Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
46/21.5T8CNF.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALBERTO RUÇO
Descritores: RECONHECIMENTO JUDICIAL DA PATERNIDADE
PROVA PERICIAL
Data do Acordão: 06/14/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DE CINFÃES DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA POR UNANIMIDADE
Legislação Nacional: ARTIGO 1871.º, N.º 1, ALÍNEA E), DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: Existindo um exame pericial no qual foram considerados 33 polimorfismos de ADN, que fixou a probabilidade do Réu ser o pai do menor em 99,9999999999999996% e sabendo-se que esta percentagem representa a probabilidade do réu ser o pai biológico da criança no confronto com a probabilidade de qualquer outro indivíduo ser o pai, mesmo que se provasse que a mãe do menor teve relações sexuais com outro homem durante o período legal da conceção, ainda assim a convicção formar-se-ia no sentido do Réu ser o pai do menor.
Decisão Texto Integral:
Recorrente ………………….. AA

Recorrido……………………Ministério Público

I. Relatório

a) O Ministério Público intentou a presente ação de investigação de paternidade contra o réu AA, o qual contestou que o menor BB seja seu filho, alegando que a mãe do menor não se relacionou sexualmente apenas consigo; impugnou a validade do exame pericial realizado e requereu a realização de novo exame noutra entidade.

O presente recurso vem interposto da sentença proferida nos autos, a qual declarou o Réu pai do menor BB.

b) As conclusões do recurso são as seguintes:

«(…) III. Daí que o presente recurso vise impugnar a decisão sobre a matéria de facto, tendo também por objeto a reapreciação da prova gravada, bem como a decisão sobre a matéria de direito.

IV. Por Sentença datada de 24 de janeiro de 2022, que mereceu a referência ...82, prolatada pelo Meritíssimo Tribunal a quo, foi a ação de investigação de paternidade julgada procedente, e, em consequência, foi proferida a seguinte decisão, que se transcreve:

“ e) Reconhece-se e declara-se que BB é filho biológico do Réu AA;

f) Ordena-se o averbamento da paternidade e da respetiva avoenga no registo de nascimento de BB;

g) Absolve-se o Réu do pedido de condenação como litigante de má-fé;

h) Condena-se o Réu nas custas do presente processo.

Registe e notifique, inclusive à progenitora da criança.”

V. É o presente recurso interposto desta decisão, porquanto a mesma apresenta vícios que determinam a sua revogação. De facto, conforme se deixou demonstrado em sede de Alegações, entende o Réu, aqui Recorrente, que a Sentença viola, entre outras normas, o disposto nos n.ºs 4 e 5 do artigo 607.º do CPC.

VI. Com efeito, o Réu/Recorrente discorda da apreciação da matéria de facto vertida na Sentença e que determinou o sentido da decisão proferida, porquanto, salvo melhor opinião, esta é incompatível com o teor da prova efetivamente produzida, mormente pelos depoimentos das testemunhas.

VII. Neste sentido, e na opinião do Réu/Recorrente, não só foram as provas erradamente apreciadas, como foi desconsiderada parte da prova produzida.

VIII. Assim, impõe-se a reapreciação dos fundamentos de facto da Sentença que pelo presente Recurso se impugna, bem como a concomitante análise dos mesmos à luz das normas jurídicas aplicáveis.

IX. No entendimento do Réu/Recorrente, a sentença recorrida erra na apreciação da matéria de facto cuja correção se impõe.

X. Ora, salvo melhor entendimento, entende o Réu/Recorrente que na Sentença aqui em crise constam factos dados como provados que não o deveriam ter sido, e constam também factos dados como não provados que, pelo contrário, deveriam ter sido dados como provados, pelo que importa proceder-se à análise dos depoimentos prestados aquando a realização da audiência final de julgamento.

XI. Falamos em concreto do facto dado como provado pelo Tribunal a quo no ponto 5) que refere:

“Durante o período mencionado em 3. [desde 2016 até finais de julho de 2019], CC não se relacionou sexualmente com qualquer outro homem.” E do facto dado como não provado pelo Tribunal a quo no ponto D. que refere: “CC relacionou-se sexualmente com outro(s) homem(ns), no período compreendido desde 2016 até 11 de setembro de 2019”.

XII. Efetivamente, da análise da prova testemunhal produzida em sede de audiência de julgamento, entende o Réu/Recorrente que a conclusão a que chegou o Tribunal a quo não é a correta, na medida em que tais factos se baseiam em depoimentos contraditórios e de onde não é possível retirar as conclusões que o Tribunal a quo retira.

XIII. Pelo que se requer a este Vdo. Tribunal que leve em consideração os seguintes depoimentos, cujas transcrições constam das Alegações do presente Recurso:

• Depoimento da testemunha DD da gravação: 15h29m19s Termo da gravação: 15h38m58s e tem a duração total de 9m37s, por referência à Ata de Audiência de Julgamento realizada em 05 de janeiro de 2022 e que mereceu a referência CITIUS ..., concretamente a passagem que vai do minuto: 3m30s ao minuto: 7m12s;

• Depoimento da testemunha EE: Início da gravação:

15h39m37s Termo da gravação: 15h53m08s e tem a duração total de 13m30s, por referência à Ata de Audiência de Julgamento realizada em 05 de janeiro de 2022 e que mereceu a referência CITIUS ..., concretamente a passagem que vai do minuto: 1m42s ao minuto: 4m22s; a passagem que vai do minuto: 7m54s ao minuto: 9m13s; por fim, a passagem que vai do minuto: 11m07s ao minuto: 12m33s;

• Depoimento da testemunha FF: Início da gravação: 15h53m51s Termo da gravação: 15h58m31s e tem a duração total de 4m39s, por referência à Ata de Audiência de Julgamento realizada em 05 de janeiro de 2022 e que mereceu a referência CITIUS ..., concretamente a passagem que vai do minuto: 1m55s ao minuto: 3m33s;

• Depoimento da testemunha GG:

Início da gravação: 15h59m12s Termo da gravação: 16h09m23s e tem a duração total de 10m10s, por referência à Ata de Audiência de Julgamento realizada em 05 de janeiro de 2022 e que mereceu a referência CITIUS ..., concretamente a passagem que vai do minuto: 2m08s ao minuto: 5m26s.

XIV. Não obstante a prova produzida, nomeadamente com os depoimentos acima indicados, para fundamentar o facto dado como provado em 5), assim como o facto dado como não provado em D., o Tribunal a quo argumenta da seguinte forma (cfr. pág. 8 da sentença de que ora se recorre):

“(…)Todas as questões que o Réu pretendeu suscitar nos autos não mereceram qualquer colhimento, pois não só inócuas em face do que o mesmo reconheceu, mas também porque insuficientes para duvidas da validade científica das perícias realizadas (como se disse, a própria cônjuge disse que o próprio Réu cedeu o seu material genético para ambos os exames, em dia até diferente daquele em que a progenitora esteve no INML), seja ainda porque não tendo sido capaz de produzir qualquer prova nesse sentido. O mesmo vale para o suposto envolvimento de CC com terceiros ou com o que a mesma terá divulgado na Vila (pois além de meramente suportado em rumores, não ficou minimamente demonstrado, não podendo deixar de se registar o discurso parcial adoptado pelo Réu e pela sua esposa a esse propósito). Não é minimamente lógico nem merece credibilidade que a progenitora divulgasse junto do seu círculo de amigos o envolvimento com o Réu (que sabiam casado), não dando conhecimento do envolvimento com outra pessoa. Mais, o próprio envolvimento da progenitora com o identificado HH ou qualquer outro terceiro não foi confirmado de modo seguro por absolutamente nenhum dos ouvidos, pelo que, em face das declarações tal como prestadas pela progenitora, se concluiu que a mesma não manteve relações sexuais com outrem que não o Réu. A prova testemunhal produzida não apresentou ao Tribunal qualquer razão para proceder a uma fundamentação contrária àqueles resultados técnicos, permitindo, pelo contrário, reforçar o seu valor. (…)”

XV. Ora, o Réu/Recorrente não pode deixar de manifestar a sua discordância quanto a esta argumentação do Tribunal a quo, uma vez que, na sua opinião, os depoimentos prestados pelas identificadas testemunhas foram prestados de forma clara e concisa, demonstrando sem margem para dúvidas que CC mantinha, efetivamente, um relacionamento de cariz sexual com o Sr. HH, conhecido por ..., ao mesmo tempo que mantinha um relacionamento do mesmo tipo com o Réu/Recorrente.

XVI. Ao contrário do que o Tribunal a quo argumenta, em causa nos presentes autos estão relacionamentos de cariz sexual, que diferem dos relacionamentos de namoro precisamente pelo facto de não serem “públicos”, isto é, os relacionamentos de cariz meramente sexual acontecem normalmente “entre quatro paredes”, ou seja, fora do alcance dos olhares de outras pessoas. Pelo que é normal que as outras pessoas só saibam dessas relações, não porque viram, mas sim por aquilo que lhes é confidenciado pelos intervenientes da relação.

XVII. Pelo contrário, quando duas pessoas namoram, relacionam-se de outras formas para além da sexual, sendo normal que o casal, que efetivamente se forma, seja avistado por outras pessoas em várias circunstâncias.

XVIII. Motivo pelo qual não se compreende a argumentação e fundamentação do Tribunal a quo, quando valoriza mais os depoimentos de CC e das suas amigas II e JJ, dos restantes depoimentos do Réu e das testemunhas por si arroladas.

XIX. E nem se diga, como argumenta o Tribunal a quo (cfr. pág. 5 da sentença de que ora se recorre), que pelo facto de se terem realizado dois exames periciais, “evidente é que a apreciação da demais prova se encontrou condicionada a este elemento, sendo certo, pode dizer-se, da audiência final nada sobreveio que afectasse a convicção do Tribunal, antes a corroborando plenamente”.

XX. Pois se assim fosse, então nas ações de reconhecimento da paternidade não seria necessário produzir-se prova, nem se realizar audiência de julgamento, uma vez que para a resolução de tais ações bastaria apenas e só a realização da prova pericial sem mais.

XXI. Com efeito, os presentes autos reportam-se a uma ação de reconhecimento da paternidade, versando sobre o estado das pessoas, sendo que tal ação, tal como é dito na douta Sentença de que ora se recorre, é “instaurada para o estabelecimento da filiação por reconhecimento, judicial (…), tendo como causa de pedir a procriação, isto é, o vínculo biológico que, pretensamente, liga o Réu ao filho (…).”.

XXII. A circunstância de o Tribunal a quo ter erradamente qualificado os identificados factos como qualificou, ao arrepio do que resulta de forma clara dos depoimentos prestados e supra transcritos, traduz-se num evidente cerceamento dos direitos do Réu/Requerido de exercer cabalmente o seu direito ao contraditório, não só em juízo, mas eventualmente no futuro, a quem lhe possa vir a pedir esclarecimentos sobre toda esta situação, e o porquê do seu comportamento, concretamente o porquê de não ter perfilhado a criança BB logo após ter sido notificado do resultado do teste por si requerido, o que lhe pode ser perguntado pelo próprio BB no futuro.

XXIII. Sendo assim de salutar importância para o Réu que seja dado como provado o facto que justifica o seu comportamento processual, ou seja, o facto da D. CC, mãe da criança, ter se relacionado sexualmente com outro homem, para além do Réu, desde 2016 até finais de julho de 2019, facto esse que ficou efetivamente PROVADO.

XXIV. Pois a verdade é que, da prova testemunhal produzida em sede de audiência de julgamento, resultou absolutamente demonstrado e provado que a progenitora CC tinha outro relacionamento de cariz sexual para além do que mantinha com o Réu/Recorrente.

XXV. Consequentemente, ter-se-ão de considerar legítimas e fundadas as dúvidas do Réu/Recorrente e que o levaram a adotar a postura processual que adotou.

XXVI. E em face de tudo quanto se deixou dito, com base na prova validamente produzida em sede de audiência de julgamento, o facto da matéria dada como provada no ponto 5) deverá ser corrigido com a seguinte redação: “Durante o período mencionado em 3. [desde 2016 até finais de julho de 2019], CC relacionou-se sexualmente com outro homem, para além do Réu.”

XXVII. No que diz respeito ao ponto D. da matéria de facto dada como não provada, que refere: “CC relacionou-se sexualmente com outro(s) homem(ns), no período compreendido desde 2016 até 11 de setembro de 2019”, tal facto deverá ser retirado do elenco dos factos dados como não provados.

XXVIII. A alteração da matéria de facto fixada em Sentença nos precisos termos do acima invocado e de acordo com o que se encontra fundamentado, deve ocorrer pelo Tribunal da Relação no uso dos poderes que lhe são conferidos pelo artigo 662.º, n.º 1, do CPC, o que se REQUER a V. Ex.ªs, Vdos. Juízes Desembargadores.

XXIX. Posto isto, passemos à análise da Fundamentação de Direito explanada em sentença, sob a epigrafe 5. Fundamentação de Direito (cfr. págs. 11 e 12 da sentença de que ora se recorre), cuja transcrição foi feita nas Alegações acima, e para as quais se remete.

XXX. Ora, o Réu/Recorrente discorda da fundamentação de Direito do Tribunal a quo, pois tal como ensina o douto Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, proferido no âmbito do processo n.º 65/14.8T8FAF.G1.S1, em 05/06/2018, disponível em www.dgsi.pt, “(…) Apesar de o sistema jurídico nacional ser de génese, essencialmente, biologista, não aderiu, integralmente, ao princípio da verdade biológica, em detrimento de outros valores ou princípios, constitucional ou ordinariamente, protegidos (…)”.

XXXI. No entender do Réu/Recorrente, o quadro retratado na sentença de que ora se recorre, não permite o funcionamento da presunção de paternidade prevista no artigo 1871.º, n.º 1, alínea e) do Código Civil, por ter ficado absolutamente demonstrado que a mãe CC teve relações sexuais com outros homens para além do pretenso pai.

XXXII. Efetivamente, o próprio Tribunal a quo esclarece que a ilisão da presunção ínsita no artigo 1871.º, n.º 1, alínea e) do Código Civil se bastava com a criação da dúvida, o que foi logrado pelo Réu/Recorrente, relativamente à paternidade, não sendo exigível a demonstração perfeita de que o Réu/Recorrente não é o pai.

XXXIII. Assim, entende o Réu/Recorrente que a presente ação de investigação da paternidade, que culminou com a prolação da douta Sentença de que ora se recorre, não podia proceder, pelo que respeitosamente Requer-se a V. Exas, Vndos. Desembargadores que Sentença de que se recorre seja revogada e substituída por outra que acolha os argumentos e fundamentos acima elencados.

XXXIV. Atento o supra exposto, violou o Tribunal a quo os artigos 1796, n.º 2; 1798.º, 1871.º, n.º 1, alínea c) e alínea e), todos do Código Civil; bem como os artigos 154.º; 607.º, n.º 4 e n.º 5, todos do CPC.

TERMOS EM QUE E NOS MAIS DE DIREITO, cujo suprimento se invoca, deve ser concedido provimento ao presente Recurso e, consequentemente, a Sentença Recorrida seja revogada e substituída por outra que acolha os argumentos e fundamentos acima elencados, o que se afigura ser de inteira JUSTIÇA!!!»

c) O Ministério Público contra-alegou e concluiu nestes termos:

«1. Reproduzindo (quase) integralmente nas conclusões a motivação, padece o presente recurso de um vício formal, o qual tem como consequência jurídica o convite ao aperfeiçoamento, nos termos do artigo 639.º, n.º 3, do Código de Processo Civil.

2. As questões decidendas no presente são a (errada) apreciação da matéria de facto vertida na sentença, que o Réu entende ser incompatível com a prova testemunhal produzida e violadora do artigo 607.º, n.ºs 4 e 5, do Código de Processo Civil, e a (não) verificação da presunção de paternidade vertida no artigo 1871.º, n.º 1, alínea e), do Código Civil.

3. Ao contrário do alegado pelo Réu, não decorre da sentença recorrida uma qualquer violação do dever de fundamentação, uma vez que o Tribunal a quo declarou quais os factos que entendeu terem-se dado como provados e não provados, tendo procedido a um exame crítico dos elementos de prova colhidos, relacionando-os e chegado a uma solução devidamente alicerçada e assente num procedimento lógico e coerente de valoração, com motivação bastante, e onde não se vislumbra qualquer assumo de arbítrio na apreciação da prova.

4. Mais, o Tribunal a quo (e, bem), assentou a sua convicção, no que aproveita aos pontos da matéria de facto questionados pelo Réu, em parte nas declarações prestadas por este, nas serenas, ponderadas e sinceras declarações prestadas pela progenitora da criança, bem como nos também calmos e convincentes depoimentos das testemunhas II e JJ – adjectivação que, indubitavelmente, se corrobora através da singela auscultação dos seus depoimentos.

5. Por fim, entendemos que bem andou o Tribunal a quo ao fazer operar a presunção de paternidade prevista no artigo no artigo 1871.º, n.º 1, alínea e), do Código Civil, atento o facto de se ter provado que o Réu manteve relações sexuais com a progenitora da criança durante o período legal de concepção e de o mesmo não ter logrado ilidir tal presunção, não podendo ignorar-se os inexoráveis resultados dos dois exames periciais realizados nos autos que não permitem excluí-lo como pai da criança, constatando-se uma probabilidade de 99,9999999999999996% de o mesmo ser o pai biológico.

Nestes termos, deve negar-se provimento ao recurso e manter-se a douta sentença proferida nestes autos nos seus precisos termos, fazendo-se, assim, a habitual JUSTIÇA!»

II. Objeto do recurso.

As questões que o recurso coloca são as seguintes:

1 – Impugnação da matéria de facto.

O recorrente pretende que o facto «Durante o período mencionado em 3. [desde 2016 até finais de julho de 2019], CC não se relacionou sexualmente com qualquer outro homem», seja declarado provado com esta redação:

«Durante o período mencionado em 3. [desde 2016 até finais de julho de 2019], CC relacionou-se sexualmente com outro homem, para além do Réu.»

Retirando-se dos factos não provados o facto do ponto D), isto é, «CC relacionou-se sexualmente com outro(s) homem(ns), no período compreendido desde 2016 até 11 de setembro de 2019.»

 2 - Em segundo lugar, face à alteração da matéria de facto, verificar se deverá considerar-se ilidida a presunção estabelecida no artigo 1871.º, n.º 1, alínea e) do Código Civil, a qual, segundo o Recorrente se basta com a criação da dúvida,  o que foi logrado por si relativamente à paternidade, o que implica a improcedência da ação.

III. Fundamentação

a) Impugnação da matéria de facto

Como se deixou dito, o Réu recorrente pretende que seja declarado que a mãe do menor desde 2016 até finais de julho de 2019 se relacionou sexualmente com outro homem, concretamente com HH, já falecido.

Vejamos no essencial a prova produzida indicada pelo Réu na impugnação.

O Réu afirmou - minuto 10:00 – que na altura em que manteve relações sexuais com a mãe do menor não sabia que ela mantivesse mais alguma relação com outro homem e que – minuto 10:34 – só soube disso depois de ela lhe ter dito que estava grávida.

 DD, esposa do réu, referiu – minuto 03:20/06:24 – que ouviu comentários no sentido de que a CC tinha outras relações, mas nunca viu nada que a fizesse suspeitar; que ouviu comentários – minuto 03:43 – segundo os quais a D. CC teve relacionamentos sexuais com um tal HH (conhecido por «...»).

A testemunha EE disse – minuto 01.05 –  que não conhecia a mãe do menor, mas que viu uma publicação nas redes sociais onde ela e o HH» apareciam – minuto 03:03/02:24 – e perguntou ao HH quem era a rapariga e falando ambos sobre a gravidez dela, o HH disse-lhe que «ela vai lixar a vida a muita gente»; que o HH – minuto 02:30 – lhe disse uns dias antes dele falecer que o filho da D. CC era dele; e – minuto 05:03 – que tinha vivido com ela em ..., mas soube por outras pessoas que isso era mentira. Mais referiu que esse HH – minuto 09:50 – era conhecido por «...» porque «falava coisas que…», dando a testemunha a entender, apesar de não ter completado a frase, que não era uma pessoa credível naquilo que dizia.

Referiu – minuto 10:49/12:00 – que falou desta conversa tida com o HH ao Réu, por casualidade, no café, isto é, que o tal HH lhe tinha dito que o filho era dele, muito embora não soubesse do relacionamento da CC com o Réu.

A testemunha FF (amiga do Réu) referiu, de relevante – minuto 02:32 –, que estava numa pastelaria e a dado momento entrou o Réu e ouviu duas senhoras, que estavam numa mesa, dizer uma para a outra «este é que vai ser o pai do filho da CC» e acrescentaram que uma amiga dela (da CC) tinha feito um empréstimo para pagar os testes de paternidade.

A testemunha GG narrou uma conversa tida na rua com o tal HH – minuto 03.23 – em 2019, pelo Natal, altura em que passou a D. CC no carro dela e a testemunha sabendo que ela andava de bebé perguntou ao HH se era filho dele, pois – minuto 05:22 – constava que ele andava com a D. CC e perguntou-lhe isso – minuto 06:40 –  porque ele já tinha três filhos; que ele lhe respondeu – 04:26/06:15 – que a CC ia resolver esse problema.

Acrescentou – minuto 08:22 – que só passado algum tempo soube da situação do Réu e lhe contou o que tinha ouvido da parte do HH.

Vejamos então.

A partir destes depoimentos não é possível formar a convicção de que na altura em que a mãe do menor se relacionou com o Réu manteve um relacionamento com outro ou outros homens.

Nem é possível afirmar o contrário, que não manteve.

Embora não seja possível, ou seja muito difícil, descrever por palavras certas posturas comportamentais que as pessoas adotam reciprocamente quando se relacionam como marido e mulher ou como namorados ou unidos de facto, as pessoas reconhecem esses laços com alguma facilidade quando os constatam, embora às vezes se enganem quando não têm oportunidade de confirmar através de outras constatações uma primeira impressão.

Ora, aquilo que as testemunhas afirmaram não obteve correspondência em factos concretos, como terem visto a mãe do menor em qualquer lugar público na companhia de outros homens, com o tal HH, por exemplo, com ações reconhecidas como próprias das que ocorrem entre marido e mulher, entre namorados ou unidos de facto.

O tribunal dispõe apenas de conversas que as pessoas ouvidas disseram terem existido, mas as conversas, como é sabido, não raro não vão além de especulações ou até meros exercícios de «maldizer» sem correspondência com a realidade, por vezes levianos, porquanto não se pondera o mal que podem causar.

O próprio HH não era considerado fiável quanto ao que afirmava, como resulta do depoimento da testemunha EE, e daí a alcunha de «Papagaio».

Nestas circunstâncias, não é possível formar a convicção que a mãe do menor desde 2016 até finais de julho de 2019 se relacionou sexualmente com outros homens, designadamente com o tal HH, já falecido.

Mas também não se pode concluir que a mãe do menor só se relacionou sexualmente com o réu.

Não se pode concluir porque no momento histórico atual existe uma ampla liberdade de relacionamento sexual entre homens e mulheres, principalmente vivida por quem não tem compromissos afetivos de exclusividade com outrem.

E no caso dos autos não se conhece qual o nível de compromisso existente entre o Réu e a mãe do menor, mas o Réu foi perentório em afirmar que nada mais existiu além do relacionamento físico.

Concluindo, forma-se a convicção no sentido de que não é possível afirmar se a mãe do menor teve ou não teve outros relacionamentos sexuais no período em questão.

Assim, suprime-se apenas o facto provado n.º 5: «Durante o período mencionado em 3. CC não se relacionou sexualmente com qualquer outro homem.»

b) 1. Matéria de facto – Factos provados

1) BB nasceu no dia .../.../2020, na freguesia ..., no concelho ..., encontrando-se registado como filho de CC com o estado civil de solteira.

2) O registo da paternidade de BB é omisso.

3) Desde data não apurada mas não anterior ao ano de 2016 e até finais de Julho de 2019 que o réu AA e CC mantiveram, entre si, relações sexuais de cópula completa.

4) A criança BB nasceu na sequência das relações mencionadas em 3.

5) [Suprimido].

6) Não existem quaisquer relações de parentesco ou de afinidade entre CC e AA.

7) O Réu recusou proceder à perfilhação da criança.

8) Foi proferido despacho final de viabilidade no processo de averiguação oficiosa da paternidade, que correu sob o número 83/20...., no Departamento de Investigação e Acção Penal ....

b) 1. Matéria de facto – Factos não provados

A. O Réu e CC mantiveram entre si uma relação de namoro desde 2016 até ao final do mês de julho de 2019.

B. A criança BB não nasceu na sequência de nenhum relacionamento entre a sua mãe e o Réu.

C. Entre 2016 e até julho de 2019 o Réu e CC não mantiveram sempre relações sexuais.

D. CC relacionou-se sexualmente com outro(s) homem(ns), no período compreendido desde 2016 até 11 de setembro de 2019.

E. CC apregoava que o pai do seu filho BB é o falecido HH.

F. CC afirmou junto de várias pessoas que: «Tive de me endividar, mas o resultado do teste foi do meu agrado, o teste deu positivo, portanto o pai é o AA, e o resto é resto…».

G. CC apregoou por toda a vila de ..., para quem a quisesse ouvir, que manipulou a realização do exame pericial no âmbito da averiguação oficiosa realizada e mencionada em 8 e, consequentemente, o resultado do mesmo, afirmando que a criança BB não é filho do Réu.

H. O Réu recebeu, na sua caixa de correio, uma carta anónima, cujo teor, constante do artigo 18.º da contestação, se dá aqui por integralmente reproduzido.

c) Apreciação da restante questão objeto do recurso

O requerente impugnou a matéria de facto para, procedendo, ilidir a presunção estabelecida no artigo 1871.º, n.º 1, alínea e), do Código Civil, que se basta com a criação da dúvida, o que foi logrado, sustenta o Réu, relativamente à sua paternidade, o que implica a improcedência da ação.

A reanálise do aspeto jurídico da sentença estava dependente da procedência do recurso na parte relativa à impugnação da matéria de facto.

Como a matéria de facto não sofreu alteração relevante, o recurso também improcede quanto ao seu aspeto jurídico, uma vez que não vem colocada em causa a solução jurídica exarada na sentença tendo em consideração a matéria de facto aí declarada provada.

No entanto, dir-se-á algo, ainda, quanto ao bom fundamento da decisão recorrida.

É certo que o n.º 2 do artigo 1871.º do Código Civil dispõe que «A presunção (de paternidade) considera-se ilidida quando existam dúvidas sérias sobre a paternidade do investigado.»

Porém, como se refere na sentença e consta dos autos, foram realizados dois testes de paternidade e ambos apontaram para a probabilidade do Réu ser pai do menor, o primeiro com uma probabilidade de 99,99999999999% e o segundo com uma probabilidade de 99,9999999999999996%.

O primeiro exame foi realizado pela Delegação Norte do Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses e analisou 24 polimorfismos de ADN e o segundo foi realizado na Delegação Centro do mesmo Instituto e analisou 33 polimorfismos de ADN.

Ora, sabendo-se que aquelas percentagens representam a probabilidade do Réu ser o pai biológico da criança no confronto com a probabilidade de qualquer outro indivíduo ser o pai, mesmo que se provasse que a mãe do menor teve relações sexuais com o mencionado HH, durante o período legal da conceção do menor, mesmo assim, face ao resultado dos exames, principalmente do segundo exame, a convicção formar-se-ia no sentido de que o Réu é o pai do menor.

Porquanto, face a tais exames, não se formam dúvidas, muito menos sérias, de que o Réu não seja o pai do menor e daí que não se possa formar a convicção afirmando o incerto quando estamos na posse do que sabemos ser certo.

Cumpre, pelo exposto, julgar o recurso improcedente e manter a sentença recorrida.

IV. Decisão

Considerando o exposto, julga-se o recurso improcedente e mantém-se a decisão recorrida. Custas pelo Réu.


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Coimbra, 14 de junho 2022