Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
123/10.8TBPBL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: REGINA ROSA
Descritores: TÍTULO EXECUTIVO
ARRENDAMENTO URBANO
NOTIFICAÇÃO
FALTA DE PAGAMENTO DA RENDA
VALOR
FALTA
LICENÇA DE UTILIZAÇÃO
Data do Acordão: 12/13/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE POMBAL – 3º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 9º, 15º, NºS 1 E 2 DO RAU; D.L. Nº 160/06, DE 8/8
Sumário: I - O artº 15º, nº 1 do RAU criou um conjunto de novos títulos executivos extrajudiciais de que o senhorio pode lançar mão em acção executiva para entrega de coisa certa.

II – E pelo nº 2 criou-se um título executivo por referência à execução para pagamento de quantia certa – pagamento de renda.

III – Com efeito, o contrato de arrendamento é título executivo para a acção de pagamento de renda quando acompanhado do comprovativo de comunicação ao arrendatário do montante em dívida.

IV – A Lei (DL nº 160/06, de 8/8) prevê a exigência de certas formalidades para o contrato de arrendamento, designadamente a licença de utilização.

V – O legislador considerou válido o contrato não obstante a falta de licença de utilização, pelo que o facto de o contrato de arrendamento não possuir licença de utilização não é causa de ineficácia do mesmo.

Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA

I- RELATÓRIO

            I.1- «S… – Sociedade …, Ldª», opôs-se à execução para pagamento de quantia certa que lhe foi movida por «P…, S.A.», e na qual o título executivo apresentado é o contrato de arrendamento celebrado entre as partes e a notificação do agente de execução do valor das rendas em dívida.

            Substancialmente, invoca a nulidade do título executivo alegando que o contrato de arrendamento junto aos autos pela exequente é nulo uma vez que do mesmo não consta a licença de utilização nem a ela é feita qualquer menção, dado que o imóvel objecto do contrato de arrendamento não possui licença de utilização. Mais alega que a considerar-se existir título executivo, o mesmo apenas servirá para reclamar o pagamento de rendas por parte de um senhorio cumpridor a um arrendatário incumpridor, o que não é o caso dos autos, nada havendo, assim, a justificar o montante peticionado a título de rendas.

            Termina dizendo que resolveu o contrato referido, e que ficou lesada em montante cujo ressarcimento exige da exequente em reconvenção.

            A exequente contestou, dizendo que a lei não estabelece a nulidade quando não consta do contrato de arrendamento a identificação da licença de utilização.

Mais alega que do contrato de arrendamento resultaram direitos e deveres para ambas as partes que se mantiveram enquanto o contrato esteve em vigor, sendo que para a executada o contrato é fonte de uma obrigação - o pagamento da renda, obrigação essa que independentemente do vício do contrato se manteve e à qual se sujeita a executada na sua qualidade de inquilina, acrescentando que o contrato de arrendamento é suficiente e bastante para comprovar a constituição da obrigação da executada ao pagamento da renda.

            Proferiu-se despacho saneador, no qual, conhecendo-se do pedido reconvencional, entendeu-se não ser o mesmo admissível.

            Considerando-se habilitado a conhecer desde já do pedido, o juiz proferiu sentença nessa fase, nos termos do art.510º/1-b) do C.P.C., julgando improcedente a oposição.

            I.2- A executada/opoente apelou, concluindo as alegações recursivas pela forma seguinte:

...

            I.3- Não houve contra-alegações.

            Nada obstando ao conhecimento do objecto do recurso, cumpre apreciar e decidir.

           

II - FUNDAMENTOS

            II.1 - de facto

            A exequente P… deu à execução o contrato de arrendamento para comércio, de duração limitida e renda livre, celebrado em 10.3.06 entre ela, como senhoria, e a executada «S…», como inquilina, tendo por objecto a fracção E do prédio urbano com o nº…, e a notificação levada a cabo pelo agente de execução à executada, em 15.12.09, do valor das rendas em dívida.

            II.2 - de direito

            A questão essencial colocada neste recurso, é a de saber se o assinalado contrato de arrendamento é nulo por a fracção E locada não ser possuidora de licença de utilização, acarretando a nulidade do título executivo.

            A 1ª instância não considerou assim, e com razão.

            Principia a recorrente por apontar à sentença os vícios da nulidade contemplada no art.668º/1-b) e d) do C.P.C., porque não foi apreciada o facto alegado de inexistência de utilização, o que revela, em seu entender, falta de fundamentação e falta de pronúncia dos factos.

            Não nos vamos alongar em considerandos, tal a manifesta falta de consistência das invocadas nulidades.

Desde logo, confundindo-se erro de actividade (erro formal) que entram nas nulidades a que se refere o art.668º, com o erro de juízo ou de julgamento (vício substancial) que incide sobre o litígio propriamente dito e que só pode corrigir-se mediante recurso para o tribunal superior.

Verifica-se a nulidade contemplada na al.b), quando na sentença ocorra total omissão dos fundamentos de facto ou de direito em que assenta a decisão, situação que aqui não ocorreu, pois a sentença recorrida está suficientemente fundamentada, quer de facto quer na aplicação do direito.

Quanto à nulidade da al.d), reportada à omissão ou excesso de pronúncia, também ela não se verifica na sentença, pois o juiz conheceu da invocada falta de licença de utilização, ainda que por referência à falta de alusão da mesma no contrato. Falta de menção por inexistência de licença, disso dando notícia a exequente. Desse facto concluiu o tribunal que o contrato não era nulo, ao contrário da posição assumida pelo recorrente. Se discordava da análise feita pelo tribunal, não se lhe impunha arguir o vício apontado, bastando-se com a imputação de erro de julgamento, porque, ao fim e ao cabo, o que está em causa é a nulidade ou não do contrato que o título formaliza.

Não ocorrem, manifestamente, as nulidades suscitadas.

            Vejamos, então, a questão de fundo.

            A exequente/senhoria veio reclamar rendas em dívida, e por isso usou a acção executiva para pagamento de quantia certa regulada nos arts.810º e segs. C.P.C., para a qual constitui título executivo o contrato de arrendamento, acompanhado do comprovativo da comunicação ao arrendatário do montante em dívida.

            Com efeito, o art.15º/1 do NRAU criou um conjunto de novos títulos executivos extrajudiciais de que o senhorio pode lançar mão em acção executiva para entrega de coisa certa. E pelo nº 2 criou-se um título executivo por referência à execução para pagamento de quantia certa – pagamento de renda. Aí se prevê que “o contrato de arrendamento é título executivo para a acção de pagamento de renda quando acompanhada do comprovativo de comunicação ao arrendatário do montnate em dívida”.

            Baseando-se a execução em título extrajudicial, além dos fundamentos de oposição especificados no art.814º na parte em que sejam aplicáveis, poderão alegar-se quaisquer outros que seja lícito deduzir como defesa no processo de declaração (art.816º).

            Estando em causa um título negocial, pode ocorrer desconformidade entre ele e o negócio subjacente impedindo o seguimento da execução.

            Na situação em exame, a executada/inquilina veio suscitar a nulidade do contrato de arrendamento por não constar do mesmo a licença de utilização, elemento que seria condição da sua validade substancial.

            A lei (DL160/06, de 8.8), prevê a exigência de certas formalidades para o contrato de arrendamento, designadamente a licença de utilização. Assim, nos termos do art.2º desse diploma, quando o contrato deva ser celebrado por escrito, deverá conter: b)- a existência da licença de utilização, o seu número, a data e a entidade emitente, ou a referência a não ser aquela exigível.

            Por sua vez, dispõe o art.5º/1 do referido DL, que “só podem ser objecto de arrendamento urbano os edifícios ou as suas fracções cuja aptidão para o fim pretendido pelo contrato seja atestado pela licença de utilização”.

            A inobervância do aí disposto por causa imputável ao senhorio “determina a sujeição do mesmo a uma coima (…), salvo quando a falta de licença se fique a dever a atraso que não lhe seja imputável”- nº 5, podendo o arrendatário resolver o contrato, com direito a indemnização nos termos gerais – nº 7.

            Também o art.9º do R.A.U., em vigor à data do contrato, não sancionava com a nulidade os contratos de arrendamento concluídos sem que exista licença de utilização bastante. Dispunha esse artigo que “só podem ser objecto de arrendamento urbano os edifícios ou suas fracções cuja aptidão para o fim pretendido pelo contrato seja atestado pela licença de utilização, passada pela autoridade municipal competente, mediante vistoria realizada menos de oito anos antes de celebração do contrato”.

            A falta deste elemento por causa imputável ao inquilino importava, nos termos dos nº5 e 6 desse art.9º, a sujeição do senhorio a uma coima, a ver resolvido o contrato com indemnização nos termos legais, e a ver o inquilino a requerer a sua notificação para a realização das obras necessárias, com manutenção da renda inicialmente fixada. Portanto, as consequências previstas nesse preceito são diversas da nulidade.

            No caso, e de acordo com a informação dada pela exequente na parte final da contestação, a fracção E dada de arrendamento ainda não é possuidora de licença de utilização.

            A consequência dessa omissão não é, porém, a nulidade como defende a recorrente, mas antes o que prescrevem os nº5 e 7 do art.5º acima citado. A sanção aí prevista leva-nos a concluir que o legislador considerou válido o contrato não obstante a falta de licença de utilização. Tal como no R.A.U. ao prever que o inquilino possa resolver o contrato (art.9º/5 e 6), isso pressupunha a validade do contrato.[1]

            Em suma, o facto de o contrato de arrendamento que se pretende fazer valer não possuir licença de utilização, não é causa de ineficácia do mesmo. Logo, é de admitir, como foi, execução nele fundada para cobrança de rendas, nos termos do apontado art.15º/2.

            A recorrente insurge-se ainda contra a decisão que não admitiu o pedido reconvencional.

Também neste ponto falece-lhe razão.

Em reconvenção, pede que a exequente seja condenada pagar-lhe a quantia de cerca de 57.000,00 €, correspondente a prejuízos que invoca em resultado da inexistência da licença de utilização.

Fundando-se a execução, como se disse, num título executivo extrajudicial, o executado está perante o requerimento executivo do exequente na mesma posição em que estaria perante a petição inicial da correspondente acção declarativa. Consequentemente, pode alegar em oposição à execução tudo o que fosse lícito deduzir como defesa àquela acção. Pode alegar matéria de impugnação e de excepção, mas já não pode reconvir, pois a reconvenção não é um meio de defesa mas de contra-ataque. O escopo da oposição é obstar ao prosseguimento da acção executiva mediante a eliminação, por via indirecta, da eficácia do título executivo enquanto tal. Por isso, não faz sentido a reconvenção no processo executivo.[2]

Vem agora o recorrente falar em compensação de créditos, excepção não invocada na oposição, pois não foi feita qualquer declaração de se querer compensar, como prescreve o art.848º/C.C.. Por isso, esta questão não foi objecto de apreciação na instância recorrida. Como tal, é questão nova fora do alcance dos poderes de reponderação deste tribunal.

Isto posto, improcedem as conclusões do recurso e, consequentemente, este.

                       

III - DECISÃO

Acorda-se, pelo exposto, em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a sentença apelada.

Custas pela apelante.        

Regina Rosa (Relatora)

Artur Dias

Jaime Carlos Ferreira


[1]   Cfr. Ac. R.C. de 10.1.06, CJ I/06-5, por nós relatado, e Ac. STJ de 10.10.06 - proc.06A2275
[2]   Cfr. J. Lebre de Freitas, «A acção executiva», pág.151 a 158