Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
411/22.0T8CVL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ANA CAROLINA CARDOSO
Descritores: CONTRAORDENAÇÃO
RESPONSABILIDADE DAS PESSOAS COLECTIVAS
ATIPICIDADE
ABSOLVIÇÃO
Data do Acordão: 01/11/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: CASTELO BRANCO (JUÍZO LOCAL DA COVILHÃ)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CONTRAORDENACIONAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ART. 7.º, N.º 2, DO RGCO
Sumário: I – Para que as pessoas colectivas possam ser responsabilizadas pelas contraordenações “praticadas pelos seus órgãos no exercício das suas funções” é estritamente necessária a indicação da entidade singular (órgão, agente, representante ou trabalhador) perpetrante dos pertinentes factos e a determinação da relação destes com o ente colectivo.

II – A insuficiência dos factos para sustentar a imputação à arguida da conduta ilícita geradora da responsabilidade contraordenacional determina declaração de absolvição.

Decisão Texto Integral:

Acórdão deliberado em conferência na 5ª seção criminal do Tribunal da Relação de Coimbra


I.

Relatório


A arguida “A..., Lda.” veio interpor recurso da decisão proferida pela Exma. Juiz do Juízo Local Criminal ..., comarca ..., no processo de recurso de contraordenação n.º ...0..., que decidiu

Negar provimento à impugnação judicial e, em consequência, confirmar a decisão administrativa que condenou a arguida, pela prática de uma contraordenação p.e p. pelo art. 30º do Dec.-Lei n.º 251/98, de 11.8, na coima de € 2.000,00.


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1.1.  Conclusões do recurso (transcrição integral):

«1 - O ora recorrente pela sentença em crise foi condenado pela prática de uma contraordenação prevista pelo art. 30º nº 1 al. a) e c) do Decreto lei nº 251/98, numa pena de multa/coima de 2.000,00 €.

2 - O ora recorrente não se conforma com a sentença proferida nos autos, pelo que interpôs recurso que agora motiva e por uma questão de economia processual dá-se aqui por integralmente reproduzida a sentença ora em crise.

3 - O presente Recurso prende-se com a apreciação e valoração de toda a prova junta, requerida e produzida nos autos e, consequentemente, com a decisão proferida pelo Mmo. Juiz “a quo”, que in casu decidiu, condenar o Recorrente pela pratica da contraordenação.

4 - Entende o ora Recorrente que existe uma contradição insanável entre os pontos 3 e 6 dos factos dados como provados.

5 - Efetivamente a Meritíssima Juiz a Quo entende que a recorrente agiu com dolo eventual, e não negligentemente, nomeadamente “A recorrente ao utilizar o veiculo nessas condições representou como consequência possível da sua conduta a violação de um comando legal e não se absteve de a empreender, conformando-se com a produção desse resultado”.

6 - Se assim fosse, e se assim tivesse agido a recorrente, não teria mandado pintar a viatura na parte superior.

7 - Pelo que a atuação e conduta da arguida foi negligente, uma vez que agiu sem o dever de cuidado que sobre ela impendia, tendo de imediato regularizado a pintura da viatura de acordo com o estabelecido na Lei.

8 - Razão pela qual entende a Recorrente que existe uma contradição insanável entre os pontos 3 e 6 dos factos dados como provados. Assim sendo, necessário se torna que seja alterado o ponto três da matéria de facto dada como provado, que deverá passar a ter a seguinte redação “A recorrente ao utilizar o veiculo nessas condições, agiu sem o dever de cuidado que sobre ela impendia”.

9 - Entende o Recorrente que, o Mmo. Juiz “a quo” não apreciou, como lhe competia, todas as provas compulsadas e errou na apreciação das mesmas, designadamente por violação das regras da experiência comum.

10 - Este vício de raciocínio na apreciação da prova, evidencia-se aos olhos de um homem médio, pela simples leitura da decisão, e consiste basicamente, em o Mmo. Juiz “a quo” ter decidido sem ter a certeza, porque a prova produzida não o permite.

11 - Na verdade, não se trata de discordância quanto à forma como o Tribunal apreciou a prova, dentro daquilo que é e, deve ser, o seu livre arbítrio, mas antes, e tão-somente, porquanto no âmbito de um processo racional extraiu uma conclusão ilógica e violadora das regras da experiência comum.

12 - Resulta da decisão ora crise, uma evidente contradição entre a fundamentação e motivação dos factos dados como provados.

13 - Pelo que, atrás se deixa exposto, entende o Recorrente, que padece a sentença ora em crise também do vício de contradição entre os factos provados e a respetiva fundamentação, previsto no nº 2, alínea b) do Artº 410º do C.P.P.,

14 - Em face do anteriormente exposto, e sem prescindir a atuação da ora arguida apenas pode ser encarada como negligente.

15 - Para além do mais a ora arguida é primária, nunca tendo praticado anteriormente, aos factos descritos nos autos de notícia e da sentença ora em crise, nem posteriormente qualquer outra contraordenação, resulta comedida a gravidade da contraordenação, tendo presente que a recorrente já sanou, além, de não se terem apurado as reais consequenciais advenientes da prática da infração, nem o concreto prejuízo verificado.

16 - É contida e diminuta a culpa da recorrente, não relevando uma completa indiferença perante o cumprimento das suas obrigações legais

17 - Não resultaram provados quaisquer benefícios económicos que a recorrente retirou do cometimento da contraordenação e as exigências de prevenção especial assumem diminuta relevância.

18 - Entendemos que a função da sanção não é somente a de punir, mas também, a de educar e influenciar o comportamento futuro das unidades de exploração pecuária principalmente, fazendo a distinção entre, por um lado, aquelas que efetivamente têm uma conduta habitualmente transgressora às regras que lhe são impostas pela sua que estas últimas, mesmos que consideradas transgressoras, fiquem “premiadas”, relativamente àquelas.

19 - Dos factos dados como provados, resulta claro que a ora recorrente já regularizou e sanou a situação da caracterização e pintura da viatura de acordo com a legislação em vigor.

20 - Acresce ainda o facto de, e de acordo com os factos dados como provados, e da fundamentação da sentença, ao invés do que fez, devia e tinha de fazer um juízo de prognose favorável à arguida,

21 - Pelo que, devia o Tribunal a “a quo” ter suspenso a sanção ainda que acompanhada de uma sanção acessória que imponha medidas adequadas à prevenção do cometimento de futuras contraordenação, o que no presente caso já a ora recorrente o fez voluntariamente, ou podia e devia o Tribunal ainda ter optado pela admoestação e ou atenuação especial da sanção.

22 - Em face do exposto, a sentença viola o disposto no artigo 379º nº 1 alínea c) do CPP; no art. 58.º do Decreto Lei n.º 433/82, de 27 de outubro, no artigo 40º da Lei 50/2006 de 29 de agosto, no art. 20.º-A da LQCOA e n.º 4 do art. 30.º da LQCOA»


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1.2. Resposta do Ministério Público: apresentou uma bem estruturada resposta, defendendo a manutenção da decisão recorrida.

1.3. Nesta Relação, a Exma. Procurador-geral Adjunta pronunciou-se pela improcedência do recurso.

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II.

Decisão recorrida

 (transcrição da parte relevante para a decisão do recurso):


«(…) Factos Provados

Consideram-se assentes os seguintes factos:

1. No dia 12-11-2018, em ação de fiscalização desenvolvida pela GNR/destacamento de trânsito de ..., verificou-se que a ora recorrente efetuava transporte de serviço de aluguer/táxi, com início em ... e destino a ..., através do veículo ligeiro de passageiros com a matrícula ..-MZ-...

2. Tal viatura, à data referida em 1 encontrava-se pintada de verde-mar somente cerca de 10 cm na parte superior, não estando a parte superior do veículo totalmente coberta por essa cor.

3. A recorrente, ao utilizar o veículo nessas condições representou como consequência possível da sua conduta a violação de um comando legal e não se absteve de a empreender, conformando-se com a produção desse resultado.

4. A recorrente agiu livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que tal conduta era proibida e legalmente punida.

5. O legal representante da recorrente é taxista há 18 anos.

6. A viatura em causa já se encontra pintada na parte superior de verde-mar, na sua totalidade.

7. O legal representante aufere cerca de 960,00 euros.

8. A recorrente tem cerca de 2000,00 euros de lucro por mês.

9. O legal representante da recorrente em 3 filhos, um já maior mas todos ainda a seu cargo.

10. A recorrente é composta por três taxistas.

(…)

III.    Fundamentação de Direito:

(…).

IV. Da sanção aplicável:


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III.

Conhecimento do recurso


Encontra-se o objeto do recurso limitado pelas conclusões apresentadas pelo recorrente. São as conclusões da motivação que delimitam o âmbito do recurso, pelo que se ficam aquém, a parte da motivação que não consta das conclusões não é considerada, e se forem além também não são consideradas, porque a motivação das mesmas é inexistente ([1]).
Desde logo, é ininteligível a referência ao normativo constante dos arts. 379º, n.º 1, al. c), do Código de Processo Penal, e 58º do Dec.-Lei n.º 433/82, de 27.10, uma vez que em lado algum da motivação recursiva vem alegada a nulidade da sentença proferida em 1ª instância ou da decisão da autoridade administrativa, concretamente a omissão de pronúncia.
De igual forma não se encontra motivada a pretendida existência do vício de contradição entre a fundamentação e motivação dos factos dados como provados, que se encontra invocada de forma genérica, sem qualquer fundamento ou sustentação – razão porque se torna impercetível.
Por essa razão, não serão essas matérias consideradas no conhecimento do recurso.

O objeto do presente recurso, tendo em conta o mencionado e as restantes conclusões formuladas, resume-se às seguintes questões:
a) Vícios da decisão;
b) Suspensão da sanção.

Conhecendo


A) Vícios da decisão:

Na peça recursiva vem invocado padecer a decisão recorrida de dois vícios, a saber, os previstos no art. 410º, n.º 2, als. b) e c), do Código de Processo Penal.

Resulta do texto da norma que os vícios aí previstos se inserem no conhecimento da matéria de direito no recurso, ainda que com influência na decisão sobre a matéria de facto. Por essa razão, a verificação de qualquer um dos vícios tem de resultar, apenas e só, do texto da decisão recorrida, com o eventual recurso suplementar às regras da experiência comum – constituindo uma autêntica tarefa de direito.
Assim, estatui o art. 410º, n.º 2, do Código de Processo Penal:

Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:
a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
b) A contradição insanável entre a fundamentação e a decisão;
c) Erro notório na apreciação da prova”.

A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, vício previsto na al. b) do n.º 2 do art. 410º do CPP, ocorre quando se verifica uma contradição na própria matéria de facto fundamento da decisão de direito, seja entre os factos declarados provados e não provados, quer entre a fundamentação probatória da matéria de facto. Assim, “há contradição insanável da fundamentação quando, fazendo um raciocínio lógico, for de concluir que a fundamentação leva precisamente a uma decisão contrária àquela que foi tomada ou quando, de harmonia com o mesmo raciocínio, se concluir que a decisão não é esclarecedora, face à colisão ente os fundamentos invocados; há contradição entre os fundamentos e a decisão quando haja oposição entre o que ficou provado e o que é referido como fundamento da decisão tomada; e há contradição entre os factos quando os provados e os não provados se contradigam entre si ou por forma a excluírem-se mutuamente” ([2]).

O erro notório na apreciação da prova, previsto como um vício da decisão no art. 410º, n.º 2, al. c), do CPP, é a desconformidade entre os factos provados e a prova produzida em audiência, o erro ostensivo e evidente que qualquer homem de formação média dele dá imediatamente conta, através do que consta da decisão recorrida, por se fundar em juízos ilógicos, arbitrários ou que desrespeitem as regras sobre o valor da prova vinculada ou das leges artis ([3]).

Constituindo o erro notório na apreciação da prova uma desconformidade com a prova produzida em julgamento ou com as regras da experiência (a saber, decidiu-se contra o que se provou ou não provou, ou deu-se como provado o que não pode ter acontecido), nunca se inclui no mesmo uma sindicância do recorrente à forma como o tribunal recorrido valorou as provas perante si produzidas em audiência de julgamento, segundo o princípio da livre apreciação da prova, consignado no art. 127º do CPP.

Vejamos agora os fundamentos recursivos:


a) Contradição entre os factos provados sob os pontos 3 e 6:
Os factos em causa são do seguinte teor:
3. A recorrente, ao utilizar o veículo nessas condições representou como consequência possível da sua conduta a violação de um comando legal e não se absteve de a empreender, conformando-se com a produção desse resultado.;
6. A viatura em causa já se encontra pintada na parte superior de verde-mar, na sua totalidade

Pretende a recorrente, com a invocação deste vício, a alteração do ponto 3 transcrito, defendendo que passe a ter a seguinte redação: “A recorrente ao utilizar o veículo nessas condições agiu sem o dever de cuidado que sobre ela impendia”.

Ora, resume-se a dita pretensão numa alteração do tipo de culpa, passando de uma das formas de dolo para a forma negligente. Sucede que o facto provado em 6 nada tem que ver com a forma de culpa da atuação do agente (em dimensão que depois se mencionará), não decorrendo a pretendida falta de cuidado do facto de o veículo se encontrar parcialmente pintado.


b) Erro na apreciação da prova e Contradição entre a fundamentação e motivação dos factos dados como provados:

A recorrente invoca que o tribunal a quo extraiu da prova uma conclusão “ilógica e violadora das regras da experiência comum”, e ainda que a decisão padece de contradição entre a fundamentação e motivação dos factos dados como provados.

Para sustentar estas ilações, limita-se a convocar jurisprudência que descreve os pressupostos dos vícios referidos, sem que descreva em concreto a razão porque defende que os mesmos se verificam na decisão sob recurso.

O que equivale, de igual forma, a falta de motivação, como acima se mencionou.

De qualquer modo, sendo os vícios da decisão de conhecimento oficioso, não podemos deixar de referir que compulsada a decisão recorrida não vislumbramos que a mesma enferme das deficiências a que se referem as alíneas b) e c) do n.º 2 do art. 410º do Código de Processo Penal.

Outro tanto se não pode dizer quanto ao prescrito na al. a) do mesmo preceito legal, que passamos oficiosamente a conhecer – uma vez que não se mostra invocado.
Assim,


c) Insuficiência para a decisão da matéria de facto provada:

A sentença incorre no vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada quando se verifica lacuna no apuramento dos factos necessários à decisão de direito. Dito de outra forma, este vício ocorre nos casos em que a matéria de facto apurada, no seu conjunto (factos provados e factos não provados), é incapaz de suportar em abstrato a decisão, condenatória ou absolutória ([4]).

Na verdade, a imputação de uma contraordenação a uma pessoa coletiva depende sempre de uma ação ou omissão «livre na causa», ou seja, de uma “estruturação do direito sancionatório a partir do facto” ([5]).

Ora, o art. 7º, n.º 2, do Dec.-Lei n.º 433/82, de 27.12 (Regime Geral das Contraordenações, doravante RGCO), estabelece que “As pessoas coletivas ou equiparadas serão responsáveis pelas contraordenações praticadas pelos seus órgãos no exercício das suas funções” (sublinhado nosso).

Encontra-se, pois, consagrada no direito contraordenacional português a regra da responsabilidade da pessoa coletiva de acordo com o modelo de imputação orgânica: “só o ato cometido no exercício das suas funções responsabiliza a pessoa coletiva (…). Para responsabilizar a pessoa coletiva é suficiente que a conduta seja praticada ou determinada em seu nome por órgão juridicamente vinculante da vontade coletiva, sendo irrelevante a circunstância de não se ter identificado o nome do titular do órgão ou representante a quem seja atribuída pessoalmente a conduta da pessoa coletiva” ([6]).

Se não se encontrarem concretizadas as condutas que, por ação ou omissão, são imputadas à pessoa coletiva na decisão, não será possível retirar o alcance, objetivo e subjetivo, das condutas em causa, pelo que não poderá haver responsabilidade contraordenacional ([7]).

Ora, na sentença sob recurso em lado algum se encontra identificado o ou os legais representantes da arguida/recorrente, ignorando-se ainda quem foi o autor da conduta contraordenacional em causa nos autos. Tal identificação e imputação factual mostram-se imprescindíveis à imputação (orgânica) da ação ou omissão à pessoa coletiva, por se não mostrar minimamente indiciado o preenchimento do pressuposto exigido pela 2ª parte do n.º 2 do art. 7º do RGCO, transcrito (praticadas pelos seus órgãos no exercício das suas funções).

Na realidade, a pessoa coletiva só poderá ser responsabilizada por uma contraordenação se existir conexão entre a atuação ou omissão geradora da ilicitude por parte do órgão, agente, representante ou trabalhador e as suas funções no âmbito da prossecução do objeto da pessoa coletiva. É fundamental para a imputação da contraordenação à pessoa coletiva que o representante naquela situação concreta tenha atuado por causa das suas funções.

No caso dos autos, percorrida a matéria de facto provada surgem-nos várias estupefações: mas era a pessoa coletiva que efetuava o transporte? A pessoa coletiva não conduz, e não vem identificado quem o fazia. Refere-se a seguir que a recorrente, pessoa coletiva, representou como consequência possível da sua conduta a violação de um comando legal… conformando-se com a produção desse resultado. Atribui-se uma determinada intencionalidade, vontade, decisão e consciência da ilicitude a uma pessoa coletiva???? Quem omitiu a exigida pintura do veículo e permitiu que o mesmo circulasse em execução do objeto social da arguida????

Em suma, nada consta dos factos provados que nos permita ajuizar se podemos imputar a uma pessoa que integre os órgãos da pessoa coletiva a conduta ilícita aqui em causa, bem como que a pessoa que representa a arguida terá atuado no exercício das suas funções.

A responsabilização da pessoa coletiva exige, no domínio do direito penal e do direito contraordenacional, que o facto seja imputável à conduta ou violação de deveres de uma pessoa qualificada, detentora da qualidade de titular de órgão ou de representante da pessoa coletiva. “O juízo sobre a responsabilidade da pessoa coletiva pressupõe que se atenda ao quadro de competências da pessoa física e ao modo como elas foram concretamente exercidas” (…). Só desta forma se pode aferir da gravidade, objetiva e subjetiva, do facto, realizado em nome e no interessa da pessoa jurídica, por aqueles que têm o poder de a vincular” ([8]).

Ora, os factos que suportam o juízo de imputação do ilícito contraordenacional à pessoa coletiva integram o objeto do processo, pelo que têm de constar do despacho de acusação, constituindo a respetiva prova pressuposto da condenação da pessoa coletiva.

O que não sucede no caso de que nos ocupamos.

Não sendo a matéria de facto suficiente para sustentar a imputação à arguida/recorrente da conduta ilícita geradora de responsabilidade contraordenacional impõe-se concluir pela insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, conforme previsto no art. 410º, n.º 2, al. a), do Código de Processo Penal ([9]).

A insuficiência detetada não é suprível nesta instância de recurso, desde logo por não ter sido requerida a renovação da prova (art. 430º, n.º 1), o que determinaria o reenvio dos autos para novo julgamento (arts. 426º, n.º 1, e 426º-A) a fim de determinar a pessoa que representa a arguida e a pessoa que concretamente agiu e/ou praticou os factos, bem como se o fez no exercício das suas funções ou de ordens transmitidas pelo representante da arguida. No entanto, o reenvio resultaria na violação do princípio da vinculação temática do tribunal, pois não pode a 1ª instância indagar factos que não constem da decisão administrativa impugnada, que vale como acusação mediante a sua apresentação em juízo pelo Ministério Público na sequência de impugnação deduzida (art. 62º, n.º 1, do RGCO). Recorde-se que a acusação fixa os poderes de cognição do tribunal, emanação do princípio do acusatório e dos mais basilares direitos de defesa do arguido.

Os factos em falta extravasam, por outro lado, os conceitos de alteração não substancial e de alteração substancial dos factos, não cabendo no caso recurso aos mecanismos previstos nos arts. 358º e 359º do Código de Processo Penal.

Assim, outra solução não resta senão a absolvição da arguida, conforme decidiu esta Relação no recente acórdão de 13.12.2022 (proc. 11/22.5T8CNF.C1, rel. Pedro Lima) ([10]).

            Face ao exposto, torna-se inútil o conhecimento das questões suscitadas no recurso interposto.


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IV.

DECISÃO



Pelo exposto, julga-se verificado o vício previsto no art. 410º, n.º 2, al. a), do Código de Processo Penal, e, por insuprível, absolve-se a arguida “A..., Lda.” da contraordenação por cuja prática havia sido condenada.

Sem tributação.


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Coimbra, 12 de janeiro de 2023

Ana Carolina Cardoso (relatora – processei e revi)

João Novais (adjunto)

Pedro Lima (adjunto)





[1] v. Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, vol. 3, 2015, págs. 335-336.
[2] Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos Penais, 8ª ed., pág. 77-78.
[3] cf. Simas Santos e Leal-Henriques, ob. cit., pág. 72 e ss., e Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, Do Procedimento, Univ. Católica, 2018, pág. 323 e ss.
[4] Pereira Madeira, “Código de Processo Penal Comentado”, 2ª ed., em anotação ao art. 410º, pág. 1274. No mesmo sentido, Paulo Pinto de Albuquerque, “Comentário do Código de Processo Penal”, 4ª ed., pág. 1080 e ss.
[5] Paulo Pinto de Albuquerque, “...”, 2ª ed., 2022, pág. 53.
[6] Ob. cit. na nota anterior, pág. 58.
[7] Ob. cit., págs. 58-59, e Ac. da Relação ... de 16.12.2021, rel. AA, em www.direitoemdia.pt.
[8] Cf. BB, “Questões Fundamentais de Direito Penal da Empresa”, pág. 109.
[9] No mesmo sentido, Paulo Pinto de Albuquerque, ob. cit., pág. 59, bem como o Ac. da R... citado, divergindo neste caso da solução aí adotada.
[10] No mesmo sentido, Paulo Pinto de Albuquerque, ob. e loc. cit., e ainda o Ac. desta Relação cit. no aresto referido, de 18.3.2015, rel. CC.