Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
64/03.5TBTBU.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: TELES PEREIRA
Descritores: PROVA TESTEMUNHAL
VALOR PROBATÓRIO
ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA
UNIÃO DE FACTO
Data do Acordão: 05/25/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TÁBUA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 396º, 473º, NºS 1 E 2, E 474º DO C. CIV..
Sumário: I – A valoração da prova testemunhal assenta no princípio da livre apreciação (artº 396º do C.Civ.), expressando este a aceitação de uma inevitável margem de ponderação subjectiva do julgador directo, irrepetível num controlo por terceiros, não existindo fundamento prático ou legal, dentro da lógica própria de um acesso mediato aos factos, para que o Tribunal de recurso substitua a “livre apreciação” do julgador directo pela sua (mediata ou indirecta) “livre apreciação”.

II – O artº 473º, nº 1, do C. Civ. contém uma cláusula geral cuja amplitude conduziria, na base da sua utilização indiscriminada, ao efeito perverso de colocar em causa a aplicação de uma série de outras regras de direito positivo, facultando a interposição de uma acção exigindo a restituição do enriquecimento sempre que se reunissem os pressupostos directamente previstos na norma em causa: a) existência de um enriquecimento; b) obtenção desse enriquecimento à custa de outrem; c) ausência de causa justificativa para o enriquecimento.

III – Como primeiro elemento de “contenção” da amplitude da cláusula geral, encontramos a chamada regra da subsidiariedade do instituto do enriquecimento sem causa, constante do artº 474º do CC, que afasta a “restituição por enriquecimento quando a lei facultar ao empobrecido outro meio de ser indemnizado ou restituído, negar o direito à restituição ou atribuir outros efeitos ao enriquecimento”.

IV – A “união de facto” entre duas pessoas corresponde a uma situação fundamentalmente distinta do casamento nas suas incidências patrimoniais, mesmo quando implique, como sem dúvida pode suceder e sucederá frequentemente, a abertura de uma espécie de relação liquidatária do património por ela (união de facto) gerado.

V – Neste caso, o que sucede é, fundamentalmente, repercutir o “deve e o haver” de cada convivente num resultado divisório, atendendo-se à medida da contribuição de cada um dos cônjuges de facto para a formação desse património comum, designadamente através dos princípios respeitantes à liquidação das sociedades de facto, mesmo quando se tenham gerado, na composição desse património, situações de compropriedade referidas a determinados bens.

VI – O Direito holandês prevê uma “união de facto registada”, sendo relativamente a esta união registada que a incidência patrimonial da dissolução se pode colocar em Portugal.

Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

I – A Causa


           

1. Em Janeiro de 2003[1], A..., de nacionalidade holandesa (A., Reconvindo e neste recurso Apelado), demandou B..., também ela nacional holandesa (R., Reconvinte e Apelante no presente recurso), formulando, relativamente a esta, os seguintes pedidos, agrupando-os em principais e subsidiários:


“[…]
1. Pedido Principal:
a) Se reconheça o A. como dono e exclusivo proprietário do prédio descrito sob o nº 61/0880785 da Conservatória do Registo Predial de ... – freguesia de ..., melhor descrito no artigo 8º, bem como o seu direito de propriedade sobre as melhorias e as benfeitorias aí implantadas por si e melhor descritas nos artigos 11º a 20º, todos desta p.i. e
b) [Se] condene a R. a se abster de todo e qualquer acto jurídico ou material que perturbe o direito de propriedade do A. sobre o prédio melhor identificado no referido artigo 8º e respectivas melhorias ou benfeitorias melhor identificadas nos artigos 11º a 20º, todos desta p.i.
2. Caso […] assim não entenda, desde já requer […] que, a título de pedido subsidiário:
a) Sejam reconhecidas as benfeitorias úteis ou necessárias ou voluptuárias, não passíveis de levantamento, implantadas e pagas exclusivamente pelo A., melhor identificadas no teor dos artigos 11º a 20º da p.i. […] e que valorizam a propriedade […] no valor total de 11.500.000$00 ou €57.361,76 e
b) A dívida da R. no valor de metade do preço da propriedade e [de] metade das despesas de aquisição da propriedade, todas melhor identificadas nos artigos 8º a 10º desta p.i., no valor de 1.750.000$00 ou €8.728,96 e 500.000$00 ou €2.493,99, respectivamente e
c) O direito de crédito do A. relativo às despesas de conservação ordinária da aludida propriedade, no valor metade de 500.000$00 – 250.000$00 ou €1.247,00 – sem prejuízo de liquidação posterior em execução de sentença das despesas ocasionadas e pagas pelo A. desde a data da citação até sentença condenatória.
3. Requer, tanto para o pedido principal [como] para o pedido subsidiário:
a) que se ordene o cancelamento de todo e qualquer registo provisório e/ou definitivo a favor da R. sobre o prédio melhor descrito sob o artigo 61 da Conservatória do Registo Predial de ..., da freguesia de ... […]
[…]”
[transcrição de fls. 11/12, sublinhado e ênfase acrescentados[2]]

            Fundando estes pedidos, em especial quanto ao primeiro grupo deles, invocou o A. ter adquirido – ele e só ele – um terreno em ..., o qual, por erro em que teria sido induzido pela R., acabou por ficar, na escritura de compra respectiva e no registo, em nome dos dois (A. e R.), isto no sentido de ter sido formalmente adquirido em compropriedade pelos dois, sendo que foi ele (A.) quem custeou, em exclusivo, o preço dessa aquisição e todas as despesas respeitantes à construção de uma casa nesse terreno e ao melhoramento das condições da propriedade, e foi ele, igualmente, quem suportou e vem suportando todos os encargos de conservação inerentes ao prédio[3].

As pretensões subsidiáriasaquelas que, em função da decisão da primeira instância e do objecto do presente recurso, nos cumprirá apreciar – ligam-se à possível fixação do regime dominial do prédio em causa como compropriedade do A. e R. (ou seja à improcedência do pedido principal), pretendendo o A., neste caso, a condenação da R. no reconhecimento[4] de um crédito correspondente a metade do valor de aquisição do prédio (metade do preço, chamemos-lhe assim) e a metade das demais despesas respeitantes a essa aquisição (escritura, registo e Sisa) e, sempre quantificado pela metade (enquanto quota ideal de cada um na compropriedade), de um crédito correspondente às despesas vencidas e vincendas, relativas à conservação do prédio, peticionando ainda o reconhecimento – sempre o reconhecimento[5] – da existência, quantitativo e características de determinadas despesas de beneficiação (rectius, benfeitorias) do mesmo prédio[6].

            1.1. A R. contestou e, concomitantemente, deduziu reconvenção (fls. 47/51). Impugnando directamente a versão preponderante do A. (a negação da união de facto[7]), refere ter vivido em união de facto com este, entre Julho de 1994 e Setembro de 2000, sendo nesse quadro que adquiriram (os dois, e não apenas ele) o terreno em causa e reconstruíram a casa[8], acrescentando a R. que o fim da relação entre ambos conduziu a que o A. a venha impedindo de aceder e de utilizar a casa, da qual se vê, assim, totalmente privada.

            Em função desta factualidade pugna a R. pela improcedência do pedido do A., formulando o seguinte pedido reconvencional:


“[…]
1. A reconhecer que a R. é legítima proprietária de 1/2 indiviso do prédio urbano descrito sob o nº 61 na Conservatória do Registo Predial de ... e inscrito na matriz sob o artigo 791 – ..., composto de terreno de cultura, com oliveiras, videiras em cordão, fruteiras e vinha, e uma casa de arrecadações, de rés-do-chão e primeiro andar com 40 m2 e eira, com a área de 6.720 m2, bem como de todos os bens móveis que se encontram no interior do mesmo.
2. A abster-se de todo e qualquer acto que perturbe o exercício do direito de propriedade ou a posse sobre o prédio indicado em 1.
3. Proceder ao pagamento da quantia mensal de €400,00 desde 1 de Setembro de 2000 até à restituição da posse à [R./Reconvinte[9]] do prédio indicado em 1., contando-se vencida à presente data a quantia de €12.400,00, a que acrescem juros de mora desde a notificação da reconvenção ao A. até efectivo e integral pagamento.
4. Como litigante de má-fé em multa e indemnização de valor não inferior a €2.000,00.
[…]”
            [transcrição de fls. 51]

            1.2. Findo o julgamento[10] documentado a fls. 635/637 (1º sessão) e fls. 704/705 (2ª sessão)[11], no qual foram fixados, por referência à base instrutória, os factos provados (despacho de fls. 710/719 vº), foi proferida a Sentença de fls. 724/734 vº – esta constitui a decisão objecto do presente recurso – cujo pronunciamento decisório foi o seguinte:


“[…]
[J]ulgo a acção e a reconvenção da seguinte forma:
1 – Improcede o pedido principal da acção, pelo que absolvo a R. desse pedido.
2 – Declaro que foi o A. quem custeou as despesas com as benfeitorias descritas nos factos provados; que as mesmas não podem ser levantadas e que o A. despendeu nelas a quantia de 11.500.000$00, relegando-se para execução de sentença a determinação do montante da valorização, até ao limite da mencionada despesa.
3 – Condeno a R. a pagar ao A. a quantia de €9.601,06, relativos às despesas feitas pelo A., nos termos mencionados supra, sob a al. d) do ponto IV desta sentença[[12]], acrescidas de juros legais de mora, desde a citação, à taxa de 4% ao ano, sem prejuízo de outra taxa que venha a ser estabelecida por lei.
4 – Condeno a R. a pagar ao A. a quantia €159,31, relativamente a metade da despesa de limpeza e manutenção das partes rústica, logradouro despendida em Novembro de 2001, e restantes despesas concretamente identificadas na alínea e) do ponto IV desta sentença[[13]], acrescida de juros legais de mora, desde a citação, à taxa de 4% ao ano, sem prejuízo de outra taxa que venha a ser estabelecida por lei.
Condeno a R. a pagar ao A. metade das quantias que se liquidarem em execução de sentença, relativamente às despesas feitas desde Abril de 1997 até à instauração da acção, relativas à manutenção dos contratos de fornecimento de água, telefone e electricidade, com exclusão dos pagamentos relativos a consumos concretos atinentes a esses contratos de fornecimento, bem como as feitas a título de contribuição autárquica e seguros relativos ao prédio, até ao limite de €1.247,00 euros (metade de €2.493,99 ou 500 000$00), mas levando em conta as que ficam já liquidadas no anterior parágrafo.
Condeno a R. a pagar ao A. metade das quantias que se liquidarem em execução de sentença, relativamente às mesmas causas, vencidas e pagas pelo A. após a instauração da acção, cujo quantitativo se relega para execução de sentença.
5 – Julgo a reconvenção procedente e declaro que a R. é comproprietária, na proporção de metade do prédio identificado nos factos provados acima descritos e condeno o A. a reconhecer isto mesmo e a abster-se de qualquer acto que obste à fruição do prédio por parte da R.
6 – Julgo a reconvenção improcedente quanto ao pedido de indemnização dirigido pela R. ao A. sob a alegação de que este a tem privado do uso do imóvel e absolvo o A. desse pedido (corresponde ao n.º 3 do pedido reconvencional).
7 – Condeno o A. como litigante de má fé em multa, que fixo em cinco unidades de conta.
Como não há elementos para fixar a indemnização, será fixada mais tarde, se a Ré o requerer, nos termos do artigo 457.º, n.º 2 do Código de Processo Civil, devendo, querendo, indicar os elementos em falta no prazo de 15 dias após a notificação desta decisão, podendo o Autor responder em igual prazo[[14]].
8 – Absolvo a R. do restante pedido.
[…]”
[transcrição de fls. 734 e vº, sendo o sublinhado aqui acrescentado para frisar a exacta expressão decisória presente na condenação]

            1.3. Inconformada, interpôs a R. a presente apelação, motivando-a a fls. 760/773, formulando a culminar tal peça processual – e assim delimitando o recurso – as conclusões que aqui se transcrevem:

[…]

            1.3.1. O A. Apelado respondeu ao recurso (fls. 779/792), pugnando pela manutenção da decisão recorrida.


II – Fundamentação


           

2. Relatada a marcha do processo na primeira instância, importa sublinhar, preambularmente à apreciação do recurso, que a delimitação temática da presente apelação se obtém, como dissemos, através do teor das conclusões formuladas por quem recorre (a Apelante) a rematar a motivação [artigos 684º, nº 3 e 690º, nº 1, ambos do Código de Processo Civil (CPC)]. Assim, por referência às questões plasmadas nessas conclusões, o recurso apenas poderá prescindir de as apreciar quando a sua decisão esteja logicamente prejudicada pela solução dada a outras questões, e apenas poderá ir além delas na medida em que a lei lhe permita, ou imponha, o conhecimento oficioso de qualquer outra questão, mesmo que não suscitada nessas conclusões. É este, em resumo, o regime resultante do artigo 660º, nº 2 do CPC, especificamente no seu segundo trecho.

Todavia, mesmo quanto às questões incluídas nas conclusões, e continuamos no quadro da delimitação do âmbito de intervenção da instância de recurso – da presente instância –, só as questões efectivamente suscitadas perante o Tribunal a quo e por ele resolvidas, ou que o deveriam ter sido[15], são aptas a serem apreciadas em sede de recurso. Com efeito – e citamos aqui a enunciação deste princípio tradicional de processo civil feita por Miguel Teixeira de Sousa –, “[n]o direito português, os recursos ordinários visam a reapreciação da decisão proferida dentro dos mesmos condicionalismos em que se encontrava o tribunal recorrido no momento do seu proferimento. Isto significa que, em regra, o tribunal de recurso não pode ser chamado a pronunciar-se sobre matéria que não foi alegada pelas partes na instância recorrida ou sobre pedidos que nela não foram formulados. Os recursos são meios de impugnação de decisões judiciais e não meios de julgamento de questões novas […]. Excluída está, por isso, a possibilidade de alegação de factos novos (ius novorum; nova) na instância de recurso, embora isso não resulte de qualquer proibição legal, mas antes da ausência de qualquer permissão expressa”[16], compaginada – e isto acrescentamo-lo nós – com a essência lógica da ideia de recurso, que pressupõe a intervenção de um tribunal de uma instância hierarquicamente superior, no controlo de uma decisão de um tribunal de uma instância hierarquicamente inferior.

A convocação deste argumento tem sentido na economia decisória da presente apelação, sendo certo que a Apelante vem suscitar na motivação, com correspondência no teor das conclusões que formulou, pelo menos um fundamento correspondente a uma questão que, pura e simplesmente, não foi equacionada (por qualquer das partes e concretamente por ela Apelante) perante a primeira instância e que, por isso mesmo, aí não foi resolvida.

Referimo-nos concretamente à questão – que, na sua dimensão jurídica, corresponde a uma típica questão de Direito Internacional Privado do domínio do Direito de Conflitos[17] – respeitante à determinação da lei reguladora da relação de união de facto, enquanto lei aplicável ao Apelado e à Apelante, em função da comum nacionalidade holandesa, no quadro da resolução da questão sub iudicio (alíneas II) e JJ) das conclusões). Esta questão aparece-nos no argumentário do recurso, sem que relativamente aos pressupostos de facto – sublinhamos: pressupostos de facto – na qual assenta (são eles a existência de uma relevante situação de união de facto face à lei holandesa: a lei que a Apelante reivindica como a aplicável) tenha existido uma adequada alegação dos factos-base respectivos, por banda de quem pretende trazer à liça tal questão. Adiante retornaremos a este problema, sublinhando a falta de consistência substancial do argumento pretendido introduzir. Por ora interessa-nos dar conta, apenas, de um significativo desvalor adjectivo desse suposto argumento, na lógica da intervenção de uma instância de recurso, quando perante a instância precedente essa questão não foi sequer equacionada nos seus pressupostos de facto[18]. Trata-se aqui, portanto, de sublinhar o alcance dos poderes de cognição desta instância no quadro de um recurso (e o argumento refere-se, desde logo, a uma “questão de facto” e não a uma “questão de direito”), e não de “fugir” – e, como veremos adiante, não se fugirá – a uma questão de Direito Internacional Privado que devesse ser conhecida oficiosamente por este Tribunal, ou que, por razões de completude da fundamentação ou de rigor argumentativo, tivesse que ser equacionada como questão jurídica plausível, face a determinados factos alegados e apurados[19].

2.1. Dito isto, importa avançar na delimitação do objecto do recurso, não obstante se deva reconhecer a dificuldade – que é adicional à complexidade intrínseca das questões configuradas na acção – introduzida por uma argumentação tão confusa quanto a da Apelante na motivação da sua apelação.

A não interposição de qualquer recurso por banda do A. consolidou perante esta instância, enquanto pressuposto de facto emergente do julgamento pelo Tribunal a quo, a questão da (com)propriedade do prédio sito na freguesia de .... Com efeito, assente que este pertence em compropriedade ao A. e à R., fica resolvida (fica coberta pelo caso julgado) a questão da dominialidade respectiva e, na subsequente dialéctica processual, fica afastado o pedido principal formulado pelo A. (o pedido 1, a) e b) transcrito logo no início do item 1. deste Acórdão). Tudo se centra, assim, na consideração dos elementos do pedido subsidiário do A. que determinaram condenações da R./Reconvinte ora Apelante por esta contestadas neste recurso.

A respeito destes elementos, haverá que considerar, desde logoe este constitui o fundamento do recurso a apreciar primeiramente (a) –, por razões de condicionamento lógico, a impugnação de alguns dos factos fixados pela primeira instância[20]. Refere-se esta almejada alteração dos factos à pretensão da Apelante, expressa no pedido reconvencional de condenação do A./Reconvindo numa indemnização reportada à privação do uso do prédio[21]. Deve assim, em função do resultado da impugnação dos factos, equacionar-se a questão do não atendimento na Sentença desse aspecto do pedido reconvencional.

Subsequentemente, ocorra ou não alteração de quaisquer factos, haverá que apreciar a construção jurídica que conduziu o Tribunal a quo a condenar a Apelada – e este constituirá o segundo fundamento do recurso (b) –, na satisfação ao A., com base no instituto do enriquecimento sem causa, do valor correspondente a metade do preço de aquisição da propriedade e das demais despesas inerentes a essa aquisição. Não obstante apresentar uma inegável projecção nos subsequentes fundamentos do recurso, será no quadro deste fundamento que trataremos da questão da prescrição (alíneas DD) e EE) acima transcritas) e daquilo que a Apelante qualifica como determinação do Direito material aplicável à resolução do litígio com o A., por referência ao Direito holandês[22].

De seguida – e este constituirá o terceiro fundamento do recurso (c) –, por referência à condenação da Apelante a reconhecer (e tal reconhecimento foi neste caso exactamente o que se pediu) que o A. custeou, em exclusivo, a título de benfeitorias insusceptíveis de levantamento, um montante máximo de 11.500.000$00, haverá que controlar tal asserção decisória de simples apreciação positiva.

Tal como haverá que controlar – e este constituirá o quarto e último fundamento do recurso (d) – a imputação à Apelante, desta feita através de uma condenação no pagamento de quantias liquidadas e a liquidar[23], enquanto comproprietária, das despesas de conservação da propriedade, isto tendo presentes os desvalores apontados no recurso e, muito especialmente, com base na referenciação desta condenação ao pedido efectivamente formulado pelo Apelado.

Delimitada a incidência temática do recurso, cumpre apreciar os quatro fundamentos enunciados.

2.1.1. (a) Interessa-nos aqui – e assim entramos no primeiro fundamento do recurso – o julgamento de determinados segmentos da matéria de facto relativamente aos quais a Apelante manifesta discordância e indica, alternativamente à decisão recorrida, elementos de prova, passíveis de controlo por esta instância, que impunham, segundo afirma, decisão diversa da resultante das respostas fornecidas pelo Tribunal a quo[24]. Está em causa nesta dimensão do recurso, a pretensão de que este Tribunal da Relação, no quadro dos poderes conferidos pelo artigo 712º, nºs 1 e 2 do CPC, modifique alguns aspectos dos factos, com reflexo na operação de subsunção jurídica determinante do resultado decisório da acção quanto ao pedido reconvencional.

[…]

Lembra-se que a valoração da prova testemunhal assenta no princípio da livre apreciação [artigo 396º do Código Civil (CC)], expressando este a aceitação de uma inevitável margem de ponderação subjectiva do julgador directo, irrepetível num controlo por terceiros, não existindo, como já o dissemos, fundamento prático ou legal, dentro da lógica própria de um acesso mediato aos factos, para que o Tribunal de recurso substitua a “livre apreciação” do julgador directo, pela sua (mediata ou indirecta) “livre apreciação”. A ideia de um recurso de natureza substitutiva quanto aos factos, não implica qualquer “substituição” de “livres apreciações”: o julgamento dos factos não se repete, controla-se a racionalidade da fixação de determinados factos e não de outros; a substituição opera fora de um quadro valorativo em que a instância de recurso, como parece pretender a Apelante, se limite a invocar, substituindo-a à da instância recorrida, a “sua” “livre apreciação” da prova testemunhal. Os julgamentos quanto à fixação da matéria de facto fazem-se na primeira instância e são controlados na segunda instância, coisa bem distinta do que corresponderia a serem feitos na primeira instância e (mesmo que só parcialmente), repetidos na segunda instância.

[…]

2.1.1.2. (b) Confrontamo-nos agora com o segundo fundamento do recurso, referindo-se ele à condenação da R., aqui Apelante, a satisfazer ao A. metade do preço da propriedade e metade das despesas determinadas por essa aquisição (escritura, registo e Sisa). Esta condenação, sublinha-se desde já (e dando sequência ao que se adiantou no item 1. e nas notas 5 e 6, no relatório supra), não tem efectiva correspondência com os termos do pedido formulado a este respeito pelo A. (que era, tão-só, um pedido de reconhecimento da existência de um direito), sempre consubstanciando, como aliás sucede com outros trechos da condenação, uma decisão distinta da que determinaria esse pedido, quanto ao fim visado pela acção. Ou seja – importando desde já reter este dado –, transformou-se o que era (é) uma acção de simples apreciação, na dimensão finalística expressa nos pedidos subsidiários do Apelado (o reconhecimento existencial de determinados direitos de crédito sobre a R./Apelante), numa acção de condenação (v. a distinção dos dois tipos de acções nas alíneas a) e b) do artigo 4º do CPC[25], cfr. os exactos termos dos diferentes pedidos subsidiários transcritos no item 1.).

2.1.1.3. (b) Lendo a fundamentação da Sentença relativamente a este resultado decisório – condenação da R. no pagamento de uma determinada quantia –, verificamos ter o Tribunal a quo determinado essa consequência com base no instituto do enriquecimento sem causa, aqui concretamente por referência ao nº 1 do artigo 473º do CC (“[a]quele que, sem causa justificativa, enriquecer à custa de outrem é obrigado a restituir aquilo com que injustamente se locupletou”).

O raciocínio que conduz a este resultado é simples: se o prédio é dos dois, sem distinção de quotas, e se só um deles o pagou, é de imputar metade do valor a quem nada satisfez por essa aquisição. Trata-se, todavia, esta construção, de algo que não passou pela determinação de quaisquer elementos suficientemente expressivos de que tal divisão do preço, mesmo colocada a posteriori, correspondesse à adequada consequência jurídica da indemonstração de qualquer participação da Apelante na satisfação da contrapartida pecuniária correspondente à aquisição do prédio, bem como nas demais despesas acessórias de tal aquisição.

A Sentença, recorrendo ao enriquecimento sem causa, pretende dar conteúdo jurídico a um argumento do A. ora Apelado incluído no articulado inicial e que representa, fundamentalmente, nos exactos termos em que foi apresentado, uma asserção conclusiva não suportada numa clara fundamentação jurídica. Com efeito, disse o A. aí, a propósito da possível indemonstração de que o prédio fosse só dele (precisamente o resultado probatório alcançado no julgamento): “[e]ntão, teremos de reconhecer que, em caso de improcedência do pedido principal […], seria uma flagrante injustiça[[26]] a R. nada pagar ao A.” (artigo 40º da p.i. a fls. 9), e acrescentou, “[a]ssim, em caso de compropriedade […] deverá ser reconhecida a dívida[[27]] da R. ao A. no que toca às despesas ocasionadas com a compra da propriedade – preço pago e despesas legais” (artigo 42º da p.i., igualmente a fls. 9; sublinhado acrescentado).

O A. não apresentou, como se disse, qualquer fundamento jurídico para alicerçar a asserção correspondente a esta dimensão do pedido subsidiário formulado para a eventualidade da indemonstração da sua propriedade exclusiva. A Sentença, no entanto, recorreu, como se viu, à figura do enriquecimento sem causa para alcançar esse resultado decisório (a condenação num pagamento que não foi pedido), argumentando nos seguintes moldes: “[c]om efeito, não temos provado que o A. quis doar essas quantias à R., pelo que a R. viu o seu património enriquecido em metade desses montantes, sem existir uma causa jurídica justificativa para esse enriquecimento, feito à custa do património do A., sem causa jurídica” (transcrição de fls. 731). Podendo aceitar-se algo do que subjaz a este argumento, convém não esquecer, por razões de rigor na integração dos pressupostos dos institutos jurídicos convocados para um concreto caso, que a simples demonstração da existência de uma situação de compropriedade se esgota nisso mesmo – na existência de uma situação de compropriedade, ou seja, de um direito de propriedade sobre uma mesma coisa na titularidade de mais de uma pessoa (artigo 1403º, nº 1 do CC) –, sendo isso realidade alheia (no sentido de ser algo referido a uma outra situação) à determinação das concretas condições de estabelecimento dessa propriedade em comum, no âmbito das relações internas entre os que aparecem como comproprietários.

É fácil de intuir, até porque se trata de uma realidade comum, particularmente presente nas situações de união de facto, que é possível alguém adquirir, à sua exclusiva custa, determinado bem, para o colocar em compropriedade com um terceiro, sem que isso passe (sem que isso passe necessariamente), pela simples razão de existir compropriedade, pelo estabelecimento para esse terceiro da obrigação de suportar, logo ou a posteriori, metade do valor dessa aquisição, ou, dito por outras palavras, sem que isso implique o nascimento de um crédito à metade do preço pago (exigível quando se entender), para quem despendeu a totalidade deste: o conteúdo das “relações internas” (chamemos-lhes assim) entre os comproprietários, referidas ao encargo que está na génese da aquisição do bem colocado em compropriedade, podem corresponder a distintos conteúdos, têm, enfim, de ser alegadas e provadas, para que se possa referir a esse momento a constituição – sempre no âmbito dessas chamadas “relações internas” – de algum crédito entre esses comproprietários.

A isto acresce que a determinação de ter sido adquirido à custa de apenas um dos comproprietários o bem colocado nessa situação de propriedade comum, no caso particular do estabelecimento de um património conjunto no quadro de uma situação de união de facto, até poderá corresponder efectivamente à realização de uma doação àquele que não contribuiu para a aquisição (e aceitamos que muitas vezes esse será o verdadeiro sentido da situação). Todavia, parece-nos adequado advertir que a existência, tout court, de uma doação não prescinda – valerá aqui, de alguma forma, a máxima romana donatio non praesumitur – da efectiva demonstração da existência nessa atribuição patrimonial do espírito de liberalidade previsto no artigo 940º, nº 1 do CC[28]. Nem todas as transferências de bens sem prova de contrapartida correspondem a doações: ser algo cujo conteúdo corresponde a um conceito jurídico preciso, como o é uma doação, é distinto de não se apurar ao que é que corresponde esse algo, mesmo que aparentado, por mera indefinição, a uma doação.

E, para além disto – ou, se quisermos, paralelamente a isto –, a não prova de uma causa concreta para a colocação em compropriedade de um determinado bem, quanto à finalidade que presidiu a que algum dos comproprietários suportasse em exclusivo os custos da aquisição desse mesmo bem, pode não conduzir, necessariamente e sem mais, ao desencadear da facti species do enriquecimento sem causa. Este instituto (cujos pressupostos de facto têm de ser alegados) não constitui, com efeito, uma regra de decisão estabelecida como resposta a situações de non liquet probatório[29].

Esta última afirmação, tendo presente a ratio decidendi da Sentença quanto ao elemento da condenação que ora se aprecia (um enriquecimento sem causa não particularmente justificado na sua construção jurídica), carece de uma mais detalhada análise.

2.1.1.4. (b) Confronta-nos a Sentença apelada, no trecho argumentativo e decisório que ora nos cumpre apreciar, com o sentido teleológico profundo de um instituto, o enriquecimento sem causa, de grande relevância na prática dos tribunais, dotado de um largo lastro histórico, que remonta ao direito romano[30], sendo indicado por Claus-Wilhelm Canaris como “princípio geral de direito”[31], sendo que o nosso Código Civil o enuncia, na sugestiva formulação de Menezes Leitão, “[…] como um princípio em forma de norma […]” no artigo 473º, nº 1[32]. Na doutrina portuguesa constitui obra de referência no tratamento do enriquecimento sem causa o trabalho deste último Autor, “O Enriquecimento Sem Causa no Direito Civil[33], que seguiremos de perto nas subsequentes considerações.

            Contém o mencionado artigo 473º, nº 1 uma cláusula geral cuja amplitude conduziria, na base da sua utilização indiscriminada, ao efeito perverso de colocar “[…] em causa a aplicação de uma série de outras regras de direito positivo”, facultando a interposição de uma acção exigindo a restituição do enriquecimento sempre que se reunissem os pressupostos directamente previstos na norma em causa: “a) existência de um enriquecimento; b) obtenção desse enriquecimento à custa de outrem; c) ausência de causa justificativa para o enriquecimento”[34]. Como primeiro elemento de “contenção” da amplitude da cláusula geral, encontramos a chamada regra da subsidiariedade do instituto do enriquecimento sem causa, constante do artigo 474º do CC, que afasta a “[…] restituição por enriquecimento, quando a lei facultar ao empobrecido outro meio de ser indemnizado ou restituído, negar o direito à restituição ou atribuir outros efeitos ao enriquecimento”.

            Paralelamente a esta ideia de subsidiariedade, a própria evolução doutrinária da figura do enriquecimento sem causa, tem contribuído para uma maior precisão na definição do domínio de aplicação do instituto, quebrando, em certo sentido, o seu enquadramento unitário, através de um aprofundamento da caracterização das situações concretas que determinam uma obrigação de restituir, à luz de um princípio geral de afastamento do enriquecimento sem causa. Retratámos assim, grosso modo, a evolução dogmática do instituto, entre uma concepção dita tradicional ou clássica, denominada “teoria unitária da deslocação patrimonial”, e a concepção, decorrente dos trabalhos dos juristas alemães Walter Wilburg e Ernst Von Caemmerer, denominada “doutrina da divisão do instituto”[35]. Esta última, à qual adere expressamente Menezes Leitão[36], reconduz o enriquecimento sem causa a “[…] duas categorias principais, sendo uma delas relativa às situações de enriquecimento geradas com base numa prestação do empobrecido e outra abrangendo as situações de enriquecimento não baseadas numa prestação, atribuindo-se nesta última papel preponderante ao enriquecimento por intervenção” (sublinhado aqui acrescentado)[37]. É no sentido das antecedentes considerações que Menezes Leitão sintetiza nas seguintes teses a construção dogmática do instituto do enriquecimento sem causa:


“[…]
            1. A formulação unitária da cláusula geral do artigo 473º, nº 1 [do CC] esconde uma profunda diversidade estrutural entre as diversas categorias de enriquecimento, tendo os pressupostos do instituto cambiantes de sentido e relevo dogmático distinto em cada uma dessas categorias. Para além disso, são claramente diferenciadas as funções desempenhadas por cada uma das categorias de enriquecimento sem causa no âmbito do sistema jurídico.
2. Não é possível vislumbrar um fundamento específico comum às diversas categorias de enriquecimento sem causa, a não ser como referência a uma ordenação geral de compensação e equilíbrio, o que implica identificar a proibição do enriquecimento com o princípio suum cuique tribuere.
3. Esse princípio corresponde, no entanto, a uma simples ideia jurídica geral, com base na qual não é possível atribuir directamente uma pretensão de enriquecimento, o que leva à conclusão de que a norma do artigo 473º, nº 1, não é de aplicação imediata, tendo o caso concreto que ser integrado previamente numa das categorias de enriquecimento sem causa. […]
4. A cláusula geral do artigo 473º, nº 1 do [CC] apresenta-se como aberta, balizando um dos princípios do sistema jurídico, sendo aplicável no quadro de um sistema móvel, em complemento dos regimes de restituição, reembolso e indemnização previstos noutros institutos jurídicos.
[…]”[38]

            2.1.1.5. (b) Na presente situação, encarando-a na perspectiva do enriquecimento sem causa no qual a Sentença se baseou genericamente, na dimensão que ora consideramos, estaríamos perante um enriquecimento por prestação. Com efeito, referindo-se esta categoria específica “[…] a situações em que alguém efectua uma prestação a outrem, mas se verifica uma ausência de causa jurídica para que possa ocorrer por parte deste a recepção dessa prestação”[39], constatamos ser basicamente isto o que a Sentença, através da consideração do pedido subsidiário, diz ter sucedido: colocou o A. em nome da R./Apelante um bem (transferiu-o para ela, em compropriedade com ele), sem que existisse fundamento (sem que existisse uma causa) para isso. Ora, nestas situações de enriquecimento por prestação, “[…] o requisito fundamental do enriquecimento sem causa é a realização de uma prestação, que se deve entender como uma atribuição finalisticamente orientada, sendo por isso, referida a uma determinada causa jurídica, ou na definição corrente na doutrina alemã dominante como «o incremento consciente e finalisticamente orientado de um património alheio»”, sendo que “[…] a ausência de causa jurídica deve ser definida em sentido subjectivo, como a não obtenção do fim visado com a prestação”[40].

            Constituindo fim da prestação aqui em causa (da colocação do bem em compropriedade em nome do A. e da R. à custa daquele em exclusivo), à partida – ou seja, no momento em que ocorreu – como decorre amplamente da matéria de facto[41], criar uma situação de comunidade de bens (pelo menos, daquele bem – a casa – em concreto) referida àquele “casal de facto” (é este o resultado da não prova dos elementos do pedido principal), constata-se que este fim não só existiu, como foi efectivamente alcançado, nesse contexto contemporâneo da realização da prestação, com o estabelecimento da situação de compropriedade. É, pois, descabido falar – nesse contexto temporal e situacional – em ausência de causa. Com efeito, a união de facto existia ao tempo e continuou a existir, só acabando mais tarde, já em finais de 2000, sendo que o fim, mesmo que indirecto ou meramente instrumental da atribuição, não era para o A. (este nunca o alegou), então, o recebimento de metade do preço de aquisição do bem e demais despesas decorrentes dessa aquisição[42]. O fim era então – repete-se – adquirir bens para o “casal de facto” e esse objectivo da atribuição patrimonial realizada foi efectivamente alcançado e esgotou-se (no sentido de que se preencheu) com a própria aquisição dos bens, não se podendo falar, quer-nos parecer, de “falta de causa jurídica” (o que se qualifica usualmente, por referência à origem do instituto no Direito romano[43], como condictio indebiti[44]) para a ocorrência da deslocação patrimonial que aqui se detectou, nas circunstâncias factuais e temporais em que a mesma teve lugar por banda do A. Existia, então, uma situação de união de facto e, nesse quadro, sem dúvida que a atribuição – a transferência patrimonial, se quisermos – tinha sentido e, nesse sentido, passe a redundância, não foi indevidamente recebido pela Apelante o objecto dessa transferência.

Na perspectiva do enriquecimento sem causa, a abordagem mais adequada será falar, concedendo-lhe relevância integradora do instituto, num desaparecimento posterior, com o fim da união de facto, da causa determinante da atribuição patrimonial, em termos de projectar uma obrigação de restituir a metade do valor do bem intencionalmente atribuído em comunhão[45]. Aquilo que se chama na doutrina, condictio ob causam finitam, e que o artigo 473º, nº 2 do CC acolhe no seguinte trecho: “[…] o que for recebido por virtude de uma causa que deixou de existir […]”).

A este respeito devemos sublinhar as diferenças que um sugestivo paralelismo (enganador, porque fundamentalmente aparente) com a situação do casamento dissolvido é susceptível de induzir, determinando soluções que não se nos afiguram serem as mais adequadas. Esta questão é tratada (quanto ao casamento no caso de divórcio) por Luís de Menezes Leitão, enunciando o problema nos seguintes termos: a “[…] possibilidade de aplicação da condictio ob causam finitam relativamente a atribuições patrimoniais realizadas na constância do matrimónio, após o divórcio entre os cônjuges”[46]. Com efeito, conclui este Autor a tal respeito que o tratamento pela lei, nesse particular contexto ou quadro de referência, do regime das doações entre casados (artigos 1761º e ss. do CC), em articulação com o acervo de direitos e deveres prestacionais emergentes da comunidade conjugal (deveres de assistência, a poio e solidariedade económica), tudo associado à abertura, após a cessação da relação conjugal, de uma relação liquidatária própria das incidências patrimoniais dessa comunidade, a articulação de todas estas incidências, dizíamos, leva Luís de Menezes Leitão, se bem compreendemos o seu pensamento, a concluir por uma tendencial inadequação, face à natureza subsidiária da obrigação de restituir (artigo 474º do CC), do instituto do enriquecimento sem causa no quadro específico da relação matrimonial finda.

Ao que nos parece, a situação coloca-se em termos não totalmente coincidentes com estes, face às incidências patrimoniais da união de facto, concretamente quanto à actuação da vicissitude traduzida na sua cessação e extinção. Trata-se a união de facto, com efeito, de uma situação fundamentalmente distinta do casamento nas suas incidências patrimoniais, mesmo quando implique, como sem dúvida pode suceder e sucederá frequentemente, a abertura de uma espécie de relação liquidatária do património por ela (união de facto) gerado. Neste caso o que sucede é, fundamentalmente, repercutir o “deve e o haver” de cada convivente num resultado divisório, atendendo-se à medida da contribuição de cada um dos cônjuges de facto para a formação desse património comum, designadamente através dos princípios respeitantes à liquidação das sociedades de facto[47], mesmo quando se tenham gerado, na composição desse património, situações de compropriedade referidas a determinados bens[48].

A consideração do fim da causa da atribuição patrimonial (do fim da união de facto) parece-nos abrir a via do enriquecimento sem causa, face aos pressupostos do instituto recolhidos na nossa lei (“[…] o que for recebido por virtude de uma causa que deixou de existir […]”), devendo considerar-se – quase que poderíamos dizer: contabilizar-se) o que se deslocou de um património ao outro teleologicamente referido, em exclusivo, à existência do estado de facto expresso nessa situação de vida em comum em condições análogas às dos cônjuges[49].

            Ora, afigura-se-nos evidente que o que aqui se apurou foi, precisamente, a criação de um património comum no contexto de uma situação de união de facto, património comum que, finda que está a relação, poderá ser liquidado (e estamos a pressupor, obviamente, que o pudesse ser na ordem jurídica portuguesa e aplicando a lei portuguesa[50]). Isso só poderá suceder, todavia, no quadro de uma acção cujos pedidos sejam a esse efeito dirigidos, coisa que não acontece com esta acção e com estes pedidos, que se esgotam no simples reconhecimento de direitos (e trata-se esta de uma incidência relativamente à qual o A., nesta acção, só da sua estratégia processual, expressa no iter argumentativo que seguiu e nos pedidos que efectivamente formulou, se pode queixar). Aqui, entendendo-se ser de convocar o instituto do enriquecimento sem causa (e entendemos que isso tem sentido na definição de um direito do Apelado decorrente do fim da união de facto, quanto ao bem aqui concretamente em causa), isso sempre passaria, no que à condenação (a título de enriquecimento sem causa) na satisfação de determinada quantia diz respeito, pela formulação de um pedido efectivamente dirigido a essa consequência (condenar a pagar que é distinto de condenar a reconhecer), pedido esse aqui de todo ausente. Aqui – afirmamo-lo de novo –, só se pediu o reconhecimento de um direito, com uma base difusa mas que ainda contém os pressupostos do enriquecimento sem causa reportados ao fim da causa da deslocação patrimonial[51], pelo que tudo o que esteja para além desse reconhecimento com essa base, já não corresponde ao conteúdo do pedido. E não se diga que se trata de um absurdo prático na perspectiva do interesse do A., porque se o fosse[52], isso corresponderia a um absurdo criado pelo próprio A. Valeria – vale – o princípio da auto-responsabilidade das partes: “[a]s partes é que conduzem o processo a seu próprio risco. Elas é que têm de deduzir e de fazer valer os meios de ataque e de defesa que lhes correspondam […] suportando uma decisão adversa, caso omitam algum”[53] – suportando em qualquer caso, acrescenta-se aqui, a exacta decisão induzida pelo pedido que formularam.

O que aqui se adiantou, relativamente ao património comum referido à existência da união de facto, o que daqui sai e é relevante para uma possível liquidação de tal património comum (ou até para uma divisão de coisa comum referida ao prédio em compropriedade, depois de benfeitorizado), é, como se disse na nota 57, a existência e a origem exclusiva no A. de determinados aportes referidos a esse património. É, enfim, exactamente aquilo que o A. pediu e é o que cumpre declarar.

Nesta acção, com efeito, se bem atentarmos nos termos exactos dos pedidos subsidiários (v. a respectiva transcrição logo no item 1. deste Acórdão), vemos, como já se indicou, ser exclusivamente o reconhecimento de determinados créditos do A. sobre a R. aquilo que foi pedido ao Tribunal[54], e não a condenação no pagamento de uma quantia a título de enriquecimento sem causa: pode-se reconhecer a existência, em favor do A., de um crédito cuja génese corresponde a uma situação de enriquecimento sem causa, mas não se pode condenar, porque isso não foi pedido, na satisfação do montante correspondente a esse direito de crédito. Com efeito, no pedido em si mesmo[55] – e são os termos deste que nos interessam – o A. nunca falou em condenação no pagamento de quantias (nunca pediu a restituição de valor algum), estando o que se determinou na Sentença a este respeito desfasado do elemento decisório que os pedidos subsidiários efectivamente formulados eram aptos a determinar como resultado desta acção[56]: condenou-se a pagar, quando o que estava em causa era, tão-só, condenar a reconhecer um direito.

Julgando os pedidos formulados procedentes, ou seja, atendendo a pretensão do A., teria o Tribunal, no caso concreto do pedido aqui considerado (metade do preço do prédio e demais despesas de aquisição), que se limitar a reconhecer um crédito do A. sobre a R. correspondente à metade da sua contribuição total para essa aquisição e despesas. A actuação deste crédito só tem sentido – e volta-se a sublinhar que o A. não colocou, para além do reconhecimento, essa questão nesta acção – num quadro de liquidação da comunidade patrimonial aqui em causa (ou seja, enquanto liquidação das incidências patrimoniais da união de facto), através da mútua interacção compensatória dos aportes/direitos de crédito de cada um dos ex-conviventes, mesmo que o nascimento desses créditos se funde, como aqui sucede, na afirmação de uma obrigação de restituir assente na facti species do artigo 473º do CC.

2.1.1.6. (b) Valem estas considerações, porque estamos perante uma realidade decisória inadequada, não induzida pelo pedido do A. e criada exclusivamente pela Sentença ao extravasar do pedido, perante uma nulidade desta concreta peça processual, consubstanciada na condenação em pedido diverso do efectivamente formulado pelo A. (artigo 668º, nº 1, alínea e) do CPC)[57], sendo que a declaração deste desvalor fará actuar a regra de decisão prevista no nº 1 do artigo 715º do CPC, com a adopção da formulação decisória efectivamente reportada ao pedido do A. na dimensão aqui em causa, à luz dos factos provados (e estamos simplesmente a conhecer, através de tal substituição, de questões já tratadas pelas partes na motivação e na contra-motivação do presente recurso).

Provou-se, com efeito, ter sido o A. quem suportou, exclusivamente, o preço de aquisição do prédio e das demais despesas tratadas no ponto IV, alínea d) da fundamentação da Sentença (v. nota 12, supra), pelo que é possível declarar (e vale aqui o preenchimento dos pressupostos do enriquecimento sem causa), conforme o A. realmente pediu, isso mesmo: a existência de um crédito deste sobre a R. no valor correspondente a essa metade (€9.601,06)[58].

É a esta asserção que importará conferir expressão decisória no pronunciamento final deste recurso.

2.1.1.6.1. (b) Antes, porém, olhando agora ao argumento da suposta prescrição invocado ex novo na motivação do recurso (conclusões DD) e EE) acima transcritas), dir-se-á, para além da constatação da novidade dessa invocação (que aqui equivale a uma não invocação, v. artigo 303º do CC), que uma possível prescrição reportada ao artigo 482º do CC, sempre teria como termo inicial do prazo respectivo (interrompido com a citação, v. artigo 323º, nº 1 do CC) o fim da união de facto, evento aqui situado (item [35] dos factos, resposta ao quesito 37) no final do ano de 2000, sendo que a presente acção foi proposta em Janeiro de 2003[59].

O argumento da prescrição – quando não referido ao prazo de 20 anos da prescrição ordinária (artigo 482º, in fine, do CC) – não tem, pois, qualquer sentido, no quadro gerado na presente acção.

2.1.1.7. (b) Entretanto, encarando agora, como acima se adiantou, o suposto argumento de Direito internacional privado invocado (também ele invocado ex novo) na motivação do recurso pela Apelante, admitindo que tal argumento terá algum hipotético interesse subsistente no complexo quadro desta acção, dir-se-á que a Apelante não alegou nem demonstrou no decurso do processo a existência – os pressupostos de facto, como antes se disse – da situação de união de facto, em termos relevantes, face à pretendida convocação da lei holandesa como lei aplicável[60]. Tenha-se em conta que a possível integração deste elemento é aqui invocado enquanto “lei pessoal” comum ao A. e à R., aplicável (pretende a Apelante convocá-la como tal na alínea JJ) das conclusões do presente recurso)[61], como base de uma afirmada equivalência da união de facto ao casamento civil em “termos patrimoniais” no Direito holandês. Seria, pois, a actuação dessa equivalência que a Apelante pretenderia aqui introduzir, restando saber como e com que efeito prático, sendo certo que a Apelante em lado algum o explica.

Seja como for, como se adiantou na nota 18, supra, e aqui se reafirma, o Direito holandês prevê uma “união de facto registada” [geregistreerd partnerschap ou, em inglês, registered partnership; v. artigo 80(a), 3 e 4 do Código Civil holandês[62]], sendo relativamente a esta união registada que a incidência patrimonial da dissolução se poderia colocar – se fosse esse o caso face ao Direito holandês – nos termos indicados pela Apelante. Tudo dependeria da existência dessa união registada (dito por outras palavras, do registo dessa união na Holanda) e, como aqui se apurou (como aqui nem sequer foi alegado pela Apelante), não existe registo algum da união entre o A. e a R. Ou seja, não existe face ao Direito holandês aquilo que no Direito português (existindo conflito de leis e fosse a lei portuguesa a aplicável à resolução do mesmo) é objecto da protecção decorrente das Leis nºs 6/2001 e 7/2001, de 11 de Maio.

A questão de Direito internacional privado pretendida introduzir no presente recurso pela Apelante não tem, pois, qualquer sentido, nos termos em que é pretendida equacionar.

2.1.2. (C) Interessa-nos agora, no quadro do terceiro fundamento do recurso indicado no item 2.1. deste Acórdão, a questão das benfeitorias.

Tratava-se neste caso da formulação de um pedido de reconhecimento destas pelo A. (alínea a) do pedido subsidiário) e a condenação expressou o exacto conteúdo desse pedido (ponto 2 da condenação), face à determinação, por via dos factos provados, da realização, suportadas pelo A. em exclusivo, de despesas de conservação e melhoramento da coisa (artigo 216º, nº 1 do CC), que essas benfeitorias não podem ser levantadas e corresponderam a um dispêndio de 11.500.000$00. Restaria, quanto à quantificação de tal crédito, a determinação daquilo que a Sentença refere como montante da valorização da propriedade (limitado no seu quantum pelo valor total das despesas), sendo que isso ocorrerá, complementarmente, através de uma ulterior liquidação da Sentença – não através da execução de sentença como se diz na decisão apelada – nos termos do artigo 21º, nº 3 do Decreto-Lei nº 38/2003, de 8 de Março e artigo 661º, nº 2 do CPC. Visará tal “liquidação”, tão-só, fixar exactamente o objecto do crédito aqui reconhecido (o objecto correspondente à efectiva valorização pelas benfeitorias declaradas como insusceptíveis de levantamento, enquanto elemento integrador de um direito de crédito reconhecido na Sentença)[63].

Há, assim, que confirmar este elemento da condenação (aquele que se expressou no reconhecimento das benfeitorias no ponto 2 da condenação).

2.1.3. (d) E assim alcançamos o quarto fundamento do recurso, referido ao trecho condenatório expresso no ponto 4 da condenação. Tratam-se neste caso de despesas diversas, algumas já efectuadas (no momento da propositura da acção) outras a efectuar, respeitantes a despesas de conservação da propriedade.

Também neste caso o que se pedia cingia-se ao reconhecimento de um direito de crédito, tendo a Sentença ido para lá do pedido no proferimento de uma condenação, mesmo que genérica por inquantificação, no pagamento de quantias concretas à R. O A. – voltamos a afirmá-lo – não pediu essa condenação, limitou-se a pedir o reconhecimento de determinados direitos.

Vale aqui o que acima se disse quanto à questão do reconhecimento do direito de crédito correspondente a metade do preço de aquisição do imóvel e demais despesas inerentes a essa circunstância, cabendo reconduzir o pronunciamento do Tribunal, suprimindo o desvalor presente na Sentença, ao que foi efectivamente pedido pelo A.: o reconhecimento de um direito de crédito do A. limitado no seu elemento já realizado ao tempo da propositura da acção a 250.000$00/€1.247,00 e correspondente às despesas de conservação ordinária da propriedade. O que estiver para além disto está fora do pedido do A.

Quanto à razão de ser do reconhecimento da existência deste direito de crédito do A., vale o regime do artigo 1411º, nº 1 do CC, face à existência de uma situação de compropriedade: é o A. quem tem suportado a totalidade de tais despesas, sendo que a Apelante estava (e está) obrigada a contribuir para as mesmas na proporção (metade) correspondente à sua quota ideal. O que há que reconhecer aqui é apenas a existência identitária, em benefício do A., deste direito de crédito.

Há, pois, que alterar, correspondentemente ao que acabou de se referir, este elemento da condenação (o seu ponto 4).

2.2. Chegados aqui, percorridos os diversos fundamentos do recurso, poderemos resumir esse percurso nos seguintes termos: 1) (a) improcede a pretendida alteração dos factos e a consequente pretensão de alteração da Sentença quanto ao atendimento do pedido reconvencional da R./Reconvinte (expresso no ponto 3 deste a fls. 51); 2) (b) e (d) há que eliminar, por substituição deste Tribunal, a nulidade cometida nos pontos 3 e 4 da Sentença apelada quanto à condenação referente a metade do preço de aquisição do prédio e demais despesas, bem como a condenação respeitante às despesas de conservação, reconduzindo o pronunciamento decisório ao elemento do simples reconhecimento desses direitos de crédito do A., correspondente ao exacto teor dos pedidos por este formulados[64]; 3) há que confirmar o elemento da condenação referido ao reconhecimento das benfeitorias (ponto 2 da decisão apelada).

Será este, pois, o resultado do recurso de apelação da R., nos seus diversos fundamentos.


III – Decisão


            3. Assim, no parcial atendimento do recurso, decide-se, constatada a nulidade da Sentença correspondente à condenação em objecto diverso[65], nos trechos condenatórios correspondentes aos nºs 3 e 4 de fls. 734 e vº dessa mesma Sentença, condenar (por substituição desses trechos da Sentença[66]) a R. B... a reconhecer a existência dos seguintes direitos de crédito do A. A...:

A) Crédito do A. sobre a R. no valor de €9.601,06, correspondente a metade do preço de aquisição do prédio em causa na acção e demais despesas decorrentes dessa aquisição, resultante de ter sido o A. quem suportou em exclusivo essas despesas referidas a esse prédio compropriedade do A. e R.;

B) Crédito do A. sobre a R., limitado no seu elemento já realizado à data da propositura da acção a €1.247,00, referente às despesas de conservação da propriedade aqui em causa, crédito este que corresponderá, quanto a tais despesas posteriores à propositura da acção, a metade do seu valor.

            No mais, vai aqui confirmada a Sentença apelada.

            Custas do recurso a cargo do A. e da R. na proporção de 60% para aquele e 40% para esta (é a medida em que se entende fixar o vencimento e o decaimento de cada parte na instância de recurso).


[1] Aplica-se ao presente processo, em função do dado de tempo indicado (processo iniciado anteriormente a 01/01/2008), o regime dos recursos prévio à reforma introduzida pelo Decreto-Lei nº 303/2007, de 24 de Agosto (v. os respectivos artigos 9º, alínea a), 11º, nº 1 e 12º, nº 1). Note-se que, pela mesma razão, qualquer disposição do Código de Processo Civil citada neste Acórdão, cujo texto tenha sido alterada pelo DL 303/2007, referir-se-á à versão anterior a este.
[2] Como se verá na exposição subsequente, os pedidos subsidiários foram, por improcedência dos principais, os considerados na Sentença final, sendo por referência a estes que se estruturou a condenação da R.
[3] Resumindo o seu ponto de vista refere o A. no articulado inicial:
“[…]

Nessa data [refere-se o A. a 16/04/1997, data de celebração da escritura de compra do prédio] o A. pagou o preço devido pelo prédio […] – 3.500.000$00 ou €17.457,93.
10º
Nessa data o A. pagou ainda SISA devida pela aquisição – 280.000$00 ou €1.396,63 –; pagou a escritura pública – 49.030$00 ou €244,56; procuração e respectivo registo definitivo a seu favor que custou 20.650$00 ou €103,00; honorários forenses – 395.000$00 ou €1.970,00 e demais despesas que lhe apresentaram, tudo num total de 1.000.000$00 ou €4.988,00 […]
[…]
19º
No projecto que, a seu mando, encomendaram, e nas melhorias referidas nos artigos 11º a 18º […] o A. despendeu cerca de 11.500.000$00 ou €57,361,76 […].
20º
Conforme artigos precedentes […] o A. sozinho, porque estava a comprar, a melhorar e a embelezar uma propriedade apenas para si, como dono exclusivo, despendeu cerca de 16.000.000$00 ou €79.807,66, na aquisição e melhoria da propriedade sita na ..., melhor identificada no artigo 8º.
[…]”
                [transcrição de fls. 3/5]
[4] O uso aqui da exacta expressão através da qual o A. formula os respectivos pedidos subsidiários em qualquer das suas vertentes – “reconhecimento” (reconhecimento da realização de determinadas benfeitorias; reconhecimento da existência de uma dívida da R.; reconhecimento de um direito de crédito do A.) – assumirá particular importância na apreciação do presente recurso e determinará, em grande medida, o respectivo resultado. Sublinha-se, pois, este aspecto da questão colocada pelo recurso, acrescentando-se que os pedidos subsidiários do A. configuram a acção a esses pedidos referida como de simples apreciação (artigo 4º, nº 2, alínea a) do Código de Processo Civil, e não como acção de condenação (v. artigo 4º, nº 2, alínea b) do mesmo Diploma).
[5] Sublinha-se, retomando o que se disse na nota anterior, que a circunstância dos pedidos subsidiários do A. serem, através do uso da expressão “reconhecimento”, enquanto efeito decisório pretendido, de simples apreciação, é reforçada pelos exactos termos em que esses pedidos nos aparecem argumentativamente justificados no texto do articulado inicial. Neste, com efeito, não se fala em qualquer condenação da R. na satisfação de um valor a esses créditos referido (v. o teor dos pedidos subsidiários formulados nas três alíneas supra transcritas no texto e, neste caso, o teor dos articulados da p.i. transcritos na nota seguinte).
[6] Diz a este respeito o A. na p.i.:
“[…]
41º
Então, teremos de reconhecer que em caso de improcedência do pedido principal, o que apenas em hipótese académica se aceita, seria uma flagrante injustiça a R. nada pagar ao A.
42º
Assim, em caso de compropriedade, […] deverá ser reconhecida a dívida da R. ao A. no que toca às despesas ocasionadas com a compra da propriedade – preço pago e despesas legais […] e
43º
O direito de crédito do A. ou o reconhecimento das benfeitorias úteis e necessárias e ainda voluptuárias implantadas e pagas exclusivamente pelo A. no prédio […].
44º
Assim a R. deve ao A.:
– a título de despesas de aquisição da propriedade:
a) 1.750.000$00 ou €8.728,96 – a título de 50% do preço;
b) 500.000$00 ou €2.493,98 – a título de 50% das despesas relacionadas com a compra;
c) 50% do valor das despesas de conservação ordinária da propriedade desde Abril de 1997 até á presente data, acrescidas das despesas vincendas desde a data da citação até à data da sentença final, que neste momento liquida em 500.000$00, ou seja €1.247,00.
45º
Deverá ser reconhecido o direito do A. a benfeitorias implantadas na propriedade inscrita sob a descrição 61/080785, no valor de 11.500.000$00 ou €57.361,76, ou seja, todas as melhorias ou benfeitorias identificadas no teor dos artigos 11º a 20º e respectivos documentos […].
[…]”
                [transcrição de fls. 9/10, com sublinhado acrescentado]
[7] A expressão união de facto é aqui empregue num quadro fundamentalmente descritivo de uma situação existente, como se apurou, entre o e a R. – vida em comum em condições análogas às dos cônjuges –, e não tanto, neste momento, por referência à integração de um conceito legal, seja ele o da nossa legislação (o da Lei nº 7/2001, de 11 de Maio) seja o da legislação holandesa (v, nota 19, infra).
[8] Refere a este propósito a R. na contestação:
“[…]
7. Em princípio de 1997 A. e R., através de anúncio num jornal holandês, tiveram conhecimento de uma propriedade em Portugal, mais concretamente o imóvel que se discute nos presentes, que agradou a ambos e que pensaram em comprar para aí se instalarem quando viessem a Portugal […].
8. A. e R. deslocaram-se a Portugal, visitaram a propriedade […] e chegaram a acordo para a sua compra.
9. No dia 06/02/1997, no Segundo Cartório Notarial de Coimbra, A. e R., em conjunto através de instrumento público concederam a C..., poderes para, em seus nomes, «[…] comprar o prédio rústico sito no lugar de ... ou ..., em ..., na freguesia de ..., concelho de ..., inscrito na matriz sob o artigo 791, pode[ndo] assinar a respectiva escritura».
[…]
11. Por escritura pública de compra e venda outorgada no dia 16/04/1997, no Cartório Notarial de ... a citada C..., em nome do A. e R., comprou a propriedade indicada em 9, cujo preço foi pago por A. e R.
12. A. e R. procederam ainda ao pagamento, em conjunto, de todos os valores e importâncias relativas à aquisição do imóvel em questão.
[…]”
                [transcrição de fls. 48]

[9] Corrigiu-se aqui um notório lapso de escrita da contestação/reconvenção.
[10] O processo foi saneado e condensado a fls. 103/111 (factos provados a fls. 103/104 e base instrutória a fls. 104/111).
[11] Parte da produção de prova testemunhal decorreu perante a Justiça holandesa (cartas rogatórias), constando dos autos, em registo escrito, os depoimentos de três testemunhas (as traduções constam de fls. 522/524, 533/536 e 549/554).
[12] Neste trecho da fundamentação da Sentença determinou-se “[…] se o A. te[ria] direito a receber da R. metade do preço da propriedade e metade das despesas feitas com a aquisição do prédio, no valor, respectivamente, de 1.750.000$00 e 500.000$00” (transcrição de fls. 730). Este elemento condenatório (€9.601,06) foi objecto, a solicitação do A. (fls. 778), do seguinte esclarecimento adicional pelo Exmo. Juiz que proferiu a decisão:
“[…]
Na matéria de facto foi mencionado que o A. tinha feito despesas de 3.500.000$00, mais 49.030$00, mais 280.000$00, mais 20.650$00, no total de 3.849.680$00.
E que tinha direito a metade destas despesas, ou seja, a 1.924.840$00 ou €9.601,06.
Depois, condenou-se a R. a pagar esta quantia ao A.
Tudo isto se afigura estar claro na decisão.
[…]”
                [transcrição de fls. 797]
[13] Na alínea e) do ponto IV da Fundamentação da Sentença equaciona-se a questão a resolver (a esse aspecto se referindo o item 4 da condenação) nos seguintes termos:
“[…]
Vejamos agora se o A. tem direito a ver declarado um direito de crédito sobre a R. no montante de 500.000$00, relativo às despesas de conservação da propriedade já feitas e também quanto às futuras a liquidar em execução de Sentença.
[…]”
                [transcrição de fls. 731]
[14] A indemnização respeitante à litigância de má fé foi adicionalmente fixada pelo despacho de fls. 756/758, não integrando o objecto do presente recurso.
[15] Que o deveriam ter sido, porque efectivamente suscitadas (trecho inicial do artigo 660º, nº 2 do CPC), integrando a sua não resolução o desvalor da Sentença (nulidade) correspondente à chamada omissão de pronúncia (artigo 668º, nº 1, alínea d) do CPC).
[16] Estudos Sobre o Novo Processo Civil, 2ª ed., Lisboa, 1997, p. 395.
[17] Trata-se fundamentalmente de uma questão – isto na perspectiva em que a Apelante a coloca – de determinação do Direito aplicável a uma situação transnacional referenciável à ordem jurídica portuguesa: uma situação em que, existindo um elemento de conexão à nossa ordem jurídica (desde logo a localização do bem em litígio), se coloca um problema de determinação do Direito aplicável que deve ser resolvido, neste caso em função da existência de normas bilaterais de conflito (como os artigos 52º e 53º do CC), pelo Direito Internacional Privado (v. Luís de Lima Pinheiro, Direito Internacional Privado, vol. I, 2ª ed., Coimbra, 2008, p. 28 e 226/227).
[18] Os pressupostos de facto correspondem aqui, face ao argumento da Apelante, à verificação relativamente às partes, face à lei holandesa (lei pessoal pretendida convocar) dos elementos aí integradores da união de facto [referimo-nos, in casu, aos pressupostos da “união civil registada” na lei holandesa (a geregistreerd partnerschap), pressupostos estes previstos nos artigos 80(a) a 80(g) do Código Civil holandês (Burgerlijk Wetboek) neste introduzidos (relativamente a pessoas de sexo distinto, como aqui sucede) pelas Leis de 5 de Julho de 1997 e de 17 de Dezembro de 1997, cfr. “Text of key articles on Registered Partnership in the Dutch Civil Code”, disponível no sítio da Universidade de Leiden no seguinte endereço: http://media.leidenuniv.nl/legacy/Translation20of20Dutch20law20on%20registered20partnership].
[19] Até porque a aplicação do Direito estrangeiro face a um elemento de conexão, quando convocado por uma norma de conflito, é de conhecimento oficioso pelo Tribunal [v. António Ferrer Correia, Lições de Direito Internacional Privado, vol. I, Coimbra, 2000, pp. 427 e ss.; Luís de Lima Pinheiro, Direito Internacional…, cit., pp. 577 e ss.: “[…] os tribunais portugueses, quando conheçam de uma relação controvertida transnacional seja em primeira instância seja como instância de recurso, estão obrigados a aplicar ex officio o Direito de Conflitos vigente na ordem jurídica portuguesa e, sendo o caso, o Direito estrangeiro designado por este Direito de Conflitos. Observe-se, a este respeito, que não existe qualquer ónus de alegação da competência da lei estrangeira quer perante o tribunal de primeira instância quer perante tribunais de recurso” (p. 578)]. Neste sentido, a questão de Direito Internacional Privado, desencadeados os pressupostos de facto que a configurarem como “questão a resolver”, é abrangida pelo trecho final do nº 2 do artigo 660º do CPC.
[20] Corresponde este fundamento, embora com base numa delimitação muito pouco precisa, às conclusões A) a F) transcritas no item 1.3. supra, estando em causa a impugnação das respostas negativas aos quesitos 50 e 54 e da resposta restritiva ao quesito 37. 
[21] É o que a Apelante diz na alínea E das conclusões: “[…] partindo da premissa de que os quesitos supra referidos [refere-se aos quesitos 50 e 54] deverão ser dados como provados, deverá o A. ser condenado a indemnizar a R., tal como foi pedido em sede de reconvenção, pela ilícita limitação do exercício do seu direito”. Note-se que, contrariamente ao que sucede com os pedidos subsidiários do A., a R. formulou, efectivamente, um pedido de condenação do A. a satisfazer-lhe determinada quantia.
[22] Isto independentemente do desvalor básico de tal construção em sede de recurso, nos termos já mencionados no final do item 2. e da desconsideração pela Apelante, ao longo da tramitação na primeira instância, da introdução dos elementos de facto que interessariam a esta questão, enquanto questão de integração jurídica de determinada situação.
[23] Que, como veremos, não corresponde ao teor do pedido do A., que era de simples reconhecimento de um direito de crédito nascido de determinados pressupostos de facto.
[24] Entende-se que a Apelante cumpriu os ónus argumentativos previstos nas duas alíneas do nº 1 do artigo 690º-A do CPC. Note-se que num recurso em que se impugne a matéria de facto, a especificação dos meios de prova a reavaliar, prevista no artigo 690º-A, nº 1, alínea b) do CPC, não necessita de constar das próprias conclusões, neste sentido, v. os Acórdãos desta Relação (Jorge Arcanjo), de 13/05/2008 (processo nº 372/04.8AAND.C1) e de 03/06/2008 (processo nº 245-B/2002.C1), disponíveis na base de jurisprudência do ITIJ, na pesquisa nos campos indicados, respectivamente nas seguintes localizações: http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb53003ea1c61802568d9005cd5bb/171e03f7d2c8f3e2 e http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/bc3774b42c238fee.  
[25] “[O] termo acção tem no artigo 4º o sentido de pedido […]. [Acções de simples apreciação] [s]ão definidas pelo artigo 4º, nº 2, alínea a), como as que têm por fim «obter  unicamente a declaração da existência ou inexistência dum direito ou de um facto». […] [Acção de condenação] [s]egundo a definição do artigo 4º, nº 2, alínea b), é a que tem por fim «exigir a prestação duma coisa ou dum facto, pressupondo ou prevendo a violação de um direito». Corresponde ao que o Código Civil chama acção de cumprimento (cfr. epígrafe da subsecção que começa no artigo 817º)” (João de Castro Mendes, Direito Processual Civil, I Vol., Lisboa, 1986, pp. 231, 236 e 241).
[26] Embora o enriquecimento sem causa possa, na sua essência profunda, ser visto como uma forma de obstar a flagrantes injustiças (v. o item 2.1.1.4. (b) infra), atribuir a uma situação a consequência de originar uma “flagrante injustiça” não corresponde à forma mais perfeita de invocar a integração dos pressupostos do enriquecimento sem causa.
[27] Lateralmente, sublinha-se de novo que o que corresponde exactamente à pretensão do A. é o reconhecimento de um direito de crédito (v. notas 5 e 6, supra).
[28] “[O]u seja, que exist[iu] a intenção de atribuir o correspondente benefício a outrem por simples generosidade ou espontaneidade, e não com qualquer outra intenção […]” (Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, Direito das Obrigações, Vol. III, 3ª ed., Coimbra, 2005, p. 172).
[29] O non liquet probatório implicará a aplicação das verdadeiras “regras de decisão” constantes dos artigos 342º do CC e 516º do CPC: quem tinha o ónus de alegar e provar determinada situação, suporta, com uma decisão contrária à que pretendia, o “custo” do seu deficit argumentativo ou probatório. Esta questão foi tratada pelo ora relator no Acórdão desta Relação de 04/12/2007, proferido no processo nº 862/05.5TBAND.C1, disponível no sítio do ITIJ (pesquisa nestes campos) no endereço: http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/58c31baaec5ea61e802573b4003c09b8 (seguiremos em diversas passagens do texto que se segue a argumentação expendida no referido Acórdão).
Isto mesmo foi dito pelo STJ, face a uma situação com importantes semelhanças com a presente, no Acórdão de 13/05/2003 (Silva Salazar), proferido no processo nº 02A2586, disponível no mesmo sítio no endereço: http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/ac431cff31ca07068. Lê-se neste último aresto: “[…] todos [os] requisitos [do enriquecimento sem causa] são elementos constitutivos do direito que a A. se arroga sobre o R. […], é obviamente sobre a A. que recai o respectivo ónus de alegação e prova (artigo 342º, nº 1 do CC), de forma que, não satisfazendo ela tal ónus, terá de ver a dúvida daí resultante ser resolvida contra si, ou seja, no sentido da inexistência dos mesmos requisitos (artigo 516º do CPC), o que implicará, nessa hipótese, a inexistência daquele hipotético direito e portanto a improcedência da acção”.
[30] V. Paul Jörs, Wolfgang Kunkel, Derecho Privado Romano, tradução espanhola da 2ª ed. alemã, Barcelona, 1937, pp. 354/357.
[31] Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito, Lisboa, 1989, p. 80.
[32] “O Enriquecimento Sem Causa no Código Civil de 1966”, in Comemorações dos 35 Anos do Código Civil e dos 25 Anos da Reforma de 1977, vol. III (Direito das Obrigações), Coimbra, 2007, p. 15.
[33] Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, O Enriquecimento Sem Causa no Direito Civil. Estudo Dogmático Sobre a Viabilidade da Configuração Unitária do Instituto, Face à Contraposição Entre as Diferentes Categorias de Enriquecimento Sem Causa, Coimbra, 2005 (a tese foi originalmente publicada pelo Centro de Estudos Fiscais em 1996). Constituem exposições condensadas desta obra o Direito das Obrigações deste mesmo Autor (Vol. I, 4ª ed., Coimbra, 2005, pp. 383/456) e o Estudo citado na nota anterior.  
[34] “O Enriquecimento Sem Causa no Código Civil de 1966”, cit., pp. 15/16.
[35] Ob. cit. na nota anterior, pp. 17/19 e 22/27.
[36] Ob. cit. na nota anterior, p. 27.
[37] Ob. cit. na nota anterior, p. 22.
[38] O Enriquecimento Sem Causa no Direito Civil, cit., p. 963.
[39] “O Enriquecimento Sem Causa no Código Civil de 1966”, cit., p. 28; cfr., do mesmo autor, Direito das Obrigações, cit., p. 395.
[40] “O Enriquecimento Sem Causa no Código Civil de 1966”, cit., p. 28.
[41] Remete-se aqui para o teor do ponto [2] dos factos (“[…] A. e R. adquiriram […]”), no contexto complementar significativo dos pontos [7] (“[…] ambos viviam como marido e mulher […]”), [10] e [34] a [38]. De todos estes – para sermos rigorosos, de toda a matéria de facto – resulta que a aquisição da casa ocorreu no contexto da vivência em comum (se quisermos, e referimo-nos aos pressupostos no Direito português, da “união de facto”)
[42] O A. nem sequer alegou em parte alguma da acção, por mais normal que isso fosse, que a repartição de encargos entre ele e a R. correspondesse, no circunstancialismo que lhe presidiu, ao “regime patrimonial” (a expressão é aqui empregue descritivamente, fora de um contexto jurídico preciso) estabelecido entre os conviventes de facto para as incidências patrimoniais dessa relação, no quadro da permanência da mesma.
[43] Dizia o Digesto: “ et quidem si quis indebitum ignorans solvit, per hanc actionem condicere potest: sed si sciens se non debere solvit, cessat repetitio” (se alguém, por ignorância, paga o que não deve, pode usar esta condictio, mas se paga o que sabe não dever, cessa a repetição). As condictiones constituiam no Direito romano o “travão” ao enriquecimento injusto, enquanto recebimento de algo de um património alheio sem causa jurídica (Paul Jörs, Wolfgang Kunkel, Derecho Privado Romano, cit. p. 354).
[44] No sentido de algo que foi indevidamente recebido (v. António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, II, tomo III, Coimbra, 2010, pp. 269/270).
[45] A atribuição ficaria nestes casos, mesmo quando indutora de uma situação de compropriedade, sob uma espécie de reserva rebus sic stantibus referida à permanência da união de facto, no quadro de uma relação liquidatória das incidências patrimoniais dessa situação.
[46] O Enriquecimento Sem Causa no Direito Civil, cit., pp. 495/499.
[47] Frequentemente é nesses termos que as incidências patrimoniais da união de facto, face à vicissitude do seu fim, são tratadas no Direito português:
“[…]
Extinta a relação, há que proceder à liquidação e partilha do património do «casal», que pode suscitar dificuldades, sobretudo, quando a vida em comum durou muito tempo: haverá então, frequentemente, bens adquiridos pelos membros da união de facto, dívidas contraídas por um ou por ambos, contas bancárias em nome dos dois, confusão dos bens móveis de um e outro, etc. Não valendo aqui os artigos 1688º e 1689º do CC, que só ao casamento respeitam, as regras a aplicar são as que tenham sido acordadas no «contrato de coabitação» eventualmente celebrado e, na sua falta, o direito comum das relações reais e obrigacionais. Nem está excluído que a liquidação do património do «casal» se faça segundo os princípios das sociedades de facto quando os respectivos pressupostos se verifiquem” (Francisco Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, Curso de Direito da Família, vol I, 4ª ed., Coimbra, 2008, pp. 79/80).
[48] Uma coisa é a incidência da compropriedade num determinado bem (sem esquecer que a compropriedade é sempre dissolúvel por iniciativa dos comproprietários) e outra os aportes patrimoniais de cada um para a criação de um património comum, quando este é dissolvido, fazendo-se incidir nessa operação, em tal circunstância (e independentemente do estatuto dominial dos bens em concreto), o cruzamento compensatório dos créditos e débitos de cada convivente inerentes à criação desse património. A divisão de coisa comum far-se-á como tal (dividindo a coisa), paralelamente existirão direitos de crédito operantes entre as partes na união de facto, que não existem razões válidas para deixarem de ser feitos actuar, mesmo que por referência ao instituto residual do enriquecimento sem causa.
[49] “Os princípios do enriquecimento sem causa são frequentemente invocados na jurisprudência, que entende que a liquidação e partilha do património adquirido pelo esforço comum se pode fazer na sequência de acção judicial de dissolução da união de facto, por dependência desta acção, ou em acção declarativa de condenação, em que o membro da união de facto que se considere empobrecido relativamente aos bens em cuja aquisição participou peça a condenação do outro a reembolsá-lo com fundamento no enriquecimento sem causa, provando que há um património comum resultante da união de facto vivida entre um e outro […]” (Francisco Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, Curso, cit., pp. 79/80, sublinhado acrescentado, v. também a nota 60, infra; na jurisprudência, neste sentido, cfr. o Acórdão do STJ de 08/05/2003 (Ferreira Girão), proferido no processo nº 04B111, disponível no sítio do ITIJ, nestes campos, no endereço: http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/0/8098663c891b1af680256e5f004e8b69 e o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 19/02/2004 (Alziro Cardoso), proferido no processo nº 0325347, disponível nos campos indicados, sempre no sítio do ITIJ, no endereço: http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/d1d5ce625d24df5380257583004ee7d7/9c479633a2c6e33c80256e4e0054c4e2).

[50] Possibilidade que está longe de ser líquida se referida ao património geral criado por esta união de facto entre o A. e a R., no que extravase do bem aqui exclusivamente em causa (v. item 2.1.1.7. (b), infra).
[51] “O artigo 473º/2 refere em segundo lugar e como hipótese de enriquecimento, o que for recebido por virtude de uma causa que deixou de existir. Trata-se de uma evolução pós-clássica da causa finita.
[P]ensamos poder aqui agrupar todo um ciclo de casos, com tendência para aumentar, em que se desfaz uma união de facto: Havendo casamento, funciona um sistema legal relativo aos bens adquiridos pelo casal, em função do regime adoptado. E ainda a lei rege as partilhas, no caso de divórcio. Já pela união de facto, apenas operam algumas regras de tutela. Fica em aberto todo um universo de despesas ou de trabalho, designadamente de tipo doméstico, que decorra da união de facto e que, quando ela cesse, vá beneficiar um dos unidos, à custa do outro. Os tribunais têm acudido – e bem – a um recurso ao enriquecimento sem causa: tudo o que tem sido prestado, no contexto de uma união de facto, deve ser restituído, quando esta acabe, caso venha a provocar um enriquecimento de um dos ex-parceiros, à custa do outro” (António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, cit. pp. 273/274). E poderíamos citar, expressando um caso muito semelhante ao que aqui se configura, o Acórdão da Relação de Évora de 10/04/2003 (Almeida Simões), na Colectânea de Jurisprudência, II/2003, pp. 242/244: prometido comprar um imóvel por um casal vivendo em união de facto e pago integralmente o preço por um dos seus membros, a subsequente escritura celebrada por ambos, já depois da ruptura, gera uma compropriedade não justificada que traduz um enriquecimento do que nada pagou.
[52] E até poderá não o ser, se o fim visado for o de apurar créditos para os fazer valer numa ulterior liquidação global do património gerado pela união de facto.
[53] Manuel A. Domingues de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra, 1979, p. 378).
[54] Isso é expresso, neste caso, na alínea a) do pedido subsidiário (“[s]ejam reconhecidos […]”), em termos que não podemos deixar de repercutir, no contexto intrínseco em que se insere a expressão, nos restantes pedidos subsidiários: também eles são de – também eles se esgotam no – reconhecimento de determinados direitos de crédito do A.
[55] No pedido formulado na petição inicial e que se estabilizou, inalterado, ao longo do processo.
[56] Note-se que o A. nem sequer formulou qualquer pedido de juros (de novo se remete para o exacto teor dos pedidos a fls. 11/12).
[57] Sublinha-se que a Apelante suscitou expressamente esta questão no seu recurso (v. alínea CC) das conclusões; cfr. nº 3 do artigo 668º do CPC).
[58] A actuação deste direito de crédito (exigência efectiva dele ou invocação num quadro compensatório) é questão que extravasa do objecto desta acção. Aqui só se forma caso julgado quanto à existência de um direito de crédito com determinado conteúdo sobre alguém.
[59] V. António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, cit. pp. 254/255.
[60] Percebeu-se, aliás, através da prova produzida, que o A. e a R. pretenderam evitar, precisamente, a transformação da sua convivência numa verdadeira “união de facto”, face ao Direito holandês, isto como mecanismo de evitação da externalidade correspondente à extinção da pensão de viuvez da Apelante. Como veremos, a união de facto no Direito holandês assenta, nos seus requisitos constitutivos, na existência de um registo público da situação. Foi isto o que aqui se quis – quiseram o A. e a R. – evitar, conforme foi explicado por muitas das testemunhas.
[61] O artigo 52º, nº 1 do CC afirma que “[…] as relações entre os cônjuges são reguladas pela lei nacional comum”, aceitando-se, relativamente ao caso específico que a união de facto constitui (relação parafamiliar, como a qualificam Francisco Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, Curso, cit., p. 50), que se possa ver nesta uma “relação de família” no quadro das normas de conflito estabelecidas nos artigos 49º e seguintes do CC [neste sentido, Luís de Lima Pinheiro, Direito Internacional Privado, vol. II, 2ª ed., Coimbra, 2005, pp. 294 e ss. e Sofia Oliveira Pais, António Frada de Sousa, “A União de Facto e as Uniões Registadas de Pessoas do Mesmo Sexo – Uma Análise de Direito Material e Conflitual”, in Revista da Ordem dos Advogados, ano 59 (1999), pp. 733/734].
“[…]
Mesmo que a união de facto seja configurada como uma relação de família pela lex causae, é de esperar que haja diferenças marcadas relativamente ao casamento que geralmente obstam à recondução das situações que lhe dizem respeito aos conceitos utilizados para delimitar o objecto das normas de conflitos dos artigos 49º e ss. do CC (designadamente os conceitos de «casamento», «relações entre os cônjuges», «regime de bens» e «divórcio»). Por isso não é geralmente possível aplicar directamente estas normas de conflitos. Mas não é de excluir a aplicação analógica, quando as semelhanças com o casamento o justifiquem. Assim, designadamente, os artigos 52º e 53º do CC, que determinam o Direito aplicável às relações entre os cônjuges e à substância e efeitos das convenções antenupciais e do regime de bens, poderão, nesta hipótese, ser aplicadas analogicamente à união matrimonial de facto” (Luís de Lima Pinheiro, Direito Internacional Privado, vol. II, cit., pp. 294/295). 
[62] Citamos aqui a disposição, no trecho relevante, na tradução oficial inglesa:
“[…]
3. The registration of a registered partnership takes place by means of a certificate of registration of partnership drawn up by a Registrar of Civil Status.
4. Persons who intend to enter into a registered partnership with each other must give notice of this to the Registrar of Civil Status of the municipality where the domicile of one of them is located, under submission of data about their civil status, and if they previously had been united in another registered partnership or marriage, with indication of the names of the former partner or of the former spouse. Where both prospective registered partners, of whom at least one has the Dutch nationality, have their domicile outside the Netherlands, but intend to enter into a registered partnership with each other in a Dutch municipality, the formal notice of registered partnership must be given to the Registrar of Civil Status of the municipality of The Hague. Articles 1:43, paragraph 2, 3 and 4, and 1:46 apply accordingly.

[…]” (texto disponível em http://www.dutchcivillaw.com/legislation/dcctitle055aa.htm; cfr.. Family Law Legislation of the Netherlands, Ian Sumner, Hans Warendorf (eds.), in Google books, disponível em: http://books.google.pt/books?id=mPcCZatsIiQC&printsec=frontcover&dq=dutch+civil+code&source=bl&ots=cWQHiBQIih&sig=FEtl5TSEyiw7PIKe_1wpFWpFVh8&hl=pt-PT&ei=OXLYS6yVAprI-Qb_lMXxBQ&sa=X&oi=book_result&ct=result&resnum=6&ved=0CCwQ6AEwBQ#v=onepage&q&f=false).
Note-se que fora do quadro desta “união civil registada”, as incidências patrimoniais da vivência em comum passam, no Direito dos conflitos do foro (O Direito de conflitos português) induzido pela existência de uma conexão à ordem jurídica holandesa, para o domínio, distinto da relevância do estatuto pessoal no âmbito de uma relação familiar ou parafamiliar, da simples afirmação da dominialidade sobre determinados bens. Neste último caso estaremos, enquanto norma de conflitos da lei portuguesa, no quadro da “lei reguladora das coisas” e da chamada lex rei sitae (artigo 46º, nº 1 do CC: “[o] regime da posse, propriedade e demais direitos reais, é definido pela lei do Estado em cujo território as coisas se encontrem situadas”). E isto vale, mesmo que se abranja, instrumentalmente à questão da dominialidade, a consideração de elementos de natureza obrigacional. É aquilo que no Direito de conflitos se chama “primazia relativa do estatuto real”:
“[…]
O critério tradicional na doutrina europeia é o que poderemos designar por primazia relativa do estatuto real: este estatuto define as condições de produção de um efeito real, mas o preenchimento destas condições não depende exclusivamente da lex rei sitae. Assim, por exemplo, cabe ao estatuto real decidir se a transferência da propriedade depende ou não de um contrato de venda válido; caso dependa, a existência de um contrato de venda válido é apreciada segundo a lex contractus designada pelo Direito de conflitos do foro.
Está na lógica deste critério resolver os problemas de qualificação e delimitação suscitados pela sua aplicação segundo uma ideia de prevalência da qualificação real relativamente aos elementos do contrato de venda com incidência real e aos aspectos de uma relação contratual em que segmentos reais e obrigacionais estão indissoluvelmente ligados.
Uma prevalência do estatuto real pode justificar-se em matéria de direitos imobiliários, uma vez que o imóvel tem uma localização permanente e há que considerar o princípio da efectividade” (Luís de Lima Pinheiro, Direito Internacional Privado, vol. II, cit., pp. 265/266).
[63] Note-se que o nº 2 do artigo 661º abrange também a fixação do objecto da condenação como tema da ulterior liquidação.
[64] O que resulta da integração, por via dos factos provados, desses direitos de crédito do A.
[65] Questão esta suscitada pela Apelante no recurso.
[66] V. o artigo 715º, nº 1 do CPC.