Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1817/19.8T8CBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ISAÍAS PÁDUA
Descritores: REGULAMENTO DE CUSTAS PROCESSUAIS
ISENÇÕES DE CUSTAS
Data do Acordão: 12/10/2019
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA – JUÍZO DE EXECUÇÃO DE SOURE – JUIZ 2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTº 4º DO REGULAMENTO DE CUSTAS PROCESSUAIS (RCP).
Sumário: I- No artº 4º do RCP configura-se uma exceção à regra geral de que todos os processos estão sujeitos a custas.

II- Com a nova redação dada a esse normativo visou-se, por um lado, concentrar/unificar nele todas as isenções de custas concedidas nos múltiplos diplomas dispersos, e, por outro, proceder a uma redução/limitação dessas isenções.

III- As isenções de custas aí atribuídas são de natureza subjetiva (nº 1), e de natureza objetiva (nº 2), sendo as primeiras atribuídas em função da qualidade das partes e as segundas em função do tipo dos processos.

IV- Entre as isenções subjetivas estão aquelas que se encontram no âmbito da previsão do artº. 4º, nº 1, al. f), do RCP.

V- Como decorre da leitura de tal normativo, constituem pressupostos legais da aplicação da isenção de custas nele previstos:

a) Que se esteja na presença de uma pessoa coletiva privada, sem fins lucrativos.

b) Que essa pessoa coletiva privada atue no processo exclusivamente no âmbito das suas especiais atribuições ou (em alternativa);

c) Para defender os interesses que lhes estão especialmente conferidos pelo respetivo estatuto ou nos termos da legislação que lhes seja aplicável.

VI- Na génese da atribuição da isenção de custas a tais pessoas coletivas estão motivações norteadas pela ideia de funcionarem como um estímulo ao exercício de funções públicas por particulares que, sem espírito de lucro, realizam tarefas em prol do bem comum, das quais que comunidade aproveita e o Estado beneficia, por se encontrarem no âmbito das atribuições que lhe incumbe desenvolver ou levar a efeito.

VII- Isenção essa que abrange as ações das quais delas resulte em concreto que tais pessoas coletivas visam através delas, quer por via direta, quer por via indireta ou conexa instrumental, a defesa dos interesses que lhe estão especialmente conferidos pela lei ou pelos seus estatutos e particularmente garantir/assegurar, por uma dessas vias, a prossecução dos fins que nortearam a sua criação.

VIII- Quando o demandante invoque no seu articulado inicial beneficiar do regime de isenção de custas - não juntando por isso o documento comprovativo do pagamento da taxa de justiça – e o juiz venha a decidir/entender não gozar dessa alegada isenção de custas, a consequência jurídica daí a extrair será, em vez do seu indeferimento liminar, a notificação daquele, pela secretaria/secção, para, no prazo legal, proceder ao pagamento da taxa de justiça devida – sem que no caso haja lugar a qualquer acréscimo penalizador -, sob a cominação de, o não fazendo, aquele articulado não ser recebido.

Decisão Texto Integral:









Acordam neste Tribunal da Relação de Coimbra

I- Relatório

1. Em 14/03/2019, no Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra – Juízo de Execução -, a exequente, F..., instaurou a ação executiva (dando como titulo executivo um procedimento de injunção ao qual foi aposto formula executória), contra os executados, S... e A..., reclamando destes o pagamento coercivo da quantia total de €1.063,45 (correspondendo €914,90 ao capital em dívida, e o restante aos juros de mora vencidos), acrescida, dos juros de mora vincendos.

Para o efeito, alegou o seguinte:

«A exequente é uma Instituição Particular de Solidariedade Social com inúmeras valências ao nível da atividade assistencial, cultural, educacional e de formação concretizadas em diversos estabelecimentos, nomeadamente o Colégio ..., estabelecimento de ensino particular dos 1.º ao 3.º ciclos do ensino básico da requerente sito em Coimbra.

2. No âmbito dessa atividade a exequente admitiu, no referido estabelecimento, B... (aluno n.º ...) em 01/09/2012 e de quem os executados são representantes legais.

3. No período a que se refere o título executivo ficaram por pagar 2 (duas) faturas conforme melhor resulta do mencionado título, totalizando 765,20 €, acrescidos dos juros conforme descrito em «liquidação da obrigação» do presente requerimento.

4. A requerente é uma instituição particular de solidariedade social e utilidade pública que, de acordo com o artigo 2.º dos seus Estatutos, «tem por objetivo contribuir para a promoção a população da região centro através do propósito de dar expressão organizada ao dever de solidariedade e de justiça social entre os indivíduos…» apoiando, promovendo e desenvolvendo, para o efeito e atendendo ao disposto no artigo 3.º, alínea b), atividades no âmbito da educação na qual se insere a desenvolvida pelo Colégio ... e, por isso, encontra-se isenta do pagamento de taxa de justiça nos termos do artigo 4.º, n.º 1, alínea f) do Regulamento das Custas Processuais. »

2. Após os autos lhe terem sido feitos conclusos pelo sr. escrivão, com a informação de lhe suscitarem dúvidas sobre se a exequente beneficiava de isenção do pagamento de justiça, a sr. juíza titular dos autos, por despacho proferido em 27/03/2019, decidiunão reconhecer à exequente a isenção do pagamento de custas nesta ação executiva e indeferir (em consequência, dizemos nós) liminarmente o requerimento executivo.”

3. Inconformada com esse despacho decisório a exequente dele apelou, tendo concluído as alegações desse seu recurso nos seguintes termos:

...

4. Os executados (citados para os termos do recurso e da ação ) não contra-alegaram.

5. Cumpre-nos, agora, apreciar e decidir.


II- Fundamentação

         A. De facto.

Com relevância e interesse para a apreciação e decisão do presente recurso devem ter-se como assentes os factos que se deixaram descritos no Relatório que antecede e ainda os que a seguir se descrevem (extraídos das peças processuais e documentais que integram os autos):

1- A exequente encontra-se registada, a título definitivo, na Direção Geral da Segurança Social, desde 13/02/1991, sob o nº...

2- Dispõe-se, além do mais, nos Estatutos da exequente que:

- Artigo. 2º:

“A Fundação em por objetivo contribuir para a promoção da população da região centro através do propósito de dar expressão organizada ao dever de solidariedade e de justiça social entre os indivíduos, podendo, todavia, a vir a estender-se a outras localidades do País por deliberação do Conselho de Administração.”

- Artigo 3º:

“ Para atingir o seu objetivo a Fundação propõe-se apoiar, promover e realizar atividades nos seguintes âmbitos:

a) Solidariedade Social;

b) Educação;

c) Cultura;

e) Formação Profissional;

f) Outras, que venham a tornar-se possíveis e necessárias, desde que respeitem a Obra e o Espírito do ...”

- Artigo 4º:

“ A organização e o funcionamento dos diversos setores de atividade constarão de regulamentos internos e elaborados pelo Conselho de Administração.” (sublinhado nosso)

- Artigo 5º:

- “O património da Fundação é constituído por bens e valores que lhe estão afetos, e pelos demais bens ou valores que vierem a ser adquiridos ou doados.”

- Artigo 6º:

Constituem receitas da Fundação:

a) Os rendimentos bens e capitais próprios;

b) Os rendimentos de heranças, legados e doações;

c) Os rendimentos dos serviços e as comparticipações dos utentes;

d) Quaisquer donativos, produtos de festas e subscrições;

e) Subsídios do Estado e de outras entidades.” (sublinhado nosso)

3. Criado no âmbito da prossecução dos objetivos enunciados no artº. 2º dos seus Estatutos, a exequente é proprietária, entre outros, do estabelecimento de ensino particular (para o 1º., 2º. e 3º. Ciclos do Ensino Básico) denominado “Colégio ...”, que dispõe de Regulamento Interno e por ele se rege (cfr. fls. 21 e ss. do processo físico).

3.1 Pela frequência desse estabelecimento de ensino é devida uma prestação mensal/propina fixada em conformidade com os critérios definidos no artº. 47º do Regulamento, concedendo ainda a Fundação bolsas de estudo a alunos provenientes de agregados familiares com dificuldades económicas, a atribuir de acordo com os critérios estabelecidos em Regulamento próprio elaborado para o efeito (artº 48º).

3.2 Nos termos do estatuído no nº 13 do artº. 47º desse Regulamento, “todos os débitos serão exigidos através de pagamento voluntário ou cobrança coerciva.” (sublinhado nosso)

B) De direito.

1. Como é sabido, é pelas conclusões das alegações dos recorrentes que se fixa e delimita o objeto dos recursos, pelo que o tribunal de recurso não poderá conhecer de matérias ou questões nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso (cfr. artºs. 635º, nº 4, 639º, nº 1, 608º, nº 2, e 852º do CPC).

Ora, calcorreando as conclusões das alegações do recurso da exequente/apelante verifica-se que as únicas questões que aqui, verdadeiramente, nos cumpre apreciar  e decidir traduzem-se em saber se a mesma está ou não isenta do pagamento de custas (e particularmente de taxa de justiça) na apresente ação e, em caso negativo, se o requerimento executivo deveria ou não, com base na falta do pagamento da taxa de justiça, ser, desde logo, indeferido liminarmente.

O tribunal a quo entendeu que não se encontrando a exequente a atuar, na presente causa, exclusivamente no âmbito das suas especiais atribuições ou para defender os interesses que lhe estão conferidos pelo seu estatuto ou nos termos da legislação que lhe é aplicável, não pode gozar da isenção de custas prevista no artº 4º, nº 1, al. f), do Regulamento das Custas Processuais (doravante RCP), e sendo assim, e não tendo a exequente junto comprovativo  do pagamento da taxa justiça devida ou de beneficiar de apoio judiciário em que a dispensasse desse pagamento, decidiu indeferir liminarmente o requerimento executivo.

Contra ambos os entendimentos se insurge a exequente/apelante, defendendo, por um lado, gozar no caso da presente ação da isenção do pagamento de custas, e particularmente da taxa de justiça, e, por outro, e mesmo que assim não seja de entender, não poderia a o tribunal a quo indeferir liminarmente o requerimento executivo sem que previamente lhe fosse facultada a possibilidade de suprir da falta do pagamento dessa taxa de justiça, tudo com base nos argumentos que, em síntese, aduz na suas conclusões das alegações de recurso que acima se deixaram transcritas.

2. Apreciemos.

2.1 Quanto à 1ª. questão da isenção (ou não) de custas de que beneficia a exequente na presente ação.

No artigo 1º do do RCP estabelece-se a regra geral de que todos os processos estão sujeitos a custas, nos termos fixados por esse Regulamento, e que se aplica a todos os processos, quer eles corram nos tribunais judiciais, nos tribunais administrativos e fiscais ou no balcão das injunções (artº 2º RCP).

Custas essas que abrangem a taxa de justiça, os encargos e as custas de parte (artºs. 3º, nº 1, do RCP e 529º, nº 1, do CPC).

Resulta, assim, do confronto de tais normativos que, como regra geral, todas as ações, execuções, incidentes autónomos, procedimentos cautelares ou recursos encontram-se sujeitos ao pagamento de custas, as quais abrangem a taxa de justiça, os encargos e as custas de parte, correspondendo a taxa de justiça ao montante devido pelo impulso processual, devendo cada parte juntar aos autos, no momento da prática do ato correspondente a esse impulso, o documento comprovativo do prévio pagamento da taxa de justiça devida ou então concessão do benefício de apoio judiciário que o dispensa do mesmo.

Regra geral essa que sofre, todavia, da exceção prevista no artº. 4º do RCP.

Nesse preceito legal, sob a epígrafe “isenções”, elenca-se, no seu nº 1, uma série de entidades (isenções subjetivas) e, no seu nº 2 uma série de processos (isenções objetivas) que se encontram, ab initio, isentas do pagamento de custas.

As isenções subjetivas aí previstas têm, assim, na sua base de atribuição a qualidade das partes, enquanto que as isenções objetivas têm a sua base da atribuição o tipo de processo, ou seja, são concedidas em função do tipo de espécie processual.

No que concerne às primeiras, diga-se que, ao contrário do sucedia o anterior Código das Custas Judiciais, onde se previam isenções subjetivas puras, isentando determinadas entidades do pagamento de custas, independentemente da natureza dos processos em que fossem parte e sem quaisquer outras condicionantes a não ser a qualidade da parte, as isenções subjetivas que se encontram agora enunciadas no artº. 4º, nº 1, do atual RCP, não são puramente subjetivas, pois que não são estabelecidas exclusivamente em função das entidades que se encontram elencadas nessa previsão legal e que sejam partes no processo, uma vez que aí se condiciona essa isenção, que estabelece a favor daquelas, ainda à natureza das questões, dos direitos e dos interesses ou da relação material que é objeto do processo.

Como bem se salienta no Ac. do TRG de 28/06/2018 (proc. nº. 988/17.82T8FAF.G, disponível em www.dgsi.pt), esta opção legislativa em deixar de se prever no atual RCP isenções subjetivas puras, conforme se lê no Preâmbulo do Decreto-Lei nº 34/2008, de 26/02, que aprovou o RCP, corresponde ao objetivo prosseguido pelo legislador de proceder “a uma drástica redução das isenções, identificando-se os vários casos de normas dispersas que atribuem o benefício da isenção de custas para, mediante uma rigorosa avaliação da necessidade de manutenção do mesmo, passar a regular-se de modo unificado todos os casos de isenção”. (sublinhado nosso)

Na verdade, - face ao afirmado no Preâmbulo do referido DL, que aprovou o RCP, e ao seu artigo 25º que revogou “as isenções de custas previstas em qualquer lei, regulamento ou portaria e as conferidas a quaisquer entidades públicas ou privadas, que não estejam previstas no presente decreto-lei- todas as isenções de custas (incluindo aquelas que se encontravam previstas em diplomas avulsos e conferidas a entidades públicas e privadas) - seja de natureza subjetiva, seja de natureza objetiva, e independentemente da natureza do processo - passaram a estar concentradas/unificadas, no citado artº. 4º do RCP, precisamente com o objetivo de, por um lado, evitar a sua dispersão por inúmeros diplomas avulsos (de difícil controle) e, por outro, com o confessado desiderato de proceder à sua redução.

Como salienta o cons. Salvador da Costa (in “As Custas Processuais”, 2018, 7ª. ed., Almedina, págs. 104/105”), a maioria das isenções subjetivas previstas no nº 1 do referido artº. 4º do RCP, “não obstante o seu caráter de pessoal, é motivada por um elemento objetivo consubstanciado no interesse público prosseguido pelas pessoas ou entidades a quem são concedidas.”

Isenção essa que, mesmos na situações previstas no citado artº 4º do RCP - e tal como decorre dos seus nºs 4 e 5 e mais à frente veremos -, não se apresenta como absoluta, pois que (e como refere aquele autor, in “Ob., cit., pág. 105”) “em alguns casos a sua manutenção depende de os respetivos pressupostos ainda ocorrerem ao tempo do trânsito em julgado da sentença final, ou do êxito total das pretensões que foram formuladas, ou da forma como as partes agiram no exercício das suas funções objeto das espécies processuais em causa”, podendo ainda revestir-se de caráter limitado e/ou provisório/condicional.

Feitas esta considerações de caráter mais generalista, avancemos agora, mais incisivamente, rumo à solução do caso em apreço.

Estatui-se, assim, no artº 4º, nº 1, al. f), do RCP - sendo a sua aplicação que está aqui em causa - que “estão isentas de custas as pessoas coletivas privadas sem fins lucrativos, quando atuem exclusivamente no âmbito das suas especiais atribuições ou para defender os interesses que lhe estão especialmente conferidos pelo respetivo estatuto ou nos termos de legislação que lhes seja aplicável.

Consagra-se aí, pelo que acima se deixou exposto, uma verdadeira isenção subjetiva de custas.

No desenvolvimento e concretização do que já antes afirmara como justificação genérica da isenção de custas subjetivas, o cons. Salvador da Costa (in “Ob. cit., pág. 108”), referindo-se a esta particular isenção de custas, afirma que “é uma isenção motivada pela ideia de estímulo ao exercício de funções públicas por particulares que, sem espírito de lucro, realizam tarefas em prol do bem comum, do que à comunidade aproveita e ao Estado incumbe facilitar.”

Como se extrai do que atrás já fomos avançando, não estamos na presença de uma isenção absoluta, mas antes de uma isenção limitada e condicionada.

É limitada, porque não depende apenas da qualidade da parte/sujeito, já que ainda está dependente dos concretos contornos da ação/processo para a qual se pretenda essa isenção, pois que apenas dela beneficiam as ações/processos em que a pessoa coletiva neles defenda interesses relacionados exclusivamente com as suas especiais atribuições ou para defender os interesses que lhe estão especialmente atribuídos pelo respetivo estatuto ou nos termos de legislação que lhes seja aplicável.

E é condicionada, porque a parte que beneficia dessa isenção pode, a final, vir a ter de suportar as custas, nos termos enunciados nos nºs 5 e 6 do artº 4º do RCP, ou seja, quando, respetivamente, se conclua pela manifesta improcedência do pedido daquela ou então quanto a sua pretensão vier a ficar totalmente vencida (cfr. ainda, entre outros, Acs. da RG de 28/06/2018, proc. nº. 988/17.82T8FAF.G, de 30/04/2015, proc. nº. 204/14.9TTVRL, e de 30/06/2016, proc. nº. 846/16.2T8BCL.G1, disponíveis in www.dgsi.pt).

Como decorre da leitura de tal normativo, constituem pressupostos legais da aplicação da isenção de custas nele previstos:

a) Que estejamos na presença de uma pessoa coletiva privada, sem fins lucrativos.

b) Que essa pessoa coletiva privada atue no processo exclusivamente no âmbito das suas especiais atribuições ou;

c) Para defender os interesses que lhes estão especialmente conferidos pelo respetivo estatuto ou nos termos da legislação que lhes seja aplicável. (cfr., entre outos, Ac. da RP de 29/06/2015, proc. 356/11.8TTPRT-D.P1, disponível in www.dgsi.pt).

De acordo com o Estatuto das Instituições Particulares de Solidariedade Social (IPSS), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 119/83, de 25/01, e sucessivas revisões, republicado no Decreto-Lei n.º 172-A/2014, de 14/11, este revisto pela Lei nº. 76/2015, de 28/07, “são instituições particulares de solidariedade social, as pessoas coletivas, sem finalidade lucrativa, constituídas exclusivamente por iniciativa de particulares, com o propósito de dar expressão organizada ao dever moral de justiça e de solidariedade, contribuindo para a efetivação dos direitos sociais dos cidadãos, desde que não sejam administradas pelo Estado ou por outro organismo público” (artº. 1º, nº. 1).

Como é sabido, a toda a constituição de pessoas coletivas preside um fim (artigos 167º, nº 1, e 186º, nº 1, ambos do Código Civil).

Como elucida, a esse propósito, o prof. António Menezes Cordeiro (in “Tratado de Direito Civil Português, vol. I, Parte Geral, Tomo III, Pessoas, 2ª. Edição, 2007, Almedina, pág. 628”), o fim tende a “ser considerado o seu factor fundamental”, pois é o fim da pessoa colectiva que vai determinar: “a sua idoneidade e, sendo o caso, o seu reconhecimento”; “a sua capacidade, em função do princípio da especialidade”; “o eventual reconhecimento da utilidade pública”; “o tipo de actuação requerido aos titulares dos seus órgãos”; as coordenadas de interpretação dos estatutos”.

Ora, as atribuições de uma pessoa coleciva são, assim, precisamente os fins ou as finalidades por ela prosseguidas. As especiais atribuições são os fins ou as finalidades para a realização das quais foi formada a pessoa coletiva e que lhe conferem identidade e que as distinguem de outras pessoas no mundo das pessoas coletivas. É com este sentido, por exemplo, que o artigo 51º, nºs 1, al. a), e 2 da Lei nº 24/2012, de 09/07, que aprovou a Lei-Quadro das Fundações, fala das “atribuições” das fundações públicas. (Vide o Ac. da RL de 22/03/2017, proc. nº. 22456/16.1T8LSB.1.L1-4, disponível em www.dgsi.pt).

Logo, as atribuições da exequente são as finalidades que ela prossegue; as especiais atribuições são as finalidades que levaram à sua formação; são os objetivos que lhe conferem identidade e que concorrem para a distinguir de outras pessoas coletivas.

Deste modo, e como bem, a nosso ver, se discorre no acordão da RG de 28/06/2018 (proc. nº. 988/17.82T8FAF.G, disponível em www.dgsi.) - e em cujo pensamento, na sua essencialidade, nos revemos, expresso nas passagens que, com a devida vénia, passaremos a transcrever - « (…) a isenção em apreço, atento o elemento literal da norma contida no art. 4º, n.º 1, al. f) do RCP, apenas abrangeria as ações em que a pessoa coletiva seja demandante ou demandada e cujo objeto contenda, única e diretamente, com “o coração”, ou seja, o núcleo mais central que justificaram a sua criação, isto é, aquelas ações que digam respeito, exclusiva e diretamente, aos fins/objetivos que justificaram a criação dessas pessoas coletivas e que as mesmas têm efetivamente de prosseguir atento o princípio da especialidade que conforma e limita a respetiva capacidade jurídica (art. 160º do CC) ou, nos termos da parte final desse preceito, ações que tenham por fim direto a defesa dos interesses que lhes estão especialmente confiados por lei ou pelos respetivos estatutos.

Nesta perspetiva meramente literal daquele preceito, a isenção em causa não abrangeria as obrigações ou litígios derivados de contratos que as enunciadas pessoas coletivas privadas sem fins lucrativos celebraram com vista a obter meios para o exercício das suas atribuições, na medida em que, por um lado, nessas ações, essas pessoas não atuam “no âmbito das suas especiais atribuições”, posto que ao celebrarem esses contratos não agem no âmbito dos fins primários ou principais para que foram criadas e que prosseguem, sequer visam defender os interesses diretos que lhe estão cometidos por lei ou pelos respetivos estatutos, antes prosseguem, por via indireta, a prossecução de tais interesses, visando obter meios económicos que lhes permitam satisfazer os seus fins primários

No entanto, a interpretar-se a enunciada al. f) do nº 1 do enunciado art. 4º por apelo apenas ao elemento literal, desprezando os demais elementos interpretativos, designadamente histórico e teleológico que devem presidir a uma interpretação correta de qualquer norma jurídica, como desde cedo se apercebeu a doutrina e a jurisprudência, frustrar-se-ia as finalidades prosseguidas pelo legislador com a criação da isenção em causa que “é motivada pela ideia de estímulo ao exercício de funções públicas por particulares que, sem espírito de lucro, realizam tarefas em prol do bem comum, o que à comunidade aproveita e ao Estado incumbe facilitar”, na defesa do interesse público.

Na verdade, semelhante interpretação restritiva da norma em causa, além de, como dito, postergar os princípios interpretativos enunciados no art. 9º, nº 1 do CC, levaria a que essa isenção apenas funcionasse nos processos cujo objeto tivesse a ver diretamente com as especiais atribuições (fins) da pessoa coletiva demandante ou demandada ou em que esta atuasse, nesses processos, tendo em vista a defesa direta dos interesses especiais conferidos àquelas por lei ou pelos respetivos estatutos, ficando de fora dessa isenção todas aquelas outras ações em que os fins estatutários dessas pessoas ou a defesa dos interesses especiais conferidos às mesmas por lei ou pelos respetivos estatutos fossem prosseguidos por via meramente instrumental (…).

Porque assim é, vem-se entendendo que aquela isenção deverá abranger igualmente as ações em que o respetivo objeto contenda com a satisfação dos fins especiais que, em função dos respetivos estatutos, incumbe à pessoa coletiva privada, sem fins lucrativos, demandada ou demandante, prosseguir ou em que estas prosseguem a defesa dos interesses especiais que lhe são conferidos por lei ou por esses estatutos, mas em que esses fins ou interesses são prosseguidos por via meramente instrumental, isto é, reflexa ou indireta.

Neste sentido pronuncia-se Salvador da Costa, ao escrever que na interpretação restritiva e meramente literal da norma contida no art. 4º, n.º 1, al. f) do RCP “… pode parecer que esta isenção não abrange as ações que tenham por objeto obrigações que essas pessoas celebrem com vista a obter os meios para o exercício das suas atribuições. Todavia, se o objeto de tais ações for instrumental em relação aos fins estatutários dessas entidades, incluindo as relativas aos contratos de trabalho, propendemos a considerar serem abrangidas pela isenção em análise” (Salvador da Costa, “Regulamento das Custas Processuais Anotado e Comentado”, 2012, 4ª ed., Almedina, pág. 177.” (Diga-se, a esse propósito, e em nota agora nossa – do presente coletivo de juízes desta Relação de Coimbra -, que o referido autor parece ter infletido essa sua posição ao afirmar, na sua mais recente obra que acima citámos – “As Custas Processuais”, 2018, 7ª. ed., Almedina, pág. 109” - (…) , que “Neste contexto, esta isenção não abrange as ações cujo fim direto não seja a defesa dos interesses especialmente confiados à referidas pessoas colectivas pela lei ou pelos estatutos (…)”: O que, a ser assim, nos permitimos discordar do sentido dessa inflexão, pelas razões que temos vindo e continuaremos aduzir, pela pena do aresto de que nos vimos socorrendo.)

“A dificuldade que preside a este entendimento coloca-se sobre o que se entender por “instrumentalidade”.

Com efeito, tal como se salienta nos acórdãos desta Relação, acima já identificados na nota 3 (Acs. RG. de 30/04/2015, proc. 204/14.9TTVRL e de 30/06/2016, Proc. 846/16.2T8BCL.G1, in base de dados da DGSI) a falar-se aqui simplesmente de uma instrumentalidade, como bastante para se fazer atuar a isenção, tal implicará colocar na norma aquilo que o legislador não pretendeu e postergar-se-ia uma das linhas da reforma das custas processuais efetuada pelo RCP, que como referido, foi a “reavaliação do sistemas de custas”, na sequência do que, procedeu “a uma drástica redução das isenções, identificando-se os vários casos de normas dispersas que atribuem o benefício da isenção de custas para, mediante uma rigorosa avaliação da necessidade de manutenção do mesmo, passar a regular-se de modo unificado todos os casos e isenções”.

Na verdade, ao falar-se simplesmente em “instrumentalidade”, cobrindo-se pela isenção todas as ações cujo objeto contendesse com os fins estatutários da pessoa coletiva demandante ou demandada ou com a defesa dos interesses que lhe estão especialmente conferidos por lei ou pelos respetivos interesses, ainda que esses fins ou interesses em discussão na ação fossem por ela prosseguidos por via instrumental, isto é, reflexa ou indireta, tal implicaria que estando-se na presença de pessoas coletivas privadas, sem fins lucrativos, facilmente se encaixaria nos pressupostos necessários à atuação da isenção, todo o tipo de ações por elas instauradas ou em que fossem demandadas, inutilizando o caráter limitado da isenção prescrita pelo enunciado art. 4º, n.º 1, al. f), do RCP, e acabaria por se adotar o sistema de isenção subjetiva tout court que no precedente CCJ o legislador estabelecia a favor das IPSS em manifesta violação da lei.

Cientes que as pessoas coletivas privadas sem fins lucrativos nem sempre prosseguem, indireta e instrumentalmente, as atribuições e interesses que lhes cabe, a jurisprudência, à qual aderimos, tem entendido, cremos que uniformemente, que com vista a operar ou não a referida isenção, importará, caso a caso, verificar se o assunto em discussão na ação tem por objeto relações jurídicas estabelecidas pela pessoa coletiva com terceiros com vista à prossecução das atribuições (isto é, fins) especiais que lhe estão cometidos pelos respetivos estatutos, por serem uma “decorrência natural” do seu atuar na concretização desses fins e/ou interesses, quer por traduzirem a concretização desses fins e/ou interesses, quer por serem necessárias à concretização dos mesmos (10. Acs. RG. de 30/04/2015, Proc. 204/14.9TTVRL; 30/06/2016, Proc. 846/14.2T8BCL.G1; 14/06/2017, Proc. 2734/16.9T8BCL-A.G1; 04/10/2017, Proc. 11/14.9TTVRL-A.G1; RL. de 22/03/2017, Proc. 22455/16.1T8LSB.L1-4, todos in base de dados da DGS) (…) »

Aqui chegados é agora a altura, e tendo presentes tas considerações jurídicas que se deixaram expendidas e bem assim os factos supra dados como assentes, de partir em definitivo ao encontro da solução para questão que acima colocámos e que se traduz, relembremos, em saber se no caso da presente execução a exequente beneficia ou não da isenção de custas prevista no artº. 4º, nº 1, al. f), do RCP.

É incontroverso que a exequente é uma pessoa coletiva privada, sem fins lucrativos, que, de acordo com os seus Estatutos (artº 2º), tem com objetivo/fim contribuir para a promoção da população da região centro através do propósito de dar expressão organizada ao dever de solidariedade e de justiça social entre os indivíduos.

Para atingir esse seu objetivo/fim a exequente propõe-se apoiar, promover e realizar atividades em vários âmbitos, e entre eles no âmbito da Educação (artº 3º dos Estatutos), cuja organização e funcionamento consta dos respetivos regulamentos internos (artº 4º dos Estatutos), constando entre as suas fontes de receita, destinada a financiar essas suas atividades, os rendimentos dos serviços e as comparticipações dos seus utentes (artº 6º dos Estatutos).

E para esse efeito criou, entre outos, o estabelecimento de ensino particular (para o 1º., 2º. e 3º. Ciclos do Ensino Básico) denominado Colégio ..., que dispõe de Regulamento Interno e por ele se rege.

Pela frequência desse estabelecimento de ensino é devida uma prestação mensal/propina fixada em conformidade com os critérios definidos no artº 47º desse Regulamento, concedendo ainda a Fundação bolsas de estudo a alunos provenientes de agregados familiares com dificuldades económicas, a atribuir de acordo com os critérios estabelecidos em Regulamento próprio elaborado para o efeito (artº. 48º).

Nos termos do estatuído no nº 13 do artº 47º desse Regulamento, “todos os débitos serão exigidos através de pagamento voluntário ou cobrança coerciva.”

No caso em apreço, a exequente através da presente execução, que para efeito instaurou, visa obter a cobrança coerciva de um débito relativo à falta de pagamento de prestações devidas pelos representantes legais de um utente/aluno que frequenta ou frequentou esse estabelecimento.

Nesse circunspecto é, para nós, apodítico que, in casu, a exequente atua (com a instauração da ação executiva), ainda que por via indireta ou instrumental, na defesa dos interesses que lhe estão especialmente conferidos pelos seus estatutos e com vista a garantir/assegurar (como fonte de receita) a prossecução dos fins que nortearam a sua criação e que constituem a sua razão de ser. Na verdade, e como bem, a nosso ver, refere a apelante (nas sua alegações de recurso) a cobrança pela exequente da dívida em causa tem uma conexão instrumental mas que está necessariamente relacionada com as especiais atribuições e a defesa dos interesses que lhes especialmente conferidos através dos seus Estatutos, sendo que quando procede à cobrança, neste caso judicial, de uma dívida a apelante não está apenas a tentar obter o cumprimento da obrigação em falta, mas está a garantir a sustentabilidade dos projetos/atividades que apoia e, em concreto, o do Colégio de onde emergiu a dívida.

Donde a conclusão que, por se mostrarem preenchidos os pressupostos legais consagrados no artº 4º, nº 1, al. f), do RCP, a exequente goza, à luz de tal normativo, de isenção de custas na presente execução que instaurou, o que, consequentemente, a dispensa do pagamento da respetiva taxa de justiça.

E nessa medida, e na procedência do recurso, revoga-se o despacho recorrido, devendo o requerimento executivo ser recebido e a execução prosseguir os seus ulteriores trâmites legais (caso nenhum outro obstáculo legal surja que a tal impeça).

2.2  Diga-se, ainda, em passant (face à decisão acabada de proferir), que mesmo que se viesse a concluir não estar no caso a exequente isenta de custas, nunca poderia, como o fez, o tribunal a quo indeferir, desde logo, liminarmente o requerimento executivo.

Tendo a exequente no requerimento executivo manifestado o entendimento, à luz da legislação que aí citou, de estar isenta do pagamento da taxa de justiça, e tendo o sr. escrivão feito os autos conclusos à sra. juíza titular dos mesmos com a informação de ter dúvidas sobre essa invocada isenção, e sendo decidido por despacho que exequente não gozava da referida isenção, deveria então a mesma ser notificada, além desse despacho, pela secretaria/secção para, no prazo de 10 dias, proceder ao pagamento da taxa da justiça devida – neste caso entendemos não haver lugar a qualquer acréscimo penalizador -, sob a cominação então de o requerimento executivo não ser recebido. Solução essa que, aliás, é aquela que se extrai do disposto nos conjugados artºs 145º, nº 3, e 724º, nº 4, al. c), e 725º, nº 1, al. c), do CPC. (Neste sentido, vide, entre outros, Ac. da RP de 26/09/2015, proc. 356/11.8TTPRT-D.P1, e Ac. da RL de 22/03/2017, proc. nº. 22456/16.1T8LSB.1.L1-4, disponíveis em www.dgsi.pt).


III-Decisão

Assim, em face do exposto, acorda-se, na procedência do recurso, em revogar o despacho recorrido, devendo o requerimento executivo ser recebido e a execução prosseguir os seus ulteriores trâmites legais.

Sem custas.

Sumário

I- No artº 4º do RCP configura-se uma exceção à regra geral de que todos os processos estão sujeitos a custas.

II- Com a nova redação dada a esse normativo visou-se, por um lado, concentrar/unificar nele todas as isenções de custas concedidas nos múltiplos diplomas dispersos, e, por outro, proceder a uma redução/limitação dessas isenções.

III- As isenções de custas aí atribuídas são de natureza subjetiva (nº 1), e de natureza objetiva (nº 2), sendo as primeiras atribuídas em função da qualidade das partes e as segundas em função do tipo dos processos.

IV- Entre as isenções subjetivas estão aquelas que se encontram no âmbito da previsão do artº 4º, nº 1, al. f), do RCP.

V- Como decorre da leitura de tal normativo, constituem pressupostos legais da aplicação da isenção de custas nele previstos:

a) Que se esteja na presença de uma pessoa coletiva privada, sem fins lucrativos.

b) Que essa pessoa coletiva privada atue no processo exclusivamente no âmbito das suas especiais atribuições ou (em alternativa);

c) Para defender os interesses que lhes estão especialmente conferidos pelo respetivo estatuto ou nos termos da legislação que lhes seja aplicável.

VI- Na génese da atribuição da isenção de custas a tais pessoas coletivas estão motivações norteadas pela ideia de funcionarem como um estímulo ao exercício de funções públicas por particulares que, sem espírito de lucro, realizam tarefas em prol do bem comum, das quais que comunidade aproveita e o Estado beneficia, por se encontrarem no âmbito das atribuições que lhe incumbe desenvolver ou levar a efeito.

VII- Isenção essa que abrange as ações das quais delas resulte em concreto que tais pessoas coletivas visam através delas, quer por via direta, quer por via indireta ou conexa instrumental, a defesa dos interesses que lhe estão especialmente conferidos pela lei ou pelos seus estatutos e particularmente garantir/assegurar, por uma dessas vias, a prossecução dos fins que nortearam a sua criação.

VIII- Quando o demandante invoque no seu articulado inicial beneficiar do regime de isenção de custas - não juntando por isso o documento comprovativo do pagamento da taxa de justiça –, e o juiz venha a decidir/entender não gozar dessa alegada isenção de custas, a consequência jurídica daí a extrair será, em vez do seu indeferimento liminar, a notificação daquele, pela secretaria/secção, para, no prazo legal, proceder ao pagamento da taxa de justiça devida – sem que no caso haja lugar a qualquer acréscimo penalizador -, sob a cominação de, o não fazendo, aquele articulado não ser recebido.

Coimbra, 2019/12/10