Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1262/12.6TBGRD-C.C2
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALBERTO RUÇO
Descritores: PROCESSO TUTELAR CÍVEL
RESPONSABILIDADES PARENTAIS
PROVA PERICIAL
SÍNDROME DE ALIENAÇÃO PARENTAL
Data do Acordão: 05/21/2019
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DA GUARDA - GUARDA - JL CÍVEL - JUIZ 2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS.20 Nº4 CRP, 6 CPC, 39 RGPTC.
Sumário: I – Como resulta do disposto no artigo 39.º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível, entre outras disposições deste diploma, o processo tutelar cível não exclui a intervenção de entidades externas que complementem as equipas multidisciplinares de assessoria técnica ao tribunal, mas, em regra, o contributo destas equipas multidisciplinares é suficiente para alcançar uma decisão adequada.

II – No caso concreto, colocando-se a hipótese de alienação parental promovida pelos avós maternos, justifica-se o indeferimento de uma perícia destinada a averiguar tal alienação quando esta eventualidade foi denunciada nos autos pelo pai da menor e nenhuma das entidades que intervieram nos autos a sufragou como credível e, além disso, se verifica que a fraca promoção da aproximação entre pai e filha, imputável aos avós maternos, em especial ao avô, não é acompanhada de razões factuais socialmente inaceitáveis imputáveis aos avós maternos.

Decisão Texto Integral:





I. Relatório

a) O presente recurso insere-se num processo especial de alteração do exercício das responsabilidades parentais e vem interposto por J (…) pai da menor N (…), e respeita à decisão que recaiu sobre o pedido do recorrente no sentido de ser realizada uma perícia destinada a averiguar se está ou não está em curso um processo de alienação parental promovido pelos avós maternos da menor, especialmente pelo avô, dirigido ao recorrente.

b) Vejamos os respetivos passos processuais.

1 - O recorrente, em 2 de fevereiro de 2018, requereu, entre outros meios de prova, o seguinte:

«…A) EXAME PSICOLÓGICO E PSIQUIÁTRICO

Para prova dos factos alegados requer uma avaliação psicológica e psiquiátrica à menor, aos avós maternos, à Requerida e ao Requerente, por psicólogo nomeado pela ordem dos psicólogos e por psiquiatra designado pela ordem dos médicos, fora da área de influência dos avós maternos e com especiais qualificações no âmbito da alienação parental, por forma a poder determinar-se se a menor é ou não vítima de alienação parental promovida pela família materna».

2 - Os recorridos responderam nestes termos:

«Notificados da prova apresentada pelo Requerente, atento o dever de não sacrificar a menor ao excesso de interrogatórios, exames, deslocações, que só a perturbam e lhe causam mais pressão, ansiedade e desequilíbrio emocional, os requeridos opõem-se:

a) ao exame psicológico e psiquiátrico dos requeridos, ou, sem prescindir, caso assim não se venha a entender, que o mesmo se faça no Instituto de Medicina Legal de Coimbra.

b) à requisição do Relatório da Casa da Criança, em x (...) , por inutilidade».

3 - Em 21 de março de 2018 foi proferido o seguinte despacho:

« (…) VIII.

A fls. 404 e seguintes, veio o Requerente J (…) apresentar alegações, requerendo, ao nível probatório, a produção dos seguintes meios:

1. Exame psicológico e psiquiátrico à menor, avós maternos e pais nos mesmos termos supra expostos sob II);

2. Elaboração de relatório social sobre as condições de vida de ambas as partes atenta a desatualização dos já existentes nos autos;

3. A notificação de entidade terceira para elaboração e remessa de relatório sobre o comportamento, aproveitamento, integração na turma e relação com os colegas, professores e progenitores;

4. Prova testemunhal; (…).

Preceitua o n.º 5 do art.º 39.º do RGPTC que “findo o prazo das alegações previsto no número anterior e sempre que o entenda necessário, o Juiz ordena as diligências de instrução, de entre as previstas nas alíneas a), c), d) e e) do n.º 1 do artigo 21.º.”

No que tange às diligências probatórias requeridas, e tomando como fio-de-prumo a sua necessidade para a boa decisão da causa, decide-se o seguinte:

1. Em face dos elementos já constantes dos autos relativos a psicologia e psiquiatria dos intervenientes, os mesmos reputam-se-nos de suficientes para contribuírem para a tomada de decisão, não sendo, assim, necessário submeter as partes, em especial, a criança a novos exames, pelo que se indefere a realização das perícias requeridas pelo Requerente; (…)».

c) É deste despacho que vem interposto o recurso, em 17 de abril de 2018, cujas conclusões são as seguintes:

«A) A avaliação psicológica e psiquiátrica à menor, aos avós maternos, à Requerida e ao Requerente, requerida nas alegações do ora Recorrente é fundamental para se concluir se a menor é ou não vítima de alienação parental promovida pela família materna.

B) Existem vários indícios nos autos da existência de uma situação grave de alienação parental perpetrada pelos guardiões da menor – os avós maternos – contra a figura paterna, que decorrem do comportamento revelado pelos avós maternos nos presentes autos, das atitudes dos mesmos avós relatadas nos vários articulados indicados, dos Requerimentos apresentados pelos mesmos nos autos, da atitude de não promoção e dificultação da obtenção de acordos e consensos (veja-se o que sucedeu na última conferência de pais), da imputação de falsos abusos sexuais contra o ora Recorrente (vide o processo crime de que foi alvo o Requerente).

C) O mais recente relatório das Aldeias SOS relata episódios percepcionados por uma mediadora imparcial e isenta bastante graves e que merecem especial atenção.

D) Por outro lado, se forem ouvidas as declarações da menor, prestadas em sede da última conferencia de pais, constata-se que a menor diz recordar episódios passados com o pai, quando tinha 3/4 anos, que é impossível recordar-se, e utiliza expressões e faz conclusões que era impossível com tal idade fazer, tais como: “que o pai frequentava um café de drogados”, “que o pai é um drogado porque fuma muito”, “que no café se bebia muito álcool”, “que via o pai a enrolar tabaco e a esconder no ralo da casa de banho”, “que o pai dormia em casa da vizinha e que a mãe desabafava com a mesma”, “que foi abandonada pelo pai no café dos drogados”…

E) Aliás, o relatório junto recentemente aos autos pelo INML, realizado no âmbito do processo crime instaurado pelo avô materno contra o Requerente por suspeita de abuso sexual (PROC. (…) do Juízo Criminal da Guarda, 1ª Secção de Inquéritos) concluiu pela inveracidade de muitas das afirmações da menor, por falta de consistência externa entre relatos e falta de persistência nas declarações e contradições.

F) O processo crime, como não podia deixar de ser, foi arquivado.

G) Sendo certo que o processo de alienação está a produzir os seus frutos, tanto mais que há vários meses que o Requerente não está com a menor e, nos últimos anos, só conseguiu estar com a mesma na presença de uma mediadora e em média 1 (uma) vez por mês.

H) Ora, a prova da alienação parental só é possível com a realização de perícias específicas e com esse objectivo específico, entendendo o Requerente que os relatórios psicológicos que estão nos autos nenhum contributo significativo poderão ter nesta questão, uma vez que não tiveram como objectivo específico apurar da existência de alienação parental – basta constatar que o Requerente nunca foi ouvido por nenhum dos psicólogos que elaboraram os relatórios dos autos.

I) É certo que a lei portuguesa ainda não dá especial relevo a esta questão importantíssima e gravíssima e que tantos danos provoca na criança e no progenitor afectado, não a focando.

J) Mas o legislador brasileiro, percebendo a importância e a gravidade da questão, aprovou a Lei 12.318, de 26 de agosto de 2010 (disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007- 2010/2010/lei/l12318.htm), que dispõe sobre alienação parental, reconhecendo que a alienação parental viola o direito fundamental da criança ou do adolescente de convivência familiar saudável, prejudica a realização de afecto nas relações com o progenitor alienado e com o grupo familiar, e, sublinhe-se, constitui abuso moral contra o menor, consubstanciando ainda incumprimento dos deveres inerentes à responsabilidade parental ou decorrentes de tutela ou guarda (artigo 3.º).

K) Atente-se especialmente ao corpo do artigo 5.º, que determina que logo que haja indício de alienação parental o processo passe a tramitar de forma urgente, e aos seus parágrafos §1 e §2 e na importância que é dada à avaliação psicológica (§1 O laudo pericial terá base em ampla avaliação psicológica ou biopsicossocial, conforme o caso, compreendendo, inclusive, entrevista pessoal com as partes, exame de documentos dos autos, histórico do relacionamento do casal e da separação, cronologia de incidentes, avaliação da personalidade dos envolvidos e exame da forma como a criança ou adolescente se manifesta acerca de eventual acusação contra genitor) e às especiais qualificações do perito (§2 A perícia será realizada por profissional ou equipe multidisciplinar habilitados, exigido, em qualquer caso, aptidão comprovada por histórico profissional ou acadêmico para diagnosticar atos de alienação parental).

L) Importa, portanto, revogar o despacho recorrido na parte em que indefere a realização das perícias requeridas nas alegações do Requerente, determinando-se a sua realização com nota de urgência e, caso se conclua pela existência de alienação parental, devem ser tomadas as medidas repressivas e aptas a combatê-la, designadamente com a alteração da guarda parental.

M) Decidindo, como decidiu, violou o Ex.mo Juiz, designadamente, o princípio do superior interesse do menor e o artigo 21º, al. d) do RGPTC,ex vi 42º/5 do mesmo diploma.

NESTES TERMOS, e porque só assim se fará justiça, deve ser dado provimento ao recurso e, em consequência, ser revogada (parcialmente) o douto despacho recorrido na parte em que indefere a realização das perícias requeridas nas alegações do Requerente, determinando-se a sua realização com nota de urgência e, caso se conclua pela existência de alienação parental, devem ser tomadas as medidas repressivas e aptas a combatê-la, designadamente com a alteração da guarda parental».

d) O Ministério Público e os Recorridos contra-alegaram pugnando pela manutenção da decisão recorrida.

II. Objeto do recurso

Tendo em consideração que o âmbito objetivo dos recursos é balizado pelas conclusões apresentadas pelos recorrentes (artigos 639.º, n.º 1, e 635.º, n.º 4, ambos do Código de Processo Civil), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, o recurso coloca apenas uma questão, mas que será dividida em duas partes que são estas:

1 – Saber se o juiz está impedido de indeferir produção e qualquer meio de prova requerido por um dos sujeitos processuais;

2 – Sendo a resposta negativa, verificar se no caso concreto se impunha ou não a realização da perícia pretendida.

III. Fundamentação

a) Matéria de facto

A matéria factual é, neste caso, de natureza processual e consta do relatório que antecede.

b) Apreciação da questão colocada pelo recurso

1 – Vejamos se o juiz está impedido de indeferir a produção de um meio de prova requerido por um dos sujeitos processuais.

Nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 6.º do Código de Processo Civil, «Cumpre ao juiz, sem prejuízo do ónus de impulso especialmente imposto pela lei às partes, dirigir ativamente o processo e providenciar pelo seu andamento célere, promovendo oficiosamente as diligências necessárias ao normal prosseguimento da ação, recusando o que for impertinente ou meramente dilatório e, ouvidas as partes, adotando mecanismos de simplificação e agilização processual que garantam a justa composição do litígio em prazo razoável».

A lei confere ao juiz, por conseguinte, o poder de dirigir o processo de forma a conseguir obter um desfecho célere, respeitando os direitos processuais das partes, onde se incluem, naturalmente, a realização das diligências probatórias necessárias.

No que respeita a este último aspeto, o direito à prova integra o direito fundamental de acesso ao direito (artigo 20.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa), na vertente do processo justo e equitativo.

Porém, na realidade, há sempre uma tensão entre o direito processual subjetivo da parte num processo concreto e os princípios processuais comuns a todos os processos que correram e correm nos tribunais e que devem ser observados para que o valor da realização da justiça seja alcançado nesse coletivo processual.

Por isso, raramente um direito se impõe de modo absoluto, tendo, sim, ao invés, de ser exercido de modo compatível com a realização de todos os outros direitos polarizados em cada um dos sujeitos e, no caso do direito processual, com os princípios estruturais do processo.

Por conseguinte, como se referiu no acórdão do Tribunal da Relação do Porto proferido no processo n.º 7074/16.0T8VNG.P1 (Carlos Gil), «…o direito à prova não pode ser significa que todo e qualquer litigante, só por o ser, tenha o direito inderrogável a produzir prova de tudo quanto alega e toda a prova que entender. A concretização daquele direito à prova, no quadro do processo equitativo, faz-se sempre tendo em atenção a pertinência da questão probanda, bem como das provas oferecidas (entre outros, vejam-se os artigos 6º, nº 1 e 602º, nº 1, alínea d), ambos do Código de Processo Civil) ([1]).

No caso concreto, estamos perante um processo tutelar cível, de jurisdição voluntária e urgente, como resulta do disposto nos artigos 12.º e 13.º da Lei n.º 141/2015, de 08 de Setembro (Regime Geral do Processo Tutelar Cível - RGPTC), onde se dispõe, respetivamente, que «Os processos tutelares cíveis têm a natureza de jurisdição voluntária» e «Correm durante as férias judiciais os processos tutelares cíveis cuja demora possa causar prejuízo aos interesses da criança».

Ora, nestes processos, em especial quando são urgentes, «O tribunal pode (…) investigar livremente os factos, coligir as provas, ordenar os inquéritos e recolher as informações convenientes; só são admitidas as provas que o juiz considere necessárias» - n.º 2 do artigo 986.º do CPC.

Sobre a matéria da produção de provas, o Prof. Alberto dos Reis referiu a propósito dos processos de jurisdição voluntária, tendo em consideração as disposições processuais em vigor à época, mas de teor substancialmente idêntico às atuais, que «…o artigo 1448.º concede ao juiz a faculdade latitudinária de recusar a produção de quaisquer provas, requeridas ou oferecidas pelas partes, quando as julgue desnecessárias.

Também neste ponto se nota uma ampliação considerável dos poderes do juiz em matéria de jurisdição contenciosa. O juiz pode repelir o que for impertinente ou meramente dilatório (art. 266.º); pode recusar a junção de documentos impertinentes ou desnecessários (art. 556.º); mas não lhe é lícito, no processo comum, privar a parte do direito de produzir prova por depoimento de parte, por arbitramento, por testemunhas, a título de que essas provas não são necessárias.

Vê-se, pois, que, de um modo geral, o juiz goza na jurisprudência voluntária, em matéria de facto, de poderes mais extensos do que na jurisdição contenciosa» ([2]).

Face ao exposto, em geral, por se tratar de processo de jurisdição voluntária, o juiz pode recusar a produção das provas que não considere necessário produzir.

No entanto, cumpre ter ainda em consideração a especificidade do processo tutelar cível de regulação das responsabilidades parentais no âmbito do Regime Geral do Processo Tutelar Cível.

Com efeito, nos termos dos n.ºs 4 e 5 do artigo 39.º (Termo posteriores à fase de audição técnica especializada e mediação), «4. Se os pais não chegarem a acordo, o juiz notifica as partes para, em 15 dias, apresentarem alegações ou arrolarem até 10 testemunhas e juntarem documentos» e «5. Findo o prazo das alegações previsto no número anterior e sempre que o entenda necessário, o juiz ordena as diligências de instrução, de entre as previstas nas alíneas a), c), d) e e) do n.º 1 do artigo 21.º».

Por sua vez, as referidas alíneas do n.º 1 do artigo 21.º dispõem do seguinte modo:

«1. Tendo em vista a fundamentação da decisão, o juiz:

a) Toma depoimento às partes, aos familiares e outras pessoas cuja relevância para a causa reconheça, designadamente, pessoas de especial referência afetiva para a criança, ficando os depoimentos documentados em auto;

b) […];

c) Toma declarações aos técnicos das equipas multidisciplinares de assessoria técnica;

d) Sem prejuízo da alínea anterior, solicita informações às equipas multidisciplinares de assessoria técnica ou, quando necessário e útil, a entidades externas, com as finalidades previstas no RGPTC, a realizar no prazo de 30 dias;

e) Solicita a elaboração de relatório, por parte da equipa multidisciplinar de assessoria técnica, nos termos previstos no n.º 4, no prazo de 60 dias».

Como se vê pelo teor da «alínea d)», a lei prevê perícias a realizar por entidades externas, como os serviços médico-legais ou outras entidades, mas apenas a título subsidiário, quando as equipas multidisciplinares de assessoria técnica que coadjuvam os tribunais se mostram insuficientes para esclarecer a problemática que estiver em questão.

Terminando esta parte, conclui-se que no processo tutelar cível de regulação das responsabilidades parentais, o juiz, ao abrigo do disposto nos n.ºs 4 e 5 do artigo 39.º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível, pode indeferir a realização de uma perícia médico-legal destinada a averiguar se se verifica no caso um processo de alienação parental em relação a um dos progenitores.

2 – Vejamos se o caso concreto impunha, ou não, a realização da perícia pretendida.

Para que o tribunal decida da necessidade de realizar perícias para verificar se existe uma situação de alienação parental, tal situação há de ter sido previamente detetada como «problema» pelas equipas multidisciplinares de assessoria técnica, porquanto se afigura excecional que exista num processo de regulação das responsabilidades parentais uma questão relevante nesta matéria a tenha passado despercebida a tais equipas multidisciplinares.

Não se pode excluir, é certo, que possa existir uma situação de alienação parental e que esta possa ter passado despercebido às equipas multidisciplinares de assessoria técnica, mas, neste caso, tal «problema» há de ser suscetível de ser detetado, de modo claro, face à matéria que consta dos autos, muito embora com a ajuda da argumentação produzida pelo requerente.

No caso dos autos, verifica-se que a hipótese da alienação parental, tendo por objeto passivo o pai da menor e como protagonistas ativos os avós maternos e eventualmente a progenitora, nunca foi colocada como credível pelas equipas multidisciplinares de assessoria técnica.

E isto apesar do Recorrente-pai ter introduzido a questão da alienação parental no processo, pelo menos a partir do requerimento de 13-2-2014, no apenso «A», e ter insistido nesta hipótese despois desta data.

Ocorre que nenhuma entidade com intervenção no processo (como os técnicos da Segurança Social, psicólogos, mediação familiar ou Ministério Público) colocou tal hipótese como suscetível de corresponder à realidade.

Por conseguinte, a hipótese da situação de alienação parental não ter correspondência na realidade é elevada.

E, efetivamente, tanto quanto é possível verificar pelos autos, não existem indícios claros da alegada alienação parental que justificassem a realização das alegadas perícias.

A alienação parental é um processo com uma componente motora de natureza intencional, por conseguinte, do foro interno dos respetivos sujeitos ativos, e tem por finalidade operar uma separação definitiva em termos afetivos entre um filho e um ou ambos os progenitores.

Essa componente intencional exterioriza-se em factos e são estes que, na verdade, contam.

Com efeito, se existir só a componente interna o processo não vai além da intenção (não se materializa) e como intenção é irrelevante para o direito, pois não produz consequências.

Por conseguinte, o que releva são os factos.

Vejamos os factos.

Os vários requerimentos dirigidos ao processo pelo pai da menor, queixando-se das dificuldades tidas nos contactos com a filha, e a resposta da mãe e dos avós maternos a essas queixas revelam um desentendimento acentuado entre o avô materno e o pai da menor no que respeita ao modo como os contatos entre pai e filha se devem desenrolar e de facto têm ocorrido.

Trata-se de uma situação factual evidente.

Configura tal situação um processo de alienação mental?

A resposta é negativa, pelas seguintes razões:

(I) A alienação parental, utilizando a definição de José Manuel Aguilar, «…é um distúrbio caracterizado pelo conjunto de sintomas resultantes do processo pelo qual um progenitor transforma a consciência dos seus filhos, mediante diferentes estratégias, com o objectivo de impedir, obstaculizar ou destruir os seus vínculos com o outro progenitor, até a tornar contraditória em relação ao que devia esperar-se da sua condição» ([3]) ([4]).

A simples experiência quotidiana mostra que existem afastamentos de filhos em relação a um ou aos dois progenitores que sendo afastamentos não podem ser incluídos na síndrome de alienação parental.

É perfeitamente adequado que um filho não queira estar junto ou ao alcance de um progenitor que está frequentemente alcoolizado, que abusou sexualmente de si ou é sujeito ativo de ações de violência doméstica.

Nestes e noutros casos menos graves, o afastamento (alienação) do filho em relação ao progenitor tem origem em causas que nada têm a ver com a manipulação de um filho por parte do outro progenitor (ou de terceiro), com o fim de alterar um vínculo parental afetivo, existente até então, entre esse filho e o outro progenitor, qualificável como bom ou normal (de amor), num vínculo negativo (de ódio).

Com refere José Manuel Aguilar, «A rejeição que um filho expressa face a um dos seus progenitores, por ter sido vítima dos seus abusos ou agressões sexuais, não deve ser identificada com a SAP. O abuso parental – físico, sexual e emocional – pode gerar uma Alienação Parental, mas o diagnóstico de SAP deve apenas ter lugar se existir uma campanha injustificada por parte de um dos progenitores contra o outro, a que se juntem as contribuições do filho alienado» ([5]).

Estes casos, não são casos a enquadrar na síndrome de alienação parental.

A situação dos autos não se baseia em casos factuais deste tipo, mas quer-se com isto referir, que nem todo o processo de afastamento entre pais e filhos pode ser qualificado se alienação parental.

(II) No caso dos autos, tanto quanto é possível retirar dos mesmos nesta fase processual, verifica-se a existência de uma elevada desconfiança dos avós maternos, polarizada no avô materno, em relação às capacidades parentais do Recorrente.

Tal desconfiança manifestou-se, por exemplo, no episódio relatado pelo Recorrente, ocorrido em 6 de janeiro de 2013, no qual o avô da menor se recusou a deixar esta ir no carro com o pai até à X ... ( ... a), por não confiar na condução do pai da menor, tendo referido que o pai da menor já tinha sido intercetado pela polícia a conduzir sob influência de álcool (1,21) ([6]) e outras vezes sem possuir carta de condução.

Além desta situação verifica-se pelos autos que o avô da menor também se refere ao Recorrente como autor de atos relacionados com o consumo de estupefacientes (artigo 21.º do requerimento de 11-6-2013).

No âmbito da mediação familiar, quanto à dificuldade de relacionamento entre a menor e o pai, a Sra. mediadora referiu que «Antes de todas as visitas a mediadora fala com a N (…) questionando-a se há alguma situação importante a referir e quase sempre a N (…) relata episódios que descreve como memórias de quando ainda vivia com os pais. Estas memórias são sempre de conotação negativa. A mediadora tem sugerido que a N (…) exponha essas mesmas situações durante a visita para que possam ser esclarecidas, o que por vezes acontece. Quase sempre tratam-se de situações que o pai também recorda, mas com uma conotação diferente da sentida pela filha» (cfr. Relatório de acompanhamento da mediação familiar de 17 de Março de 2016).

Verifica-se que terão existido factos que a menor conservou na memória e que a levam a ter uma atitude negativa em relação ao pai, mas que não podem ser imputados à influência dos avós ou da mãe

Verifica-se ainda que, mais tarde, na mediação familiar, vem a ser relatada uma situação que consistiu no facto da menos ter verbalizado que «…quando era “pequenina” o pai lhe pediu para ela mexer no seu órgão sexual após o banho. Nessa mesma visita questionei o pai relativamente a esta situação, na presença da N (…) e com a concordância da mesma, referindo o pai que era habitual, quer o pai como a mãe da N (…) estarem nus em casa na presença da N (…). O Sr. J (…) referiu também que era habitual a N (…) tomar banho com os pais, que demonstrou interesse em tocar o órgão sexual do pai, não tendo este consentido. O Sr. J (…) negou que alguma vez tivesse solicitado à N (…) para esta lhe tocar no órgão sexual. A N(…)confirmou todas as situações verbalizadas pelo pai» (cfr. Relatório de acompanhamento da mediação familiar de 21 de junho de 2016).

De referir que esta situação nunca tinha sido mencionada nos autos, o que leva a concluir que era desconhecida dos avós maternos até então.

Esta situação relativa a eventuais abusos sexuais implicou uma alteração do comportamento do avô materno, no sentido de ter reforçado as desconfianças em relação ao Recorrente, como vem referido no relatório de acompanhamento da mediação familiar de 28 de Outubro de 2016, onde se diz que «Considero que o processo que actualmente está em averiguação relativamente à suspeita de abuso sexual por parte do pai da N(…) trouxe uma outra variável significativa para a relação, uma vez que a N (…) tendo conhecimento desta situação, despoletada pelo avô, a faz estar menos disponível para o contacto com o pai» ([7]).

(III) Esta elevada desconfiança dos avós maternos, protagonizada pelo avô, assenta em factos, tanto quanto é possível verificar pelo que fica referido em «(II)».

Claro que sempre se pode argumentar que a conduta do avô materno podia e devia ser outra, no sentido de promover, de modo mais efetivo, o relacionamento entre pai e filha.

Certamente outras pessoas no lugar do avô materno teriam procedido de outro modo e com melhores resultados.

Mas, independentemente da correta ou incorreta adequação da conduta do avô materno face aos factos referidos, verifica-se que essa desconfiança não é gratuita, isto é, desprovida de razões baseadas em factos históricos.

Ora, como referiu José Manuel Aguilar, acima citado, a síndrome de alienação parental pode existir com origem em variadas causas, mas apenas deve ser assinalado quando se detete «…uma campanha injustificada por parte de um dos progenitores contra o outro, a que se juntem as contribuições do filho alienado».

No caso dos autos, existe uma dificuldade de contatos entre o pai e a menor que não é comum, no sentido de típico ou habitual, pois o habitual é tais contatos serem fáceis e positivos para todos.

Existe efetivamente, por um lado, um afastamento entre pai e filha e, por outro, não se verifica da parte do avô materno e da mãe da menor um contributo no sentido de promoverem com êxito uma aproximação.

Mas não se pode concluir que a ausência desse contributo seja o resultado de um processo de alienação parental promovida pelo avô ou avós maternos em conjunto com a mãe.

Existiram de facto queixas da menor em relação ao pai, referentes ao tempo anterior à separação, que não podem ser imputados à ação dos avós ou da mãe e que se repercutiram no relacionamento entre ambos.

O afastamento da menor em relação ao pai também sofreu um incremento com a queixa criminal apresentada pelo avô materno visando o pai da menor, sendo certo que a menor teve conhecimento desta factualidade e, sendo assim, não pode deixar de interiorizar que existe um confronto entre o seu pai e os avós e de ela mesma se encontrar no seio de um «conflito de lealdade» que lhe traz grande sofrimento interno, como se refere no relatório da Sra. mediadora datado de 26 de junho de 2017.  

Verifica-se, pelo exposto, que a dificuldade de relacionamento entre pai e filha não tem origem apenas na ação dos avós maternos, em especial do avô, e que a fraca promoção da aproximação entre pai e filha, por parte dos avós maternos, seja desprovida de razões factuais e que tais razões factuais sejam socialmente inaceitáveis.

3 – Concluindo.

O tribunal, tendo em consideração a natureza do processo, de jurisdição voluntária, em especial a sua urgência, pode indeferir uma perícia requerida por um dos progenitores se entender que a mesma não é necessária para resolver o conflito de interesses emergente dos autos.

No caso concreto, colocando-se a hipótese de alienação parental promovida pelos avós maternos, justifica-se o indeferimento da perícia quando tal situação foi denunciada nos autos pelo pai da menor e nenhuma das entidades que intervieram nos autos a sufragou como credível e, além disso, se verifica que a fraca promoção da aproximação entre pai e filha imputável aos avós maternos, em especial ao avô, seja desprovida de razões factuais e que tais razões factuais sejam socialmente inaceitáveis.

IV. Decisão

Considerando o exposto, julga-se o recurso improcedente e mantém a decisão recorrida.

Custas pelo Recorrente


*

Coimbra, 21 de maio de 2019

Alberto Ruço ( Relator )

Vítor Amaral

Luís Cravo



[1] Citando Jorge Miranda e Rui Medeiros, in Constituição Portuguesa Anotada, 2ª edição revista, Volume I, Universidade Católica Editora 2017, página 324, alínea c).

[2] Processos Especiais, Vol. II, reimpressão. Coimbra Editora, 1982, págs. 399/400.

[3] Síndrome de Alienação Parental. Caleidoscópio, 2008, pág. 33.
[4] Maria Saldanha Pinto Ribeiro, define SAP como «…a criação de uma relação de carácter exclusivo entre a criança e um dos progenitores com o objectivo de excluir o outro» - Amor de Pai. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2006, pág. 30.
[5] Ob. cit. pág. 63. O autor na página 64 desta obra inclui uma tabela de orientação para distinguir entre casos reais de SAP e casos em que o afastamento parental é causado por abuso sexual sobre o menor.
[6] Juntou uma notificação da GNR, datada de 15-11-2011, dando nota deste facto
[7] O inquérito criminal foi arquivado.