Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
333/09.0TBAGN.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ELISA SALES
Descritores: CONTRA-ORDENAÇÃO
DECISÃO CONDENATÓRIA
FUNDAMENTAÇÃO
Data do Acordão: 09/21/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE ARGANIL
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: UNANIMIDADE
Legislação Nacional: ART.º 58º, DO D.L. N.º 433/82, DE 27/10
Sumário: A decisão administrativa proferida em processo contra-ordenacional segue a estrutura da sentença em processo penal – cfr. artigo 374º, do C. Proc. Penal – embora de uma forma simplificada e proporcionada à fase administrativa daquele processo.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na secção criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

I - RELATÓRIO

AA... veio interpor recurso do despacho que julgando a impugnação judicial da decisão administrativa (da Câmara Municipal de W...) totalmente improcedente, manteve a coima aplicada de € 280,00 pela prática da contra-ordenação p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 15º, n.º 2 e 38º, n.ºs 1 e 2, al. d) do DL n.º 124/2006, de 28 de Junho.


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A razão da sua discordância encontra‑se expressa nas conclusões da motivação de recurso onde refere que:

1- No modesto entendimento do ora Recorrente, a sentença recorrida não poderá proceder na condenação por, alegadamente, no dia 05 de Setembro 2008, pelas 15 horas o arguido possuía um terreno sito no local de Carvalhal dos Pombos, freguesia e concelho de W..., ocupado com revestimento vegetal, composto por silvas e outra vegetação, a menos de 50 m de casa de habitação, colocando-as em perigo, em caso de incêndio florestal quando condena naqueles precisos termos, mantendo o auto de notícia como fundamento da acusação sem qualquer investigação e instrução.

2- A decisão administrativa é nula por falta de especificação do facto imputado, ao não concretizar o lugar, o terreno nem a quantidade de ... (arts 58.º-1, al. b), DL 433/82, 374.º-2, 379.º, C.P.Penal).

3- A decisão administrativa é ainda nula por falta de motivação, posto não indicar concretamente as provas obtidas, nem fazer tão pouco o exame crítico das provas que serviram para fundamentar a convicção do decisor (arts 58.º-1, al. b), 374.º-2, 379.º, citados).

4- O reconhecimento destas nulidades implicava a devolução do caso à autoridade administrativa para que repare o vício, não se sanando o mesmo com a emergência da decisão judicial.

5- A decisão judicial sofre de contradição insanável da fundamentação, além de ser insuficiente para a decisão a matéria apurada, já que se ignora onde é o terreno, que ... resíduos ..., espécie e quantidade (art. 410º-2, C.P.Penal, ex vi art. 41.º, DL 433/82).

6- Em obediência ao princípio da legalidade não se devia ter mantido e sustentado a acusação em julgamento.

7- O Tribunal está sujeito ao princípio da legalidade no sentido em que, se lhe são apresentados factos pela prática de um determinado crime, tem que aplicar a lei em relação a esse mesmo crime e não por qualquer outro.

g, O processo penal desenrola-se tendo uma entidade acusadora distinta da entidade julgadora. Simplesmente, não é um puro processo tipo acusatório, na medida em que se permite que o Tribunal possa investigar autónoma e oficiosamente o facto que lhe é sujeito à sua apreciação, sujeito portanto a julgamento - princípio da acusação em termos gerais; e também princípio da investigação, que é atribuído aos Tribunais.

9- Se o Tribunal tiver dúvidas quanto à prova que foi fornecida, devia ter absolvido o arguido ao abrigo do princípio "in dubio pro reo".

 10- Pretende o recorrente que o auto de notícia e a decisão administrativa são nulas.

11- De facto, não pode o arguido ser condenado pela prática da contra-ordenação descrita, porquanto, do auto de notícia e da decisão administrativa não constam quaisquer factos que comprovem .... - o que faz toda a diferença ­porquanto só com a invocação e prova dos factos que comprovassem quais as condições.

12- Assim se devendo concluir que a Mª Juiz "à quo" praticou uma nulidade.

13- Relativamente aos princípios, foram afrontados os princípios constitucionais do processo equitativo e do direito de defesa do arguido (arts. 20.º-4, 32.º-10, Const.).

DEVENDO, CONSEQUENTEMENTE, julgar-se procedente o presente recurso e declarar-se nula a acusação deduzida, bem como a decisão administrativa e, consequentemente, revogar-se a sentença recorrida, absolvendo-se o arguido, arquivando-se os autos.

 


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Respondeu a Magistrada do MºPº junto do tribunal recorrido, defendendo improcedência do recurso.

Nesta instância, a Exmª Procuradora-Geral Adjunta, concordando com a resposta do MP, emitiu parecer no mesmo sentido.

Cumprido o disposto no n.º 2 do artigo 417º do CPP, o arguido manteve os fundamentos invocados na motivação do recurso.

Os autos tiveram os vistos legais.


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II- FUNDAMENTAÇÃO

Consta da decisão recorrida (por transcrição):

Dos factos:

Da discussão da causa resultaram provados os seguintes factos:

1- No dia cinco de Setembro de 2008, pelas 15 horas, no local de …, freguesia e concelho de W..., foi verificado que AA..., possuía um terreno ocupado com revestimento vegetal, composto por silvas e outra vegetação, a menos de 50 m de casas de habitação, colocando-as em perigo, em caso de incêndio florestal.

2- O arguido agiu ciente de que mantinha material combustível susceptível de, em caso de incêndio, potenciar a sua propagação.


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Não se provaram outros factos com interesse para a decisão.

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O Tribunal fundou a sua convicção com base no auto de notícia de fls. 5, o qual faz fé sobre os factos presenciados pelo autuante, até prova em contrário. Constitui, portanto, prova legal plena só podendo ser contrariada por meio de prova que mostre não ser verdadeiro o facto que dela for objecto – cfr. artº 347º do Código Civil.

Atento o conceito que resulta dos artºs 363º, nº 2 e 369º, nº 1 do Cód. Civil, o auto de notícia reveste as características de documento autêntico, o que lhe confere a relevância probatória a que alude o artº 169º do Cód. Processo Penal (aplicável ao processo contra-ordenacional por via do disposto no artº 41º, nº 1 do Decreto-Lei nº 433/82, de 27/10).

Assim, os factos materiais constantes do auto de notícia, como documento autêntico que é, consideram-se provados enquanto a autenticidade do documento ou a veracidade do seu conteúdo não forem fundamente postas em causa (neste sentido, Ac. Tribunal da Relação de Évora de 22/04/08, in www.dgsi.pt).

No caso em apreço, o recorrente, ainda que tenha feito uma referência genérica ao facto de não ser proprietário de qualquer terreno no concelho de W..., não juntou qualquer meio de prova, nem requereu a produção de qualquer prova nesse sentido, por forma a contrariar o que a autoridade fiscalizadora fez constar no auto de notícia.


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APRECIANDO

Atendendo ao disposto no n.º 1 do artigo 75º do DL n.º 433/82, 27.10, este tribunal conhece apenas da matéria de direito (isto sem prejuízo do dever de conhecimento oficioso de certos vícios ou nulidades, designadamente os vícios indicados no artigo 410º, n.º 2 do CPP, de acordo com o acórdão do STJ para fixação de jurisprudência de 19-10-1995, publicado no DR, 1-A Série de 28-12-95),  havendo-se como assente toda a factualidade que foi considerada provada.

Tendo em conta as conclusões da motivação do recurso e que estas limitam o seu objecto, pugnando pela sua absolvição, são as seguintes as questões suscitadas pelo recorrente:

- a nulidade do auto de notícia e da decisão administrativa (por “falta de especificação do facto impugnado” e “por falta de motivação, por não indicar concretamente as provas obtidas, nem fazer o exame crítico das provas que serviram para fundamentar a convicção do decisor” - artigos 58º-1, al. b) do DL n.º 433/82 e 374º-2 e 379º CPP);

- a verificação na decisão recorrida dos vícios de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e de contradição insanável da fundamentação;

- a violação dos princípios in dubio pro reo e do direito de defesa do arguido


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A-

Invoca o recorrente a nulidade do auto de notícia e da decisão administrativa.

Nos termos do artigo 33º do DL 433/82, de 27.10 (RGCO) a competência para o processamento das contra-ordenações e a aplicação das coimas e sanções acessórias é das autoridades administrativas, sendo o direito processual penal direito subsidiário, como dispõe o artigo 41º do mesmo diploma.

Quanto aos meios de prova em que se baseou, refere o despacho recorrido “o auto de notícia de fls. 5, o qual faz fé sobre os factos presenciados pelo autuante, até prova em contrário (…).

Considera o recorrente que tal auto de notícia «se apresenta amputado de factos, conclusivo, vago e genérico, viciado pela ausência de uma concreta factualidade».

Porém, afigura-se-nos que o mesmo contém os requisitos exigidos pois, no aludido auto de notícia por contra-ordenação, para além de descrever os factos verificados, o agente autuante identificou a testemunha dos factos que descrevera e indicou as normas infringidas e a respectiva punição. E, quanto ao terreno em causa “revestido por silvas e outra vegetação, a menos de 50 m de casas de habitação”, vem identificada a sua localização “no local de Carvalhal dos Pombos, freguesia e concelho de W...”.

O auto de notícia é um documento que vale como documento autêntico quando levantado ou mandado levantar por autoridade pública (art. 363º, n.º 2 do CC), seja autoridade judiciária ou autoridade policial e, por isso, faz prova dos factos materiais dele constantes nos termos do art. 169º do CPP.

Chamado a pronunciar-se sobre uma norma do CE, o Tribunal Constitucional adoptou o posicionamento uniforme no sentido de que a fé em juízo dos autos de notícia reconduz-se a um especial valor probatório atribuído a certas comprovações materiais para os factos presenciados por certa autoridade pública. Pressuposto de tal entendimento é o de que tal fé em juízo não acarreta qualquer presunção de culpabilidade, nem envolve uma manipulação arbitrária do princípio in dubio pro reo. Por outro lado tal especial valor probatório não afecta o direito de defesa do arguido e o seu exercício do contraditório – cfr. Ac. 7-2-1990.

Estatui o artigo 32º, n.º 10 da CRP que “Nos processos de contra-ordenação, bem como em quaisquer processos sancionatórios, são assegurados ao arguido os direitos de audiência e de defesa”.

Também o direito de defesa do arguido se encontra previsto no artigo 61º, n.º 1, al. g) do CPP – quando lhe é conferido o direito de intervir no inquérito e na instrução, oferecendo provas e requerendo as diligências que se lhe afigurem necessárias -, aplicável ao processo contra-ordenacional ex vi do artigo 41º do RGCO.

E, preceitua o artigo 50º do RGCO que “Não é permitida a aplicação de uma coima ou de uma sanção acessória sem antes se ter assegurado ao arguido a possibilidade de, num prazo razoável, se pronunciar sobre a contra-ordenação que lhe é imputada e sobre a sanção ou sanções em que incorre”.

Como sabemos, o processo de contra-ordenação tem duas fases: a fase da investigação e da instrução, da competência da entidade administrativa, e a fase judicial que se inicia com o recurso de impugnação judicial.

Como referem Oliveira Mendes e Santos Cabral ([1]) “O arguido tem o direito de se pronunciar sobre a contra-ordenação e sobre a sanção ainda na fase administrativa. Igualmente não se vislumbra motivo para se negar naquela fase a possibilidade de o arguido requerer a prática de diligências relevantes para a sua defesa em termos perfeitamente equiparados aos que sucedem em sede de inquérito relativamente à autoridade judiciária.

Questão diversa será a de saber se a autoridade administrativa está obrigada à prática dos actos requeridos pelo arguido e aí entendemos que a resposta terá de ser negativa. Na verdade, se aquela entidade preside à investigação e instrução apenas deverá praticar os actos que se proponham atingir as finalidades daquela fase processual o que pode não coincidir, necessariamente, com os actos propostos.”

No caso vertente, não foi o direito de defesa do arguido prejudicado dado ter sido regularmente notificado nos termos e para os efeitos previstos no artigo 50º do RGCO (cfr. fls. 19).

Todavia, não se tendo o arguido pronunciado sobre a contra-ordenação, nem requerido a realização de diligências que se lhe afigurassem necessárias, veio a ser proferida a decisão administrativa (que foi impugnada), decisão que o ora recorrente sustenta padecer de nulidade, por falta de fundamentação.

Conforme o preceituado no n.º 1 do artigo 58º (sob a epígrafe Decisão Condenatória) do DL n.º 433/82, de 27 de Out.:

A decisão que aplica a coima ou as sanções acessórias deve conter:

a) A identificação dos arguidos;

b) A descrição dos factos imputados, com indicação das provas obtidas,

c) A indicação das normas segundo as quais se pune e a fundamentação da decisão;

d) A coima e as sanções acessórias.

Como verificamos a decisão administrativa proferida em processo contra-ordenacional segue a estrutura da sentença em processo penal – cfr. artigo 374º do CPP – embora de uma forma simplificada e proporcionada à fase administrativa daquele processo ([2]).

“Colocada a necessidade da fundamentação, e radicando a mesma num incontornável direito a conhecer as razões do sancionamento, é evidente que o mesmo é comum aos dois tipos de processo e, consequentemente, entende-se que o incumprimento dos requisitos enumerados no n.º 1 implica a existência de uma nulidade nos termos cominados no artigo 379º do Código de Processo Penal.

Importa, porém, salientar que nos encontramos no domínio de uma fase administrativa, sujeita às características da celeridade e simplicidade processual, pelo que o dever de fundamentação deverá assumir uma dimensão qualitativamente menos intensa em relação à sentença penal. O que de qualquer forma deverá ser patente para o arguido são as razões de facto e direito que levaram à sua condenação, possibilitando ao arguido um juízo de oportunidade sobre a conveniência da impugnação judicial e, simultaneamente, e já em sede de impugnação judicial permitir ao tribunal conhecer o processo lógico de formação da decisão administrativa. Tal percepção poderá resultar do teor da própria decisão ou da remissão por esta elaborada” ([3]).

Ora, contrariamente ao sustentado pelo recorrente, considera este tribunal que a decisão administrativa apresenta suficiente fundamentação, designadamente, quanto à posse do aludido terreno e quanto à situação em que este se encontrava à data da autuação, e que deu origem ao levantamento do auto de notícia e, bem assim, em que consistiu a conduta culposa do arguido.

E, tanto assim é, que:

Notificado da decisão administrativa, e invocando ser indispensável à impugnação da mesma, conforme fls. 35, requereu o arguido à entidade administrativa (CM de W...) “(…) a identificação e a junção de cópias das plantas e das licenças das casas que invocadamente estão a menos dos alegados 50 mts do terreno em questão; bem como quem é que autorizou, e com que legitimidade, essas eventuais construções nessa localização”.

A resposta ao solicitado pelo arguido consta a fls. 41 (de que as plantas de localização deveriam ser requeridas à Divisão de Obras, Urbanismo e Ambiente, mediante o pagamento de determinada taxa).

Será oportuno salientar que resulta do mencionado requerimento que o arguido aceita que à data possuía um terreno, no local de Carvalhal dos Pombos, freguesia e concelho de W..., revestido por silvas e outra vegetação, porquanto apenas pretende saber que casas foram construídas (e quem as autorizou e com que legitimidade) a menos de 50 mts do terreno em questão. Ou seja, contrariamente ao alegado pelo recorrente, não omitiu a autoridade administrativa os elementos caracterizadores do terreno; mas, ainda que não tenha sido indicado o respectivo artigo matricial (caso existisse), o certo é que os elementos fornecidos quanto à localização do terreno não suscitaram  quaisquer dúvidas ao arguido sobre o terreno que era referido no auto de notícia e na decisão administrativa.

Improcede, assim, a argumentação do recorrente quanto às invocadas nulidades do auto de notícia e da decisão administrativa.


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B-

Alega o recorrente que a sentença recorrida enferma dos vícios de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e de contradição insanável da fundamentação, previstos nas alíneas a) e b) do n.º 2 do artigo 410º do CPP.

Ao invocar tais vícios vem o recorrente tecer críticas à apreciação da prova produzida.

Importa referir que há uma interligação entre a disposição que prevê os vícios da decisão recorrida e os requisitos da sentença previstos no artigo 374º, n.º2 do Código de Processo Penal, que se prende com a exigência de fundamentação que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão, com indicação das provas que serviram para fundamentar a convicção do Tribunal.

Assim, e de uma forma sintética, poderemos dizer que existe contradição insanável da fundamentação sempre que através de um raciocínio lógico se conclua que da fundamentação resulta precisamente a decisão contrária, ou que a decisão não fica suficientemente esclarecida dada a contradição entre os fundamentos aduzidos e, verificar-se-á o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada quando os factos provados são insuficientes para justificar a decisão assumida, ou quando o tribunal recorrido deixou de investigar matéria de facto relevante de tal forma que o que foi apurado não permite, por insuficiência, a aplicação do direito ao caso submetido a apreciação.

Mas, a existência de qualquer um destes vícios tem de resultar da decisão recorrida na sua globalidade, sem recurso a elementos externos (art. 410º, n.º 2 do CPP).

Acontece que a decisão recorrida se encontra suficientemente fundamentada em sede de motivação, esclarecendo quais os elementos preponderantes na formação da convicção do tribunal.

O que está em causa, é a diversa interpretação da factualidade dada como assente, porquanto argumenta o recorrente que à data não era possuidor, a qualquer título, daquele terreno e, bem assim, o modo como vem descrita a factualidade integradora do “elemento subjectivo” da infracção.

Conforme o preceituado no artigo 64º, n.ºs 1 e 2 do DL n.º 433/82, em processo contra-ordenacional, interposto recurso da decisão da entidade administrativa, o juiz decide do caso mediante audiência de julgamento ou através de simples despacho; mas, só decidirá por despacho se não considerar necessária a audiência de julgamento e o arguido e o MP não se oponham.

As situações de decisão por despacho serão aquelas em que a decisão não depende da realização de diligências de prova ([4]).

Ou, como salientam Oliveira Mendes e Santos Cabral ([5]) “se o juiz entende que deve decidir através de despacho está a implicitamente a afirmar que a prova produzida em sede administrativa é a necessária e a suficiente para poder decidir e que, portanto, não relevam outros factos que não aqueles que resultam dos meios de prova pré-existentes. Consequentemente os seus poderes de cognição, derivados da aplicação do acusatório, estão limitados pelos factos resultantes da prova já produzida”.

Vejamos os autos:

- após a impugnação judicial da decisão administrativa, foram os autos remetidos ao tribunal recorrido,

- conforme despacho de fls. 50, entendeu a Sr.ª Juiz que a matéria invocada pelo recorrente/arguido configurava tema a analisar sob o prisma jurídico, não vislumbrando a necessidade da realização de audiência de julgamento, tendo ordenado a notificação do arguido/recorrente e do MP para se pronunciarem sobre a possibilidade do recurso ser decidido por despacho, ao abrigo do disposto no citado art. 64º, n.º 2,

- o recorrente e o MP não se opuseram,

- pelo que o recurso de impugnação foi decidido por despacho.

Conforme mencionámos, após a notificação da decisão administrativa, no requerimento que dirigiu à Câmara Municipal de W... o arguido não questionou a sua qualidade de possuidor do terreno em causa.

Mas, no recurso de impugnação judicial alegou que «na data em que lhe foi levantado o auto, não era proprietário, arrendatário, usufrutuário ou titular de qualquer direito sobre qualquer terreno sito no concelho de W..., e, muito menos, na proximidade de casas de habitação», sem que tenha requerido a realização de quaisquer diligências de prova que pudessem infirmar ou suscitar dúvidas sobre a alegada qualidade.

De igual modo, ao não se opôr a que o recurso fosse decidido por despacho, inviabilizou a realização da audiência de julgamento e, consequentemente, a possibilidade de o tribunal vir a considerar outra prova, para além da constante dos autos.

Por conseguinte, como se salienta no despacho recorrido «o recorrente não juntou qualquer meio de prova, nem requereu a produção de prova nesse sentido, por forma a contrariar o que a autoridade fiscalizadora fez constar no auto de notícia».

Acresce que, tal como vem definido no artigo 1º do citado DL n.º 433/82 são elementos da contra-ordenação: o facto típico (elemento material), a culpabilidade (elemento moral) e a punibilidade (elemento sancionatório).

No que à culpabilidade respeita, “(…) não se trata aqui de uma culpa, como a jurídico-penal, baseada numa censura ética, dirigida à pessoa do agente e à sua atitude interna, mas apenas de uma imputação do facto à responsabilidade social do seu autor” ([6]).

Pelo que, quanto ao “elemento subjectivo” da infracção, possuindo o recorrente um terreno ocupado com revestimento vegetal, a menos de 50 metros de casas de habitação, colocando-as em perigo, em caso de incêndio florestal, de que o arguido estava ciente, mostra-se o mesmo preenchido.

Em conformidade, não se vislumbra do texto do despacho recorrido qualquer dos invocados vícios, conforme pretende o recorrente e, face à factualidade apurada incorreu o arguido na prática da contra-ordenação por que foi condenado, improcedendo, também nesta parte, a sua argumentação de recurso.

Por outro lado, não tem razão o recorrente quando põe em causa a materialidade apurada, não se vislumbrando razões que permitam criticar a convicção firmada na decisão recorrida, não tendo havido por banda do tribunal de 1ª instância a violação dos princípios da presunção da inocência e do in dubio pro reo invocados pelo recorrente, ou qualquer outro.

O princípio da presunção de inocência significa que sem um juízo de culpa não pode haver condenação, e está intimamente ligado ao princípio in dubio pro reo. Todavia, na situação em apreço, não existe qualquer possibilidade de ter sido violado o princípio geral da prova “in dubio pro reo” porquanto, o tribunal não ficou em dúvida, como resulta da factualidade dada como provada e da fundamentação da decisão, tendo sido apurados todos os elementos típicos da infracção imputada ao arguido, não tendo resultado da prova produzida um non liquet que tivesse de ser valorado a seu favor.


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III- DECISÃO

Face ao exposto, acordam os juízes da secção criminal deste Tribunal da Relação em:

- Negar provimento ao recurso.

Custas a cargo do recorrente, fixando-se em 4 UCs a taxa de justiça.

                                                                 *****                                                                         

                                                       Coimbra,


[1] - in Notas ao Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas, Almedina, 2ª Ed., pág. 139.
[2] - cfr. Oliveira Mendes e Santos Cabral, in obra citada, pág. 157.
[3] - obra citada, pág. 159.    
 Cfr. ainda Ac. RC de 4-6-2003, CJ, Tomo 3, pág. 40.
[4] - Simas Santos e Lopes de Sousa, in Contra-Ordenações, Anotações ao Regime Geral, pág. 359.
[5] - in ob. cit., pág. 176.
[6] - Figueiredo Dias in «O movimento da descriminalização e o ilícito de mera ordenação social», estudo publicado pelo CEJ, «Jornadas de Direito Criminal: O Novo Código Penal Português e Legislação Complementar» I, (1983), 316/317.