderado ou arriscado; mas já se não opor à dispensa de pena de um agente “não carente de socialização” (supra § 333), nomeadamente de um agente ocasional ou situacional.                                                                                                                                       Do ponto de vista da prevenção geral, a dispensa da pena será admissível sempre que, verificados os restantes pressupostos, o tribunal considere que, com a circunstância de o agente ser declarado culpado – o que o instituto da dispensa de pena necessariamente supõe –, ligada à natureza condenatória da sentença (…..) e à sua comunicação ao registo criminal (…..) se alcança o limiar mínimo de prevenção geral de integração ou de defesa do ordenamento jurídico, não sendo por isso, do ponto de vista da prevenção geral, necessária a imposição de uma pena.»                                                                                                                                      Se bem repararmos, há um tratamento privilegiado que decorre do RGIT, enquanto lei especial, na medida em que a dispensa de pena surge em termos mais amplos do que no âmbito do Código Penal, visto que é permitida se o crime for punível com pena de prisão igual ou inferior a três anos (ou só com pena de multa, no caso de entes colectivos).

            Todavia, isso não significa que os pressupostos da dispensa da pena sejam menos exigentes que na lei geral.

            Acontece que não resulta dos autos que o recorrente tenha já reposto a verdade sobre a situação tributária ou a verdade fiscal, pelo que afastada está a possibilidade de dispensa de pena.

            Por isso mesmo, dissemos atrás que era inócuo fazer constar dos factos provados a existência de uma garantia.

            Aquilo que o arguido defende, a este propósito, esbarra com a letra da lei, sendo certo que está interdito ao intérprete, convém recordar, enveredar por uma aplicação analógica ou extensiva da lei penal, ainda que a favor do arguido, quando tal interpretação não encontra assento mínimo nas palavras da lei.

            De acordo com o n.º 2, do artigo 9.º, do Código Civil, “não pode ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso”.

A lei é muito clara e pressupõe uma reposição (já concretizada) e não um acordo de pagamento a ser efectuado no futuro.

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IV. Decisão:

Nestes termos, é negado provimento ao recurso, confirmando-se a decisão recorrida, sem prejuízo da eliminação do facto provado n.º 24, cujo teor deve ser acrescentado ao que não se provou (alteração sem reflexo ao nível da decisão em matéria de direito) e da seguinte correcção que deve ser feita, ao abrigo do disposto no artigo 380.º, n.º 1, al. b), do CPP:

- no artigo 23 dos factos provados, onde se lê “VF...de Jesus” deve passar a ser lido “SC...”. Anote-se no local próprio.

Custas a cargo do recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 UC.

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José Eduardo Martins (Relator)

Isabel Valongo

  




[1] A gravidade da ilicitude emerge pelo número e grau de violação dos interesses ofendidos, pelas suas consequências e eficácia dos meios utilizados.
A culpa emergirá, além do demais possível, da forma da imputação subjectiva (dolo e negligência) nas suas várias e possíveis conformações  (modalidade do dolo e da negligência) e graus de intensidade. Emergirá, ainda, dos fins ou motivos (inferiores ou elevados) determinantes da sua conduta, à maior ou menor exigibilidade de uma conduta diferente, dos sentimentos revelados no facto, no sentido de atitude interna ou moral do agente e da posição que assume perante a ordem jurídica mais ou menos desculpáveis consoante mais ou menos revéis aos valores sociais dominantes. Importante, ainda o seu passado criminal, o comportamento posterior ao crime - como por exemplo, o arrependimento, a confissão relevante, a reparação do dano ou o propósito sincero de o reparar. A culpa pela personalidade, manifestada no facto, complementará a culpa pela realização do próprio facto, esta a considerar na medida da liberdade de determinação do agente, perante as circunstâncias exteriores, e conforme seja aquele agente mais ou menos sensível a essas circunstâncias: por outras palavras, consoante seja, mais ou menos exigível o comportamento lícito (alternativo àquele tomado).
A influência (previsível) da pena sobre o agente emergirá das suas condições pessoais e económicas (nomeadamente da sua formação, do seu grau de instrução, do seu quadro e contexto familiar ou social próximo) querendo isso significar que a pena deve adequar-se às previsíveis consequências sobre o agente, ao custo que ela importará para a sua pessoa.