Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
190/05.6GBTNV-C.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE JACOB
Descritores: SUSPENSÃO PENA
REGIME DE PROVA
REVOGAÇÃO
AUDIÇÃO DO CONDENADO
Data do Acordão: 05/26/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE TORRES NOVAS – 1º J
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 50º,55º CP, 11, 9, 119) E 95º CPP
Sumário: 1. No caso de revogação será sempre exigível a audição presencial do condenado quando tiver havido suspensão com sujeição a regime de prova.
2. O condenado terá que ser sempre notificado para comparecer, não bastando a notificação ao seu advogado, visto tratar-se de notificação para comparência em acto a que é obrigado a estar presente.
3. A ausência do arguido, que não foi regularmente notificado para comparecer nos termos acabados de apontar, não tendo sido esgotadas as possibilidades de obter a sua comparência, traduz a nulidade insanável prevista no art. 119º, al. c) CPP .
Decisão Texto Integral: I – RELATÓRIO:

            Nos autos que originaram o presente recurso em separado e que correram termos pelo 1º Juízo do Tribunal Judicial de Torres Novas foi proferida sentença que, julgando procedente a acusação deduzida pelo M.P., condenou o arguido J..., como autor material de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. p. pelo art. 292º, nº 1, do Código Penal, na pena de 9 meses de prisão, cuja execução foi suspensa pelo período de 3 anos e 6 meses, condicionada ao regime de prova durante a suspensão, mediante cumprimento de plano de readaptação social englobando o tratamento ao consumo excessivo de álcool.

            Face ao sistemático incumprimento do plano de readaptação, foi determinada a audição pessoal do condenado, nos termos do art. 495º, nº 2, do CPP (diploma a que se reportam todas as demais disposições legais citadas sem menção de origem).

            Ouvidos o condenado e o técnico que procedia ao seu acompanhamento, o tribunal concluiu pelo efectivo incumprimento do plano de readaptação e fez solene advertência ao arguido, instando-o a passar a realizar o cumprimento do plano de forma efectiva, nos termos do art. 55º, al. a), do Código Penal, exigindo-lhe ainda garantias do cumprimento desse plano.

            Ulteriormente, foi junto aos autos novo relatório de acompanhamento da execução do plano de readaptação, remetido pela DGRS, informando que o arguido tinha registado evolução negativa, designadamente, desinteresse e desmotivação no que concerne ao tratamento da sua alcoologia.

            O tribunal convocou de novo o condenado para vir esclarecer a razão do incumprimento do plano, nos termos do art. 495º, nº 2, sem que este tenha comparecido, tendo sido devolvida a notificação que lhe foi dirigida por via postal registada.

            O tribunal considerou dispensável a realização de nova notificação e teve o arguido por regularmente notificado na pessoa do seu defensor.

O M.P. promoveu a revogação da suspensão da execução da pena.

            O Mmº Juiz proferiu então o seguinte despacho:

“Nos presentes autos foi o arguido J... condenada na pena de 9 meses de prisão, pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, como se extrai de decisão condenatória junta de fls. 78 a 85. A execução desta pena de prisão foi suspensa pelo período de 3 anos e 6 meses, com a condição de o arguido se sujeitar a regime de prova, através do cumprimento de um plano de readaptação social, executado com vigilância e apoio, durante o tempo da duração da suspensão, pelos serviços de reinserção social, que englobe necessariamente o tratamento do arguido ao seu consumo excessivo de álcool.

O plano de readaptação em causa, elaborado pela DGRS encontra-se junto de fls. 106 a 110. Resulta dos autos que o arguido foi devidamente notificado do teor desse plano de readaptação Este foi homologado através de despacho proferido a fls.122.

Foi entretanto junta aos autos de fls. 133 a 135 relatório de acompanhamento da situação do arguido elaborado pela DGRS que informava que o mesmo não estava a cumprir o plano de readaptação. Designadamente, informava que o arguido rejeitou a intervenção da técnica da DGRS, não comparecendo às entrevistas de acompanhamento e não aderindo ao tratamento em ambulatório do seu problema de consumo excessivo de bebidas alcoólicas. E ainda que o arguido faltou a todas as consultas agendadas com o serviço de alcoologia.

Posteriormente, veio a DGRS juntar aos autos de f1s. 139 a 141 novo relatório de acompanhamento da execução da condição para a suspensão, em que reafirmava o incumprimento por parte do arguido em relação ao plano de readaptação, designadamente no que respeita ao tratamento à sua alcoologia. Designadamente, continuava a rejeitar que tivesse problemas com o consumo excessivo de álcool e não dava crédito às orientações da técnica da DGRS e do médico de família que fazia o seu acompanhamento. Além disso, não comparecia regularmente às consultas de acompanhamento daquela problemática. Refere-se ainda no relatório que o arguido não compareceu a nenhuma convocatória da técnica da DGRS, tendo esta que se deslocar para o efeito à residência do mesmo, mas não conseguindo falar com ele a maioria das vezes.

Devido a esse incumprimento sistemático do plano de readaptação pelo arguido foi determinada a sua audição pessoal, nos termos do artigo 495°, n02, do Código de Processo Penal, para apresentar as razões justificativas desse incumprimento.

Foi então o arguido e o técnico da DGRS que procedia ao acompanhamento da sua situação ouvidos em declarações na diligência marcada para o efeito. Esta técnica veio confirmar as informações anteriores que tinha dado. Informou ainda que o médico de família do arguido lhe comunicou que este não tem dado qualquer importância à sua problemática de consumo excessivo de bebidas alcoólicas e não tem tomado a medicação para efeito de tratamento à mesma. Que os medicamentos que o arguido se encontra a tomar se referem ao tratamento a outra doença que o mesmo padece. Conclui que o arguido não tem vindo a cumprir devidamente o plano de readaptação que lhe foi imposto nos autos.

Na sequência o Tribunal concluiu pelo efectivo incumprimento do plano de readaptação pelo arguido e decidiu dar-lhe uma solene advertência, instando-o a passar a realizar o cumprimento do plano de forma efectiva, nos termos da alínea a), do artigo 55°, do Código Penal. Para além disso, e nos termos da alínea b), do artigo 55°, do Código Penal, determinou-se que o arguido deveria prestar garantias do cumprimento desse plano.

Posteriormente, a DGRS juntou de fls. 208 a 210 novo relatório de acompanhamento da execução do plano de readaptação, onde informava que o arguido tinha registado uma evolução negativa, designadamente desinteresse e desmotivação no que concerne ao tratamento à sua alcoologia. Nomeadamente, não tem aderido às orientações dos técnicos de saúde e de reinserção social, não comparecendo às convocatórias de ambos os serviços. Além disso, não recebe os técnicos da DGRS não recebe os técnicos da DGRS nas visitas domiciliárias que lhe são feitas. Em deslocação que efectuou à casa do arguido para se inteirar da causa da sua não comparência às entrevistas, o arguido recebeu o técnico na via pública e gritou-lhe e ofendeu-o, chamando-lhe de mentiroso. Quando este compareceu no dia seguinte para o levar à consulta para despistagem ao seu problema de alcoologia, o arguido começou por recusar-se a acompanhar o técnico e maltratou o mesmo de forma pública com impropérios, Após esse incidente o arguido continua a não comparecer às entrevistas nos serviços da DGRS, apesar das convocatórias que lhe são feitas, Quando o técnico da DGRS se desloca ao seu domicílio para o contactar, não responde aos seus chamamentos, embora se encontre no interior da residência, Continua a não comparecer nas consultas de tratamento à sua alcoologia. O técnico da DGRS que acompanha a situação conclui o relatório declarando que o arguido se tem colocado numa posição de incumprimento, face aos objectivos propostos no plano de readaptação,

Perante este comportamento do arguido o Tribunal convocou-o de novo pára vir esclarecer a razão do seu incumprimento do plano, nos termos do artigo 495°, nº 2, do Código de Processo Penal. Apesar de devidamente notificado, o arguido não compareceu a essa diligência.

Na diligência em causa foi ouvido o técnico da, DGRS que faz o acompanhamento da situação, tendo o mesmo reiterado o teor do relatório que juntou aos autos, designadamente o sistemático incumprimento pelo arguido do plano de readaptação que lhe foi determinado nos presentes autos como condição para a suspensão da pena de prisão em que aqui foi condenado.

Compulsados os autos, verifica-se assim que o arguido J... tem vindo sistematicamente a violar o referido plano de readaptação e a não cumprir os deveres que nele são determinados, designadamente o tratamento ao seu problema de alcoologia, nem sequer deixando que a DGRS proceda ao seu acompanhamento de forma regular, na medida em que interrompeu os contactos com esta entidade e não tem comparecido às convocatórias que lhe são feitas, nem recebendo o respectivo técnico na sua residência, Designadamente, o tratamento ambulatório ao seu consumo excessivo de álcool não tem obtido os resultados desejáveis, na medida em que o arguido não se manteve abstinente, nem cumpriu com a metodologia do mesmo.

Verifica-se assim que o arguido ignorou totalmente a condição que o tribunal lhe pôs  para que o mesmo beneficiasse da suspensão da execução da pena de prisão que lhe foi aplicada. Consideramos assim que a atitude do arguido fez desaparecer o fundamento para que se mantenha a suspensão da pena daquela pena de prisão, Na verdade, desapareceu o juízo de prognose favorável que havia levada a optar pela suspensão da pena que lhe foi aplicada. De outro modo, deixará de ter efeito útil o dever que lhe foi estabelecido como condição para a suspensão.

Tendo em conta o comportamento exposto, o arguido infringiu de forma grosseira e repetidamente o dever que lhe havia sido imposto. Consideramos, assim, que se encontra preenchido no caso concreto o pressuposto previsto no artigo 56°, n01, alínea a), do Código Penal.

Por todo o exposto, determino a revogação da suspensão da execução da pena de prisão que havia sido aplicada nos presentes autos a este arguido. Em conformidade, o arguido J... deverá cumprir a pena de 9 meses de prisão em que foi condenado nos autos.

Notifique.

(…)”.

            Inconformado, o arguido interpôs recurso, retirando da respectiva motivação as seguintes conclusões:

1) O Tribunal "a quo" erra sobre os pressupostos de facto e de direito que subjazem ao texto do Douto Despacho de que se recorre;

2) Interpreta e aplica o disposto nos artigos 56° do Código Penal e no artigo 495° do C.P.P. em desconformidade com o princípio da legalidade e as garantias constitucionais do direito à informação, à audição prévia e ao contraditório do condenado em processo penal:

3) Diz o Tribunal "a quo"que o arguido, estando devidamente notificado, não compareceu à segunda diligência convocada, nos termos do artigo 495°, n° 2 do C.P.P:

4) A notificação para essa diligência por via postal registada realizada ao arguido no dia 02/07/2009, em fls. 218 dos autos, foi remetida e devolvida ao Tribunal como objecto não reclamado em 17/07/2009, em fls. 224 e 225;

5) A diligência a fim de se proceder à audição do arguido por incumprimento do plano, foi realizada no dia 17/07/2009, em fls. 221 e 222 dos autos, com a presença do mandatário do arguido e do técnico da DGRS, mas na ausência do arguido;

6) Ora do exposto. e considerando que o que está em causa é a revogação da suspensão da execução da pena de prisão, não se procedeu à audição pessoal e presencial do ora recorrente;

7) Tal audição presencial é agora obrigatória, sendo esse facto fácil de constatar;

8) Na verdade, o tribunal "a quo" incorreu em erro de julgamento, quanto aos pressupostos de facto e de direito e interpretou e aplicou o disposto nos artigos 56° do C.P. e 495° do C.P.P em desconformidade com o princípio da legalidade e das garantias constitucionais do direito à informação, à audição prévia e ao contraditório, violando o preceituado no artigo 29°, 30°, nº 4 em harmonia com os nºs 1, 5 e 6 do artigo 32°, todos da Constituição da República;

9) O condenado, ora recorrente, não foi informado pessoalmente nem teve possibilidade de, previamente à decisão revogatória da suspensão da pena privativa da liberdade, pronunciar-se pessoalmente sobre os relatórios e o parecer a que alude o Douto despacho recorrido;

10) Não pôde defender-se nem exercer, previamente à decisão, o seu direito ao contraditório em relação às imputações factuais que, daqueles relatórios, constam, tidas, na douta decisão, como verdadeiras e fundamentadas;

11) Não pôde defender-se em relação às imputações, que a lei exige que sejam grosseiras e repetidas, de violação dos seus deveres ou das regras de conduta impostas, ou o plano de reinserção social;

12) Após a alteração ao artigo 4950 nº 2 do Código de Processo Penal decorrente da lei 48/07 de 29.08 que substitui a expressão "audição do condenado "por "ouvido o condenado na presença do técnico que apoia e fiscaliza o cumprimento das condições de suspensão" - a falta de audição presencial do arguido constitui nulidade insanável, nos termos do art. 119º al. c) do Código de Processo Penal;

13) Pelo exposto considera-se que só com essa audiência oral fica plenamente satisfeito o princípio do contraditório e as garantias de defesa do arguido;

14) Deste modo, temos de considerar que actualmente só com essa audiência oral fica plenamente satisfeito o princípio do contraditório e as garantias de defesa do arguido;

15) "O Tribunal Constitucional, embora não tenha analisado directamente a questão da audição do condenado dever ser pessoal e presencial, já emitiu juízo de não inconstitucionalidade relativamente à interpretação do n° 2 do art. 4950 do Código de Processo Penal quando tenha ocorrido "audiência oral do recorrente na qual o recorrente foi assistido por defensor nomeado, podendo consultar o relatório junto aos autos levado a efeito pelo Instituto de Reinserção Social. E que, tendo o mesmo alegado, nessa diligência, factos e meios de prova com os quais pretendia justificar a sua conduta, foi admitido a comprová-los, o que veio efectivamente a fazer".

16) "E, sobre a extensão do princípio do contraditório, considera o Tribunal Constitucional: " ... O contraditório surge como regra orientadora da produção pelo tribunal de um juízo que interfira com o arguido, para além de se justificar pela defesa de direitos. Em processo penal, o contraditório visa, antes de mais, assegurar decisões fundamentadas na discussão de argumentos, subordinando todas as decisões (ainda que recorríveis) em que os arguidos sejam pessoalmente afectados ( ... ) como emanação de uma racionalidade dialéctica, comunicacional e democrática. É, assim, o princípio da contraditória expressão do Estado de direito democrático e, nessa medida, igualmente das garantias de defesa";

17) "Dito de outra forma, a observância do princípio do contraditório, estabelecido no artigo 32° n° 5, da Constituição da República, consubstancia-se "no direito/dever do juiz de ouvir as razões do arguido e demais sujeitos processuais, em relação a questões e assuntos sobre os quais tenha de proferir uma decisão, bem como no direito do arguido a intervir no processo e de se pronunciar e contraditar todos os elementos de prova e argumentos jurídicos trazidos ao processo, direito que abrange todos os actos susceptíveis de afectarem a sua posição ou de atingirem a sua esfera jurídica;

18) Ao princípio do contraditório acresce um outro dos direitos de defesa, decorrente do próprio Estado de direito democrático, traduzido na observância do princípio ou direito de audiência, "que implica que a declaração do direito do caso penal concreto não seja apenas tarefa do juiz ou do tribunal (concepção "carismática" do processo), mas tenha de ser tarefa de todos os que participam no processo (concepção democrática do processo) e se encontrem em situação de influir naquela declaração de direito, de acordo com a posição e funções processuais que cada um assuma;

19) "Ora em face do supra exposto resulta que o arguido deveria ter sido notificado de todas as provas ou elementos que constam dos autos nomeadamente dos relatórios sociais e da posição do Ministério Publico, o que não veio a suceder ":

20) Salvo melhor opinião ao verificar-se esta conduta não foi cumprido o disposto no art.32 da Constituição da Republica Portuguesa;

21 ) Do exposto resulta gravemente atentatório das garantias de defesa que a revogação da suspensão se pudesse processar sem que este se pudesse pronunciar nos termos do artigo 495° nº 2 do Código de processo Penal, o que significa que deve ser concedida a possibilidade de exercício do direito do contraditório e, mais, do direito de audiência pessoal;

22) Por isso, seria gravemente atentatório das garantias de defesa, que a revogação da suspensão se pudesse processar sem que este se pudesse pronunciar nos termos do artigo 495º nº 2 do Código de Processo Penal o que significa que lhe deve ser concedida a possibilidade de exercício do direito do contraditório e, mais, do direito de audiência pessoal;

23) Consequência dessa preterição é a nulidade insanável e, por conseguinte, de conhecimento oficioso pelo tribunal, nos termos do disposto no artigo 119°, alínea c), do Código de Processo Penal;

24) Efectivamente, pelas razões supra expostas, a não audição do arguido neste momento processual afecta gravemente os direitos de defesa do arguido e a dimensão constitucional do principio do contraditório (art. 32° nO 5 da Constituição da República Portuguesa);

Pelo exposto e pelo mais que for doutamente suprido, deve conceder­-se provimento ao presente recurso, e em consequência revogar-se o Despacho recorrido e substituído por outro que mantenha a suspensão da pena privativa da liberdade.

            Nesta instância, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer pronunciando-se no sentido de se declarar nula a decisão recorrida com fundamento na falta de audição pessoal e presencial do condenado, determinando-se que após as diligências tidas por necessárias se profira novo despacho que aprecie da eventual revogação da suspensão da pena de prisão.

            Foram colhidos os vistos legais e realizou-se a conferência.

            Constitui jurisprudência corrente dos tribunais superiores que o âmbito do recurso se afere e se delimita pelas conclusões formuladas na respectiva motivação, sem prejuízo da matéria de conhecimento oficioso.

            No caso vertente e vistas as conclusões do recurso, a única questão a decidir é a de saber se foi preterida formalidade essencial e, por via dessa preterição, omitido ou, pelo menos, ilegalmente limitado, o contraditório relativamente à decisão de suspensão da execução da pena.

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II - FUNDAMENTAÇÃO:

Como se referiu em sede de relatório, a questão posta nestes autos de recurso em separado, arrancando de invocado incumprimento, pelo condenado, do plano de reinserção social que lhe foi imposto no âmbito do regime de prova, pressupõe, no entanto, a verificação da preterição de formalidade essencial que irremediavelmente terá comprometido a observância do contraditório anterior à revogação da suspensão da pena.

Dispõe o art. 56º, nº 1, al. a), do Código Penal:

 “1 - A suspensão da pena de prisão é revogada sempre que, no seu decurso, o condenado:

            a) Infringir grosseira ou repetidamente os deveres ou regras de conduta impostos ou o plano de reinserção social; (…)

            Se, como resulta da norma transcrita, no plano do direito substantivo a revogação da suspensão da pena de prisão pressupõe que o condenado submetido a regime de prova infrinja de modo grosseiro e reiterado o plano de reinserção social que contém os objectivos de ressocialização a atingir e as actividades que deve desenvolver, no plano processual impõe-se a prévia realização das diligências que se revelem úteis para a decisão, avultando a necessária audição do condenado.

            Na redacção imediatamente anterior à actual, dispunha o art. 495º, nº2, do CPP, que “o tribunal decide por despacho, depois de recolhida a prova e antecedendo parecer do Ministério Público e audição do condenado”, texto que consentia a interpretação de que a audição do condenado se bastava com a mera possibilidade de lhe ser facultada a possibilidade de se pronunciar, ainda que por escrito. Com a alteração introduzida pela Lei nº 48/2007, de 29 de Agosto, o texto legal dispõe agora que “o tribunal decide por despacho, depois de recolhida a prova, obtido parecer do Ministério Público e ouvido o condenado na presença do técnico que apoia e fiscaliza o cumprimento das condições da suspensão”.

            Ou seja, actualmente, a lei, para além de impor sempre a audição do condenado antes da revogação da suspensão, como já antes sucedia, impõe ainda que essa audição seja presencial quando a suspensão da execução tenha sido subordinada a condições sujeitas a apoio e/ou fiscalização. Só quando se verifique esta última hipótese adquire sentido o disposto no nº 2 do art. 495º.

Expliquemo-nos melhor:

            O art. 495º, nº 1, dispõe que “quaisquer autoridades e serviços aos quais seja pedido apoio ao condenado no cumprimento dos deveres, regras de conduta ou outras obrigações impostos comunicam ao tribunal a falta de cumprimento, por aquele, desses deveres, regras de conduta ou obrigações, para efeitos do disposto no nº 3 do artigo 51º, nº 3 do artigo 52º e nos artigos 55º e 56º do Código Penal”. O art. 51º do Código Penal estatui sobre a suspensão da execução da pena de prisão subordinada ao cumprimento de deveres e o respectivo nº 3 admite a respectiva modificação sempre que ocorram até ao temos do período de suspensão circunstâncias relevantes supervenientes ou de que o tribunal só posteriormente tenha conhecimento. O nº 4 do mesmo artigo prevê a possibilidade de o tribunal determinar que os serviços de reinserção social apoiem e fiscalizem o condenado no cumprimento dos deveres impostos. Portanto, se tiver havido uma suspensão da pena de prisão subordinada a cumprimento de deveres e se o tribunal tiver determinado que os serviços de reinserção social (ou outros serviços – cfr. 1ª parte do nº 2 do art. 495º do CPP) apoiem e/ou fiscalizem o condenado no cumprimento dos deveres impostos, a modificação dos deveres ou a revogação da pena exigem a prévia audição do condenado na presença do técnico que acompanhou e fiscalizou ou apoiou o respectivo cumprimento. Donde se segue que será sempre assim – será sempre exigível a audição presencial do condenado – quando tiver havido suspensão com sujeição a regime de prova.

Não é por acaso que assim o dispõe a norma em questão. Repare-se que este evento processual apenas tem lugar se e quando o condenado não cumprir deveres que lhe foram impostos como condição de preservação da sua liberdade. A obrigatoriedade da audição antes da revogação da suspensão foi gizada para lhe permitir esclarecer com transparência as razões que conduziram ao incumprimento. É verdade que nesse momento importará garantir ao condenado o contraditório (contraditório relativamente à promoção do M.P. para revogação da suspensão); mas importará também e sobretudo aferir do bem fundado da expectativa ou prognose em que assentou a decisão de suspensão da execução da pena, já que não está em causa apenas a liberdade do arguido, mas também a eficácia e credibilidade do sistema judicial e, em última instância, a própria realização da justiça. Equacionar a revogação da suspensão significa, afinal, dar satisfação às exigências comunitárias de protecção dos bens jurídicos e garantir o funcionamento do elemento dissuasor. A presença do técnico que apoiou e fiscalizou o cumprimento dos deveres impostos funcionará como fiel das declarações do condenado, permitindo aferir da sua veracidade e facultando a aquisição de elementos preciosos para aquilatar da vontade e dedicação daquele no cumprimento dos deveres que lhe foram impostos. Justifica-se, pois, plenamente – e exige-se – uma audição do condenado não apenas presencial, mas em presença do técnico que apoiou e fiscalizou o cumprimento dos deveres que condicionaram a suspensão.

Claro que não é difícil descortinar situações em que a audição presencial será de todo impossível. Basta pensar na hipótese de o condenado não cumprir o plano de reinserção social ou violar gravemente os deveres que sobre si impendem, ausentando-se de seguida para local incerto. Considerar, numa tal situação, inviabilizada a revogação da suspensão da execução da pena de prisão por impossibilidade da audição presencial do condenado seria uma solução irrazoável, para não dizer absurda, e que o direito manifestamente não postula.

Uma interpretação na linha das modernas tendências do direito processual penal, uma interpretação conforme à Constituição (no caso, não tanto conforme à sua letra, mas conforme ao seu espírito) e que não descure as imposições do ordenamento supra nacional assumidas e respeitadas pelo Estado Português, nomeadamente, a Declaração Universal dos Direitos do Homem e a Declaração Europeia dos Direitos do Homem, tenderá a preferir a audição pessoal, entendida esta no sentido de presencial, princípio que há-de servir como ponto de partida, mas salvaguardando sempre as excepções que se justifiquem à luz de uma interpretação razoável do direito, com é o caso da hipótese que apontámos.

De todo o modo, não é esse o caso dos autos, em que o condenado tem residência conhecida e onde tem sido encontrado pelos técnicos que o vêm acompanhando, razão pela qual a decisão de revogação da pena não poderia ter prescindido da sua prévia audição presencial, garantindo-se a sua presença através dos meios coactivos previstos na lei, se este, apesar de regularmente notificado, não comparecer. Registe-se, já agora, que o condenado terá que ser sempre notificado para comparecer, não bastando a notificação ao seu advogado, visto tratar-se de notificação para comparência em acto a que é obrigado a estar presente.

Ora, no caso em apreço o condenado não foi notificado – apenas o seu mandatário o foi – como se verifica pelo facto de ter sido devolvida a carta expedida para a sua notificação para comparência. O Mmº Juiz, no despacho recorrido, considerou-o devidamente notificado, seguramente tendo presente o disposto no art. 113º, nº 9, norma que admite a realização das notificações do arguido, do assistente e das partes civis ao respectivo defensor ou advogado, exceptuando apenas, como casos em que se exige expressamente a notificação daqueles (ainda que devam ser notificadas também ao advogado ou defensor nomeado) as notificações respeitantes à acusação, à decisão instrutória, à designação de dia para julgamento e à sentença, bem como as relativas à aplicação de medidas de coacção e de garantia patrimonial e à dedução do pedido de indemnização civil. Contudo, o art. 113º, nº 9, carece actualmente de uma interpretação analógica – analogia com o previsto para a audiência de julgamento – que permita integrar no respectivo domínio a exigência da notificação do próprio condenado para comparecer na audiência prevista no art. 495º, nº 2. A audiência presencial do condenado não estava prevista na versão original desta última norma, como já referimos supra, tendo sido introduzida com a revisão operada pela Lei nº 48/2007, de 29 de Agosto. O afã legislativo recente nem sempre tem sido acompanhado por uma cuidadosa ponderação das implicações que as alterações legais implicam e este é apenas mais um caso, a somar a tantos outros, em que as alterações introduzidas colidem ou não são integralmente compatibilizadas com normas pré-existentes que permanecem em vigor. Na situação que agora tratamos, o legislador manifestamente não teve presente a necessidade de harmonizar a norma do nº 9 do art. 113º com a redacção inovadora do nº 2 do art. 495º. A interpretação analógica é admissível, no entanto, visto o disposto no art. 4º do CPP e uma vez que não se traduz num enfraquecimento da posição do arguido nem numa diminuição dos seus direitos processuais [1].

            A ausência do arguido, no caso vertente, e uma vez que este não foi regularmente notificado para comparecer nos termos acabados de apontar, não tendo sido esgotadas as possibilidades de obter a sua comparência, traduz a nulidade insanável prevista no art. 119º, al. c), havendo que declará-la [2].

 

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III – DISPOSITIVO:

            Termos em que acordam nesta Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra em declarar verificada a nulidade insanável prevista na al. c) do art. 119º do CPP, bem como a decisão subsequente, por ela necessariamente afectada, determinando-se que o tribunal a quo proceda à audição presencial do condenado e, após, profira nova decisão apreciando a pertinência da revogação da suspensão da execução da pena.

            Sem tributação.

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                                                                                  Coimbra, ____________

                                       (texto processado pelo relator e

                                         revisto por todos os signatários)

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                                               (Jorge Miranda Jacob)

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                                               (Maria Pilar de Oliveira)


  


[1] - Cfr. Figueiredo Dias, “Direito Processual Penal”, pág. 97.
[2] - Já após a inscrição em tabela do presente recurso foi publicado o Ac. do STJ nº 6/2010 (fixação de jurisprudência), no DR, 1ª Série, nº 99, de 21 de Maio de 2010, que fixou jurisprudência no sentido de que “(…) III – A notificação ao condenado do despacho de revogação da suspensão da pena de prisão pode assumir tanto a via de «contacto pessoal» como a «via postal registada, por meio de carta ou aviso registados» como, mesmo, a de «via postal simples, por meio de carta ou aviso». Essa jurisprudência não contende com o caso dos autos, visto que aqui está em causa não directamente o despacho que revogou a suspensão da execução da pena, mas nulidade insanável de acto anterior que directamente contende com o despacho de revogação.