Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
414/10.8TBCNT.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: EMÍDIO FRANCISCO SANTOS
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
CONCESSIONÁRIO. PRESUNÇÃO DE CULPA
ÓNUS DA PROVA
Data do Acordão: 09/16/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: CANTANHEDE 2º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: Nº 1 DO ART. 12º DA LEI Nº 24/2007, DE 18 DE JULHO
Sumário: I - Estabelecido que a causa do acidente foi o atravessamento da via por um animal, presume-se que a concessionária não cumpriu as obrigações de segurança adequadas a evitar o atravessamento da via pelo animal.

II - Caso a concessionária queira ilidir esta presunção, terá que alegar e provar não só as medidas de segurança específicas que tomou para evitar a entrada do animal na via, mas também as medidas de segurança que tomou adequadas para detectar a presença desse animal na via.

III - Não cumpre o ónus da prova que a lei lhe impõe a concessionária que se limita a alegar e a provar a adopção de medidas gerais de segurança; isto é, de medidas que não tiveram como fim específico prevenir a entrada de animais na via ou a detectar a sua presença nela depois da entrada deles.

Decisão Texto Integral: Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

A... , com domicílio na (...), Maia, propôs a presente acção declarativa com processo sumário contra B... , SA, com sede na (...), Cascais, pedindo a condenação da ré no pagamento da quantia € 20 918,56, acrescida de juros de mora à taxa legal desde a citação até efectivo pagamento, e no pagamento do valor dos honorários despendidos com mandatário, que viessem a apurar-se em sede de liquidação de sentença.

A quantia pedida visa indemnizar a autora pelos danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos por ela em consequência do acidente viação ocorrido em 30 de Abril de 2007, na altura em que conduzia um veículo automóvel na A14, no sentido Coimbra – Figueira da Foz. Segundo a demandante, a ré era responsável pela indemnização por o acidente ter ocorrido em auto-estrada cuja exploração lhe foi concessionada e por o acidente se ter ficado a dever ao atravessamento da faixa de rodagem por um cão.

Posteriormente, mediante incidente de habilitação, passou a intervir nos autos, como sucessora da ré, a sociedade C... , SA.

A ré contestou, pedindo se julgasse improcedente a acção.

Na sua defesa, impugnou a alegação da autora relativa às circunstâncias em que ocorreu o acidente e aos danos por ela sofridos; alegou que o acidente ocorreu porque a autora circulava com excesso de velocidade e que cumpriu todos os deveres a que estava obrigada por força do contrato de concessão. Sob a alegação de que a sua responsabilidade civil por danos verificados em consequência da actividade de concessão das auto-estradas estava garantida por contrato de seguro celebrado com a Companhia de Seguros D... , SA, requereu a intervenção nos autos, como parte principal, da mencionada Companhia.

A intervenção foi admitida. Citada, a chamada contestou, pedindo também a improcedência da acção. No seu articulado, impugnou a versão do acidente narrada pela autora e a alegação relativa aos danos; alegou que o acidente foi causado pelo excesso de velocidade, porventura acrescido de alguma falta de destreza da condutora.

O processo prosseguiu os seus termos.

Na sessão da audiência de discussão e julgamento que teve lugar em 18 de Dezembro de 2012, a chamada arguiu a incompetência do tribunal a quo em razão da matéria para o conhecimento da acção, dizendo que o tribunal competente em razão da matéria eram os tribunais administrativos e fiscais. Em consequência, pediu a absolvição da instância dela e da ré.

Na resposta, a autora sustentou que o tribunal a quo era competente em razão da matéria para o conhecimento da acção.

O tribunal a quo conheceu da questão na sentença (e não imediatamente a seguir à arguição e à resposta, como prescrevia, na altura, o artigo 103º do CPC), julgando improcedente a arguição de incompetência.

Após a realização da audiência e da resposta à matéria de facto foi proferida sentença que, julgando parcialmente procedente a acção:
1. Condenou a ré C.... SA e a Companhia de Seguros D... SA (chamada) a pagarem solidariamente à autora, A...., as seguintes quantias: 1) € 10 751,66 (dez mil setecentos e cinquenta e um euros e sessenta e seis cêntimos), acrescidos de juros, desde a citação até integral pagamento, à taxa legal, determinada nos termos do artigo 559º, n.º 1, do Código Civil; 2) € 3000,00, a título de danos patrimoniais, acrescidos de juros, desde a condenação até integral pagamento, à taxa legal, determinada nos termos do artigo 559º, n.º1, do Código Civil; 3) € 2 000,00, a título de danos não patrimoniais, acrescidos de juros, desde a citação até integral pagamento, à taxa legal, determinada nos termos do artigo 559º, n.º 1, do Código Civil;
2. Absolveu a ré e a chamada do demais pedido pela autora.

A chamada não se conformou com a condenação e dela interpôs o presente recurso de apelação.

Recurso ao qual aderiu a ré C.....  

Os fundamentos do recurso expostos nas conclusões foram os seguintes:
1. Num acidente de viação, a prova da velocidade é facto constitutivo do direito invocado sempre que o seu excesso seja inadequado e possa ser causa ou concausa do acidente, o que compete ao autor provar.
2. Para o seu apuramento, na falta de uma prova que objectivamente a haja medido, a velocidade terá de ser deduzida, segundo as regras da experiência, com base nos demais elementos provados.
3. Quando uma testemunha, única presencial, declara que a dinâmica do acidente ocorreu de forma diferente e contraditória com os factos alegados na PI, afirmando que um veículo, após o embate num canídeo, vai logo embater no separador central de uma auto-estrada, fazendo depois vários piões, embatendo pelo menos duas vezes no mesmo separador central e se verifica pelas fotos e danos reclamados no veículo que ele não tem danos na parte esquerda onde teria de ter batido segundo o depoimento da testemunha, primeiramente, prova-se que não fala verdade e o seu depoimento não merece credibilidade, devendo, por isso, os quesitos relativos ao acidente ser dados como não provados.
4. Quando uma testemunha, única presencial, declara que a dinâmica do acidente ocorreu de forma diferente e contraditória com os factos alegados na PI, afirmando que um veículo, após o embate num canídeo, vai logo embater no separador central de uma auto-estrada, fazendo depois vários piões, embatendo pelo menos duas vezes no mesmo separador central e se verifica pelas fotos e danos reclamados no veículo que ele não tem danos na parte da frente que indiciem ter havido embate com esse canídeo, cuja fotos nos autos mostram ser de pequeno porte, logo, susceptível de causar danos na parte mais baixa, prova que não fala verdade e o seu depoimento não merece credibilidade, devendo pôr-se em dúvida se o canídeo foi atropelado pela viatura sinistrada.
5. Se o contrato de seguro da chamada apenas garante a responsabilidade civil extracontratual da C.... e a sentença condena esta com base na responsabilidade contratual, a chamada não responde pelos danos.
6. A presunção que recai sobre a C.... decorrente da Lei 24/2007 é de incumprimento de uma obrigação de segurança, que será ilidida se provar que o fez que cumpriu tal obrigação, obviamente enquanto obrigação possível (401º do CC).
7. Exigir-se que a C.... prove, em concreto, como o canídeo se introduziu na auto-estrada é exigir a prova do contrário, que é o correlato da responsabilidade pelo risco, que a lei 24/2007 não consagrou.
8. Sendo a C.... uma entidade privada que é objecto de uma concessão do Estado, estamos perante um conflito emergente de uma relação jurídico-administrativa com reflexo nos utentes da auto-estrada, sendo competente, ao abrigo do artigo 4º, alíneas f) e i) do ETAF o tribunal administrativo.

A autora respondeu ao recurso. Fê-lo, alegando, em síntese, que as alegações de recurso não obedeciam ao disposto no artigo 639º do Código de Processo Civil; que a tese da recorrente, no sentido de descredibilizar o depoimento da testemunha, não merecia acolhimento; que a alegada ausência de responsabilidade da recorrente no âmbito do contrato de seguro deviam ser tratada entre aquela e a sua cliente, designadamente em sede de direito de regresso após ter pago, como se lhe impunha, o valor em que foram condenadas; que as rés não demonstraram que a causa do acidente era alheia ao cumprimento dos deveres a que a ré estava obrigada pelo contrato de concessão; que o tribunal a quo era competente em razão da matéria para o conhecimento da causa.

Feita esta exposição, importa precisar o objecto da apelação interposta pela chamada.

A recorrente impugnou as seguintes decisões:

1. A decisão do tribunal a quo proferida sobre os pontos números 5, 6, 7, 8, 9, 10 e 11 da base instrutória;

2. A decisão que julgou improcedente a arguição de incompetência do tribunal a quo em razão da matéria;

1. A decisão que a condenou a pagar à autora a quantia de € 15 751,66 (10 751,66 + 3 000,00 + 2 000).

O ora relator, entendendo que não podia conhecer-se do objecto do recurso interposto contra a decisão que julgou improcedente a arguição de incompetência do tribunal a quo em razão da matéria, uma vez que o recurso havia sido interposto fora do prazo legal para tanto, notificou as partes para se pronunciarem sobre a questão, conforme prescreve o n.º 1 do artigo 655º do CPC.

Enquanto a autora, recorrida se pronunciou no sentido do não conhecimento do objecto do recurso a recorrente pronunciou-se no sentido de ser conhecido o objecto do recurso. Para tanto alegou que a interpretação do artigo 644º, n.º 2, alínea b), do CPC, feita pelo ora relator era excessivamente formal e contrária ao objectivo de simplicidade e celeridade que a lei quis prosseguir; que não faz sentido que o recorrente tivesse 15 dias para interpor recurso autónomo do despacho que apreciou a competência absoluta do tribunal e 15 dias depois tivesse que interpor recurso da decisão final; que os números 3 e 4 do artigo 644º do CPC consentem que o recorrente possa, em recurso único, recorrer de todas as decisões interlocutórias; que não faria sentido que a lei consentisse o mais (interpor recurso final de todas as decisões) e não permitir o menos (recurso de decisão que até poderia ter sido interlocutória no saneador); que a competência absoluta do tribunal deve ser apreciada oficiosamente, especialmente quando suscitada por uma das partes (artigo 97º, n.º1, do Código de Processo Civil).     

Pese embora o respeito que nos merecem as alegações do recorrente, a sua pretensão de ver conhecido o recurso interposto contra a decisão que apreciou a competência absoluta do tribunal não tem amparo na lei.

Vejamos.

O n.º 1 e o n.º 2 do artigo 644º do CPC indicam as decisões proferidas pelo tribunal de 1ª instância de que cabe recurso de apelação autónoma.

Nos termos da alínea b), do n.º 2 do artigo 644º do CPC, da decisão do tribunal de 1ª instância que aprecie a competência absoluta do tribunal cabe recurso de apelação autónoma.

Logo, o meio processual apropriado para a chamada impugnar esta decisão era a apelação autónoma. A impugnação desta decisão no recurso da sentença configura um erro de procedimento.

Segundo o n.º 1 do artigo 193º do CPC, o erro na forma do processo importa unicamente a anulação dos actos que não possam ser aproveitados, devendo praticar-se os que forem estritamente necessários para que o processo se aproxime, quanto possível, da forma estabelecida pela lei.

A recorrente não está, no entanto, em condições de beneficiar desta solução.

É condição de admissibilidade da prática de qualquer acto processual que ele seja praticado dentro do prazo peremptório marcado pela lei, uma vez que o decurso do prazo extingue o direito de praticar o acto (artigo 139º, n.º 3, do CPC). Esta condição é aplicável também ao aproveitamento dos actos processuais ao abrigo do n.º 1 do artigo 193º. Só são aproveitáveis, ao abrigo desta norma, os actos que tenham sido praticados dentro do prazo previsto na lei.

Assim, a impugnação da decisão proferida pelo tribunal a quo que apreciou a competência absoluta do tribunal só seria aproveitável como “apelação autónoma” se tivesse sido praticada dentro do prazo previsto pela lei.

Sucede que o não foi. Com efeito, nos termos do artigo 638º, n.º 1, do CPC, 2ª parte, o prazo para a interposição do recurso era de 15 dias a partir da notificação da decisão. Dado que a decisão se considera notificada em 1 de Agosto de 2013 (3º dia posterior à data da elaboração da notificação certificada pelo sistema, que foi 29 de Julho de 2013), o prazo para interpor recurso (que se iniciou em 1 de Setembro de 2013) terminou em 15 de Setembro de 2013. Como a chamada interpôs o presente recurso em 9 de Outubro de 2013, é patente que nessa altura já há muito que estava esgotado o prazo para a interposição do recurso.

Contra este entendimento não vale a alegação de que não fazia sentido impor à recorrente que recorresse do despacho que apreciou a competência absoluta do tribunal no prazo de 15 dias a contar da notificação da decisão e que 15 dias depois interpusesse recurso da decisão final.

Na verdade, uma vez que o prazo de interposição do recurso da decisão que aprecia a competência absoluta do tribunal é diferente do prazo do recurso da decisão proferida em 1ª instância que conheça do mérito da causa e que o prazo processual marcado pela lei apenas é prorrogável nos casos nela previstos (n. º 1 do artigo 141º) e que a lei não prevê a prorrogação ou a alteração do prazo de interposição do recurso da decisão que aprecie a competência absoluta do tribunal, em casos como o dos autos, o prazo de recurso mais alargado (que era o prazo para interpor recurso da decisão que pôs termo à causa) não aproveitava à recorrente para impugnar a decisão proferida sobre a competência absoluta.

Contra o entendimento acima exposto também não vale o disposto nos n.ºs 3 e 4 do artigo 644º do CPC.

O n.º 3 permite a impugnação de decisões interlocutórias no recurso que venha a ser interposto da decisão que põe termo à causa, desde que as decisões interlocutórias, embora admitam recurso à luz dos critérios gerais da recorribilidade (artigo 629º, do CPC), não sejam passíveis de apelação autónoma.

No caso, a decisão em causa – decisão de apreciação da competência absoluta do tribunal – era passível de apelação autónoma. Logo, não podia ser impugnada no recurso que viesse a ser interposto da decisão que pôs termo à causa. 

O n.º 4 dá resposta à questão de saber o que sucede às decisões interlocutórias, não passíveis de apelação autónoma, que tenham interesse para uma das partes, quando não haja recurso da decisão final. Como é bom de ver, a solução do n.º 4 não vale para o caso presente uma vez que a decisão em causa é passível de apelação autónoma.     

Contra o entendimento acima exposto também não vale a alegação de que a competência absoluta do tribunal é matéria que deve ser conhecida oficiosamente, mormente quando suscitada por uma das partes.

É certo que a competência absoluta é de conhecimento oficioso (artigo 97º, n.º 1, do CPC). Porém, o dever de conhecer oficiosamente uma determinada questão não vale quando essa questão já foi conhecida e decidida no processo com trânsito em julgado. É o que se passa no caso. Com efeito, dado que a decisão sobre a competência absoluta não foi impugnada dentro do prazo previsto na lei, a mesma transitou em julgado (artigo 628º, do CPC). Daí que este tribunal esteja impedido de conhecer novamente da questão da competência absoluta do tribunal.       

Pelo exposto, não se conhece do recurso na parte em que tem por objecto a decisão que julgou improcedente a arguição de incompetência absoluta do tribunal recorrido.


*

      A segunda precisão ao objecto do recurso é ditada pela resposta da recorrida ao recurso, na parte em que alegou que este não obedecia ao disposto no artigo 639º, do CPC, uma vez que a recorrente impugnou a matéria de facto, mas não cuidou de indicar, nas conclusões, a matéria de facto que considerava incorrectamente julgada.

      Esta alegação remete-nos para a alínea a), do n.º 1 do artigo 640º do CPC, que estabelece o seguinte sobre os ónus a cargo do recorrente quando impugne a decisão relativa à matéria de facto. Quando impugne a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar os pontos de facto que considera incorrectamente julgados.

      Embora o Código de Processo Civil não diga expressamente que esta indicação deve constar das conclusões, sabendo-se, no entanto, que são as conclusões que delimitam, de modo definitivo, o objecto do recurso (artigo 635º, n.º 4, do CPC), quando a decisão de facto for também objecto de recurso devem as conclusões conter a indicação dos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados (a favor deste entendimento cita-se António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2013, Almedina, página 126).

No caso, é certo, como alega a recorrida, que a recorrente declarou que impugnava matéria de facto e que as conclusões do recurso não contêm a indicação dos pontos de facto que considerados incorrectamente julgados.

Sucede o seguinte. Embora a recorrente não tenha indicado nas conclusões os pontos de facto que considerava incorrectamente julgados, sintetizou, no entanto, nelas a apreciação crítica do depoimento da única testemunha que presenciou o acidente e concluiu que os quesitos relativos ao acidente deviam ser dados como não provados. Por outro lado, na motivação, indicou expressamente a matéria de facto a modificar. Trata-se da decisão proferida sobre os pontos números 5, 6, 7, 8, 9, 10 e 11 da base instrutória.  

Sabendo-se que ónus de especificação dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados, serve para delimitar o objecto do recurso de facto, quando o tribunal de recurso não tiver quaisquer dúvidas quanto aos segmentos da decisão de facto que são impugnados, a circunstância de não haver uma indicação expressa nas conclusões dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados, não deve constituir motivo de rejeição do recurso, o aplicação do princípio do primado das decisões de substância sobre as de forma.

Pelo exposto, não se rejeita o recurso da recorrente visando a decisão de facto.

Definido o objecto da presente apelação, passemos ao conhecimento da impugnação da decisão de facto.

As questões de facto que estão em causa são as seguintes.

Sob os n.ºs 5 e 6 perguntava-se se a autora, que circulava na Auto-Estrada A14, no sentido Coimbra/Figueira da Foz, foi surpreendida por um canídeo que, subitamente, invadiu a faixa de rodagem onde seguia, vindo do lado esquerdo (do lado do separador central), atento o sentido de marcha da autora.

Sob os n.ºs 7 e 8 perguntava-se se, apesar de ter accionado os travões e procurado desviar-se do animal, não conseguiu evitar o embate no mesmo com a parte dianteira do veículo que tripulava.

Sob os n.ºs 9, 10 e 11 perguntava-se se, em virtude do embate do canídeo, a autora perdeu o controlo do veículo, tendo vindo a colidir com a frente direita do mesmo no separador central da A14, ao quilómetro 33,635 e depois, virando-se para o lado contrário ao sentido de trânsito, embateu, de novo, agora com a parte traseira do veículo, no separador central, ao quilómetro 33,545.

O tribunal a quo julgou provada a matéria dos pontos números 5 e 6 e 9.

Em relação à matéria do ponto n.º 7, julgou provado que a autora não conseguiu evitar o embate.

Em relação à matéria do ponto n.º 8, julgou provado que embateu no canídeo com a parte dianteira do automóvel que conduzia.

Em relação à matéria dos pontos números 10 e 11, julgou provado que o automóvel conduzido pela autora colidiu contra o separador central, com as partes frontal e traseira, aos pontos quilométricos 33,635 e 33,545 da A14.

A recorrente pede se julgue não provada a matéria dos mencionados pontos da base instrutória.

Impugna-a com a seguinte fundamentação:

1. Pelas declarações da única testemunha presencial do acidente (a testemunha E...), pelo auto de ocorrência e pelas fotografias, o acidente não ocorreu pela forma descrita na sentença”.

2. A versão do acidente apresentada pela testemunha era incompatível com os danos no veículo, documentados no processo, pois o veículo não tinha danos no lado esquerdo e a testemunha declarou que o veículo da autora embateu no separador central no sentido em que ia, em paralelo, após o que começou a fazer piões.

3. O depoimento da testemunha era típico de quem o reconstrói mentalmente, contendo afirmações inverosímeis.

4. Não se podia dar como provado que a autora não conseguiu evitar o embate, pois não se sabia sequer se o canídeo embateu no veículo.

5. Não se podia dar provado que embateu com a frente, pois nem sequer se sabia que embateu.

6. Não se podia dar como provado se foi em virtude do embate no canídeo que perdeu oco controlo do automóvel, pois não se sabia se embateu sequer, como não se sabia quem embateu no canídeo, como não se sabia qual a causa do despiste e quando ocorreu o despiste.

Como se vê pela síntese acabada de fazer, a modificação da decisão de facto pretendida pela recorrente assenta essencialmente na desvalorização do depoimento prestado por E..., ou seja, na desvalorização do depoimento que foi decisivo, juntamente com a participação do acidente de viação, para a formação da convicção do tribunal a quo quanto à matéria de facto contestada pela recorrente.

Ouvido o depoimento desta testemunha, este tribunal não encontrou razões para o desvalorizar.

Antes de mais cabe dizer que este tribunal não tem nenhuma razão para duvidar da afirmação da testemunha de que circulava na A14, no mesmo sentido em que circulava a autora e que, na altura em que estava a ser ultrapassada por esta, apercebeu-se de que ela perdeu o controlo da viatura, fazendo piões, e que embateu no separador central.

Logo, se havia pessoa que estava em condições de esclarecer algumas das circunstâncias em que ocorreu o acidente era a testemunha E... . Os seus esclarecimentos tinham, no entanto, limitações. Em primeiro lugar, os acidentes de viação são factos que ocorrem em breves segundos e que não se deixam captar em toda a sua complexidade por aqueles que os presenciam. Em segundo lugar, o acidente em causa nos autos deu-se de noite, o que dificultou certamente a visão do que se passou. Em terceiro lugar, segundo disse a testemunha, quando se deu o acidente, ela estava a conduzir o seu veículo automóvel e a conversar com quem seguia consigo no veículo (uma amiga), o que nos leva a presumir que a atenção da testemunha não estava especialmente centrada na zona do separador central da auto-estrada.  

Por estas razões, este tribunal não considera verosímil que a testemunha se tenha apercebido, como declarou, da entrada do canídeo na faixa de rodagem por onde circulava a autora.

Dizendo a testemunha que o veículo da autora, quando se despistou circulava na via mais à esquerda e adiantado em relação ao seu veículo, o que é verosímil, à luz das regras da experiência comum, é que a atenção da testemunha para o que se passou tenha sido despertada ou pelo estrondo do embate do veículo da autora no cão ou pelos “piões” do veículo da autora, para utilizarmos a linguagem da testemunha para se referir à marcha descontrolada do veículo da autora.

Porém, a circunstância de não considerarmos verosímil que a testemunha tenha visto o cão a entrar na faixa de rodagem, não significa que não tenhamos ficado convencidos de que o veículo da autora embateu num cão que atravessou a faixa de rodagem, vindo do lado esquerdo, atento o sentido de marcha da autora, e que, em consequência do embate, perdeu o controlo do seu veículo e embateu no separador central. Na verdade ficámos convencidos de que tal ocorreu.

Além de dispormos do testemunho de E... que afirmou ter-se apercebido de um animal a ser projectado para a berma pelo veículo da autora, sabemos - através da participação do acidente de viação (fls. 31), dos testemunhos de F... (prima da autora que, chamado por esta, veio ao local pouco tempo após o acidente) e de G... (funcionário da C...., que também esteve no local pouco tempo depois do acidente) e das fotografias juntas a fls. 349 e 350 - que estava morto, na berma da auto-estrada, um cão com as vísceras expostas. Sabe-se ainda, através da participação do acidente de viação, que o animal estava caído muito próximo do local onde se podiam ver vestígios do primeiro embate do veículo da autora no separador central.     

Além disso, o militar da GNR que esteve no local pouco tempo após o acidente, que viu os vestígios deixados por ele e que ouviu a testemunha E..., “presumiu” que o animal se tenha atravessado na faixa de rodagem e que a condutora ao tentar desviar-se entrou em despiste, indo embater no separador central.

A propósito da trajectória desgovernada do veículo da autora e das partes do veículo que embateram no separador central, cabe dizer que, contrariamente ao que sustenta a recorrente, as declarações da testemunha E... não são incompatíveis com os danos do veículo documentados nos autos. Vejamos.

A recorrente vê a incompatibilidade no seguinte. A testemunha, ao descrever o acidente, declarou, além do mais, que “o veículo da autora foi embater no separador central, no sentido em que ia, em paralelo, após o que começou a fazer piões”. Ora - diz a recorrente – esta versão é incompatível com os danos do veículo, documentados no processo, porque o veículo não tem danos no lado esquerdo.       

Salvo o devido respeito, o sentido do depoimento da testemunha não foi o de que o veículo conduzido pela autora embateu com a sua parte lateral esquerda no separador central.

A testemunha mencionou a posição do veículo em “paralelo” no seguinte contexto.

Instada para dar uma imagem do que viu, respondeu: ”então bateu num animal, a seguir vira contra o separador central e a frente do carro vira contra o separador central e vai embatendo em pião contra o separador”.

Instado a precisar em que posição ia o carro quando bate no separador central, respondeu: “ia paralelo, portanto ia mais ou menos paralelo ao outro que ia deslocar para a direita, mas ia na vertical, não sei se posso dizer assim, ia a direito”.

A interpretação que este tribunal faz deste segmento do depoimento da testemunha é a seguinte. Ao dizer que o carro “ia em paralelo”, a testemunha não quis dizer que o veículo conduzido pela autora, depois de embater no animal que atravessou a auto-estrada, embateu com a parte lateral esquerda no separador. O que ela quis dizer foi que o carro da autora, quando embateu no cão “ia em paralelo” ao carro que ela (testemunha) conduzia. É por referência ao veículo conduzido pela própria testemunha que esta afirma que o carro da autora “ia em paralelo”.

Se dúvidas existissem quanto ao sentido do depoimento da testemunha, a propósito da parte do veículo da autora que primeiro embateu no separador, elas seriam desfeitas com a seguinte passagem da sua inquirição. Já na parte final do seu depoimento, instada para dizer qual a primeira parte do veículo que embateu no separador central, a testemunha respondeu que tinha sido “a frente”.

Deve dizer-se, por último, que há elementos nos autos que mencionam danos na parte lateral esquerda do veículo da autora. Referimo-nos ao documento junto de fls. 68, onde são representados danos na frente lateral esquerda do veículo.  

Em síntese, há uma pluralidade de indícios que convergem no seguinte sentido:

1. Que no dia 30 de Abril de 2007, cerca das 21 horas e 21 minutos, quando a autora circulava na auto-estrada no sentido Coimbra Figueira da Foz, um cão, vindo lado esquerdo, atento o sentido de marcha da autora, atravessou a faixa de rodagem da auto-estrada;

2. Que o veículo da autora não conseguiu evitar o embate no canídeo com a parte dianteira do automóvel que conduzia;

3. Que em consequência do embate, a autora perdeu o controlo do veículo e embateu no separador central, primeiro com a parte da frente e depois com a parte traseira, respectivamente aos quilómetros 33,635 e 33,545.

Do que não há indícios é de a autora ter travado ou de ter procurado desviar-se do animal. A GNR não assinalou na participação vestígios de travagem. A testemunha E..., instada para dizer se a condutora travou, buzinou ou se procurou desviar-se do animal, respondeu que não se tinha apercebido, que tinha sido tudo muito rápido. A testemunha resumiu o que viu dizendo: “o carro simplesmente bateu no cão, o que eu vejo é o cão a ser projectado para a berma, “vejo o cão a ser projectado e o carro a despistar-se”.

Pelo exposto, julga-se improcedente a impugnação da decisão de facto e consideram-se provados os seguintes factos discriminados na sentença:
1. No dia 30 de Abril de 2007, pelas 21:25 horas, a Autora circulava na Auto-Estrada A14, no sentido Coimbra/Figueira da Foz, ao volante do veículo automóvel, ligeiro de passageiros, da marca “TOYOTA”, modelo “MR2”, com a matrícula (...)UH.
2. No ponto quilométrico 33,640 da referida Auto-Estrada A14, a mesma desenvolve-se em quatro faixas de rodagem, duas no sentido Coimbra/Figueira da Foz e outras duas no sentido Figueira da Foz/Coimbra.
3. No dia 10 de Maio de 2007, a Autora remeteu à Ré, via fax e via postal registada com aviso de recepção, a seguinte comunicação escrita: «Exmºs Senhores, Venho pelo presente meio interpelar V. Exªs no sentido da integral assunção de responsabilidade pela C.... no acidente de que fui vítima no passado dia 30 de Abril de 2007. Com efeito, no indicado dia, cerca das 21.h30, quando circulava na Auto-Estrada A14, no sentido Coimbra para a Figueira da Foz, ao km 34 fui surpreendida por um cão no meio das faixas de rodagem que, não obstante ter tentado evitar, inevitavelmente atropelei. O impacto do referido animal provocou o meu despiste e, consequentemente, sucessivos e violentos embates do meu carro contra o separador central da auto-estrada. O referido acidente além de ter danificado severamente o meu veículo automóvel de marca Toyota, modelo MR2, com a matrícula (...)UH, que não pode sequer circular, mais determinou que, em virtude das lesões físicas que sofri, fosse conduzida aos Hospitais da Universidade de Coimbra, pelo INEM. Além da medicação que me foi indicada para as dores, continuo hoje condicionada a utilizar colar cervical até que, de forma definitiva, se avaliem os danos físicos que sofri em virtude de dito acidente.(…) Desta feita, e desde já, solicito que me facultem a reprodução dos dispositivos de videovigilância que seguramente gravaram o acidente de que fui vítima. Mais solicito que procedam, de imediato, a uma avaliação dos danos materiais que sofri, sendo certo que a minha viatura se encontra aparcada nas instalações da Salvador Caetano Porto, sitas à Estrada da Circunvalação no Porto. E por fim, solicito ainda que me informem dos elementos que necessitam para a formal e integral assunção de responsabilidade por parte da C...., uma vez que é para mim absolutamente urgente a resolução desta situação, porquanto, enquanto profissional liberal – advogada – necessito de dispor do meio de transporte, do qual, na sequência do acidente, fiquei privada, o que me tem provocado sérios prejuízos, quer pessoais, quer ainda profissionais. Na expectativa da melhor atenção de V. Exªs, e de uma breve resolução da situação que vivencio na sequência do acidente acima descrito, com vista a minorar os danos sofridos, subscrevo-me, A....», conforme documento junto a fls. 57 a 59 dos autos, que aqui se dá por integralmente reproduzido.
4. Por carta, datada de 4 de Junho de 2007, a ré respondeu à autora, declinando qualquer responsabilidade na ocorrência, conforme documento junto a fls. 62 dos autos, que aqui se dá por integralmente reproduzido.
5. Pela Apólice n.º 87/38.299, a ré transferiu para a Chamada “Companhia de Seguros D..., S.A.”, até ao montante de €748.195,50, a responsabilidade civil pelas indemnizações que possam ser-lhe exigidas pelos prejuízos e/ou danos causados terceiros na sua qualidade de concessionária da exploração, conservação e manutenção da Auto-Estrada A14.
6. Na data referida em 1), o automóvel aí descrito pertencia à Autora.
7. Na data e local referidos em 1) e 2), a autora circulava na faixa da esquerda, atento o seu sentido de marcha.
8. Porquanto se encontrava em manobra de ultrapassagem a um outro veículo.
9. Era de noite e havia pouco tráfego.
10. De repente, a Autora foi surpreendida por um canídeo que subitamente invadiu a faixa de rodagem onde seguia;
11. Vindo do lado esquerdo (do lado do separador central), atento o sentido de marcha da Autora;
12. Pelo que não conseguiu evitar o embate com a parte dianteira do automóvel que conduzia.
13. Em virtude do embate no canídeo, a Autora perdeu o controlo do automóvel;
14. Tendo vindo o automóvel a colidir contra o separador central, com as partes frontal e traseira do automóvel, aos pontos quilométricos 33,635km e 33,545km da auto-estrada A14;
15. Local onde se imobilizou e de onde, mais tarde, foi rebocado.
16. Nas imediações do local do acidente, nomeadamente aos quilómetros 33 e 34, a 02-06-2007, a vedação Norte da auto-estrada A14 apresentava no último reduto da rede [que é o arame farpado (confrontar fotografias de fls.47 a 49)] uma variação de cota relativamente ao terreno natural; e havia outros pontos da vedação em que os remates tinham aberturas, nomeadamente nos pontos mais baixos das caleiras pluviais e das valetas de recolha de águas pluviais do viaduto, conforme fotografias de fls.52 a 54; espaços pelos quais era possível a entrada de animais, nomeadamente canídeos, para a via da auto-estrada A14.
17. A via, no local referido em 1), desenvolve-se em recta.
18. A Ré efectua uma vigilância constante das Auto-Estradas que tem concessionadas através de patrulhas;
19. As quais fiscalizam as vedações das vias e as reparam quando necessário.
20. Na data referida em 1), uma patrulha da Ré passou no local do sinistro e no mesmo sentido de marcha da Autora;
21. Não tendo detectado a presença de qualquer animal, nem deficiência da vedação.
22. Também não foi comunicada à Ré qualquer uma destas circunstâncias pela GNR-BT, a qual patrulha igualmente a via permanentemente, nem por qualquer outro meio tais circunstâncias chegaram ao conhecimento da ré.
23. Ao longo da A14, de ambos os lados da auto-estrada, existem redes de vedação.
24. O automóvel UH ficou com o pára-choques frontal amolgado, bem como o capot e a chapa da matrícula.
25. Ficou também com as grelhas dianteiras partidas, bem como os faróis e farolins, os guarda-lamas da frente, direito e esquerdo, as cavas de uma roda da frente, os apoios dos radiadores, dos farolins, do escape, da buzina e de várias tubagens, as ilhargas direita e esquerda os ventiladores, a protecção do motor, o reservatório do limpa-vidros e as longarinas.
26. A reparação de tais danos foi orçada em € 14.822,35 (catorze mil oitocentos e vinte e dois euros e trinta e cinco cêntimos), sendo que o valor venal do veículo era, à data, de €12.500,00 (doze mil e quinhentos euros).
27. E o valor dos salvados era, à data, de € 2.000,00 (dois mil euros).
28. Em consequência directa e adequada do acidente, a Autora sofreu lesões que se traduziram em dores físicas, pelo que foi transportada por ambulância do INEM para os Hospitais da Universidade de Coimbra, em colete imobilizador da coluna, onde recebeu tratamento hospitalar, pelo qual pagou a quantia de €12,15 (doze euros e quinze cêntimos).
29. A Autora despendeu € 5,79 (cinco euros e setenta e nove cêntimos) na aquisição de “Adalgur N-comprimidos”.
30. A 07 de Maio de 2007, teve consulta de ortopedia para acompanhamento da evolução das lesões.
31. Despendeu, então, € 23,10 (vinte e três euros e dez cêntimos).
32. E solicitou a realização de uma peritagem ao veículo sinistrado, no que gastou € 60,62 (sessenta euros e sessenta e dois cêntimos).
33. Solicitou também a realização de um relatório técnico relativo à auto-estrada, no que gastou € 150,00 (cento e cinquenta euros).
34. E irá despender um montante ainda não liquidado correspondente aos honorários devidos pela representação em juízo por advogado.
35. A Autora, em Setembro de 2004, contraiu um empréstimo pessoal, com o n.º 68287882/VCR93936, no montante de €16.000,00 (dezasseis mil euros) para aquisição do automóvel sinistrado pelo preço total de €26.000,00 (vinte e seis mil euros).
36. A importância referida em 35) foi paga pela Autora em 60 prestações mensais, iguais e sucessivas de € 313,06 cada, sendo que, no final de tal prazo, foi-lhe entregue a livrança que a Autora havia assinado como garantia de cumprimento.
37. A circunstância de ter ficado privada do uso do automóvel sinistrado causou à Autora aborrecimentos e transtornos.
38. A Autora utilizava o automóvel sinistrado nas suas deslocações diárias, designadamente profissionais [no exercício da advocacia (segmento provado no confronto entre o despacho de fls.212 e o documento de fls.219)].
39. Apenas em Fevereiro de 2008, a Autora adquiriu outro automóvel.
40. A autora sofreu um enorme pânico e sobressalto com o embate.
41. Desde o acidente, e durante um período de tempo não concretamente apurado, a Autora evitou deslocar-se de automóvel, fosse como condutora, fosse como passageira, e passou a sentir medo e ansiedade quando conduzia automóveis.
42. Desde o acidente, e durante um período de tempo não concretamente apurado, a Autora sentiu dores físicas e usou um colar cervical.


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Fixados os factos, passemos à apreciação dos fundamentos do recurso.

A recorrente começou por contestar o segmento da decisão que a julgou responsável - solidariamente com a ré C.... - pelos danos emergentes do acidente, com fundamento no contrato de seguro titulado pela apólice n.º87/38.299, celebrado entre ela, recorrente, e a ré C.... e através do qual garantiu, até ao montante de € 748 195,50, a responsabilidade civil pelos danos que viessem a ser exigidos à ré C.... pelos prejuízos e/ou danos causados a terceiros na sua qualidade de concessionária da exploração, conservação e manutenção da A14.

Contra esta responsabilização, ergue a recorrente a seguinte argumentação. O contrato de seguro invocado garante apenas a responsabilidade civil extracontratual da ré C..... Uma vez que a sentença condenou a ré C.... com fundamento em responsabilidade civil contratual, a chamada não responde pelos danos.

Salvo o devido respeito, não assiste razão à recorrente.

É certo - como alega a recorrente - que, nos termos do artigo 2º, n.º 1, das condições gerais do contrato de seguro celebrado entre a ora recorrente e a ré C...., o contrato tinha por objecto a garantia da responsabilidade civil extracontratual que, ao abrigo da lei civil, fosse imputável à segurada, na qualidade ou no exercício da actividade expressamente referidas nas respectivas condições especiais e particulares.

É igualmente certo que a sentença recorrida considerou que a responsabilidade da ré C.... pelos danos emergentes do acidente de viação tinha natureza contratual, como o atesta o seguinte trecho dela: “em conclusão, não foi ilidida a presunção que onera a ré de ilícito e culposo incumprimento das suas obrigações para garantir a segurança da via, pelo que se encontram reunidos todos os pressupostos da obrigação de indemnizar com base em responsabilidade civil contratual”.

Sucede que o que é decisivo para se saber se o seguro garante a obrigação de indemnização que impende sobre a ré C.... não é a qualificação que a sentença tenha dado à responsabilidade civil da ré C..... O que é decisivo é o conteúdo do contrato celebrado entre a chamada, enquanto seguradora, e a C...., enquanto tomadora do seguro e segurada. Conteúdo que é definido não apenas pelas condições gerais da apólice, mas também pelas condições particulares.

E assim o que interessa apurar é se, à luz do que foi estipulado pelas partes, o contrato de seguro garante o pagamento da indemnização em casos como o dos autos, ou seja, nos casos em que a ré é chamada a responder, por danos patrimoniais e não patrimoniais, emergentes de acidente rodoviário na A14 (despiste de um veículo automóvel), causado pelo atravessamento de um animal (cão) na faixa de rodagem da auto-estrada.

Para a resposta a esta questão interessa, de modo especial, o ponto n.º 2.1 da condição particular, relativo ao âmbito da cobertura do contrato de seguro, que foi definido nos seguintes termos: “De acordo com o disposto nas condições gerais de responsabilidade civil e nos termos definidos na presente condição particular, a seguradora garante o pagamento das indemnizações emergentes, única e exclusivamente, de responsabilidade civil que ao abrigo da lei sejam exigíveis ao segurado, pelos danos patrimoniais e/ou não patrimoniais, resultantes de lesões materiais e/ou corporais, causados a terceiros, na sua qualidade de concessionário da exploração, conservação e manutenção da rede de auto-estradas descritas em anexo, compreendendo os respectivos trabalhos de conservação e manutenção, assim como os danos decorrentes de incêndio e/ou explosão e afundamento de terrenos”.

A indemnização devida pela ré está nas condições definidas na cláusula que se acaba de transcrever. Com efeito, trata-se de indemnização que teve como fonte a responsabilidade civil da ré C..... Trata-se de indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais que resultaram de lesões materiais e corporais causadas a terceiros (a autora). E estamos perante danos que o tribunal considerou que foram causados pela ré C.... na sua qualidade de concessionária da exploração da A14.

Pelo exposto, improcede o primeiro fundamento do recurso.

O segundo fundamento do recurso é constituído pela alegação, em síntese, de que a presunção que recai sobre a C.... decorrente da Lei n.º 24/2007, é de incumprimento de uma obrigação de segurança, que será ilidida se provar que cumpriu tal obrigação, obviamente enquanto obrigação possível, e pela alegação de que exigir-se à C.... que prove, em concreto, como o canídeo se introduziu na auto-estrada é exigir prova do contrário, que é o correlato da responsabilidade pelo risco, que a Lei n.º 24/2007 não consagrou.

Esta alegação visa de modo especial os seguintes segmentos da sentença:

1. O segmento da sentença que interpretou o artigo 12º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 24/2007, de 18 de Julho, no sentido de cabia à ré demonstrar que nas “concretas condições de tempo e lugar em que aconteceu o acidente as vedações da auto-estrada não permitiam a entrada do canídeo para dentro das faixas de rodagem e que não teria sido possível a sua entrada pelos nós de acesso à auto-estrada, demonstrando (directa ou indirectamente) que a presença do canídeo no interior da zona vedada resulta de um certo e determinado evento imputável a terceira pessoa e pelo qual não é responsável”;

2. O segmento que afirmou que não bastava, para considerar que a ré cumpriu as suas obrigações para garantir a segurança da via e que o evento danoso ocorrido lhe não era imputável, a prova de que a ré e a GNR efectuaram no dia do acidente patrulhamentos rodoviários do local sem que fosse detectada qualquer anomalia ou a presença de qualquer animal.

Como se vê, a ré recorrente não contestou a aplicação, pela sentença, do artigo 12º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 24/2007, de 18 de Julho, na definição da responsabilidade da C.... pelo acidente de viação em causa nos presentes autos, apesar deste diploma ter entrada em vigor após a ocorrência do acidente.

Segundo esta norma, nas auto-estradas, com ou sem obras em curso, e em caso de acidente rodoviário, com consequências danosas para pessoas e bens, o ónus da prova do cumprimento das obrigações de segurança cabe à concessionária, desde que a respectiva causa diga respeito a atravessamento de animais.

Esta aplicação também não suscita quaisquer reparos a este tribunal, pois segue-se, a este propósito, a jurisprudência do STJ que tem afirmado de modo constante que esta norma, designadamente na parte em que dispõe sobre o ónus da prova nele mencionado, tem natureza interpretativa e que, atendendo a esta natureza e ao disposto no artigo 13º, n.º 1, do Código Civil, é aplicável na resolução das questões de responsabilidade civil das concessionárias das auto-estradas por acidentes ocorridos nestas vias antes da sua entrada em vigor, quando a causa do acidente rodoviário seja alguma das mencionadas nas alíneas a), b) e c), do n.º 1 do artigo 12º (a título de exemplo citam-se o acórdão do STJ de 15-11-2011, proferido no processo n.º 1633/05.4TBALQ, o acórdão do STJ de 21 de Março de 2012, proferido no processo n.º6123/03.7TBVFR e o acórdão do STJ de 14-03-2013, proferido no processo n.º 201/06.8TBFAL, todos publicados no sítio www.dgsi.pt).

O que a ré contestou foi a interpretação que a sentença fez do artigo 12º, n.º 1, alínea b), na parte em que dispõe que “o ónus da prova do cumprimento das obrigações de segurança cabe à concessionária”. Segundo essa interpretação, quando o acidente seja causado pelo atravessamento de animais, a concessionária só verá a sua responsabilidade excluída se demonstrar (directa ou indirectamente) que a presença no interior da zona vedada resulta de um certo e determinado evento imputável a terceira pessoa e pelo qual não é responsável”.

A recorrente discorda. Diz que, à luz da norma acima citada, a responsabilidade da concessionária será excluída se demonstrar que cumpriu as obrigações de segurança que eram possíveis, designadamente se provar que fez patrulhamentos regulares ou que agiu imediatamente e em tempo razoável logo que for informada de algum dos factos previstos nas alíneas do artigo 12º (que são, além do atravessamento do animal, objectos arremessados para a via ou existentes nas faixas de rodagem e líquidos na via, quando não resultantes de condições climatéricas anormais). Objectou ainda à interpretação feita pela sentença recorrida de que, exigir-se à C.... que prove, em concreto, como o canídeo se introduziu na auto-estrada, é exigir prova do contrário e transformar a responsabilidade civil da C.... em responsabilidade objectiva, o que a Lei n.º 24/2007 não consagrou.

Entrando na apreciação da alegação da recorrente, cabe dizer que ela tem contra si várias decisões judiciais que entenderam que o cumprimento do ónus da prova imposto à concessionária – quando estivesse em causa acidente rodoviário causado pelo atravessamento de animais - exigia que esta demonstrasse o modo concreto como o animal se introduziu na auto-estrada e que este modo lhe não era imputável. A título de exemplo citam-se o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 18 de Setembro de 2012, proferido no processo n.º 1509/11.6TBFIG, e o acórdão do Tribunal da mesma Relação proferido em 16 de Abril de 2013, proferido no processo n.º1058/10.0TBVNO, ambos publicados no sítio www.dgsi.pt.

No primeiro dos acórdãos citados escreveu-se o seguinte a propósito do cumprimento do ónus da prova: “Daí que, ao estabelecer-se um ónus da prova de cumprimento, o que efectivamente se procurou foi onerar a entidade vinculada à manutenção das condições de segurança da auto-estrada com o encargo de provar a verificação de um evento extraordinário, não susceptível de ser por si controlado, sem embargo do normal funcionamento dos meios de vigilância e monitorização do tráfego que lhe estão exigidos. Não é suficiente a prova do cumprimento de procedimentos genéricos de inspecção e vistoria para que se possa ter por acatada a obrigação de manutenção das condições de segurança da via. É, pois, de considerar que nem o desconhecimento da causa do obstáculo na via, nem a genérica demonstração de uma actuação diligente, podem ter o condão de libertar a concessionária da sua responsabilidade. Impõe-se que a concessionária alegue e demonstre o concreto evento que foi causal do acidente e dos danos, e ainda que esse evento, pela sua natureza ou outro motivo, designadamente por se tratar de caso de força maior, de terceiro, ou de fonte externa que ela não pôde controlar ou evitar em tempo oportuno, isto é, a tempo do dano se consumar, não implicou qualquer inobservância das regras de segurança”.

No mesmo sentido decidiu o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 18 de Dezembro de 2012, proferido no processo n.º6246/10.6TBBRG, publicado na Colectânea de Jurisprudência Ano XXXXVII, Tomo V/2102, páginas 271 a 278, mas agora num caso em que estava em causa um acidente provocado por uma pedra, provindo de um talude existente na zona da auto-estrada. Esta decisão interpretou o segmento do artigo 12º, n.º 1, relativo ao ónus da prova no sentido de que a concessionária só afastaria a presunção de que não cumpriu as obrigações de segurança “se demonstrasse que a existência e interferência da pedra na via, com colisão no veículo, não lhe era, de todo, imputável, sendo atribuível a outrem ou a evento concreto, alheio ao mundo da sua imputabilidade moral que lhe não deixou realizar o cumprimento. Mais se escreveu que não bastava para afastar a sua responsabilidade, a prova de que, no “mesmo dia, efectuou vários patrulhamentos passando pelo local do acidente a várias horas”.

Como é sabido, a interpretação da lei não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada (n.º 1 do artigo 9º do Código Civil).

Apesar de a interpretação não se cingir a letra da lei, a verdade é que a letra da lei é simultaneamente o ponto de partida da sua interpretação e o seu limite inultrapassável, no sentido de que não pode ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso (n.º 2 do artigo 9º do Código Civil).

Começando a interpretação do artigo 12º, n.º 1, da Lei n.º 24/2007 (na parte em que dispõe sobre o ónus da prova a cargo da concessionária) temos o seguinte.

Em primeiro lugar, o que a letra da lei diz é que a concessionária tem o ónus de provar o cumprimento das obrigações de segurança. A letra da lei não diz, quando o acidente rodoviário é causado pelo atravessamento de animais, designadamente por cães, que a concessionária tem o ónus de provar, para usarmos os termos da sentença, “a concreta causa que justifica a presença do canídeo” na auto-estrada.

Em segundo lugar, o pensamento legislativo que esteve na base da imposição às concessionárias do ónus da prova do cumprimento das obrigações de segurança foi o seguinte. Uma vez que são as concessionárias das auto-estradas que estão obrigadas a garantir a segurança da circulação nas auto-estradas e a vigiar as condições de circulação (é o que resulta da Base XXXIII, n.º 2 e da Base XXXVII, anexas ao contrato de concessão celebrado com a C.... aprovado pelo Decreto-Lei n.º294/97, de 24-10), em caso de acidente rodoviário, causado por algum dos factos previstos nas alíneas a), b) e c), do n.º 1 do artigo 12º, presume-se que tal sucedeu por a concessionária não ter cumprido as suas obrigações de segurança.

Segue-se do exposto que o sentido do artigo 12º, n.º 1, em matéria de ónus da prova é o seguinte. Estabelecido que a causa do acidente foi o atravessamento da via por animais, presume-se que a concessionária não cumpriu as obrigações de segurança adequadas a evitar o atravessamento da via pelos animais. E assim sendo, caso a concessionária queira ilidir esta presunção, terá que alegar e provar não só as medidas de segurança específicas que tomou para evitar a entrada dos animais na via, mas também as medidas de segurança que tomou adequadas para detectar a presença de animais na via. Como se escreveu no acórdão do STJ proferido em 14 de Março de 2013 acima citado, exige-se à concessionária que demonstre os “meios humanos e técnicos posto ao serviço das referidas obrigações de segurança, o modo como foram concretamente aplicados, a previsibilidade dos fenómenos causadores de risco para a circulação, as cautelas adoptadas tendo em conta a maior ou menor previsibilidade ou os alertas que tenham sido dados”.

Dando-se ao artigo 12º, n.º 1, este sentido é bom de ver que não cumpre o ónus da prova que a lei lhe impõe a concessionária que se limita a alegar e a provar a adopção de medidas gerais de segurança; isto é, de medidas que não tiveram como fim específico prevenir a entrada de animais na via ou a detectar a presença nela depois da entrada deles.

Por esta razão não vale contra a sentença a alegação da recorrente segundo a qual bastava a prova de que a ré fez patrulhamentos regulares para se considerar cumprido o ónus de prova que impendia sobre si.

É que o patrulhamento da auto-estrada (quer pela ré quer pela GNR), embora seja uma medida adequada para detectar a presença de animais na via, não é, no entanto, uma medida adequada para impedir a entrada de animais na auto-estrada.

Ora, em casos como o dos autos em que o acidente é provocado pelo atravessamento da via por um animal, mas em que não se sabe nem como nem quando é que o animal se introduziu na via da auto-estrada, as medidas de segurança que importava demonstrar eram as que fossem adequadas a impedir a entrada de animais na auto-estrada.

Neste capítulo, a autora limitou-se a alegar que ao longo da A14, de ambos os lados da auto-estrada, existem redes de vedação e que as patrulhas fiscalizam as vedações e reparam-nas quando necessário e que na data em que ocorreu o acidente uma patrulha da ré passou pelo local e não detectou deficiência da vedação.

Ainda que se presumisse, com base nestes factos, que era improvável a entrada do animal através das redes de vedação, já não se poderia presumir que também era improvável que a entrada do animal na auto-estrada se tivesse verificado por um dos respectivos nós de acesso, designadamente por aquele que se situasse mais próximo do local do acidente. Ou seja, a matéria de facto apurada não afasta a possibilidade de o animal se ter introduzido na auto-estrada devido à quebra de regras de segurança imputáveis à concessionária.

Ora, quando a matéria de facto não afaste, com forte probabilidade, a hipótese de o animal ter entrado na auto-estrada devido a quebra de regras de segurança imputáveis à concessionária, é de concluir que esta última não cumpriu o ónus de prova que lhe é imposto pelo n.º 1 do artigo 12º da Lei n.º 24/2007. É precisamente o que se passou no caso.

Pelo exposto, improcede o segundo fundamento do recurso.


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Decisão

Julga-se improcedente o recurso e, em consequência, mantém-se a decisão recorrida.


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As custas serão suportadas pela recorrente

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Emídio Francisco Santos (Relator)

Catarina Gonçalves

Maria Domingas Simões