Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
51/10.7TBPNC.C2
Nº Convencional: JTRC
Relator: FRANCISCO CAETANO
Descritores: PROVIDÊNCIA CAUTELAR NÃO ESPECIFICADA
REQUISITOS
Data do Acordão: 02/29/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: PENAMACOR
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART. 387.º Nº 1 DO CPC
Sumário: I – São requisitos da providência cautelar não especificada: probabilidade séria da existência do direito invocado; fundado receio de que outrem, antes de a acção ser proposta ou na pendência dela, cause lesão grave e dificilmente reparável a tal direito (periculum in mora); adequação da providência à situação de lesão iminente; não ser o prejuízo resultante da providência superior ao dano que com ela se pretende evitar e não existência de providência específica que acautele aquele direito;

II – Privados os recorrentes pelos recorridos do uso da água de um poço para fins agrícolas, sito em prédio rústico destes, cujo direito indiciariamente foi adquirido por usucapião, sem que fosse demonstrado qualquer receio de lesão grave de difícil reparação para culturas agrícolas, nem se demonstrando intenção frustrada por essa privação de aproveitamento futuro do terreno, falta o requisito da providência cautelar do periculum in mora.

Decisão Texto Integral:             Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

            1. Relatório

            A “herança indivisa aberta por óbito de B... ” representada pela herdeira cabeça-de-casal A... e esta própria em seu nome requereram, em 18 de Maio de 2010, no Tribunal Judicial da comarca de Penamacor, como preliminar da correspondente acção declarativa, contra C...e mulher D..., procedimento cautelar comum, requerendo providência cautelar não especificada com o fim de os requeridos respeitarem o direito das requerentes ao uso da água de um poço, para rega, sito em prédio rústico daqueles, para tanto demolindo o muro de vedação que ergueram impeditivo de tal uso.

            Alegaram, para tanto, em resumo, serem donas e possuidoras de dois prédios rústicos a favor dos quais detêm um direito de servidão sobre um poço e sobre um prédio rústico pertença dos requeridos, constituída por usucapião, há mais de 50 anos, sendo que estes, em 7 e 8 de Maio de 2010, destruíram uma caleja e construíram um muro de vedação que impede o aproveitamento da água, o que fez secar as plantações hortícolas existentes, já que as requerentes não dispõem de qualquer outro poço ou fonte de água para rega, nem podem recorrer à rede pública de abastecimento.

            Foi requerida a intervenção principal provocada para o lado activo dos herdeiros da “herança indivisa”, E..., F... e esposa G..., e H....

            Os requeridos foram citados e deduziram oposição, arguindo a falta de representação da “herança indivisa” e a ilegitimidade da requerente A..., bem como, ainda por excepção, alegaram ter vedado o prédio após autuação pela autoridade policial e que os prédios dispunham de uma outra fonte de água própria, concluindo pela improcedência do procedimento.

            Na sequência de acórdão proferido por esta Relação, que concluiu pela falta de personalidade judiciária da “herança indivisa”, a instância prosseguiu com aquela requerente A... e demais herdeiros intervenientes chamados ao processo.

            Após singular recurso para o STJ sobre inexistente violação de caso julgado formal, foi finalmente designada data para audiência final, finda a qual foi proferida decisão sobre a matéria de facto e, depois, de direito no sentido do indeferimento da providência requerida.

            Inconformados, os requerentes recorreram da matéria de facto e de direito, finalizando as respectivas alegações com as seguintes úteis conclusões:

            a) – Os factos dados com o provados na decisão final sob os pontos n.ºs 12 e 13 devem ser dados como não provados por total ausência de prova, mormente face aos depoimentos gravados das testemunhas I...e J..., em que a convicção do tribunal a quo assentou;

            b) – Da decisão recorrida resulta verificado não só o requisito do procedimento cautelar da existência provável do direito como, alteradas aquelas respostas, o “periculum in mora”, já que, sem acesso à água do poço, as culturas agrícolas do terreno dos recorrentes irão sucumbir à seca, tal como sucumbiram com a falta de água e a terra corre o risco de ficar estéril por falta de água e de ser lavrada e semeada, caso não seja restabelecido o acesso ao poço sito no prédio dos recorridos.

            Os recorridos pronunciaram-se pela manutenção do decidido.

            Colhidos os vistos cumpre decidir, sendo questões a apreciar:

            a) – A impugnação da matéria de facto;

            b) – A subsequente reapreciação do indeferimento da providência.


*

            2. Fundamentos

            a) – De facto

            Foi a seguinte a factualidade dada como indiciariamente provada na decisão final recorrida:

1 – Os requerentes são donos e legítimos possuidores dos prédios:

a) RÚSTICO, sito aos Q ..., limites da freguesia de AB..., concelho de Penamacor; compõe-se de terreno de regadio com culturas hortícolas, que confronta de norte com RM..., de sul com R..., de nascente e poente com C...; tem a área de 400 m2; está inscrito na respectiva matriz predial, sob o n.º ...., da Secção C, descrito na Conservatória do Registo Predial de Penamacor, e,

b) RÚSTICO, sito aos Q ..., limites da freguesia de AB..., conselho de Penamacor; compõe-se de terreno de regadio com culturas hortícolas, que confronta de norte e poente com JT..., de sul com E..., e de nascente com C... tem área de 40 m2; está inscrito na respectiva matriz predial, sob o n.º ... Secção C, não descrito na Conservatória do Registo Predial de Penamacor.

2- Os prédios rústicos referidos em 1) advieram aos requerentes por sucessão por morte de L... e cônjuge M..., e de B..., pais e cônjuge da A. A....

3- Há pelo menos 50 anos, que os requerentes, por si e seus antepossuídores, têm vindo a possuir estes prédios rústicos, à vista de toda a gente, e sem qualquer oposição ou interrupção, de modo pacífico, sem recorrerem a qualquer tipo de violência, continuadamente, tratando e colhendo as hortas, recolhendo todos os seus frutos demais utilidades, há mais de 20, 25, 30 e até de 50 anos, na convicção de que não lesam direitos de quem quer que seja e que os prédios rústicos lhe pertenciam e pertencem, como efectivamente lhes pertencem.

4- Os RR. são donos e legítimos possuidores do prédio: RÚSTICO, sito nos Q ..., limites da freguesia de AB..., concelho de Penamacor; compõe-se de terreno de regadio com culturas hortícolas, confronta de norte com RM..., de sul com E... e B..., de nascente e poente com os requerentes; tem a área: 80 m2; está inscrito na respectiva matriz predial, sob o n.º ...., da Secção C, descrito na Conservatória do Registo Predial de Penamacor sob o no. .../2006C,25, freguesia de AB....

5- O prédio referido em 4. adveio aos Requeridos por aquisição por compra a N... e cônjuge O... , P... e cônjuge Q... , R... e cônjuge S... , T... e cônjuge U... .

6-Para rega para o aproveitamento agrícola dos prédios rústicos inscritos sob os n.s .... e .... da Secção C referida, os seus possuidores e aqueles que às suas ordens e no seu interesse agem, têm vindo a utilizar a água que do poço sito no prédio rústico inscrito sob o n.º ...., junto à confinância nascente/poente dos prédios rústicos inscritos sob os n.ºs .... e ... ..

7- O que fazem até de 50 anos, à vista de toda a gente, e sem qualquer oposição ou interrupção, de forma pacífica e sem recurso a qualquer tipo de violência, sempre tinham necessidade de o fazer para os convenientes amanho e exploração dos referidos prédios rústicos (artigos ....-C e ....-C) e aproveitamento das suas utilidades na convicção de que exerciam e exercem um verdadeiro direito de se serviram, sobre o poço e o prédio rústico propriedade dos requeridos (arto. ....-C).

8- O aproveitamento da água do poço para os fins referidos em 7) era efectuado através por uma picota de ferro, assente numa pedra bruta, colocada no prédio rústico pertencente aos Requerentes ( ....-C) junto à confinância nascente/poente do prédios rústicos inscritos sob os n.ºs .... e ...., no lado nascente do poço, oposto ao da picota usada pelos Requeridos, e por uma caleja de cerca de 80 cm, assente em pedra e alteada com tijolo isto é: uma conduta artesanal da água do poço para o prédio rústico inscrito sob os nos. ...., e no sentido poente/nascente.

9- Nos dias 07 e 08 Maio de 2010, o Requerido marido auxiliado pelo filho dos Requeridos, destruiu a caleja e levou consigo as pedras e tijolos que a formavam e construiu um muro de vedação em tijolo, com 75 cm de altura, para impedir o acesso dos requerentes ao poço.

10- A impossibilidade dos requeridos acederem à água do poço, inviabiliza necessária e directamente, por falta de rega, o aproveitamento agrícola normal a horta.

11- Os requeridos foram intimados e efectuar obras no poço em apreço, por imposição dos serviços competentes.

12- Na parte mais a montante desse agregado, existe uma fonte de água própria do agregado de prédios.

13- O prédio propriedade da herança indivisa referenciado nos autos, faz parte de um agregado de prédios, confinantes entre si, de que o agora é parte integrante que constitui uma unidade funcional agrícola homogénea, com lavras, plantações, sementeiras e colheitas comuns, feitas sem distinção das extremas ideais constantes da matriz.[1]


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            b) – De direito

            Porque são as conclusões das alegações que delimitam o objecto do recurso (art.ºs 684.º, n.º 3 e 685.º-A, n.º 1, do CPC), apreciemos, então, as questões antes enunciadas.

            Quanto à impugnação da matéria de facto dos n.ºs 12 e 13 da sentença, correspondentes aos homólogos pontos da decisão da matéria de facto, deu-se como provado, naquele, que “na parte mais a montante desse agregado, existe uma fonte de água própria do agregado de prédios” e neste que “o prédio propriedade da herança indivisa referenciado nos autos, faz parte de um agregado de prédios, confinantes entre si, de que o agora é parte integrante que constitui uma unidade funcional agrícola homogénea, com lavras, plantações, sementeiras e colheitas comuns, feitas sem distinção das extremas ideais constantes da matriz”.

            O tribunal a quo assentou a sua convicção nos depoimentos das testemunhas I... e J....

            Ouvido o registo fonográfico de tais testemunhas conviventes em união de facto e que amanharam graciosamente os terrenos da herança, em parte alguma dos seus depoimentos se referem à existência de qualquer outra fonte no “agregado de prédios” (?) ou que o prédio da herança (qual?) faz parte desse “agregado”.

            O que a testemunha J...fez questão de referir foi que, na sequência da privação da água pelos requeridos, passou a regar utilizando água de um outro poço sito numa outra propriedade próxima, pertença de terceiro, por si amanhada.

            Mais nada que isso. E nem qualquer das outras testemunhas ouvidas salientou a existência de qualquer outro poço ou fonte nas propriedades da herança dos requerentes ou em qualquer “agregado”, que se não sabe o que é.

            A matéria ora impugnada e que fora alegada na oposição, não colhe, assim, comprovação, dando-se, pois, como não provada.

            Questão é que, se essa alteração, leva à inflexão da decisão tomada de indeferimento da providência.

            Como é sabido, são requisitos de uma providência cautelar não especificada:
a) – Probabilidade séria da existência do direito invocado;

b) – Fundado receio de que outrem, antes de a acção ser proposta ou na pendência dela, cause lesão grave e dificilmente reparável a tal direito (periculum in mora);
c) – Adequação da providência à situação de lesão iminente;
d) – Não ser o prejuízo resultante da providência superior ao dano que com ela se pretende evitar;
e) – Não existência de providência específica que acautele aquele direito.

            Se quanto ao 1.º requisito parece não haver discórdia, face à factualidade indiciariamente provada e que aponta para o direito dos recorrentes enquanto herdeiros da herança indivisa ao uso da água do poço para fins agrícolas, sito em prédio dos recorridos, cujo direito se terá constituído por usucapião e correspondente servidão de aqueduto (art.º 1561.º do CC), já quanto ao 2.º (fundado receio de lesão grave e dificilmente reparável), tal como concluiu a decisão recorrida, tem-se o mesmo como não preenchido, prejudicada estando a apreciação dos demais requisitos, questão que, aliás, não foi suscitada.

            De acordo com o disposto no n.º 1 do art.º 387.º do CPC, se quanto ao direito basta um a probabilidade séria da sua existência, quanto ao receio da sua lesão há uma maior exigência que obriga a que seja fundada, isto é, claramente demonstrada.

            Apenas as lesões graves e irreparáveis ou de difícil reparação merecem a tutela provisória do procedimento cautelar.

            A gravidade deve se aferida tendo em conta a repercussão na esfera jurídica do interessado.

            O receio deve ser fundado, ou seja, apoiado em factos que permitam afirmar, com objectividade e distanciamento, a seriedade e actualidade da ameaça e a necessidade de serem adoptadas medidas tendentes a evitar o prejuízo.

            Não bastam dúvidas, conjecturas ou receios meramente subjectivos ou precipitados.[2]

            E, para lá de a situação de perigo a defender dever ser actual, não deve a mesma estar consumada, dado que o procedimento cautelar não visa corrigir situações (para isso serve a pertinente acção declarativa que se seguirá ao procedimento), mas prevenir a lesão grave e de difícil reparação, nada obstando, contudo, a que se atenda às lesões continuadas ou repetidas, se disso for caso.

            Ora, revertendo ao caso em apreço e à não prova, por um lado, de seca dos produtos hortícolas com a privação da água do poço (a testemunha J... logrou alternativa de rega, de outro poço) e de plantações ou amanho futuro (seja directamente pelos requerentes em nome da herança, seja facultando o uso a terceiros), os recorrentes não demonstraram, como era sua incumbência (art.º 342.º, n.º 1, do CC), o fundado receio de lesão grave do seu direito a justificar a necessidade de adopção de medidas tendentes a evitar prejuízo, que se não demonstrou ocorrer.

            Não merece, assim, censura a decisão recorrida quando na parte do direito concluiu pela não verificação do requisito da providência periculum in mora, assim se mantendo o indeferimento da providência requerida.


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            3. Resumindo e concluindo em jeito de sumário (art.º 713.º, n.º 7, do CPC)

I – São requisitos da providência cautelar não especificada: probabilidade séria da existência do direito invocado; fundado receio de que outrem, antes de a acção ser proposta ou na pendência dela, cause lesão grave e dificilmente reparável a tal direito (periculum in mora); adequação da providência à situação de lesão iminente; não ser o prejuízo resultante da providência superior ao dano que com ela se pretende evitar e não existência de providência específica que acautele aquele direito;

II – Privados os recorrentes pelos recorridos do uso da água de um poço para fins agrícolas, sito em prédio rústico destes, cujo direito indiciariamente foi adquirido por usucapião, sem que fosse demonstrado qualquer receio de lesão grave de difícil reparação para culturas agrícolas, nem se demonstrando intenção frustrada por essa privação de aproveitamento futuro do terreno, falta o requisito da providência cautelar do periculum in mora.


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            4. Decisão

            Face ao exposto, acordam em julgar a apelação improcedente e manter a decisão recorrida.

            Custas pelos recorrentes.


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Francisco M. Caetano (Relator)
António Magalhães
Ferreira Lopes


[1] Como se verá, estes factos, em itálico, irão ser julgados como não provados.
[2] V. Abrantes Geraldes, “Temas da Reforma de Processo Civil, III, 1998, 84 e ss.