Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
935/19.7T8PBL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FERREIRA LOPES
Descritores: PROCESSO DE JUSTIFICAÇÃO REGISTRAL
DESCRIÇÃO DE UM PRÉDIO DESANEXADO DE OUTRO
Data do Acordão: 01/21/2020
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA – J- L. CÍVEL DE POMBAL – JUIZ 1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMAÇÃO
Legislação Nacional: ARTºS 80º, Nº 2, 116º E 117º-E DO C. REG. PREDIAL.
Sumário: I -A descrição de um novo prédio, que resulte da desanexação de um outro, deve ser anotada na ficha deste último (art. 117º-E do CRP);

II - Pese embora a falta de rigor dos elementos da descrição, que não beneficiam da presunção de verdade material do art. 7º, não pode ter seguimento o processo de justificação registal de um novo prédio para o qual se indica uma área superior à do “prédio mãe”, sob pena deste ficar despojado de área;

III – Haverá que previamente ser rectificada a área do “prédio mãe”, não sendo a escritura de justificação registal o meio próprio para o efeito.

Decisão Texto Integral:

Acordam na 1ª secção do Tribunal da Relação de Coimbra


               J... e mulher M... deduziram na Conservatória do Registo Predial de ..., procedimento especial de justificação, nos termos do art. 116º e sgs. do Código do Registo Predial, pedindo que lhes seja reconhecido o direito de propriedade, com fundamento na usucapião, sobre o prédio rústico composto de pinhal e mato, com a área de 3120 m2, situado em ..., fazendo parte da inscrição  matricial rústica com o art. ... e da descrição nº ..., do qual se autonomizou.

               A Sr.ª Conservadora indeferiu tal pretensão, por haver previamente que se proceder à rectificação das áreas, e por o pedido não ter sido deduzido pelos dois outros titulares inscritos.

               Os Requerentes recorreram desta decisão para o Sr. Juiz de Pombal, que confirmou a decisão da Sr.ª Conservadora, negando provimento à impugnação judicial.

               É desta decisão que vem interposto o presente recurso, no qual os Recorrentes formulam as seguintes conclusões:

               1ª. A Conservadora notificou todos os titulares inscritos, sobre a descrição ... (objeto da justificação), nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 117º-G do C. Reg. Predial.

               2ª.  O fundamento da sentença recorrida para indeferir o recurso é diferente do fundamento do despacho da Conservadora pois, enquanto aqui se entendeu que a falta de intervenção dos titulares inscritos deve ser sanada pela “via judicial”, uma questão de competência material, ali entendeu-se que os justificantes deveriam previamente proceder à retificação da área da descrição, uma questão de técnica registral.

               3ª.  No despacho da Conservadora parte-se da divergência entre a área que consta da descrição ... e a que consta do requerimento inicial, para se decidir que a questão teria de ser decidida pela “via judicial”, enquanto que na sentença recorrida se parte das inscrições (à descrição), para se exigir a prévia intervenção dos respetivos titulares na retificação da área previamente e fora do âmbito do processo de justificação.

               4ª. Embora em ambas as decisões se tenha partido da presunção do artigo 7º do Cod Reg Predial, para se formularem as respetivas diversas conclusões, aquela presunção não tem efeitos quanto às áreas e limites dos prédios, ao contrário do que pretende a Conservadora, nem exige previamente a ilisão de tal presunção, ao contrário do que pretende o Juiz.

               5ª. O Dec Lei nº 273/2001, ao dar nova redação aos artigos 116º e seguintes, atribuiu competência material às Conservatórias do Registo Predial para a justificação de direitos reais e regulou os respetivos processos especiais de justificação, mas não alterou a regulamentação (anterior) sobre a retificação dos registos, no caso concreto, a retificação de área.

               6ª.  O artigo 38º do CRPredial regula (apenas) a técnica de alteração de área de registos já efetuados, quando requerida fora do âmbito de qualquer processo “especial” de justificação pelos titulares as titulares inscritos, pressupondo serem os titulares do direito real sobre o prédio registado.

               7ª.  A norma do artigo 38º, que regula a intervenção dos titulares inscritos ou a sua notificação judicial nos (ordinários) pedidos apresentados para alteração de registos existentes a favor daqueles, não tem aplicabilidade ao processo especial de justificação, uma vez que aqui a intervenção dos interessados está (de forma especial e sistematizada) regulada pelo artigo 117º-G.

               8ª. A divergência de regulamentação justifica-se por a produção da prova no processo especial de justificação (artigos 117º-C e 117º-H, nº 3)  constituir a segurança do controlo da correspondência entre a realidade do direito a reconhecer e o correspondente registo a efetuar posteriormente, o que não existe na instrução de um simples pedido de alteração do registo (área, descrição ou titulares inscritos).

               9ª. O disposto no artigo 28º, nº 3º do CRPredial diz apenas respeito à harmonização entre os títulos respeitantes a factos sujeitos e a matriz predial e não à harmonização entre os títulos e a descrição predial, coisas bem diversas tal como resulta da própria letra do citado normativo, ao contrário do entende o Juiz.

               10ª. Muito menos justificação teria a aplicabilidade à harmonização entre a constituição de títulos por usucapião, por um lado, e as matrizes e as descrições prediais, por outro lado.

                11ª. É, pois, no processo de justificação que, mediante a prova que for feita, se ilide ou não a presunção do artigo 7º e se procede em conformidade com o direito reconhecido à retificação da área.

               12ª. Com as notificações de todos os titulares inscritos, efetuada nos termos do disposto no artigo 117º-G do Código do Registo Predial, ficou garantida a defesa dos seus direitos decorrentes da presunção derivada do artigo 7º do Cod Reg Predial.

               13ª. A dificuldade da Conservadora, em obter área suficiente a partir do “prédio mãe” para abrir a nova descrição do prédio objeto da justificação, terá de ser resolvida no âmbito do processo de justificação através da prova dos factos alegados quanto à mesma área, incluindo a prova documental de levantamento topográfico, nos termos do disposto artigo 28º-C, nº 2, al b), subal. i), CRP.

               14ª. Se a alteração da área “mãe” ocorresse previamente e fora do âmbito do processo, estar-se-ia a alterar um registo com vista a uma posterior justificação que poderia ser julgada improcedente, criando-se uma situação de facto e direito absurda.

               15ª. Exigir a assinatura (voluntária) de todos os interessados no levantamento e ou em pedido de alteração do registo seria uma forma de impedir os requerentes de exercerem os seus direitos.

               16ª.  Essa interpretação da lei levaria à negação do direito de acesso ao direito e tutela jurisdicional efetiva e do direito à propriedade privada garantidos pelos artigos, respetivamente 20º e 62º da Const. Rep. e 47º e 17º da Carta os Direitos Fundamentais da União Europeia.

               17ª. Sendo a usucapião uma forma de aquisição originária do direito de propriedade pela posse, com determinadas características, durante um certo período de tempo (artigo 1287º do CC), o direito real do adquirente não depende do direito do anterior proprietário e pode existir contra ou apesar dele.

               18ª.  Pelo que os titulares inscritos, que não sejam titulares de direitos reais sobre o prédio mãe, não têm interesse nem legitimidade para intervirem na retificação de área sobre prédio alheio.

               19ª.  A deficiente interpretação do instituto da usucapião, como forma originária de aquisição de direitos reais, e a dificuldade de aplicar a técnica registral não pode impedir o funcionamento do processo especial de usucapião, como forma de reconhecimento daqueles direitos.

               20ª.  Motivos porque o recurso deve ser julgado procedente revogando-se a decisão recorrida e ordenando-se o prosseguimento do processo na Conservatória do Registo Predial.

               Contra alegou o Ministério Público pugnando pela improcedência do recurso.

               Fundamentação de facto:

               1. A sentença recorrida deu como provados os seguintes factos:

                1. Encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º ... um prédio rústico sito em ..., composto por terra de cultura com oliveiras, fruteiras e tanchas, com a área total de 2990 m2, inscrito na respectiva matriz sob o artigo ..., com a área de 3640 m2.

               2. A aquisição deste prédio encontra-se registada a favor dos impugnantes C... e J..., na proporção de 4/7, mediante a respectiva ap. 2 de 1983/03/01, por “compra” a M...

               3. A aquisição deste prédio encontra-se também registada a favor de L..., na proporção de 1/7, mediante a respectiva ap. 2812, de 2013/01/04, por “compra” a M...

               4. A aquisição deste prédio encontra-se ainda registada a favor de L..., na proporção de 1/7, mediante a respectiva ap. 300, de 2014/10/30, por “partilha extrajudicial” por óbito de J...

               5. O presente processo iniciou-se com o requerimento de fls. 2 a 5 dos autos (aqui dado por reproduzido), apresentado pelos impugnantes C... e J... na Conservatória do Registo Predial de ..., ali tendo sido pedido “o reconhecimento de que os requerentes (…) são proprietários e possuidores do prédio rústico composto de pinhal e mato, com a área de 3120 m2, situado em (…), fazendo parte da inscrição matricial rústica com o artigo número ... e da descrição predial da Conservatória do Registo Predial de ... com o número ... da freguesia de ..., e que adquiriram tal prédio por usucapião e de que o mesmo se autonomizou do inscrito na matriz predial rústica da freguesia de ... sob o artigo número ... e descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º ... da freguesia de ..., constituindo prédios distintos” e que “se proceda ao registo da aquisição a favor dos requerentes”.

               O direito.

               Constitui objecto do recurso o despacho do Sr. Juiz do Juízo Cível de Pombal que confirmou a decisão da Sr.ª Conservadora do Registo Predial de Pombal que indeferiu o pedido que formularam no âmbito de um processo especial de justificação nos termos do art. 116º do CRP, para serem reconhecidos como proprietários de um prédio rústico, que adquiriram por usucapião.

               Contrariamente ao que alegam, foram idênticos os fundamentos das decisões do Sr. Juiz e da Sr.ª Conservadora, a saber: a necessidade de previamente se proceder à rectificação da área do “prédio mãe”, do qual se autonomizou o prédio que pretendem justificar, por a área que consta da descrição daquele ser inferior à do prédio autonomizado.

               A decisão recorrida é de confirmar.

               As razões são no essencial, as seguintes:

               Alegam os Recorrentes que se constituiu um novo prédio a partir da descrição nº ... É esse novo prédio que dizem ter adquirido por usucapião.

               No registo predial o “prédio mãe, tem a área de 2990 m2, enquanto a área do novo prédio será de 3120 m2.

               Nos termos do nº 2 do art. 80º do CRP e 117º-E, nº 2,  se a descrição resultar de desanexação de outro prédio, deve ser feita a anotação da desanexação na fixa deste último.

               Se é certo, como alegam os Recorrentes, que a presunção do art. 7º do CRP não se estende aos elementos descritivos, como a área (Ac. STJ de 23.09.2004, CJ AcSTJ, 3º, pag. 23), não é menos certo que a área é um dos elementos que deve constar da descrição do prédio (art. 82º).

               Ora, a proceder o pedido os Recorrentes teríamos que o “prédio mãe” ficaria sem área, pois que o novo prédio que se autonomizou daquele teria uma área superior.

               Tanto basta para confirmar a necessidade de prévia rectificação da área do prédio mãe, não tendo, salvo o devido respeito,  fundamento legal a afirmação dos Recorrente que é no processo de justificação que se deve proceder à rectificação da área do prédio mãe (cf. Ac. do STJ de 11.11.2003, CJ, AcSTJ, III, pag. 141)

               Entendimento este que não representa qualquer negação do direito à tutela judicial, ou se ofende o direito à propriedade privada, como é evidente.

               Termos em que improcedem na totalidade as conclusões dos Recorrentes.

               Decisão.

               Pelo exposto, nega-se provimento ao recurso e confirma-se a decisão recorrida, com custas pelos Recorrentes.

                                                                                                         Coimbra, 21.01.2020

                                                                                                         (Ferreira Lopes)

                                                                                                         (Freitas Neto)

                                                                                                         (Carlos Barreira)