Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1176/16.0PBCBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: OLGA MAURÍCIO
Descritores: PROVA PRODUZIDA EM AUDIÊNCIA
CRIME DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
REQUISITOS
Data do Acordão: 11/22/2017
Votação: MAIORIA
Tribunal Recurso: COIMBRA (JL CRIMINAL – J1)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 125.º E 355.º DO CPP; ART. 152.º DO CP
Sumário: I - A norma do art. 355.º, n.ºs 1 e 2, do CPP, não exige que todas as provas sejam produzidas e/ou reproduzidas em audiência, pois os documentos que estejam nos autos consideram-se examinados e produzidos em audiência, independentemente de aí terem sido lidos, porque estando eles no processo todos os intervenientes têm acesso aos mesmos e têm, portanto, oportunidade de os analisar, por um lado, e contraditar, nomeadamente em julgamento, por outro.

II - O que a norma determina é que não valem para a formação da convicção do tribunal as provas que não tenham sido apresentadas e feitas juntar ao processo com respeito pelo princípio do contraditório.

III - Um documento não lido nem examinado na audiência de julgamento não pode ser usado como prova se a sua junção não foi notificada aos sujeitos processuais interessados e se estes, depois dessa junção, não tiveram acesso aos autos e, consequentemente, não tomaram conhecimento da sua existência.

IV - Se uma concreta prova não constar do elenco das provas proibidas, significa que ela é permitida e pode ser legalmente considerada.

V - O preenchimento do tipo legal do crime de violência doméstica exige uma relação de proximidade afectiva entre o agente e a vítima, mormente análoga à da conjugalidade, actual ou entretanto terminada.

VI - No crime de violência doméstica, a violência desenvolvida pelo agente sobre a vítima deve redundar num abuso de poder daquele e numa situação de degradação e humilhação desta.

VII - Uma vez que qualquer crime contra as pessoas atenta contra a sua dignidade, então esta violação que remete aquelas acções para o tipo legal da violência doméstica terá que revelar uma especial ofensa à dignidade humana que determinou o surgimento deste tipo especial que a tutela.

VIII - A distinção entre o crime de violência doméstica, enquanto tal, e o concurso dos crimes de ofensas, ameaça, injúria, etc., que as concretas acções podem configurar, faz-se com recurso ao conceito de maus tratos e este exige o desprezo, humilhação, especial desconsideração pela vítima e a gravidade destas manifestações.

Decisão Texto Integral:










Acordam na 4ª secção do Tribunal da Relação de Coimbra:

RELATÓRIO

1.

O arguido A... foi condenado na pena de 1 ano e 6 meses de prisão pela prática, em autoria material, de um crime de violência doméstica, o art. 152º, nº 1, al. b), do Código Penal.

            Foi, também, condenado a pagar à vítima B... a quantia de 1.000 €, a título de reparação pelos danos não patrimoniais sofridos, acrescida de juros de mora, à taxa anual de 4%, desde a data da sentença até integral pagamento.

2.

O arguido recorreu, concluindo:

1ª – o tribunal a quo considerou indevidamente provados os factos constantes dos pontos 16 e 18, desde «… compareceu a consultas em 22.09.2015 e 14.04.2016 …» até final;

2ª – da prova não resultou que tenha perseguido a vítima ou forçado qualquer aproximação nem que esta tenha sofrido lesões ou dores susceptíveis de provocarem doença ou a necessidade de cuidados médicos ou hospitalares;

3ª – os factos imputáveis decorreram das circunstâncias que proporcionaram os episódios de 17 de Agosto e 25 de Setembro de 2016, tendo a vítima sido sua cúmplice no que aconteceu em 25 de Setembro, pois contribuiu activamente e de forma irresponsável para a recidiva alcoólatra do arguido;

4ª – a presunção avançada quanto ao facto do ponto 16 deve funcionar ao contrário;

5ª – quanto à matéria do ponto 18 ela resultou do relatório social, que não foi objecto de produção de prova em audiência, em violação do art. 355º do C.P.P.;

6ª – para além disso, não actuou com especial sadismo, censurabilidade ou perversidade, e não cometeu o crime imputado;

7ª – os factos, a terem-se como provados, integram um crime de ofensa à integridade física, do art. 143º, nº 1 e 2, al. b), do Código Penal, sendo a pena adequada a de multa.

3.

O recurso foi admitido.

O Ministério Público respondeu defendendo a manutenção da decisão.

No que à impugnação da decisão da matéria de facto alegou que o arguido não cumpriu o disposto nos nº 2 e 3 do art. 412º do C.P.P., pelo que a sua pretensão deve improceder nesta parte.

Acrescentou que o facto do ponto 16 foi julgado provado na base de uma presunção natural, atenta a idade do arguido, o facto de ter uma condenação pelo mesmo tipo de crime e a sua vida anterior.

Referiu, também, que em parte alguma se disse que ele perseguia a vítima e o facto de esta o ter acompanhar à noite e, eventualmente, ter bebido não atenua a culpa.

Quanto ao ponto 18, disse que constando o relatório social do processo considera-se examinado e produzido em audiência.

Relativamente ao enquadramento legal defendeu a manutenção da decisão, pois que com a sua actuação o arguido violou a dignidade pessoal da vítima.

Disse, por fim, que também a pena aplicada se deve manter.

Nos mesmos termos se pronunciou o Sr. P.G.A.

Foi cumprido o disposto no nº 2 do art. 417º do C.P.P..

            4.

            No despacho preliminar foi comunicada ao arguido a possibilidade de alteração da qualificação jurídica dos factos dos factos julgados provados e para ele se pronunciar, querendo.

                       

Colhidos os vistos legais e realizada a conferência cumpre decidir.


*

FACTOS PROVADOS

5.

A sentença recorrida julgou provados os seguintes factos:

«1. B... e o arguido viveram em comunhão de mesa, cama e habitação durante cerca de 11 anos, com a última morada na (...) .

2. Dessa união nasceram dois filhos, D..., a 16.09.2006, e E..., a 19.10.2013.

3. Do agregado familiar fazia parte também o filho de B..., C..., nascido a 27.08.2003.

4. Em 13 de Agosto de 2016 o arguido apareceu embriagado à companheira.

5. No dia 17 de Agosto de 2016, cerca das 12:00 horas, B... e arguido foram até ao café do (...) .

6. Aí chegados, o arguido encetou uma forte discussão com aquela acerca da relação de ambos, tendo aquela ficado com medo dele, o que a levou a refugiar-se dentro do seu automóvel, trancando-o.

7. Em acto imediato, aquele foi no seu encalço e desferiu um murro violento no vidro da viatura, partindo-o e retirando a chave da ignição, obrigando-a a regressar à esplanada daquele café.

8. Já no café, o arguido retomou a ingestão de bebidas alcoólicas.

9. No caminho para casa, o arguido disse para a companheira: “deves querer começar a falar como dantes…”.

10. Arguido e B..., após os factos supra mencionados, voltaram a separar-se e, a meados de Setembro de 2016, voltaram a viver em comunhão de mesa, cama e habitação.

11. No dia 25 de Setembro de 2016, cerca das 02:05 horas, na Avenida (...) , o arguido e B..., já alcoolizados, encetaram uma discussão.

12. Em acto imediato, B... sentou-se no chão recusando-se a ir para casa com o arguido e dizendo: “Não vou, estou farta de levar porrada!”.

13. De seguida, o arguido, que não a conseguia demover, ficou furioso e, após provocações da mesma, em acto imediato, desferiu-lhe um pontapé na zona baixa lombar, várias palmadas na cabeça e face e vários puxões de cabelo, não obstante a intervenção do transeunte K..., que os separou após presenciar a contenda.

14. Simultaneamente, o arguido mencionava em tom de voz elevado e com foros de seriedade:” Levas um murro ou um pontapé, que ficas aqui estendida!”, “Eu dou cabo da minha vida…”

15. Após, o arguido ainda disse para B...: “Podes ir embora que daqui a (…) metros ainda te apanho!”

16. O arguido agiu sempre com o propósito de maltratar a saúde psíquica e física da companheira, deixando-a em constante sobressalto pela segurança da sua integridade física, provocando-lhe permanente situação de instabilidade, que se reflectiu no seu estado psíquico. 17. Agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo ser a sua conduta proibida e punida pela lei penal.

Elementos pessoais do arguido:

18. Acha-se desempregado, auferindo cerca de € 300/€ 400 mensais em trabalhos esporádicos na área da construção civil; vive com o tio, em casa deste; tem a 4.ª Classe; após internamento clínico que realizou nos serviços de psiquiatria geral dos CHUC, pólo (...) , tem mantido de forma intermitente as consultas de suporte com a sua médica assistente – compareceu a consultas em 22.09.2015 e 14.04.2016, vindo a faltar às sessões seguintes; teve nova consulta marcada para 13.02.2017, à qual faltou –, mas sem real motivação para a mudança; adopta postura de minimização face à responsabilidade pelos seus actos e as consequências da violação da lei; tem vindo a cumprir, de forma sucessiva, medidas probatórias, não patenteando interiorização em face do desvalor da sua conduta delituosa;

19. Foi condenado, a 03.02.2005, pela prática, a 03.02.2005, de um crime de condução sem habilitação legal, em 75 dias de multa – extinta; a 25.02.2009, pela prática, a 19.02.2009, de um crime de condução sem habilitação legal, em 180 dias de multa – extinta pelo pagamento; a 26.02.2009, pela prática, a 11.01.2008, de um crime de emissão de cheque sem provisão, em 120 dias de multa – extinta pelo pagamento; a 26.03.2010, pela prática, em Setembro de 2005, de um crime de furto simples, em 160 dias de multa – extinta pelo pagamento; a 11.11.2011, pela prática, a 17.06.2008, de um crime de furto qualificado, em 5 meses de prisão, substituída por 150 horas de PTFC – extinta pelo cumprimento; a 28.10.2013, pela prática, a 26.10.2013, de um crime de condução em estado de embriaguez e de um crime de condução sem habilitação legal, em 225 dias de multa e proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 4 meses – extinta a pena acessória pelo cumprimento; a 07.10.2014, pela prática, a 05.10.2014, de um crime de condução sem habilitação legal, em 7 meses de prisão, substituída por 210 horas de PTFC; a 16.06.2015, pela prática, a 28.11.2014, de um crime de ofensa à integridade física simples, em 200 dias de multa – extinta pelo pagamento; a 21.01.2016 (com trânsito a 22.02.2016), pela prática, até 02.07.2015, de um crime de violência doméstica agravado (tendo como vítima a mesma dos presentes autos), em 3 anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período de tempo, condicionalmente; a 30.11.2016, pela prática, a 21.10.2016, de um crime de ofensa à integridade física simples, em 1 ano e 1 mês de prisão, suspensa na sua execução por igual período de tempo, com regime de prova.

…».

6.

O tribunal recorrido motivou a sua decisão de dar como provados os factos constantes dos pontos 16 e 18 nos seguintes termos:

«… 16.º e 17.º: Presunção natural – atenta a idade do arguido, experiência criminal e vivencial respectiva, experiência de vida e da normalidade das coisas;

18.º: As declarações do arguido – informando o tribunal sobre a sua situação vivencial e económica –, complementadas pelo teor do doc. de fls. 247 a 249 (relatório social, elaborado pela DGRSP)».


*

DECISÃO

Considerando o disposto no art. 412º, nº 1, in fine, do C.P.P., e sem prejuízo do conhecimento oficioso dos vícios enumerados no art. 410º, nº 2, do mesmo Código, as questões a decidir são as seguintes:

- falta de fundamentação do ponto 16 dos factos provados;

- violação do disposto no nº 1 do art. 355º do C.P.P.;

- impugnação do enquadramento jurídico dos factos.


*

Nos termos dos art. 428º, nº 1, e 431º do C.P.P. as relações podem alterar a decisão da matéria de facto quando, nomeadamente, constarem do processo todos os elementos de prova que lhe serviram de base e quando a prova tiver sido impugnada nos termos do nº 3 do art. 412º.

Portanto, quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente tem que especificar os factos concretos que considera incorrectamente julgados e as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida.

No caso entendemos que da alegação do arguido não resulta a necessidade de sindicância da conformidade entre a decisão e a prova porque quanto ao ponto 16 o que o arguido faz é atacar as conclusões que o tribunal retira da prova por presunção e em relação ao ponto 18 o arguido põe em causa não o conteúdo da prova/do relatório social, mas sim a legalidade do seu uso, pois entende que o tribunal ao fazê-lo violou o art. 355º, nº 1, do C.P.P.

Começando por esta última questão, o arguido suscitou a ilegalidade do uso do relatório social, por violação do art. 355º, nº 1 e 2, do C.P.P., por se tratar de prova não produzida nem examinada em audiência.

Este artigo, que fala sobre a proibição de valoração de provas, dispõe no nº 1 que «não valem em julgamento, nomeadamente para o efeito de formação da convicção do tribunal, quaisquer provas que não tiverem sido produzidas ou examinadas em audiência», ressalvando-se desta disciplina, acrescenta o nº 2, «as provas contidas em actos processuais cuja leitura, visualização ou audição em audiência sejam permitidas, nos termos dos artigos seguintes».

Do texto da lei resulta – como tem sido repetido à saciedade -, que esta norma não exige que todas as provas sejam produzidas e/ou reproduzidas em audiência, pois os documentos que estejam nos autos consideram-se examinados e produzidos em audiência, independentemente de aí terem sido lidos, porque estando eles no processo todos os intervenientes têm acesso aos mesmos e têm, portanto, oportunidade de os analisar, por um lado, e contraditar, nomeadamente em julgamento, por outro.

Portanto, e à contrário, o que a norma determina é que não valem para a formação da convicção do tribunal as provas que não tenham sido apresentadas e feitas juntar ao processo com respeito pelo princípio do contraditório. Um documento não lido nem examinado na audiência de julgamento não pode ser usado como prova se a sua junção não foi notificada aos sujeitos processuais interessados e se estes, depois dessa junção, não tiveram acesso aos autos e, consequentemente, não tomaram conhecimento da sua existência.

Não tendo sido este o caso dos autos o tribunal não cometeu qualquer ilegalidade na consideração do relatório social que constava do processo.

Quanto ao ponto 16, diz ele que «o arguido agiu sempre com o propósito de maltratar a saúde psíquica e física da companheira, deixando-a em constante sobressalto pela segurança da sua integridade física, provocando-lhe permanente situação de instabilidade, que se reflectiu no seu estado psíquico».

E fundamentou a decisão de dar como provados estes factos com base na presunção natural, atendendo à «idade do arguido, experiência criminal e vivencial respectiva, experiência de vida e da normalidade das coisas».

Recordando, para além deste ponto também se provaram os seguintes factos:

- no dia 17-8-2016, cerca das 12h, quando a vítima e o arguido chegaram ao café do (...) , o arguido encetou uma forte discussão acerca da relação de ambos – pontos 5 e 6;

- a vítima ficou com medo e por isso refugiou-se dentro do seu automóvel e trancou-o – ponto 6;

- o arguido foi no seu encalço, deu um murro no vidro da viatura, partiu-o, retirou a chave da ignição e obrigou a vítima a regressar à esplanada do café – ponto 7;

- depois disto o casal separou-se e em meados de Setembro voltaram a viver em comunhão de mesa, cama e habitação;

- em 25-9-2016, cerca das 2h05, na Avenida (...) , o arguido e a companheira, já alcoolizados, encetaram uma discussão – ponto 11;

- acto imediato esta sentou-se no chão, recusou-se a ir para casa com o arguido e dizia “não vou, estou farta de levar porrada!” – ponto 12;

- o arguido não a conseguia demover e ficou furioso e, após provocações da mesma, deu-lhe um pontapé na zona baixa lombar, várias palmadas na cabeça e face e vários puxões de cabelo – ponto 13;

- K... separou-os após presenciar a contenda;

- simultaneamente o arguido mencionava em voz alta e com foros de seriedade “levas um murro ou um pontapé, que ficas aqui estendida”, “Eu dou cabo da minha vida” – ponto 14;

- o arguido também lhe disse “podes ir embora que daqui a (…) metros ainda te apanho” – ponto 15.

O nosso legislador processual penal adoptou o princípio da não taxatividade dos meios de prova ao estabelecer, no art. 125º do C.P.P., que «são admissíveis as provas que não forem proibidas por lei».

Assim, se uma concreta prova não constar do elenco das provas proibidas, significa que ela é permitida e pode, portanto, ser legalmente considerada.

E uma das provas admitidas, porque não proibida, é a prova indirecta ou por presunção: a demonstração do facto e da culpa do agente pode obter-se quer através de prova directa, quer através de prova indirecta ou indiciária, que se afirma através da presunção.

Enquanto a prova directa se refere imediatamente aos factos probandos, a prova indiciária, enquanto prova indirecta, refere-se a factos diversos do tema da prova, factos estes que permitem, com recurso à presunção, julgar provados outros factos.

            Socorrendo-se destas presunções naturais, que a lei permite como resulta do art. 349º do Código Civil, o julgador pode julgar provado um facto desconhecido pelas ilações que retirou de facto conhecido.

            Tendo presente estes dados entendemos não haver dúvida que perante o rol de factos constantes dos pontos 1 a 15 o arguido agiu com o propósito de maltratar física e psiquicamente a companheira – o que resulta directamente dos referidos factos – tal como resulta que a deixou na altura em sobressalto e em situação de instabilidade.

Portanto, é manifesto que o arguido agiu com a motivação referida no ponto 16.


*

            Nos termos do art. 152º, nº 1, al. b), do Código Penal, comete o crime de violência doméstica, punível com prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal, «quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais:

b) A pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação»

            O preenchimento do tipo legal de violência doméstica exige uma relação de proximidade afectiva entre o agente e a vítima, mormente análoga à da conjugalidade, actual ou entretanto terminada, e falando a norma em maus tratos físicos ou psíquicos, castigos corporais, privações da liberdade, ofensas sexuais, percebe-se que o bem tutelado – como é comummente apontado -, seja a pessoa e a sua dignidade humana, compreendendo nesta a saúde, a integridade física e psíquica, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual e a honra, de tal forma que a violência desenvolvida pelo agente sobre a vítima redunde num abuso de poder daquele e numa situação de degradação e humilhação desta.

Os factos praticados, isolados ou reiterados, integrarão este tipo legal de crime se, apreciados à luz do circunstancialismo concreto da vida familiar e sua repercussão sobre a mesma, transmitirem este quadro de degradação da dignidade de um dos elementos, incompatível com a dignidade e liberdade pessoais inerentes ao ser humano.

O crime de violência doméstica é integrado por situações que, não fora essa especial ofensa da dignidade humana, seriam tratadas atomisticamente e preencheriam uma multiplicidade de tipos legais, como os de ofensa à integridade física, ameaça, injúria, etc. É aquela envolvente que determina que acções susceptíveis de integrar estes crimes sejam tratadas como uma unidade. Por via do quadro legal estas acções ilícitas mantêm-se mas perdem autonomia, daí que ocorra concurso aparente entre estes vários crimes e o crime de violência doméstica.

Mas uma vez que qualquer crime contra as pessoas atenta contra a sua dignidade, então esta violação que remete aquelas acções para o tipo legal da violência doméstica terá que revelar, repetimos, a tal especial ofensa à dignidade humana que determinou o surgimento deste tipo especial que a tutela.

Por isso é que «o crime de violência doméstica é muito mais que uma soma de ofensas corporais não sendo as condutas que integram o tipo consideradas autonomamente, mas antes valoradas globalmente na definição e integração de um comportamento repetido revelador daquele crime» (TRL, processo 5752/09.0TDLSB, de 8-11-2011).

Também por isso a distinção entre o crime de violência doméstica, enquanto tal e por um lado, e o concurso dos crimes de ofensas, ameaça, injúria, etc., que as concretas acções podem configurar, por outro, faz-se com recurso ao conceito de maus tratos este exige o desprezo, humilhação, especial desconsideração pela vítima e a gravidade destas manifestações.

Sendo esta a regra há situações excepcionais em que bastará uma acção isolada para preencher o tipo legal. Em tais situações excepcionais a consumação do crime bastar-se-á com a prática de um só acto, desde que este único acto «assuma uma intensa crueldade, insensibilidade, desprezo pela consideração do outro como pessoa, isto é, quando o comportamento singular só por si é claramente ofensivo da dignidade pessoal», quando a «gravidade intrínseca do mesmo preencha o tipo de ilícito» (TRC processo 835/13.4GCLRA, de 20-1-2016).

Dito isto entendemos que os actos praticados pelo arguido não são susceptíveis de configurar a ocorrência de um crime de violência doméstica, porque não assumem a tal intensa crueldade, insensibilidade, desprezo, aviltamento da dignidade humana necessárias ao crime pelo qual foi condenado.

Na realidade, o único acto ilícito que está em causa é o que consta do ponto 13, do qual resulta que no dia 25-9-2016 relativamente à ofendida «o arguido … desferiu-lhe um pontapé na zona baixa lombar, várias palmadas na cabeça e face e vários puxões de cabelo …».

Os factos anteriores revelam um ambiente de conflitualidade entre ambos, mas não integram factos ilícitos - se desconhecem os contornos da discussão é impossível concluir se o medo da vítima resultou de algo que o arguido fez ou disse -, nem os seguintes os integram, concretamente os que constam dos pontos 14 e 15, que referem que o arguido disse à ofendida, naquele dia 25, «em tom de voz elevado e com foros de seriedade: “Levas um murro ou um pontapé, que ficas aqui estendida!”, “Eu dou cabo da minha vida”» e «“Podes ir embora que daqui a (…) metros ainda te apanho!”».

            Vê-se aqui, como em outras situações já se viu, que se aceitaram imputações genéricas, pouco concretizadas, que foram relevadas criminalmente porque se cobriu toda a situação com a tal crueldade, insensibilidade, desprezo, típicos do tipo legal da violência doméstica.

            Não obstante a natureza deste crime, dada a sua gravidade e a gravidade das suas consequências, não é aceitável que exista aqui um menor rigor na descrição dos factos que o integram, por comparação ao que sucede com outros crimes menos graves.

            Daí que noutra sede este comportamento, tal como foi descrito, não redundaria nem em acusação, nem em condenação.

Nos termos do nº 1 do art. 153º do Código Penal «quem ameaçar outra pessoa com a prática de crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação, é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias».

Diz, depois, o nº 1 do art. 155º do Código Penal que se estes factos forem realizados por meio de ameaça com a prática de crime punível com pena de prisão superior a 3 anos a pena aplicável será de prisão até dois anos ou multa até 240 dias.

Como podemos ler no Comentário Conimbricense do Código Penal [1] o bem jurídico protegido por este tipo legal é a liberdade de decisão e acção e as ameaças, ao provocarem um sentimento de insegurança, intranquilidade ou medo na pessoa ameaçada, afectam a paz individual essencial à verdadeira liberdade.

A ameaça tem que ser adequada a provocar medo ou inquietação ou a prejudicar a liberdade de determinação e tem que ser susceptível de afectar a paz individual ou a liberdade de determinação, embora sem carecer de afectar, em concreto, esta liberdade de determinação.

Quanto à adequação da ameaça à criação de medo ou inquietação, entende-se é adequada a intimidar a ameaça que, de acordo com a experiência comum, é susceptível de ser tomada a sério pelo ameaçado, tendo em conta as características do ameaçado e o conhecimento destas pelo agente.

            Considerando o exposto entendemos que as palavras do arguido não atingem o patamar mínimo que permita tê-las como ameaçadoras, no sentido jurídico-penal. Também neste particular não podemos esquecer que tudo aconteceu âmbito de uma discussão e, segundo se provou, de provocações da ofendida.


*

Restam as agressões cometidas pelo arguido sobre a vítima.

Está provado que o arguido deu um pontapé na zona lombar e várias palmadas na cabeça e face da vítima e que lhe deu vários puxões de cabelo.

Cometeu, pois, um crime de ofensa à integridade física, do art. 143º do Código Penal, punível com prisão até 3 anos ou com pena de multa.

            Defendendo a irrelevância criminal de todo o comportamento o arguido alegou que agiu em estado de alcoolismo, que a vítima teve uma participação relevante porque também se alcoolizou e, desta forma, incentivou o arguido a consumir álcool, sabendo da sua dependência, sendo certo, ainda, que poderia ter recusado acompanhar o arguido e, se o tivesse feito, não teria sido vítima de qualquer crime.

            É comum que um agente alcoólico se defenda quer da imputação, quer das consequências, invocando o seu alcoolismo, portanto a sua incapacidade de analisar a ilicitude da conduta ou de agir conforme o direito.

            Não se provou que o arguido seja incapaz de reger a sua pessoa.

Também não se provou que a vítima tivesse sobre ele um tal ascendente que o levasse a fazer o que ele não queria, ou que o induzisse a cometer factos que lhe fossem prejudiciais.

É natural que formando um casal vítima e arguido saíssem juntos.

Do mesmo modo é natural que a vítima, gostando de bebidas alcoólicas, bebesse.

E até podemos dizer seria natural que dissuadisse o arguido de beber.

Seria natural mas a omissão de tal dissuasão não torna a vitima responsável pelos actos do arguido, nem exonera o arguido da responsabilidade pelos actos que cometeu.

Aliás, a alegação do arguido, de se eximir à responsabilidade pelos seus actos, enquadra-se na sua postura de minimização das responsabilidades pelos actos que pratica, de indiferença pela mudança e de actuação conforme ao direito.

            Agora, e quanto à pena, dispõe o art. 70º do Código Penal que «se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição».

Quando se está em sede de escolha da pena há que ponderar as exigências de prevenção, geral e especial, que o caso reclama.

E aqui as exigências de prevenção especial são prementes, pois que o arguido já foi condenado dez vezes, sendo que nos anos de 2015 e 2016 foi condenado três vezes, em 2015 uma vez, em multa, por ofensa à integridade física simples, e em 2016 duas vezes, em 3 anos de prisão suspensa, com condição, e 1 ano e 1 mês de prisão suspensa, com regime de prova, pelos crimes de violência doméstica agravado e ofensas integridade física simples.

            Resulta, portanto, que a pena de multa não é adequada às finalidades da punição.

Dispõe o art. 71º, nº 1, que «a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção».

Acrescenta o nº 2 que na determinação concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando, nomeadamente o grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente, a intensidade do dolo ou da negligência, os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram, as condições pessoais do agente e a conduta anterior ao facto e a posterior a este.

            Portanto, a medida da pena é-nos dada pela medida da necessidade de tutela de bens jurídicos, ou seja, pelas exigências de prevenção geral positiva (moldura de prevenção). Depois, no âmbito desta moldura, a medida concreta da pena é encontrada em função das necessidades de prevenção especial de socialização do agente ou, sendo estas inexistentes, das necessidades de intimidação e de segurança individuais. Finalmente surge a culpa, que indica o limite máximo da pena que em caso algum pode ser ultrapassado em nome de exigências preventivas.

Como acima dissemos o arguido sofreu recentemente três condenações por crimes contra as pessoas, sendo que em duas delas foi-lhe aplicada pena de prisão, com execução suspensa.

            Isto por um lado.

            Por outro lado, considerando a pouca ilicitude, temos por adequada a pena de seis meses de prisão.

Nos termos do art. 50º, nº 1, do Código Penal «o tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição».

            Por um lado o facto cometido revela pouca gravidade, inserindo-se na pequena criminalidade, e por outro lado as penas de prisão anteriores, nomeadamente a que puniu o crime de violência doméstica, viram a sua execução ficar suspensa.

            Não obstante estas condenações, entendemos que o crime aqui julgado não impõe um juízo de prognose desfavorável à suspensão, dada, precisamente, a gravidade do mesmo e a conjuntura em que foi cometido. Ou seja, continuamos a entender que a suspensão da execução da pena é suficiente aos fins da punição.

            Não obstante o passado criminal do arguido, não obstante a sua manifesta fuga à assumpção de responsabilidades e indiferença por agir de acordo com o direito, entendemos que a execução da pena de prisão não se impõe, dada a necessidade de considerar, nesta sede, os efeitos nefastos da reclusão, a par da necessidade de combater a execução das penas curtas de prisão, a não ser nos casos em que a situação o exige.

            E entendemos que os factos deste processo não exigem a execução da pena.

            Assim, suspende-se a sua execução por um ano.

            No entanto, também entendemos que o aparente descontrolo comportamental do arguido terá que ser atalhado, sob pena de ir num crescendo e ver, um dia destes, revogadas as suspensões decretadas.

            É fundamental que o arguido perceba o mal que isto provocaria na sua vida, pelo desenraizamento familiar, social, laboral que geraria e por todas as demais consequências nefastas que tem associadas.

Resulta do processo que o arguido não demonstra que interiorizou as condenações, no sentido de assumir os crimes cometidos, e não participa.

            Estas considerações podem ter-se como contraditórias com a decisão de suspensão mas, entendemos que não são, pelas razões acima indicadas.

            Pelo exposto determina-se que a suspensão decretada será acompanhada de regime de prova, com elaboração de plano de reinserção com vista a alertar o arguido para a necessidade de controlar o seu comportamento e de assumir das suas responsabilidades, pois destas depende a real inserção social e actuação conforme ao direito.

            E da actuação conforme ao direito depende a sua vida em liberdade.


*

O arguido foi condenado em indemnização civil, ao abrigo dos art. 21º, nº 2, da Lei nº 112/2009, de 16/9, e 82º-A do C.P.P., dos quais resulta que a vítima de violência doméstica receberá sempre uma decisão de indemnização por parte do agente do crime, excepto se se opuser expressamente.

Uma vez que foi decidido que os factos cometidos pelo arguido não integram o crime de violência doméstica, há que retirar desta decisão todas as consequências, como impõe o nº 3 do art. 403º do C.P.P.

Significa isto que teremos que absolver o arguido da condenação em indemnização, dados os termos em que foi decidida, uma vez que o suporte legal que a determinou não se verifica, porque, face aos art. 71º, 72º, 77º e 82º-A do C.P.P., o arbitramento de indemnização derivada do cometimento de um crime depende de pedido expresso ou de o tribunal considerar que particulares exigências de protecção da vítima a impõem e no caso nada disto se verifica.


*

DISPOSITIVO

Pelos fundamentos expostos, na procedência parcial do recurso, decide-se condenar o arguido A... na pena de seis meses de prisão pela prática de um crime de ofensa à integridade física simples, do art. 143º, nº 1, do Código Penal, pena esta suspensa pelo período de um ano, acompanhada de regime de prova.

Vai, ainda, absolvido da condenação de pagamento da indemnização civil à ofendida.

Sem custas.

Elaborado em computador e revisto pela relatora, 1ª signatária – art. 94º, nº 2, do C.P.P.

Coimbra, 22 de Novembro de 2017

(Olga Maurício - relatora)

[(Luís Teixeira - adjunto) –  vencido quanto à considerada não verificação do crime de violência doméstica]

[(Jorge Dias - presidente da secção] – voto de desempate]


[1] Comentário de Taipa de Carvalho 2ª ed., pág. 552 e segs.