Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
470/11.1T2ILH.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALBERTINA PEDROSO
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
ACIDENTE DE TRABALHO
SUB-ROGAÇÃO LEGAL
ÓNUS DA PROVA
DEPOIMENTO DE PARTE
CONFISSÃO
Data do Acordão: 11/13/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: BAIXO VOUGA ILHAVO JMPIC
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS.356, 358, 360, 361, 483, 487, 497, 524 CC, 552, 655 CPC, BASE XXXVII DA LEI Nº 2127 DE 3/8/1965, DL Nº 100/97 DE 13/9
Sumário: 1.A seguradora que satisfez os pagamentos a lesada em acidente simultaneamente de trabalho e viação que pretende exercer o direito de regresso contra o terceiro cuja responsabilidade invoca, incumbe o ónus de alegação e prova da culpa do lesante na ocorrência do acidente.

2. O registo interno da Seguradora correspondente às liquidações efectuadas em regularização de um sinistro, do qual consta de forma pormenorizada todos os elementos contabilísticos relevantes e valores despendidos, e que foi devidamente confirmado em audiência pela gestora do processo, constitui prova bastante dos pagamentos efectuados a terceiros, não carecendo de ser juntos os recibos e cheques ali mencionados

3. Não deve confundir-se entre depoimento de parte e confissão, já que aquele é apenas uma das vias através das quais se pode obter a confissão.

4. Prestado o depoimento de parte, há que distinguir: se este conduz à confissão de factos que são desfavoráveis ao depoente, deve ser-lhe atribuído o valor probatório previsto no artigo 358.º, n.º 1, do CC; se o mesmo não conduz a confissão, sendo, nesse caso, o respectivo valor probatório apreciado livremente pelo tribunal nos termos do artigo 655.º do CPC.

5. Nesta segunda vertente, também há que distinguir, as situações em que o depoente reconhece factos que lhe são desfavoráveis mas que não possam valer como confissão, caso em que tal admissão vale como elemento probatório que o tribunal apreciará livremente (artigo 361.º do CC); das situações em que o depoente narra outros factos ou circunstâncias tendentes a infirmar a eficácia do facto confessado ou a modificar ou extinguir os seus efeitos, caso em que a parte que queira aproveitar a confissão como prova plena, também tem que aceitar como verdadeiros os outros factos ou circunstâncias, salvo se provar a sua inexactidão (artigo 360.º do CC).

6. O depoimento de parte que não redunde em confissão, por respeitar apenas a factos favoráveis ao depoente, pode ser livremente apreciado pelo tribunal, constituindo um simples elemento probatório a atender segundo o prudente critério do julgador.

Decisão Texto Integral: Acordam na 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

I – RELATÓRIO

1. IMPÉRIO BONANÇA, COMPANHIA DE SEGUROS, S.A., instaurou contra I (…) e FUNDO DE GARANTIA AUTOMÓVEL, a presente acção declarativa de condenação sob a forma de processo sumário, pedindo que a mesma seja julgada procedente por provada e, em consequência, sejam os RR. solidariamente condenados no pagamento à autora da importância de 26.097,70€, acrescida de juros de mora à taxa legal, calculados desde a citação até efectivo e integral pagamento.

Em fundamento, alegou, em síntese, ter suportado, enquanto seguradora da entidade patronal da ré, as despesas decorrentes dos danos patrimoniais relativos aos créditos laborais da lesada, à assistência médica e aos custos judicias que sobrevieram a um acidente, qualificado simultaneamente como de viação e de trabalho, causado por culpa exclusiva da primeira ré.

Mais invocou que esta circulava sem ter transferido para uma seguradora a responsabilidade decorrente da circulação do veículo automóvel com a matrícula EF (...), do que decorre a legitimidade do 2.º réu para a presente acção.

2. Contestaram os RR., por excepção, invocando a prescrição do direito da autora, e por impugnação, pugnando pela improcedência da acção.

3. A autora respondeu às deduzidas excepções invocando que apenas teve conhecimento do respectivo direito aquando da comunicação que lhe foi efectuada pela A (...), seguradora do ciclomotor tripulado pela ré, dando conta da inexistência de contrato de seguro válido e eficaz, concluindo pela improcedência da excepção de prescrição invocada pelos RR.

4. Foi proferido despacho saneador, que conheceu parcialmente de mérito, absolvendo o réu “Fundo da Garantia Automóvel” do pedido, e absolvendo a ré I (…) parcialmente do pedido, na quantia de 7.822,24€, tendo sido seleccionados os factos assentes e elaborada a base instrutória.

5. Realizada a audiência de discussão e julgamento, foi designada data para a decisão sobre a matéria de facto, a qual não foi objecto de qualquer reclamação, tendo sido proferida sentença, na qual se decidiu julgar improcedente a presente acção e, consequentemente, absolver a R. do pedido.

6. Inconformada, a A. apresentou recurso de apelação da sentença proferida, formulando as seguintes conclusões:

«A. O Tribunal a quo realizou julgamento deficiente da matéria de facto, violando o disposto pelos artigos 552º e seguintes, do Código de Processo Civil.

B. Deverá ser alterada a resposta dada à matéria do quesito primeiro, facto 17 da Sentença em crise, cuja redacção deverá ser rectificada para a seguinte:

A determinada altura do percurso, quando circulavam frente ao Café Central, a condutora do veículo “EF” embateu com o espelho do ciclomotor na traseira da viatura com a matrícula “ (...)JG” que se encontrava estacionada.

C. A prova produzida nos autos, mormente os documentos juntos aos autos com a petição inicial, e o depoimento prestado pela testemunha (…), declarações registadas por gravação digital, exigem que a matéria de facto do quesito 4º seja julgada integralmente provada.

D. A alteração do julgamento da matéria de facto como acima exposto, implica decisão de mérito que, necessariamente, e em cumprimento das normas dos artigos 483º, 487º e 493º, nº 2, do Código Civil, revogue a douta Sentença proferida (violadora daquelas normas), e julgue a acção procedente por provada.

Termos em que, deve ser proferido douto Acórdão que, julgando procedente o presente recurso, revogue a douta Sentença recorrida, e julgue a acção procedente por provada, condenando a ré no pedido formulado pela autora ora recorrente, nos termos e com as consequências legais, só assim se fazendo a devida e inteira JUSTIÇA!».

10. Não foram apresentadas contra-alegações.


*****

Mantém-se a validade e regularidade da instância.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.


*****

II. O objecto do recurso[2].

As questões a apreciar no presente recurso de apelação consistem em saber se:

- deve ser alterada a resposta à matéria de facto referente aos artigos 1.º e 4.º da base instrutória;

- em consequência de tal alteração, deve ser julgada procedente a pretensão formulada pela Autora.


*****

III – Fundamentos

III.1. – De facto

Foram os seguintes os factos considerados como provados na sentença recorrida:

1) No dia 20.12.2007, cerca das 07h30, o veículo de matrícula “ EF (...)” seguia na Rua da Central, Gafanha do Carmo, Ílhavo, no sentido Gafanha da Encarnação – Vagueira, conduzido pela sua proprietária I (…)

2) Naquele veículo seguia como passageira S (…), maior, residente com a 1ª ré.

3) Deslocavam-se ambas da residência para o local comum de trabalho.

4) No local do acidente a via desenvolve-se em traçado de recta, com boa visibilidade, e apresenta pavimento asfaltado em bom estado de conservação.

5) Após o acidente, a condutora e a passageira foram transportadas ao Hospital de Aveiro pelos Bombeiros Voluntários de Ílhavo, onde receberam assistência clínica.

6) Em virtude da queda, S (…) sofreu lesões corporais, de entre as quais fractura exposta do cândilo femural externo direito.

7) Foi tratada cirurgicamente no Hospital Distrital de Aveiro, com extracção de material de osteossíntese e meniscectomia parcial externa no Hospital Privado do Porto.

8) Foi sujeita a exames e terapêuticas até à data da alta, que veio a ocorrer em 12.03.2009.

9) A condutora/1ª ré e S (…) trabalhavam à data para a sociedade “ AP (...), Lda.”, com sede na Rua (...) Regueira de Pontes, como trabalhadoras agrícolas.

10) Deslocava-se de casa para o local de trabalho, onde tinham de se apresentar pelas 08h.

11) A entidade patronal de ambas havia transferido para a autora a responsabilidade infortunística laboral, por meio de contrato de seguro de acidentes de trabalho, na modalidade de folha de féria, titulado pela apólice AT 22698858.

12) A autora assegurou toda a assistência clínica a S (…)

13) A Autora procedeu aos pagamentos de importâncias nas datas indicadas nos documentos de fls. 22 a 30.

14) Em 7 de Janeiro de 2008, a Autora reclamou perante a “ A (...), Companhia de Seguros, S.A.” o reembolso das quantias despendidas.

15) Em 29 Janeiro de 2010, esta seguradora respondeu informando que o veículo não tinha seguro válido e eficaz à data do sinistro.

16) Em 5 de Fevereiro de 2010, a Autora reclamou perante a 1.ª ré o pagamento dos valores despendidos.

17) A determinada altura do percurso, quando circulavam frente ao Café Central, a condutora do veículo “EF” foi ofuscada /encandeada por um veículo estacionado em sentido contrário, e embateu com o espelho do ciclomotor na viatura com a matrícula “ (...)JG” que se encontrava estacionada.

18) A condutora perdeu o domínio e controlo do ciclomotor, despistando-se.

19) O que provocou a queda dela própria e de S (…) no solo.

20) A Autora despendeu as seguintes importâncias:

- Com salários - 3.599,52€;

- Com capital remição - 7.561,08€.

21) A autora despendeu importâncias com honorários consultas/cirurgias, com despesas médicas, com elementos auxiliares de diagnóstico, com transportes, com despesas de averiguação, com despesas em Tribunal e com pensões.


*****

III.2. – O mérito do recurso

III.2.1. – Alteração da matéria de facto

A Apelante, por esta via de recurso, pretende trazer à apreciação deste Tribunal o que a recorrente está convicta tratar-se de um notório e evidente erro de julgamento, quer ao nível do enquadramento e qualificação jurídica da factualidade fixada, quer ao nível do próprio julgamento da matéria de facto.

A impugnação da matéria de facto pela Autora, ora recorrente, deve considerar-se efectuada com observância do disposto no artigo 685.º-B, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil[3], porquanto, constando apenas da acta da audiência de julgamento relativamente à parte e às testemunhas ouvidas que “as suas declarações foram gravadas através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso neste Tribunal”, sem qualquer outra especificação, não podia a Apelante “indicar com precisão as passagens da gravação em que se funda”, razão pela qual tal omissão não inquina a solicitada reapreciação da matéria de facto, em virtude de estarem cabalmente identificados pela Recorrente quer “os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados”; quer “os concretos meios probatórios” que, em seu entender, impunham decisão diversa da recorrida[4].

Assim, cumpre verificar se existem razões para modificar a matéria de facto supra referida, uma vez que, nos termos do artigo 712.º do CPC, a decisão do tribunal de 1.ª instância sobre a matéria de facto pode ser alterada pela Relação, quando, como é o caso, do processo constam todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os concretos pontos da matéria de facto postos em causa pela Recorrente.

Nesta apreciação, os poderes conferidos por lei à Relação quanto ao princípio fundamental da livre apreciação das provas fixado no artigo 655.º, n.º 1, do CPC, têm amplitude idêntica à conferida ao tribunal de 1.ª instância, devendo a 2.ª instância expressar a respectiva convicção acerca da matéria de facto impugnada no recurso, e não apenas conferir a lógica e razoabilidade da convicção firmada pelo Juiz a quo[5].

Comecemos, então, por apreciar a questão relativa à alteração da matéria de facto.

Considera a ré recorrente que o Tribunal a quo confunde base instrutória com meios de prova, daqui resultando um julgamento de matéria de facto deficiente, que eiva toda a fase decisória de forma exuberante, invocando que:

“Sob o quesito 1º da Base Instrutória, encontrava-se quesitado “a determinada altura do percurso, quando circulavam frente ao Café Central, a condutora do veículo “EF” foi ofuscada / encandeada por um veículo que circulava em sentido contrário, e embateu com o espelho do ciclomotor na traseira da viatura com a matrícula “ (...)JG” que se encontrava estacionada?

Os meios de prova atinentes a esta factualidade foram constituídos por documentos juntos aos autos – Auto de Participação de Acidente de Viação elaborado pela GNR -, e testemunhal: depoimento de parte da ré, e depoimento prestado pela testemunha (…), agente da GNR autor do documento acima mencionado.

O documento apenas nos permite um registo estático dos dados recolhidos no local do acidente pelo agente subscritor, que declarou confirmar a autoria do mesmo, esclarecendo que apenas tem memória da existência de um veículo na faixa de rodagem, no qual a ré terá embatido.

Restará o depoimento da ré.

Tal como resulta registado na Acta de Audiência de Discussão e Julgamento (Ref .ª : 14246723), por súmula, a ré depôs:

Quando nas circunstâncias de tempo e lugar descritas na al. A) dos factos assentes não se apercebeu de uma carrinha que se encontrava estacionada na via em que seguia e que ao ter sido ofuscada pelos faróis de um veículo parado em cima da lomba no sentido contrário, acabou por embater com o espelho do ciclomotor que conduzia na referida carrinha.

Ainda tentou controlar o ciclomotor mas acabou por não evitar a queda de si própria e da prima (…) ao solo.

Esta a súmula do depoimento da ré, que se encontra registado no sistema integrado de gravação digital. Pois bem, com base nestes meios de prova, o Tribunal a quo julgou provado, sem qualquer reserva ou observação, todo o quesito 1º.

De acordo com o estabelecido pelos artigos 552º e seguintes, do CPC, o depoimento de parte apenas poderá versar sobre factos que sejam desfavoráveis ao depoimento, uma vez que o pretendido por este meio de prova de prova é a confissão, pelo depoimento, do que lhe seja desfavorável.

Verifica-se que no caso dos autos assim não ocorreu: ao considerar todo o depoimento da ré, nomeadamente quando esta refere ter sido ofuscada / encandeada, o Tribunal a quo valora o que não é desfavorável à ré depoente, extravasando dos limites impostos para a Prova por Confissão, tal como determinados pelas normas acima indicadas.

Violação de normas legais, que tem por consequência directa a consideração de julgar provado todo o teor do quesito 1º, quando deveria ter sido julgado provado apenas e tão só “a determinada altura do percurso, quando circulavam frente ao Café Central, a condutora do veículo “EF” embateu com o espelho do ciclomotor na traseira da viatura com a matrícula “ (...)JG” que se encontrava estacionada.

Esta, e apenas esta, a matéria de facto a levar em linha de conta nos limites do estabelecido pelos artigos 552 e seguintes do CPC, que regem a prova por confissão.

Impõe-se, assim, a reparação do julgamento da matéria de facto, quanto ao quesito 1º, de forma a que se assegure o cumprimento da norma desta disposição legal violada, fazendo corresponder a factualidade quesitada à prova produzida e legalmente admissível”.

E no tocante ao quesito 4.º, aduz:

“Quanto a tal factualidade quesitada, as verbas de €. 3.599,52 de salários, e €. 7.561,08 de capital de remição, foram admitidas por confissão pela ré ao início da audiência de discussão e julgamento, tal como consta da respectiva acta.

Quanto às demais verbas e reportes respectivos elencados naquele quesito 4º da base Instrutória, a autora indicou como meios de prova os documentos juntos à petição inicial e o depoimento da testemunha (…), que se encontra registado por gravação no sistema integrado de gravação digital.

Considerou a Mma. Juiz a quo julgar não provada a matéria deste quesito 4º da BI, à excepção da parte confessada pela ré, fundamentando tal decisão com a ausência nos autos dos documentos comprovativos de todo e cada um dos pagamentos efectuados pela autora e discriminados na listagem que integra o documento anexo à p.i.

Com o respeito que nos merece toda e qualquer decisão, não podemos aceitar a justeza de tal argumento.

O documento junto com a petição inicial pela autora, constitui uma listagem discriminada de todos os valores despendidos pela autora com a regularização dos danos emergentes deste sinistro.

Ali encontram-se mencionados, de forma pormenorizada, todos e cada um dos valores pagos, a identificação da entidade recebedora, a data de emissão do meio de pagamento (cheque), e identificação do meio de pagamento (cheque), e até mesmo a data de desconto bancário de cada meio de pagamento (cheque).

A testemunha (…), funcionária da autora com funções de gestão de Reembolsos Acidentes de Trabalho, confirmou os valores constantes daquela listagem, explicando como a listagem é elaborada, e a forma como são ali inseridos os dados e informações: de cada vez que é emitido um pagamento de qualquer valor, a listagem é automaticamente actualizada por meios informáticos, de forma a constituir um verdadeiro “conta corrente”.

Esclareceu, ainda, a instâncias da Mma. Juiz a quo, que todos os documentos de suporte referentes a cada um dos pagamentos efectuados encontram-se em arquivo nos serviços da companhia seguradora autora, (como aliás é imposto fiscalmente).

Todos os valores foram, assim, confirmados pela prova produzida, sem margem para dúvidas.

Deveria a matéria deste quesito 4º, na sua totalidade, ter sido julgada provada, em sintonia com a prova produzida.

Ao assim não suceder, verificou-se uma notória má apreciação da prova produzida, que importa, também, agora, corrigir”.

Vejamos, pois, se lhe assiste razão.

A Mm.ª Juiz a quo fundamentou as respostas à matéria de facto nos seguintes termos:

Nas respostas aos quesitos 1.º a 3.º foi tido em conta o depoimento de parte da ré, que confessou, na parte dada como provada, tais factos (cfr. acta de julgamento).

No mais (respostas restritivas ao quesito 1.º e 4.º), foi tida em conta a prova documental, concretamente, o auto de participação do acidente de fls. 9 a 12 e os documentos emitidos pelos serviços da autora de fls. 22 a 26, em conjugação com os depoimentos de (…)guarda da GNR, que elaborou a participação do acidente, e de (…), funcionária da autora, que depuseram de forma que se afigurou isenta e credível, revelando ter conhecimento dos factos sobre os quais depuseram.

Assim, no que respeita à dinâmica do acidente (art. 1.º), a participação do acidente, concretamente o croqui aí elaborado, e o depoimento do guarda da GNR nada acrescentaram à confissão obtida em depoimento de parte.

Quanto aos danos (art. 4.º), cumpre evidenciar que apesar de se darem os mesmos como provados – tendo em conta os esclarecimentos prestados pela testemunha (…), em consonância com as mais elementares regras da experiência comum ante as lesões descritas em F) a H), o facto dado como provado em L) e a circunstância de o acidente ter sido simultaneamente um acidente de trabalho –, relativamente aos quantitativos dispendidos, importa evidenciar que os documentos apresentados são meros documentos internos da autora, pelo que para prova de tais valores impunha-se que tivesse oferecido os recibos, facturas e cópias de cheques identificados, o que não fez, razão pela qual se impôs responder restritivamente a este quesito”.

Como podemos constatar, a Mm.ª Juiz a quo fundou a sua convicção quanto à resposta dada ao artigo 1.º, que respeita à dinâmica do acidente, essencialmente na confissão obtida em depoimento de parte da ré Inocência, considerando que a participação do acidente, concretamente o croqui aí elaborado, e o depoimento do guarda da GNR nada acrescentaram à confissão obtida em depoimento de parte.

Pretende a Apelante que tendo sido dados como provados factos que não são desfavoráveis à ré, com base no respectivo depoimento de parte, foi violado o preceituado nos artigos 552.º e seguintes do CPC, que regem a prova por confissão, devendo, em obediência aos limites ali impostos, considerar-se apenas assente os factos desfavoráveis à ré, ou seja, que “a determinada altura do percurso, quando circulavam frente ao Café Central, a condutora do veículo “EF” embateu com o espelho do ciclomotor na traseira da viatura com a matrícula “ (...)JG” que se encontrava estacionada”.

Cremos, porém, que não lhe assiste razão, porquanto não deve confundir-se entre depoimento de parte e confissão, já que aquele é apenas uma das vias através das quais se pode obter a confissão[6].

Efectivamente, o depoimento de parte a que se referem os artigos 552.º a 554.º do CPC e o artigo 356.º, n.º 2 do Código Civil[7], destina-se primacialmente à obtenção da confissão judicial provocada, isto é, à admissão por uma das partes de um facto que lhe é desfavorável e que favorece a parte contrária.

Daí que, em princípio, tudo quanto para além de tal matéria constar de um depoimento de parte, não possa ser valorado como confissão.

Assim, prestado o depoimento, há que distinguir:

- ou este conduz à confissão de factos que são desfavoráveis ao depoente, devendo, então, ser-lhe atribuído o valor probatório previsto no artigo 358.º, n.º 1, do CC;

- ou o mesmo não conduz a confissão, sendo, nesse caso, o respectivo valor probatório apreciado livremente pelo tribunal nos termos do artigo 655.º do CPC.

Nesta segunda vertente, também há que distinguir, as situações em que o depoente reconhece factos que lhe são desfavoráveis, mas que não possam valer como confissão, caso em que tal admissão vale como elemento probatório que o tribunal apreciará livremente (artigo 361.º do CC); das situações em que o depoente narra outros factos ou circunstâncias tendentes a infirmar a eficácia do facto confessado ou a modificar ou extinguir os seus efeitos, caso em que a parte que queira aproveitar a confissão como prova plena, também tem que aceitar como verdadeiros os outros factos ou circunstâncias, salvo se provar a sua inexactidão (artigo 360.º do CC).

Ora, no caso dos autos, a ré prestou depoimento em que confessa o facto que lhe é desfavorável: “não se apercebeu de uma carrinha que se encontrava estacionada na via em que seguia”, acabando “por embater com o espelho do ciclomotor que conduzia na referida carrinha”, e que “ainda tentou controlar o ciclomotor mas acabou por não evitar a queda de si própria e da prima Sandra Soares ao solo”, facto que, por si só, tenderia a demonstrar que a mesma efectuava uma condução desatenta, ou com imperícia no exercício da mesma.

Porém, a ré esclarece no mesmo depoimento que tal ocorreu “ao ter sido ofuscada pelos faróis de um veículo parado em cima da lomba no sentido contrário”.

Assim, atento o princípio da indivisibilidade da confissão expresso no artigo 360.º do CC, querendo a Apelante aproveitar, como pretende, a confissão dos factos desfavoráveis, tem também que aceitar como verdadeiros os outros factos ou circunstâncias, a não ser que prove a sua inexactidão.

Ora, a Autora, apesar de ter arrolado como testemunha (…) que seguia no veículo tripulado pela ré, a qual poderia confirmar ou infirmar o depoimento por esta prestado, prescindiu da respectiva inquirição, sendo apenas ouvida, quanto à dinâmica do acidente, a testemunha, militar da GNR, que elaborou o auto de participação do acidente de viação que faz fls. 9 a 12 dos autos.

Conforme do mesmo consta, e configura, aliás, a situação habitual nestes casos, o participante não presenciou o acidente, tendo chegado ao local “alguns momentos após a ocorrência”, limitando-se a efectuar a descrição do acidente segundo ali declarou “baseada exclusivamente na posição dos veículos e nas declarações dos intervenientes”[8].

Ou seja, quer da participação do acidente quer das declarações prestadas pela testemunha em audiência que, no essencial, confirmou o teor da participação, não resulta prova que leve à consideração da inexactidão das circunstâncias em que o acidente ocorreu nos termos em que a ré o descreveu.

Portanto, a Apelante não logrou demonstrar a inexactidão das circunstâncias relativas à descrição do acidente descritas pela ré no depoimento de parte, razão pela qual, a Mm.ª Juiz a quo não violou qualquer disposição legal ao valorá-las, atento o disposto no artigo 360.º do CC.

Mas, mesmo que a narração destas circunstâncias que lhe são favoráveis, não tivesse sido acompanhada da confissão dos factos desfavoráveis, não estando, consequentemente, abrangida pela disciplina legal relativa à indivisibilidade da confissão, ainda assim, o depoimento de parte que não redunde em confissão, por respeitar apenas a factos favoráveis ao depoente, pode ser livremente apreciado pelo tribunal, constituindo um simples elemento probatório a atender segundo o prudente critério do julgador, ou seja, uma prova livre[9].

Ora, ouvido o depoimento prestado pela ré verificamos que o mesmo se nos afigura verosímil e espontâneo, tanto assim que logo no seu início a mesma explica que iam para o trabalho de motorizada e estava uma “murrinha” a cair, tudo indicando que tais condições climatéricas dificultariam quer a visibilidade quer a aderência do veículo ao solo. Mais referiu de forma que se nos afigurou natural, que estava uma carrinha estacionada na berma da estrada e que não se apercebeu dela, porque vinha um carro de frente que “me cegou”, esclarecendo que “o carro estava parado em cima duma lomba” e quanto aos faróis “devia ser os máximos para me cegar daquela maneira”, explicando os demais pormenores, nomeadamente, que só se apercebeu da carrinha estacionada na berma quando estava em cima dela e que ao desviar-se bateu no espelho e caiu.

Para além de serem verosímeis as declarações prestadas pela ré, ainda podemos socorrer-nos de um factor meramente adjuvante quanto à respectiva veracidade, o qual também consta dos autos e que se prende com o facto de logo no momento do acidente a ora ré ter declarado ao participante que tomou conta da ocorrência, que uma viatura a encadeou. Ou seja, não apresentou então uma versão do acidente e na audiência de julgamento outra diferente.

Conclui-se, portanto, que a Mm.ª Juiz a quo não cometeu qualquer erro de valoração da prova quanto ao quesito 1.º, cujo teor deverá, consequentemente, ser mantido.

 Vejamos agora a matéria de facto quesitada sob o artigo 4.º da base instrutória.

Perguntava-se ali se a autora tinha despendido:

- Com salários - 3.599,52€; - Com honorários consultas / cirurgias - 664,00€; - Com despesas médicas - 11.934,83€; - Com elementos auxiliares de diagnóstico - 661,00€; - Com transportes - 10,00€; - Com outras despesas diversas - 345,05€; - Com despesas em Tribunal - 927,80€; - Com pensões - 394,42€; - Com capital remição - 7.561,08€.

A ré aceitou logo no início da audiência as importâncias relativas ao pagamento de salários e do capital de remição que a autora invocara ter efectuado, constando tais valores sob o ponto 20 da matéria de facto atendida na sentença.

Quanto ao mais peticionado e que se manteve controvertido, considerou-se provado apenas que “a autora despendeu importâncias com honorários consultas/cirurgias, com despesas médicas, com elementos auxiliares de diagnóstico, com transportes, com despesas de averiguação, com despesas em Tribunal e com pensões”, não se dando como provados os valores respectivos em virtude de a Autora não ter efectuado a junção aos autos dos recibos, facturas e cópias de cheques identificados, no documento interno que juntou.

Pensamos que, neste caso, não se justifica a resposta restritiva que antecede.

Na verdade, não nos encontramos nesta acção no domínio das relações contratuais havidas entre a seguradora e as entidades a que foram efectuados os alegados pagamentos, não se estando perante prova vinculada.

Assim, à seguradora é possível efectuar a prova do pagamento das aludidas importâncias, por qualquer meio de prova admissível em direito.

Ora, a autora juntou aos autos o documento interno que faz fls. 22 a 26 dos autos, cópia da sentença proferida no processo especial emergente de acidente de trabalho e termo de entrega do capital de remição que faz fls. 27 a 30, e arrolou prova testemunhal.

Do referido documento interno e da sentença proferida que, saliente-se, serviram para estribar a convicção do Tribunal para ter logo dado como assente no momento do despacho saneador “que a autora procedeu ao pagamento de importâncias nas datas indicadas no documento de fls. 22 a 30” [alínea M) dos factos assentes], resultam, para além dos referidos pagamentos de importâncias várias, o respectivo quantitativo.

Ora, se é certo que a autora, em face da genérica impugnação efectuada pela ré, podia ter procedido à junção aos autos dos recibos de quitação, facturas e cópias de cheques, não é menos certo que também os recibos de quitação, são meros documentos particulares nos quais o credor declara ter recebido a prestação, sendo que a respectiva eficácia probatória apenas respeita à materialidade da declaração nele vertida e não também à exactidão da mesma, donde, por si só, não constituem prova da veracidade do seu conteúdo, insusceptível de ser destruída por quaisquer outras provas[10].

Também quando o pagamento é efectuado através de cheque só se verificará o pagamento do preço quando o tomador recebe do sacado a quantia titulada pelo cheque[11], donde a mera junção da cópia dos cheques não significaria, por si só, a existência do invocado pagamento, porquanto a simples remessa de cheques não se traduz em cumprimento da prestação debitória nas obrigações pecuniárias[12].

O mesmo se diga se fossem juntas as facturas, porquanto mesmo quando existe uma informação prestada pela administração fiscal, que confirma a facturação de determinados produtos ou fornecimentos, a existência de tal documento com relevância fiscal, não faz prova do pagamento de tal fornecimento[13].

Assim sendo, cumpre-nos apreciar se a prova produzida pela autora, é ou não bastante para fundar a convicção deste Tribunal no sentido de ter despendido os montantes que invocou.

E diremos, desde já, que sim.

Na verdade, a Autora não se limitou a juntar aos autos um mero resumo de despesas. Fê-lo a fls. 22, mas juntou em seguida um documento intitulado “Liquidações do Processo”, no qual constam todos os elementos identificativos do processo, com n.º de apólice, n.º de assistência, n.º do processo, nome da sinistrada Sandra Cristina e data do acidente.

Nesse documento, que se reporta à posição do processo interno em 26-04-2011, constam várias colunas, nas quais estão apostos os números dos recibos emitidos, sendo do tipo pagamento, os números dos cheques, com a data de emissão e a data da liquidação, seguidos do n.º fiscal do recebedor, e uma descrição sumária do movimento efectuado, terminando com o respectivo valor, num total de 87 movimentos efectuados, muitos dos quais correspondem precisamente aos valores pagos a S (…) por salários/ITP e ITA, constando ali ainda o valor relativo ao capital de remição que foram expressamente aceites pela ré e, diga-se, constavam no processo especial emergente de acidente de trabalho.

Ora, este documento constitui uma técnica de escrituração, que pode ser considerado como uma conta-corrente contabilística, correspondendo ao documento emitido pela própria parte[14], no qual a mesma exprime numericamente os movimentos efectuados com vista à regularização deste sinistro, de forma unilateral.

O facto, porém, de ser um documento de escrituração, não significa que o seu conteúdo não respeite fielmente os documentos em que o registo efectuado assenta.

Na verdade, vemos que tal ocorre quanto ao pagamento de salários e do capital de remição.

Verificamos ainda, no confronto deste com a sentença, que o mesmo confere quanto ao valor de 10,00€ pago à sinistrada a título de despesas de transportes, ali determinado; e depois verificamos que todos os demais valores indicados como pagos têm o NIF da entidade a quem foram satisfeitos: desde a gestão de peritagens, aos hospitais e clínicas, tendo todos também o número de cheque e a data da liquidação respectiva.

Ora, sendo sabido que estamos perante entidades às quais estão cometidas obrigações de contabilidade organizada, a referência ao NIF respectivo, constitui-se como um importante elemento de controlo de que o pagamento é efectuado porquanto o mesmo será receita dessas entidades e, como tal, passível do controlo fiscal respectivo.

Ademais, existe ainda a prova da solicitação do pagamento das despesas à A (...), quando a ora Autora ainda suponha existir seguro válido e eficaz – cfr. fls. 31 a 33 dos autos.

Portanto, em sede de prova documental tudo indica que a autora suportou os pagamentos que ali indica.

Acresce ainda que, se dúvidas tivéssemos quanto à prova documental produzida, o depoimento da gestora do processo de reembolso, (…), é absolutamente elucidativo, tendo consultado os elementos que tinha consigo para confirmar todos os valores referidos no aludido quesito 4.º.

 De facto, apesar de ter afirmado que não teve acesso aos documentos a que o documento junto aos autos alude (cheques, recibos), explicou cabalmente como é que o mesmo é processado, correspondendo às parcelas pagas pela Companhia, daí ser uma listagem das liquidações efectuadas; quando o processo lhe chega às mãos já vem com os pagamentos efectuados, tendo esta listagem suporte nos documentos a que alude e que estão arquivados na Companhia, na parte que tem a gestão documental.  

Em face deste depoimento, prestado de forma que se nos afigurou, à semelhança do afirmado pela Mm.ª Juiz a quo, isento e credível, conjugado com o teor dos sobreditos documentos, tudo apreciado de acordo com as regras da experiência comum, entendemos ser de alterar, em conformidade com a prova produzida a resposta ao artigo 4.º da base instrutória, devendo o ponto 21 da sentença que lhe corresponde, passar a ter a seguinte redacção:

A autora despendeu com honorários consultas / cirurgias - 664,00€; com despesas médicas - 11.934,83€; com elementos auxiliares de diagnóstico - 661,00€; com transportes - 10,00€; com outras despesas diversas - 345,05€; - com despesas em Tribunal - 927,80€; e com pensões - 394,42€.


*****

III.2.2. – Decisão de direito

Conforme a Apelante logo afirmava nas alegações de recurso, uma vez decidida a alteração da decisão de facto, como havia peticionado, importaria, necessariamente, alterar a qualificação jurídica de tais factos, corrigindo-se a violação das normas dos artigos 483º , 487º e 493º , nº 2, do Código Civil.

Para o efeito, a Apelante procedeu à análise dos factos provados, tendo como pressuposto tal alteração, em virtude da qual concluiu que os factos provados revelam que a ré, quando circulava num local de recta com boa visibilidade, não se apercebeu da presença na via de um outro veículo, indo-lhe embater com o espelho do ciclomotor que tripulava, perdendo o controlo e domínio do mesmo, despistando-se, e acabando por cair no solo juntamente com a passageira que transportava.

Aduz em abono da sua posição que:

Precisamente por qualquer condutor dever circular nas vias afectas ao público adequando a sua condução de forma a não comprometer a segurança e comodidade dos utentes da via, tal como estabelecido pelos artigos 3º, nº 2, e 11º, nº 2, CE, os factos provados revelam culpa da ré, que apesar de circular em local de boa visibilidade, não assegurou atenção e cuidado na condução que lhe permitisse aperceber-se do tal veículo em que veio a embater.

Essencial é saber-se que a ré embateu nesse veículo, perdeu o controlo do ciclomotor que tripulava, e despistou-se.

Ao invés do que a douta Sentença estabelece, competia apenas à ré a alegação e prova de factos que permitissem concluir pela ausência de culpa na sua actuação e tal não sucedeu.

Porém, não tendo sido alterada a matéria considerada provada em resposta ao artigo 1.º da Base Instrutória, a sua pretensão não pode proceder.

Na verdade, conforme bem salienta a douta sentença recorrida, depois de discorrer sobre os pressupostos da responsabilidade civil por facto ilícito, e uma vez que quanto à dinâmica do acidente resultou apenas provado que a ré I (…), enquanto condutora do veículo, foi ofuscada/encandeada por um veículo estacionado em sentido contrário e embateu com o espelho do ciclomotor que conduzia num veículo que se encontrava estacionado.

Sendo que o embate ocorreu no dia 20 de Dezembro de 2007, cerca das 7h30, pelo que se impõe concluir que era de noite, numa via que se desenvolve em traçado de recta, com boa visibilidade.

Tendo sido por força do embate que a ré perde o controlo do veículo, despistando-se e provocando a queda da própria e de S (…) no solo.

A primeira dúvida que se suscita será a de poder qualificar o acto como voluntário, quando resultou provado que a ré foi encandeada ou ofuscada. Ora, perante a situação de encandeamento, se tal provoca de todo ou em absoluto a possibilidade de ver, o condutor fica numa situação em que deixa de comandar os seus actos. Logo por aqui ficaria afastada irremediavelmente a responsabilidade da

Ré. (…)

No entanto, o que sabemos quanto à causa do embate é apenas que, não obstante a via configurar uma recta com visibilidade, a ré foi encandeada por outro veículo estacionado em sentido contrário.

Ora, em face destes factos, nem é possível imputar à ré a culpa, ainda que a título de negligência, na produção do acidente, nem sequer o nexo causal entre a actuação da ré e os danos produzidos.

Note-se que competia à autora alegar na petição inicial (para poderem nesta sede ser atendidos) e provar os factos bastantes para alicerçar os pressupostos da culpa e do nexo causal. Ora fica por saber: 1.º Qual a posição do veículo no qual foi embater, por forma a aferir se o mesmo estava regulamente estacionado, pois a conclusão será necessariamente diferente consoante estivesse parado em plena via ou a ré o tivesse “ido colher” num local destinado a estacionamento junto à via ou na berma; 2.º Se a ré, atenta a visibilidade que a via lhe permitia por ser uma recta e não obstante ter sido encandeada, poderia ter evitado o embate.

Dito de outra forma, competia à autora trazer aos autos factos que nos permitissem concluir que a ré estava em condições de se aperceber da existência do veículo estacionado no qual foi embater e que, não obstante isso, não agiu por forma a evitar o embate, bem como que atenta, a posição daquele veículo (por exemplo, porque estava fora da via ou porque estava assinalada a sua paragem), o acidente se deu por causa da actuação desta.

O exposto é o bastante para concluir que não se encontram preenchidos os pressupostos de que depende a obrigação de indemnizar, pelo que a pretensão da autora improcede.

Pretende a Apelante que incumbia apenas à ré a alegação e prova de factos que permitissem concluir pela ausência de culpa na sua actuação, o que não sucedeu.

Sem razão, porém.

Na verdade, a autora já alegara no artigo 5.º da petição inicial que a condutora teria sido ofuscada/encandeada por um veículo que circulara em sentido contrário.

Ademais, a autora não alegou, conforme a sentença bem refere, outros factos que permitissem concluir que, de alguma forma o despiste ocorreu por culpa sua e não por esse facto que manifestamente não lhe é imputável.

Portanto, a sentença proferida limitou-se, atento o princípio da aquisição processual, a retirar as conclusões que se impõem quanto à escassa matéria relativa à dinâmica do acidente.

Na verdade, a presente acção foi instaurada, apesar de o respectivo fundamento legal não ter sido invocado, atenta a data em que ocorreu o acidente, ao abrigo do disposto na Base XXXVII da Lei 2127, de 3 de Agosto de 1965, nos termos da qual “a entidade patronal ou a seguradora que houver pago a indemnização pelo acidente terá o direito de regresso contra os responsáveis referidos no n.º 1 – os terceiros causadores do acidente -, se a vítima não lhes tiver exigido judicialmente a indemnização no prazo de um ano, a contar da data do acidente”,  porquanto ainda não se encontrava então em vigor o artigo 31.º, n.º 4, da Lei dos Acidentes de Trabalho, aprovada pelo DL n.º 100/97, de 13 de Setembro.

No entanto, este artigo 31.º da actual Lei dos Acidentes de Trabalho (LAT) é inteiramente semelhante à Base XXXVII, da anterior Lei n.º 2127, referindo-se ambas as normas ao exercício do direito de regresso, por parte da seguradora da entidade patronal que satisfaça aos segurado a indemnização devida por terceiros causadores do acidente.

Tem vindo, porém, a ser entendido pela doutrina e pela jurisprudência que, apesar da letra do preceito, o direito que a autora ora pretende exercer não constitui um verdadeiro direito de regresso, mas antes uma sub-rogação legal da seguradora da entidade patronal nos direitos do sinistrado contra o causador do acidente, existente na medida em que tiver pago a indemnização devida[15].

Na verdade, do que aqui verdadeiramente se trata é de a seguradora do acidente de trabalho ser colocada na posição de titular do direito de crédito indemnizatório satisfeito à sinistrada contra o terceiro civilmente responsável pelo evento causador da obrigação de indemnizar o seu segurado, in casu, a ré.

Por isso se diz que o caso não configura um verdadeiro direito de regresso, porquanto este é próprio do regime das obrigações solidárias previsto nos artigos 497.º e 524.º Código Civil, e a situação em apreço não se enquadra neste regime.

“A sub-rogação traduz-se numa forma de transferência de créditos, correspondentemente regulada no Código Civil no capítulo relativo à "transmissão de créditos e dívidas".

Pressuposto necessário e essencial da sub-rogação ou seu fundamento jurídico base é o cumprimento duma obrigação por terceiro, aferindo-se os direitos do sub-rogado pelo âmbito do cumprimento, ou seja, o sub-rogado adquire os direito que competiam ao credor na medida da satisfação dos interesses deste – art. 593º-1 C. Civil.

Deste modo, o crédito anteriormente pertencente ao credor pago ou indemnizado transmite-se para o sub-rogado que, assim, ingressa e fica colocado na posição jurídica que o credor satisfeito antes detinha.

O crédito do sub-rogado continua, assim, a ser o mesmo que pertencia ao primitivo credor.

E assim é porque, ocorrendo acidente simultaneamente de viação e de trabalho, a responsabilidade primeira ou primacial é daquele ou daqueles a quem puder ser imputado, a titulo de culpa ou risco, o acidente de viação, enquanto lesante e sujeito da obrigação de indemnizar o lesado pelo dano causado”[16].

Isto posto, dúvidas não restam de que no caso em apreço, à semelhança, aliás, do que ocorre no exercício do direito de regresso contra o segurado em consequência de condução sem habilitação legal, sob o efeito do álcool ou com abandono de sinistrado, é à seguradora que se arroga o direito, que incumbe alegar e provar os pressupostos da obrigação de indemnizar o lesado por banda do lesante.

Na verdade, constituindo esta sub-rogação legal um direito que nasce na esfera da seguradora com a extinção da obrigação para com o lesado e ficando a seguradora na posição de credora em relação ao lesante pela mesma ou diversa quantia que pagou, mas pelo mesmo motivo e pelo mesmo facto que determinaria a existência da obrigação de indemnizar do lesante ao lesado, apenas a prova desta obrigação imporá a verificação do fundamento da referida sub-rogação.

Por isso, à seguradora, ora Apelante, colocada nestes autos na posição que teria a lesada, incumbia a prova dos factos constitutivos da obrigação da ora Ré, de indemnizar aquela, nos termos genéricos do artigo 342.º do CC, afirmados também a propósito da matéria referente à responsabilidade civil, no artigo 487.º do mesmo diploma legal, porquanto é ao lesado que incumbe provar a culpa do autor da lesão.

Ora, como é bom de ver, a Autora não logrou provar a culpa da ré na ocorrência do acidente de viação.

Efectivamente, conforme ela própria havia alegado, para além de se ter provado que a ré se despistou, o que habitualmente é entendido como revelador de excesso de velocidade, imperícia ou distracção do condutor, provou-se também que tal ocorreu porque a mesma foi ofuscada / encadeada por um veículo que se encontrava em sentido contrário.

Desta sorte, devemos considerar que o embate se deveu a uma actuação de terceiro, a um acontecimento que não derivou da actividade de condução da ré, e que, por isso mesmo, lhe é exterior, e que a mesma não podia evitar com as medidas de precaução que um condutor prudente adoptaria.

Como assim, conclui-se que a autora não logrou demonstrar a culpa da ré na ocorrência do sinistro.

Improcede, pois, nos termos expostos, o presente recurso.


*****

III.3. - Síntese conclusiva

I - Não deve confundir-se entre depoimento de parte e confissão, já que aquele é apenas uma das vias através das quais se pode obter a confissão.

II - Prestado o depoimento de parte, há que distinguir: se este conduz à confissão de factos que são desfavoráveis ao depoente, deve ser-lhe atribuído o valor probatório previsto no artigo 358.º, n.º 1, do CC; se o mesmo não conduz a confissão, sendo, nesse caso, o respectivo valor probatório apreciado livremente pelo tribunal nos termos do artigo 655.º do CPC.

III - Nesta segunda vertente, também há que distinguir, as situações em que o depoente reconhece factos que lhe são desfavoráveis mas que não possam valer como confissão, caso em que tal admissão vale como elemento probatório que o tribunal apreciará livremente (artigo 361.º do CC); das situações em que o depoente narra outros factos ou circunstâncias tendentes a infirmar a eficácia do facto confessado ou a modificar ou extinguir os seus efeitos, caso em que a parte que queira aproveitar a confissão como prova plena, também tem que aceitar como verdadeiros os outros factos ou circunstâncias, salvo se provar a sua inexactidão (artigo 360.º do CC).

IV – O depoimento de parte que não redunde em confissão, por respeitar apenas a factos favoráveis ao depoente, pode ser livremente apreciado pelo tribunal, constituindo um simples elemento probatório a atender segundo o prudente critério do julgador.

V – O registo interno da Seguradora correspondente às liquidações efectuadas em regularização de um sinistro, do qual consta de forma pormenorizada todos os elementos contabilísticos relevantes e valores despendidos, e que foi devidamente confirmado em audiência pela gestora do processo, constitui prova bastante dos pagamentos efectuados a terceiros, não carecendo de ser juntos os recibos e cheques ali mencionados.

VI – À seguradora que satisfez os pagamentos a lesada em acidente simultaneamente de trabalho e viação que pretende exercer o direito de regresso contra o terceiro cuja responsabilidade invoca, incumbe o ónus de alegação e prova da culpa do lesante na ocorrência do acidente.   


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IV - Decisão

Face ao exposto, acorda-se em julgar improcedente o recurso de apelação, mantendo-se a sentença recorrida.

Custas do recurso a cargo da Apelante.

Notifique.


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Albertina Pedroso  ( Relatora )

Virgílio Mateus

Carvalho Martins



[2] Com base nas disposições conjugadas dos artigos 660.º, 661.º, 664.º, 684.º, n.º 3, 685.º-A, n.º 1, e 713.º, n.º 2, todos do CPC, é pacífico que o objecto do recurso se limita pelas conclusões das respectivas alegações, sem prejuízo evidentemente daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, não estando o Tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos produzidos nas conclusões do recurso, mas apenas as questões suscitadas, e não tendo que se pronunciar sobre as questões cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras.
[3] Doravante abreviadamente designado CPC.
[4] Cfr. neste sentido, exemplificativamente, o Acórdão STJ de 05-06-2012, proferido no processo n.º 5534/04.5 TVLSB.L1, disponível em www.dgsi.pt.
[5] Cfr. neste sentido, Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, Novo Regime, 3.ª Edição Revista e Actualizada, pág. 313; e na jurisprudência de forma meramente exemplificativa, Ac. STJ de 24-05-2012, processo n.º 850/07.7TVLSB.L1.S2, disponível em www.dgsi.pt. 
[6] Cfr. Acs. STJ de 02-07-1987, processo 074593; de 23-02-1995, processo 085939; de 27-04-1999, processo 99A186; de 02-10-2003, processo 03B1909.
[7] Doravante abreviadamente designado CC.
[8] Como é sabido, e é jurisprudência uniforme, quando o agente da autoridade lavra a participação de acidente de viação declarando expressamente que o não presenciou, tal participação de acidente não tem o valor de documento autêntico no que concerne às circunstâncias em que o acidente ocorreu – cfr. neste sentido, exemplificativamente da referida estabilidade interpretativa, os Acs. STJ de 16-12-1988, processo n.º 076542, e o recente Ac. STJ de 10-07-2012, processo n.º 115/03.3TBCCH.E1.S1, ambos disponíveis em www.dgsi.pt.
[9] Cfr. neste sentido o recente Ac STJ de 10-05-2012, processo 5579/06.0TVLSB, na esteira de jurisprudência há muito consolidada, tendo já decidido nos mesmos termos, por exemplo, os Acs. STJ de 10-12-1991, processo 080778; de 21-10-1993, processo n.º 083335; de 13-03-1997, processo n.º 96B386; de 13-11-1997, processo n.º 97B623; e de 02-10-2003, processo n.º 03B1909, todos disponíveis no referido sítio da internet. 
[10] Cfr. neste sentido, Ac. STJ de 13-11-2008, Revista n.º 3321/08 - 2.ª Secção, disponível em www.stj.pt, Sumários de Acórdãos.
[11] Cfr. neste sentido, Ac. STJ de 12-10-2010, Revista n.º 1213/06.7TBGRD.C1.S1 - 1.ª Secção; disponível em www.stj.pt, Sumários de Acórdãos.

[12] Cfr. Ac. STJ de 14-04-2011, Revista n.º 603-B/2001.G1.S1 - 2.ª Secção, disponível em www.stj.pt, Sumários de Acórdãos.
[13] Cfr. Ac STJ de 08-03-2012, Revista n.º 4847/07.9TBBCL.G1.S1 - 2.ª Secção, disponível em www.stj.pt, Sumários de Acórdãos.

[14] A qual não se confunde com o contrato de conta-corrente com os efeitos previstos nos artigos 344.º e 350.º do Código Comercial, e que ocorre quando duas pessoas, singulares e/ou colectivas, tendo de entregar valores uma à outra, se obrigam a transformar os seus créditos em "deve" e "haver", sendo apenas exigível o saldo final resultante da respectiva liquidação.
[15] Cfr. na doutrina, Antunes Varela, Revista Legislação e Jurisprudência, Ano 103, pág. 30, e Vaz Serra, na mesma Revista, Ano 111, pág. 67; e na jurisprudência, por todos, Ac. STJ de 09-03-2010,  processo 2270/04.6TBVNG.P1.S1.
[16] Cfr. Ac. STJ de 31-03-2009, processo n.º 09A0536, disponível em www.dgsi.pt.