Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
69/13.8TBLSA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALEXANDRE REIS
Descritores: INSOLVÊNCIA
MASSA INSOLVENTE
ISENÇÃO DE CUSTAS
MATÉRIA DE FACTO
TRIBUNAL DA RELAÇÃO
EQUIDADE
Data do Acordão: 01/20/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE COIMBRA - LOUSÃ
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTº 4º, Nº 1, AL. U) DO RCP; 301º A 304º DO CIRE.
Sumário: I – Da declaração de insolvência de uma sociedade comercial advém a dissolução desta e a instituição de uma diferente entidade – a massa patrimonial destinada à satisfação dos credores da insolvência – a qual, não é já uma sociedade comercial em situação de insolvência. Em acção supervenientemente proposta por um alegado credor contra a massa insolvente, esta não beneficia da isenção de custas que é prevista, específica e literalmente, pelo art. 4º, nº 1, u) do RCP, porquanto no nosso ordenamento jurídico só não é tributada a actividade dos tribunais relativa a sujeitos processuais expressa e excepcionalmente definidos na lei.

II - O juiz não viola o princípio do contraditório quando aprecia e decide uma questão suscitada por uma parte, sem a ouvir previamente, porque não é relevante a eventual surpresa da própria arguente dessa questão ao deparar com os diferentes entendimento e/ou argumentação jurídica perfilhados na decisão.

III - O problema que coloca a detecção e correcção de pontuais e concretos erros de julgamento é o da aferição da razoabilidade da convicção probatória do julgador, à luz das regras da ciência, da lógica e da experiência, o que implica que a alteração pela relação do julgamento da 1ª instância se limite aos casos de patente irrazoabilidade, aqueles em que os elementos em que tal julgamento se fundamentou, por si só, são completamente inidóneos para o efeito, à luz das mencionadas regras.

IV - O tribunal pode julgar através do recurso à equidade, por razões de conveniência, de oportunidade e, principalmente, de justiça concreta, mesmo que não se torne viável averiguar o valor exacto dos danos, desde que se obtenha o mínimo de elementos de facto certos sobre a natureza daqueles e sobre a sua extensão, que orientem um cálculo objectivamente sindicável e, por via disso, o menos arbitrário possível e permitam a sua computação em valores próximos daqueles que realmente lhe correspondem.

Decisão Texto Integral:
Acordam na 3ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

       A…, S.A., propôs esta acção contra Massa Insolvente da Sociedade S…, Lda. e outra, pedindo, além do mais, que essa  R fosse condenada a pagar-lhe uma indemnização no montante de € 13.000 e na quantia que se viesse a liquidar, para reparação dos prejuízos que disse ter sofrido devido ao incumprimento pela mesma de um contrato de compra e venda de um veículo celebrado entre ambas ([1]).

A  R contestou impugnando os fundamentos invocados pela A e declarando, a final, que não liquidara a taxa de justiça devida pelo impulso processual porque se encontrava em situação de insolvência e como tal estava isenta de custas processuais, ao abrigo do art. 4º nº 1 u) do RCP.

No seguimento, a Sra. Juíza proferiu despacho mediante o qual, após a sua reforma, determinou que a contestante fosse notificada para, em 10 dias, comprovar nos autos o pagamento da taxa de justiça, porque a invocada isenção de custas processuais “não se aplica à massa insolvente de uma sociedade comercial já declarada insolvente”.

Na sentença, a Mma. Juíza, julgando a acção parcialmente procedente, condenou a R massa insolvente a pagar à A a quantia de € 6.000, acrescida de juros.

Inconformada com os referidos despacho e sentença, a 1ª R apelou, delimitando o recurso por conclusões que colocam as questões de saber se:

1ª- a apelante beneficia de isenção do pagamento de custas processuais ao abrigo do disposto na alínea u) ou na alínea f) do nº 1 do art. 4º do RCP;

2ª- a Sra. Juíza fez incorrer o seu despacho em nulidade, ao proferi-lo sem notificar a apelante para fundamentar a isenção que invocara (art. 3º nº 3 do CPC);

3ª- a opinião prestada, de forma geral e abstracta, pela testemunha … sobre como um veículo automóvel pesado de trabalho se desvaloriza permite considerar como provado que o tractor em causa apenas se desvalorizou entre dois a três por cento ao ano, valendo, portanto, em Março de 2013, pelo menos, € 20.044,75;

4ª- deve fixar-se a indemnização a pagar à A em valor não superior a € 228,93.

São os seguintes os factos considerados provados pela 1ª instância:

E foram os seguintes os factos (relevantes) considerados não provados:

...

Importa apreciar as enunciadas questões e decidir.

A isenção de custas processuais.

No nosso ordenamento jurídico, só não é tributada a actividade dos tribunais que seja desencadeada por sujeitos processuais e em casos, uns e outros expressa e excepcionalmente definidos na lei. Por regra, o acesso ao direito importa a imposição do respectivo custo às partes, porquanto a actividade jurisdicional não é exercida gratuitamente ([2]), impendendo sobre os litigantes o ónus, quer de pagar as taxas de justiça e os encargos fixados para que as suas pretensões ou posições possam ter seguimento, quer de satisfazer, no final do processo, todas as quantias ainda não preenchidas por meio daquele adiantamento.

É o que se retira do art. 1º do RCP, nos termos do qual todos os processos estão sujeitos a custas, sendo considerados como processos, «(…) acção, execução, incidente, procedimento cautelar ou recurso, corram ou não por apenso, desde que o mesmo possa dar origem a uma tributação própria». Até os processos de insolvência estão, sem dúvida, sujeitos ao pagamento da correspondente taxa de justiça e custas, as quais são encargo da massa insolvente ou do requerente, consoante a insolvência seja ou não decretada por decisão com trânsito em julgado (cf. arts. 301º a 304º do CIRE).

As excepções à regra geral do pagamento das aludidas despesas vêm consignadas no dito Regulamento, particularmente, no que ora interessa, no seu artigo 4º nº 1, do qual iremos convocar os dois segmentos normativos citados no recurso, que prevêem isenção de custas relativamente aos seguintes sujeitos:

«u) As sociedades civis ou comerciais, as cooperativas e os estabelecimentos individuais de responsabilidade limitada que estejam em situação de insolvência ou em processo de recuperação de empresa, nos termos da lei, salvo no que respeita às acções que tenham por objecto litígios relativos ao direito do trabalho»;

«f) As pessoas colectivas privadas sem fins lucrativos, quando actuem exclusivamente no âmbito das suas especiais atribuições ou para defender os interesses que lhe estão especialmente conferidos pelo respectivo estatuto ou nos termos de legislação que lhes seja aplicável».

No entanto, salvo o devido respeito, a massa insolvente ora apelante não se enquadra em qualquer dessas previsões ou de alguma outra que preveja a excepcional isenção subjectiva de custas.

Atendendo à sua natureza excepcional, tais normas não podem ser interpretadas e aplicadas com um sentido que não seja claramente consentido pelo respectivo elemento literal – a letra da lei –, ou seja, a isenção de custas não pode ser estendida a entidades não explicitamente escolhidas e designadas pelo legislador para o efeito.

Ora, como é bom de ver, a apelante não é uma sociedade (civil ou comercial), uma cooperativa ou um estabelecimento individual de responsabilidade limitada que esteja em situação de insolvência ou em processo de recuperação de empresa, antes é a própria massa insolvente que cronologicamente sucedeu à declaração de insolvência e à dissolução de uma sociedade comercial. Neste sentido, vai a anotação do Guia Prático sobre “Custas Processuais”, editado em Fevereiro de 2014 pelo CEJ e pela DGAJ (pág. 55 e s) sobre aquele primeiro normativo: «De salientar que a isenção de custas consagrada na alínea u) do n.º 1 do artigo 4.º do RCP, para uma sociedade comercial em situação de insolvência, destina-se, não só à própria ação em que se verifica a apresentação à insolvência (ou em que é requerida a declaração a declaração de insolvência), mas também às restantes ações em que a sociedade seja parte, desde que se verifiquem os pressupostos da situação de insolvência, com exceção das ações que tenham por objeto litígios relativos ao direito do trabalho. Por outro lado, a sentença que declara a insolvência de uma sociedade comercial faz cessar a situação de insolvência em que a mesma se encontrava, determinando a constituição de uma massa insolvente à qual já não é aplicável esta isenção subjetiva constante da al. u) do n.º 1 do artigo 4.º do RCP.».

E a apelante também não é, evidentemente, uma pessoa colectiva privada sem fins lucrativos. Sobre o segundo de tais segmentos normativos, o acima citado Guia regista os seguintes exemplos (pág. 46): «Os Sindicatos quando atuem em defesa de interesse coletivos beneficiam da isenção, mas não já se a sua atuação visa a defesa de certo(s) e determinado(s) trabalhador(es). Face à letra da lei, é defensável considerar que estão também abrangidas pela isenção subjectiva prevista na alínea f) em apreço as associações de utilidade pública legalmente constituídas e registadas como Entidades de Gestão Coletiva de Direitos dos Produtores Fonográficos (…)».

Assim, uma sociedade comercial que apresente requerimento inicial para obter a declaração da sua própria insolvência não tem que proceder ao pagamento da taxa de justiça, atenta a isenção de custas prevista na referida alínea u), cujo teor literal aponta para que o mesmo deva suceder em relação a todo o tipo de processos, ressalvados os litígios relativos ao direito do trabalho ([3]).

Porém, da declaração de insolvência de uma sociedade comercial advém a dissolução desta e a instituição de uma diferente entidade – a massa patrimonial destinada à satisfação dos credores da insolvência, depois de pagas as suas próprias dívidas ([4]) – a qual, não sendo já uma sociedade comercial em situação de insolvência, não beneficiará da isenção de custas que é visada, específica e literalmente, pela aludida alínea u).

Declarada a insolvência, as custas processuais passam a ser, entre outras, despesas ou custos que a massa insolvente deve garantir até ao limite da sua existência, tal como decorre do disposto no art. 304º do CIRE. E o mesmo sucederá, p. ex., com as custas de uma outra acção supervenientemente proposta contra a massa insolvente por um seu alegado credor. Será, assim, a cargo da massa insolvente a taxa de justiça devida em acções contra ela instauradas para reclamar o pagamento de dívidas ou indemnizações à massa. «Após a declaração de insolvência, a massa insolvente, que sucede à sociedade em situação de insolvência, deixa de beneficiar da isenção de custas prescrita na alínea u) do nº 1 do artigo 4º do Regulamento das Custas Processuais» ([5]).

Por último, também não colhe a alusão que a apelante fez nos autos à essencial garantia do acesso à justiça, para o que nos limitamos a remeter, sem necessidade de mais considerações, para a posição expendida pelo Plenário do T. Constitucional no seu Ac. nº 216/2010, de 1/6/2010, proferido a propósito da exclusão de pessoas não singulares do regime de protecção jurídica estabelecido pela Lei 34/2004, de 29/7 (com as alterações introduzidas pela Lei 47/2007, de 28/8): «o direito de acesso aos tribunais como direito fundamental, radica essencialmente na dignidade humana como princípio estruturante da República (artigo 1.º da Constituição), reconhecido no artigo 10.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem e igualmente acolhido no artigo 6.º da Convenção Europeia para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais. Não são comparáveis as situações de concessão de apoio a pessoas singulares e a pessoas colectivas, pelo que a promoção das condições positivas de acesso aos tribunais nos casos de insuficiência económica não tem o mesmo significado quanto a pessoas singulares e quanto a pessoas colectivas com fim lucrativo, que devem, por imposição legal, integrar na sua actividade económica os custos com a litigância judiciária que desenvolvem, assim assegurando a protecção dos interesses patrimoniais da universalidade dos credores e do próprio interesse geral no desenvolvimento saudável da economia».

O Contraditório.

Sustentou a apelante que a Sra. Juíza fez incorrer o seu despacho em nulidade, ao proferi-lo sem a notificar para fundamentar a isenção de custas que invocara (art. 3º do CPC).

Nos termos do artigo citado, sob a epígrafe, “Necessidade do pedido e da contradição”, “Só nos casos excecionais previstos na lei se podem tomar providências contra determinada pessoa sem que esta seja previamente ouvida” e «O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem».

A omissão de uma formalidade que a lei prescreva produz nulidade quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa ([6]).

Constitui nulidade dependente de arguição a omissão de diligência que possa reputar-se essencial para a descoberta da verdade. Como o contraditório constitui diligência essencial para descoberta da verdade – tão essencial e necessária que a lei, “salvo caso de manifesta desnecessidade”, proíbe que o juiz decida qualquer questão sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem – a sua omissão será, à partida, susceptível de influir no exame ou na decisão do incidente em causa.

Assim, quando a iniciativa parta do próprio tribunal, antes de decidir uma qualquer questão, o juiz deverá ouvir o visado, a menos que invoque e fundamente ou seja manifesta a desnecessidade da sua prévia audição.

Porém, o recurso é fruto de lapso manifesto: a iniciativa não partiu da Sra. Juíza, que se limitou a apreciar a questão suscitada pela própria apelante, que, por isso, não teria de ouvir de novo ouvir antes de decidir.

Mesmo que a aludida formalidade processual – a audição da visada – tivesse sido omitida, a sua inobservância importaria a nulidade processual prevista no art. 195º do CPC mas não uma qualquer das nulidades de sentença (ou decisão equiparada) ([7]).

Só que, se assim sucedesse – como efectivamente não sucedeu – a nulidade advinda do desvio ao ritualismo processual imposto teria ficado sanada por não ter sido reclamada oportunamente, ou seja, no prazo de 10 dias após a notificação da decisão, no Tribunal em que fora cometido para nele ser julgada ([8]).

Na verdade, quando tal vício ocorrer, a parte interessada na observância da formalidade, deve arguir o referido vício perante o tribunal junto do qual foi cometida e que seria o competente para o suprir, sendo extemporânea a sua arguição apenas em alegações de recurso.

Como é sabido e é entendimento uniforme da jurisprudência sobre as regras do processamento das impugnações das decisões, os recursos são meios de obter a reforma de decisões dos tribunais inferiores, e não de alcançar decisões novas, só assim não acontecendo nos casos em que a lei determina o contrário, ou relativos a matéria indisponível, sujeita por isso a conhecimento oficioso. E não ocorrendo em relação a essa particular questão, suscitada no Tribunal recorrido, qualquer destas condições de excepção, tal vício, mesmo que tivesse existido, não poderia ser conhecido nem conduziria, nesta fase, ao resultado sugerido, porque o mesmo sempre teria de considerar-se sanado, conforme o exposto.

Tratando-se «de irregularidade respeitante a actos ocorridos enquanto o processo se encontrava ainda na 1ª instância … era no Tribunal a quo que a questão deveria ter sido enfrentada e decidida» ([9]).

A nulidade arguida apenas nas alegações do recurso de apelação não respeitaria a vício da sentença ou de qualquer acto processual sobre o qual a ora apelante tivesse reclamado e tivesse visto indeferida a sua reclamação.

Não obstante, sempre observaremos que o invocado princípio do contraditório foi devidamente acatado pela Sra. Juíza, como se retira imediatamente do já exposto.

Na verdade, foi a própria apelante que suscitou a questão da sua pretendida isenção de custas processuais, ao abrigo do art. 4º nº 1 u) do RCP, com o fundamento de que se encontraria em situação de insolvência, tal como previsto em tal norma. E a Sra. Juíza, sem qualquer surpresa possível para a requerente, manifestou entendimento diferente – o de que a invocada isenção “não se aplica à massa insolvente de uma sociedade comercial já declarada insolvente” – e, em conformidade, decidiu, determinando que aquela fosse notificada para comprovar nos autos o pagamento da taxa de justiça.

 A concretização do princípio do contraditório escorado numa sua concepção que o estendesse das questões suscitadas pelos litigantes – onde o mesmo deve situar-se e aí se quedar – até aos seus meros apoios argumentativos ([10]), jurídicos ou de outra ordem, enredaria o processo num labirinto de difícil ou, pelo menos, demorada escapatória, o que se afastaria muito do desígnio perseguido pela lei.

Quando é a parte interessada que suscita uma determinada questão, é a própria quem gera e realiza a possibilidade de sobre ela se pronunciar, devendo o juiz, independentemente dos argumentos convocados, apreciá-la e proferir decisão. E esta só não constitui um ponto final quando for susceptível de reforma, aclaração ou de impugnação perante o tribunal superior.

A matéria de facto.

É também relevante registar que foi tido por não provado que: se a 1ª R tivesse remetido os documentos em falta no (prometido) prazo de 10 dias, a A. teria vendido o veículo (ainda) no ano de 2012 por € 30.000; pelo facto de ter passado para o ano de 2013, o veículo sofreu uma desvalorização económica de € 7.000.

Vejamos: será que, tal como pretende a apelante, bastaria a opinião transmitida pelo Sr. … sobre como, de forma geral e abstracta, se desvaloriza um veículo pesado de trabalho para considerar como provado que o tractor em causa valeria, em Março de 2013, pelo menos, € 20.044,75?

Para explicar essa sua proposta de decisão, a apelante partiu do preço da aquisição do tractor suportado pela A (€ 20.350 sem IVA) e estribou-se na interpretação que formulou sobre a opinião transmitida pelo Sr. … – no sentido de que tal tipo de veículos sofre uma desvalorização de 3% ao ano – para concluir que, assim sendo, o tractor desvalorizou apenas € 305,25, durante o prazo de incumprimento da R (seis meses), possuindo, pois, em Março de 2013, o apontado valor comercial de, pelo menos, € 20.044,75 e não o que ficou a constar na alínea Q) dos factos tidos por provados (€ 17.000).

Para a análise que se impõe, passemos em revista, sumariamente, os depoimentos prestados em audiência:

...

Perante a prova produzida, pensamos que não se detecta qualquer pontual e concreto erro de julgamento ou patente irrazoabilidade na convicção probatória formada pela julgadora com imediação ([11]). Tanto a opinião daquele Sr. … como o sugerido raciocínio aritmético da apelante são ineptos para a alteração pretendida, porquanto não permitem afirmar que o conjunto dos depoimentos e outros elementos em que se fundamentou o julgamento da 1ª instância são completamente inidóneos para aquele efeito, à luz das regras da ciência, da lógica e da experiência, não podendo assegurar-se que o ponto de facto aludido pela apelante esteja incorrectamente julgado. Com efeito:

Para além de invocar a razão de ciência e a credibilidade resultantes da experiência profissional do Sr. …, a apelante alega que o facto de o veículo ter sido vendido em Março de 2013 por € 17.000 não implica que este fosse o seu valor comercial, ou que a A não tenha feito um negócio em prejuízo de si própria.

Mas, de um lado, temos os dados objectivos e que não suscitam controvérsia: em 8/8/2012, a A adquiriu à 1ª R o tractor pelo preço de € 20.350 (sem IVA); durante o ano de 2012, a A teve, pelo menos, duas oportunidades de venda do veículo por preço não inferior ao da sua aquisição, mas a R não lhe entregou ([12]) a documentação daquele, apesar de, até Dezembro desse ano, a A lha ter pedido, por diversas vezes; tendo recebido da R a documentação em falta (apenas) em 6/2/2013, a A vendeu o veículo por € 17.000, em Março de 2013.

É verdade que o Sr. … revelou ser dotado de grande autoconfiança e algum à-vontade, por certo, inerentes e até necessárias à eficácia da sua actividade de leiloeiro, mas, na sua substância, o seu depoimento ficou afectado de sérias inconsistências que esboroaram, gravemente, a credibilidade e a razão de ciência propaladas pela apelante.

Desde logo, contra o sustentado pela apelante, o “interesse” de uma testemunha quanto ao sentido do seu depoimento e ao resultado a obter de um processo nem sempre tem de revestir natureza imediata e directamente económica. Diríamos nós que isso até raramente acontece: por vezes, os depoentes deixam-se influenciar – mais ou menos conscientemente – também por fundas ligações aos que emergem como protagonistas no processo ou pelo anseio de que fique retida a imagem de que agiram adequadamente nos contributos que, também eles, forneceram para a actividade daqueles.

Ora, o Sr. … (e a sua leiloeira) mantinha uma colaboração muito estreita e intensa com a sua irmã, a administradora da insolvência, como até revela a sua actuação no caso em apreço, na medida em que, na prática, todo o negócio passou e foi conduzido por ele próprio e nele se surgiu como representante da administradora da insolvência, ao ponto de o ex-gerente da sociedade declarada insolvente ter pensado que era ele o “mandatário” do Tribunal. Nesse contexto, é natural – é da normal condição de um homem de negócios – o desejo do depoente de que o assunto obtivesse um desfecho favorável aos interesses que, em concreto, tinha prosseguido.

Depois, num decisivo aspecto, não é nada consistente a afirmação do depoente de ter sido ele a ressalvar, na altura do negócio, a situação (leasing) do veículo em causa e de ter ele avisado que não o poderia vender, sendo os representantes da A que disseram saber como haveriam de resolver o assunto, pois já estavam habituados a lidar com insolvências.

Realmente, tal depoimento, por si só, não é crível: os representantes da A – para mais, sendo um deles, particularmente, um experimentado encarregado a trabalhar há mais de 20 anos para uma empresa que se dedica à compra e venda de veículos – teriam de saber que só a massa insolvente tinha o domínio da solução do problema.

E, para coroar a fragilidade do depoimento, temos as afirmações seguras e revestidas de lógica e coerência das testemunhas …, no sentido de que foi este último quem chamou a atenção para a dívida ao banco e que foi o Sr. … quem disse que não havia problema, que estava tudo controlado.

Em conformidade com tais depoimentos, o Sr. … revelou basta afoiteza no apontado circunstancialismo – em sintonia com a também denunciada pelo modo como prestou o seu depoimento em audiência – e esse seu arrojo até poderia ter sido a posteriori “validado” se a massa insolvente tivesse pago de imediato a dívida à locadora. Só que, aparentemente, essa foi uma questão que, afinal, não estava por ele controlada.

Ainda numa segunda vertente, directamente conexa com a questão ora em apreço, o depoimento do Sr. … revelou ser nada sólido nem coerente e, portanto, também não fiável. Trata-se do segmento atinente à desvalorização do dito tractor.

...

E também este Tribunal se considera elucidado quanto à falta de préstimo do depoimento para o fim pretendido pela apelante. Realmente, como é por todos sabido, existem tabelas ([13]) que, segundo os usos vigentes nos negócios de viaturas usadas, são utilizadas como, tendencialmente, indicativas da desvalorização média dos veículos por referência ao ano da respectiva matrícula. O depoente não desconhecia tais tabelas – nem poderia, atenta a sua experiência profissional, tanto que até lhes fez menção –, mas depôs como se não existissem, falando apenas em custos de parqueamento.

Diferentemente, as demais testemunhas ouvida a essa questão (os Srs. …) defrontaram o tema. Dos seus depoimentos, entre si conjugados, resultou esclarecido, em conformidade com as ditas regras da experiência, que, tendo passado mais um ano (de matrícula), mesmo não tendo andado, o veículo desvalorizou, ou seja, para os efeitos de tais tabelas, a desvalorização média indicativa foi a correspondente a mais um ano de matrícula.

O montante da indemnização.

Em conformidade com os princípios que disciplinam a obrigação de indemnização ([14]), incumbe ao lesante a reparação integral dos danos, não podendo recair sobre o lesado qualquer encargo. Na verdade, a medida da indemnização resulta da diferença entre a situação que o património do lesado apresenta e a que apresentaria se não se tivessem verificado as consequências patrimoniais produzidas pelo facto (geralmente, ilícito) ([15]).

Nesta acção, a A pretende ser ressarcida dos prejuízos que sofreu por não ter vendido o veículo quando o poderia ter feito se a R tivesse cumprido pontualmente o contrato de compra e venda entre ambas celebrado.

E, como se disse, competindo ao lesante reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação (integral dos danos), cabe à A o direito a receber a diferença entre o valor efectivo do património tal como existiria se não se tivesse verificado o incumprimento.

Na verdade, tais danos e a correspondente necessidade de repor a situação dos lesados no estado em que se encontrariam caso não tivesse existido o incumprimento pode ser aferida, nesta acção, através da comparação entre a situação de um proprietário que, tendo adquirido um veículo em normais condições, manteve intacto o seu poder de disposição e de fruição sobre o mesmo e a da A que sofreu as referenciadas perdas.

Uma vez que o sistema atribui ao lesado o direito à recomposição da situação danosa, tudo se resume, pois, à detecção do método mais adequado à quantificação de seu equivalente pecuniário, ponderando-se, em última análise e se necessário, o recurso às regras da equidade ([16]).

Ora, apuraram-se factos concretos donde se pode retirar essa diferença a que a A tem direito nos termos da lei?

A causa de pedir invocada pela A demonstrou-se, em parte, como vimos: Em 8/8/2012, a A adquiriu à R pelo preço de € 20.350 (sem IVA) o tractor em causa, que esta, dois dias depois, lhe entregou; na sequência, a A, durante o ano de 2012, teve, pelo menos, duas oportunidades de venda por preço não inferior ao da aquisição, que não chegou a concretizar por falta da documentação; até Dezembro desse ano, a A pediu diversas vezes à 1ª R a documentação em falta, que, só no dia 6/2/2013 recebeu desta; em Março de 2013, o valor comercial do veículo era de, pelo menos, € 17.000.

Porém, já se não provou que se não fosse o incumprimento da 1ª R, a A teria vendido, (ainda) no ano de 2012, o veículo por € 30.000 e este, pelo facto de ter passado para o ano de 2013, sofreu uma desvalorização económica de € 7.000.

Portanto, não se retira dos factos apurados qual o concreto montante do prejuízo material advindo à A, qual a correspondência do valor do dano efectivamente sofrido porque não se provaram as concretas perdas de rendimento que a A (proprietária) sofreu. Ainda que assim seja, não está afastado o direito de indemnização, pois não se afigura inviável delimitar a responsabilidade da R, nem necessário relegar a sua quantificação para execução ulterior.

Se resulta que não se torna viável averiguar o valor exacto (matemático) dos danos, por outro lado, a A provou o mínimo de elementos sobre a natureza dos danos e sobre a sua extensão que permite a sua computação em valores próximos daqueles que realmente lhe correspondem – ou seja, os limites dentro dos quais o Tribunal pode julgar através do recurso à equidade, ao abrigo dos arts. 4º e 566º nº 3 do CC ([17]).

É claro que, na formulação de tal juízo, não podemos deixar de atender a elementos de factos certos que orientem um cálculo objectivamente sindicável e, por via disso, o menos arbitrário possível.

Não se provou que se não fosse o incumprimento da R a A, (ainda) no ano de 2012, teria vendido por € 30.000 o veículo e este, pelo facto de ter passado para o ano de 2013, sofreu uma desvalorização económica de € 7.000. No entanto, são notórios, não carecidos de alegação nem de prova, os factos seguintes: uma empresa que se dedica à compra e venda de veículos usados busca o lucro nessa actividade; o valor dos veículos vai diminuindo automaticamente logo que saem do stand de venda e os  usados vão sofrendo anualmente uma certa desvalorização, que depende de variados factores impossíveis de isolar e particularizar, mas que, no caso concreto, foram, certamente, potenciados pelo facto de a viatura passar a ter mais um ano em relação ao da sua matrícula ([18]).

Sem receio de errar por margem significativa, pode em todo o caso afirmar-se que, tendo em conta o preço pago pela aquisição do veículo (€ 20.350 sem IVA), a A lograria ter obtido um lucro de, pelo menos, € 3.000 (inferior a 15%), se, na hipótese de a R ter cumprido pontualmente o contrato, o pudesse ter vendido de imediato – e teve duas oportunidades para o fazer. E também se pode afirmar, ainda com maior segurança, que a viatura sofreu uma desvalorização de, pelo menos, € 3.000, até porque a A acabou por a vender por menos € 3.350, em relação ao preço pelo qual a adquirira.

Assim, em conformidade com esses elementos fácticos e partindo de tais pressupostos, consideramos justa a indemnização fixada pela 1ª instância (€ 6.000).

Nesses termos, improcedem todas as conclusões de recurso.

Síntese conclusiva.

1ª - Da declaração de insolvência de uma sociedade comercial advém a dissolução desta e a instituição de uma diferente entidade – a massa patrimonial destinada à satisfação dos credores da insolvência – a qual, não é já uma sociedade comercial em situação de insolvência. Em acção supervenientemente proposta por um alegado credor contra a massa insolvente, esta não beneficia da isenção de custas que é prevista, específica e literalmente, pelo art. 4º nº 1 u) do RCP, porquanto, no nosso ordenamento jurídico, só não é tributada a actividade dos tribunais relativa a sujeitos processuais expressa e excepcionalmente definidos na lei.

2ª - O juiz não viola o princípio do contraditório quando aprecia e decide uma questão suscitada por uma parte, sem a ouvir previamente, porque não é relevante a eventual surpresa da própria arguente dessa questão ao deparar com os diferentes entendimento e/ou argumentação jurídica perfilhados na decisão.

3ª - O problema que coloca a detecção e correcção de pontuais e concretos erros de julgamento é o da aferição da razoabilidade da convicção probatória do julgador, à luz das regras da ciência, da lógica e da experiência, o que implica que a alteração pela relação do julgamento da 1ª instância se limite aos casos de patente irrazoabilidade, aqueles em que os elementos em que tal julgamento se fundamentou, por si só, são completamente inidóneos para o efeito, à luz das mencionadas regras.

4ª - O tribunal pode julgar através do recurso à equidade, por razões de conveniência, de oportunidade e, principalmente, de justiça concreta, mesmo que não se torne viável averiguar o valor exacto dos danos, desde que se obtenha o mínimo de elementos de facto certos sobre a natureza daqueles e sobre a sua extensão, que orientem um cálculo objectivamente sindicável e, por via disso, o menos arbitrário possível e permitam a sua computação em valores próximos daqueles que realmente lhe correspondem.

Decisão.

Pelo exposto, julgando improcedente a apelação, decide-se confirmar a sentença recorrida.

       Custas pela apelante.

                   Coimbra, 20/01/2015

Alexandre Reis (Relator)

Jaime Ferreira

Jorge Arcanjo

[1] O pedido veio a ficar assim delimitado, na sequência de requerimento da A de 8/2/13, informando que recebera da 1ª R, no dia 6/2/2013, o documento do veículo e a declaração de venda do mesmo.

[2] Diferentemente do acesso a outras funções asseguradas pelo Estado, como a saúde e o ensino, que a Lei Fundamental, programaticamente, consagra como tendencialmente gratuito (cf. arts. 64º e 74º, respectivamente).

[3] Orientação perfilhada nos Acs. da RL de 11.2.2010 (p. 1242/09.9TYLSB.L1), de 15.6.2011 (p. 25489/10.2T2SNT-A.L1) e de 16.6.2011 (p. 1640/10.5TYLSB-A.L1) e da RE de 13.8.2013 (p. 589/13.4TBSTR.E1).

[4] Cabe à massa insolvente suportar, além de outras, as custas do processo de insolvência (art. 51º nº 1 e 304º do CIRE) – que serão a cargo do requerente, se a insolvência não for decretada, como se disse -, as remunerações e as despesas do administrador da insolvência e dos membros da comissão de credores, as dívidas emergentes dos actos de administração, liquidação e partilha da massa insolvente. Dívidas cujo pagamento prefere ao das dívidas da insolvência (artigos 46º nº 1 e 172º do CIRE).

Cf. Ac. da RL de 18/4/2013, p. 1398/10.8TBMTJ.L1.

[5] Cf. Ac. da RL de 18/4/2013 (p. 1398/10.8TBMTJ.L1). No mesmo sentido, para além do Ac. da RP de 6/11/2012, p. 352/11.7TBPVZ-B.P1, citado no despacho recorrido e no próprio recurso, o pontificante Ac. da RL de 22/5/2014 (p. 268/14.5TBCLD.L1-2 - Jorge Leal).

[6] Cfr. art. 195º do CPC.

[7] Que são as taxativamente prescritas no nº 1 do artigo 615º do CPC.

[8] Cfr. arts 199º e 149º do CPC.

[9] Cf. Acs. do STJ de 9/7/2002, in www.dgsi.pt. e da RL de 21/1/2003. No mesmo sentido, o Ac. da RP de 31/5/2004 (p. nº 848/04 - 5ª Secção), in www.dgsi.pt: “Os vícios que respeitem aos desvios do formalismo processual são vícios de carácter formal que estão sujeitos ao regime previsto nos artigos 193º a 205º do Código de Processo Civil. Por isso, a arguição de alguma dessas nulidades deve ser efectuada através de reclamação ou de recurso de agravo, proferido sobre essa reclamação. Não podem tais vícios servir de fundamento para recurso da sentença final, porque, neste caso, só as nulidades de sentença podem servir de fundamento ao recurso, e essas nulidades são as previstas no artigo 668 nº 1 do Código de Processo Civil”.

[10] A expressão «questões», que se prende, desde logo, com as pretensões que os litigantes submetem à apreciação do tribunal e as respectivas causas de pedir, de modo algum se pode confundir com as razões (de facto ou de direito), os argumentos, os pressupostos em que as partes fundam a sua posição na controvérsia.

[11] Devendo anotar-se que a falta desta imediação sempre imporia alguma cautela numa afirmação com tal sentido.

[12] Como estava obrigada, registe-se.

[13] Constantes de publicações da especialidade.

[14] Consagrados nos arts 562º e ss do CC.

[15] Como se retira da norma plasmada no art. 566º, nº 2 do CC, em conjugação com a do art. 562º.

[16] A prova da ocorrência de danos concreta e directamente imputáveis à lesão é solução que se justifica quando o lesado pretenda obter o ressarcimento dos lucros cessantes, pelos “benefícios que deixou de obter”, nos termos do art. 564º, nº 1, do CC. Porém, não se esgotam aí as possibilidades de ressarcimento que abarca também, com o danos emergentes, no segmento normativo referente ao “prejuízo causado”.

[17] Este dispositivo preceitua que se não puder ser averiguado o valor exacto dos danos, o tribunal julgará equitativamente dentro dos limites que tiver por provados.  Cf. Ac. do STJ de 9/5/1996, BMJ 457º-325: “O valor do dano consistente na não manutenção do uso da coisa, sem a devida reposição, será apurado nos termos do artigo 566º, nº 3, do Código Civil, decidindo o juiz «ex aequo et bono», por razões de conveniência, de oportunidade e, principalmente, de justiça concreta”.

[18] Apenas imputável à R, evidentemente.