Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
910/09.0TACTB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA PILAR OLIVEIRA
Descritores: FALSIDADE DE TESTEMUNHO
Data do Acordão: 02/29/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE CASTELO BRANCO - 3º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ART.º 360º, DO C. PENAL
Sumário: A circunstância de não se ter indiciariamente apurado em que momento o agente, como testemunha, faltou à verdade - se no inquérito, se na audiência de julgamento - não pode afastar a conclusão de que a prestação de depoimentos divergentes, em dois momentos distintos, integra, ainda assim, todos os elementos do tipo de crime em causa (falsidade de testemunho).
Decisão Texto Integral: I. Relatório
No processo nº 910/09.0TACTB do 3º Juízo do Tribunal Judicial de Castelo Branco, findo o inquérito o Ministério Público deduziu acusação contra a arguida A... imputando-lhe a prática de um crime de falsidade de testemunho p. e p. pelo artigo 360° nº 1 e 3 do Código Penal.
Por discordar do despacho de acusação, a arguida requereu a abertura de instrução.
Finda a instrução foi proferida decisão instrutória que, considerando não existirem indícios suficientes da prática do imputado crime, não pronunciou a arguida, ordenando o arquivamento dos autos.

Inconformado com o teor da decisão instrutória, dela recorreu o Ministério Público, extraindo da respectiva motivação do recurso as seguintes conclusões:
1 - O que está em causa na acusação deduzida no processo é a arguida ter faltado à verdade no seu testemunho produzido em sede de audiência de discussão e julgamento, sendo que a versão dos factos ai verbalizada pela então testemunha A…, agora arguida, não corresponde, no entender do Ministério Público, à realidade.
2 - Ter-se-á de aferir da existência de indícios suficientes de que a versão apresentada pela arguida diverge da realidade objectiva.
3 - A Meritíssima Juiz "a quo" parecer exigir em sede de instrução o que deve ficar reservado para julgamento, ao exigir que fique provado qual a realidade objectiva, quando, tanto quanto se exige é que se verifiquem a existência de indícios suficientes de que a versão relatada pela arguida em sede de julgamento não corresponde à realidade.
4 - Em sede de instrução, tal como também já ocorria em sede de inquérito, ter-se-á de aferir da existência de indícios suficientes de que a versão apresentada pelo agente diverge da realidade objectiva.
5 - Enquanto a condenação, em sede de julgamento, apenas se basta com um juízo de certeza, para efeitos de acusação ou de pronúncia basta um juízo de razoabilidade de ter sido cometido um facto tipicamente ilícito e de determinado agente ter sido o seu autor.
6 - Como refere Germano Marques da Silva (in «Curso de Processo Penal», vol. III, pág. 182-183), « ... nas fases preliminares do processo não se visa alcançar a demonstração da realidade dos factos, antes e só, indícios, sinais de que o crime foi eventualmente cometido por determinado arguido». As provas recolhidas nas fases preliminares do processo não constituem pressuposto da decisão jurisdicional do mérito, mas sim mera decisão processual quanto à prossecução do processo até à fase de julgamento.
7 - De tudo o exposto resulta que para a pronúncia, tal como para a acusação, a lei não exige a prova no sentido de certeza moral da existência do crime, bastando-se com a existência de indícios, de sinais da ocorrência do crime, dos quais se pode formar a convicção de que existe uma possibilidade razoável de que a partir de tais indícios existe uma probabilidade razoável do arguido vir a ser condenado.
8 - Pretende-se, ainda, exigir no douto despacho recorrido que a verdade objectiva tivesse sido fixada judicialmente em momento anterior, no caso concreto no acórdão proferido no Processo Comum Colectivo n.º 195/07.2GTCTB, do 2° Juízo deste Tribunal.
9 - Estamos em total desacordo com o descrito, pois, no processo em que o depoimento foi prestado pela arguida, o referido Processo Comum Colectivo n.º 195/07.2GTCTB, estava em causa o apuramento da responsabilidade criminal dos aí arguidos pela prática de crimes de homicídio negligente e de ofensa à integridade física negligente, sendo um dos arguidos B..., o condutor do pesado de passageiros onde seguia a ora arguida e a quem ela se refere na parte do depoimento aí prestado e parcialmente transcrito na acusação.
10 - O tribunal limitou-se à apreciação dos factos relativos ao momento em que ocorreu o acidente, não fazendo, nem tinha de fazer, uma apreciação da condução daquele arguido durante toda a excursão realizada.
11 - Contudo do acórdão proferido em primeira instância resulta, relativamente aos escassos momentos que antecederam e ainda naqueles em que ocorreram o acidente rodoviário, a demonstração de se ter apurado uma realidade diversa da constante da versão da arguida.
12 - Na verdade, das alíneas b) e e) da matéria dada como não provada retira-se que não se logrou a prova de que o então arguido B... tenha invadido a via de trânsito da esquerda da A23 ou que o acidente ficou a dever-se ao facto deste ter conduzido o seu veículo com falta de atenção, cuidado e perícia, que era ao que a aqui arguida se referia no seu depoimento produzido em sede de audiência.
13 - A verdade objectiva caberá ao juiz de julgamento determinar provada ou não provada, sendo certo que, no entender da acusação, tal verdade corresponde ao primeiro depoimento prestado pela arguida ainda em sede de inquérito, o qual se encontra parcialmente transcrito na acusação.
14 - Os indícios suficientes da prática do crime de falsidade de testemunho resultam claramente dos autos e devem levar ao despacho de pronúncia, sendo que a fixação da verdade objectiva (como sendo aqueia que como tal é entendida pelo Ministério Público na acusação ou não) é tarefa que cabe ao juiz de julgamento nessa mesma fase, consoante a prova que vier a ser produzida, aquela que consta da acusação, a que vier a ser arrolada pela defesa e até a que entretanto, em sede de julgamento, for entendida produzir pelo juiz, oficiosamente ou a requerimento.
15 - Os depoimentos prestados pela arguida em sede de inquérito e em audiência de julgamento, foram proferidos tendo a arguida consciência do acto que praticava e proferidos de forma livre, esclarecia e espontânea, com consciência do que afirmava em cada um dos momentos.
16 - Na verdade não foi questionada ou levantada qualquer reserva mental, ou incapacidade tendo, por isso, a ora arguida, quer no depoimento proferido em sede de inquérito quer no proferido em sede de audiência de julgamento, os proferidos de forma esclarecida e com consciência do que afirmava, tanto mais, que assinou o depoimento prestado em inquérito e prestou presencialmente o depoimento em julgamento.
17 - Ora, cada um dos depoimentos que foram prestados o foram com consciência de produzir um resultado assumindo o risco, ou pelo menos assumindo-se o risco de produzir determinado resultado, anuindo com a sua realização.
18 - Daí que não se compreenda de que forma se possa excluir o dolo, com a simples conclusão de que a arguida, agora, não tem consciência do que disse em inquérito e parece que agora está a falar verdade.
19 - Deve, assim, a decisão instrutória que não pronunciou a arguida ser revogada e substituída por outra onde se pronuncie a arguida nos exactos termos que já constavam da acusação.
V. Exas, Senhores Juízes Desembargadores, no entanto, decidirão e farão como sempre JUSTIÇA

Notificada, a arguida respondeu ao recurso, concluindo o seguinte:
1. Não se encontram preenchidos os elementos objectivo e subjectivo do crime de falsidade de testemunho.
2. Porquanto não se encontra suficientemente indiciada a existência de uma contradição entre o declarado em julgamento e a realidade, e que a Arguida tenha proferido esse testemunho sabendo que o conteúdo das suas declarações era objectivamente falso.
3. A douta Acusação limita-se a reproduzir dois depoimentos antagónicos (o do inquérito e o da audiência de discussão e julgamento), concluindo que a Recorrida faltou à verdade no seu depoimento prestado em julgamento, sem dizer qual é a realidade que a Recorrida omitiu, subverteu ou transformou, pelo que estamos perante uma acusação absolutamente inviável, pois não é apta a preencher um dos elementos objectivos do crime- um depoimento falso.
4. Ora, não se pode, desta forma, censurar à ora Recorrida uma versão dos factos que o próprio Tribunal, expressamente, na pronúncia, e implicitamente, no Acórdão, entende como possível.
5. Não assiste razão ao Ministério Público quando procura fundar o indício da falsidade das declarações da ora Recorrida no cotejo destas com a matéria de facto não provada no Proc. n.º 195/07.2 GTCTB, do 2.º Juízo do Tribunal Judicial, pois que tal matéria não é uma realidade objectiva, nem sequer um indício da mesma, é apenas e só matéria de facto não provada.
6. Acresce que, mesmo que o elemento objectivo do tipo legal sub judice estivesse preenchido, o dolo encontra-se excluído, pelo que não estando preenchido o elemento subjectivo, não se verifica a tipicidade da conduta.
7. Face ao exposto. deve ser mantida, in totum, a douta Decisão recorrida.
Assim decidindo, farão V. Ex.aS, Venerandos Desembargadores, a costumada JUSTIÇA!

Admitido o recurso e remetidos os autos a esta Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu o seguinte parecer:
Quanto ao objecto do recurso, na medida em que, tendo-se realizado diligências de produção de prova, entendemos que a matéria probatória globalmente recolhida quer na inquérito, quer na instrução, contém indícios suficientes no sentido da pronúncia da arguida pelo referido crime.
Desde logo, é importante a análise que deve ser feita sobre o conteúdo dos dois depoimentos prestados pela testemunha à data do anterior processo e ora arguida. Estamos a referir-nos aos depoimentos prestados no inquérito e na audiência de julgamento, exactamente sobre a mesma questão de pormenor: o comportamento e atitudes do motorista do autocarro durante a viagem, com os reflexos que teria tido, na realidade, sobre a condução e sobre a tranquilidade (ou não) da mesma viagem, que de alguma forma pudesse inculcar a ideia de tal comportamento poder ter tido alguma influência do desencadear do acidente.
Na verdade, trata-se de uma questão de pormenor que tinha relevância para a apreciação global a fazer, como as demais provas produzidas e a produzir, para formar um juízo acerca da culpabilidade na ocorrência do acidente de gravíssimas consequências, atento o número de vítimas.
Parece-nos patente que existem essas divergências, sem que a testemunha tivesse hesitado em ambos os depoimentos. Isto é, não se refugiou em nenhuma das situações em afirmações como as que, por vezes, surgem no sentido de que já não se lembraria muito bem dos factos em apreço. Foi, pelo contrário, categórica nessas afirmações que são, como se observa dos depoimentos em causa, contraditórias.
Aliás, o próprio despacho recorrido, a fls. 428 e 429 dos autos, regista que "no caso dos autos é um facto incontroverso restou dois depoimentos um na fase do inquérito perante o Opc encarregue da investigação e que esses depoimentos foram divergentes e mesmo antagónicos em ai ns antas
Acrescenta, porém, o mesmo despacho que é necessário procurar fazer uma correspondência com a matéria que, em concreto, foi dada como provada no acórdão proferido, com o sentido de aferir da veracidade do(s) depoimento(s) prestado pela arguida. E só em função disso é que se saberia se a arguida falou ou não verdade.
Para concluir que, por não constar na matéria provada matéria relativa à concreta condução do motorista, não se verificam indícios suficientes da prática de tal crime.
Se tal é verdadeiro, é também certo que este assunto consta da matéria não provada - v. alínea E) - a fls. 350 destes autos. Para dizer, que se tratava de matéria em apreço no referido julgamento, tendo importância no seu contexto geral e também específico.
Ora, com o devido respeito, parece-nos não ter fundamento o douto despacho recorrido na apreciação feita nos apontados termos. O que importa, na perspectiva do Ministério Público, com a finalidade de apurar a indiciação do crime é se a testemunha sobre os mesmos factos, estando obrigada a falar com verdade, mentiu em alguma das situações, independentemente de se apurar qual foi a matéria de facto provada ou não provada, aliás, na conjugação com as demais provas.
Na verdade, o bem jurídico que o tipo legal pretende proteger é o da realização da justiça. Como refere A. Medina Seiça, no Comentário Conimbricense do Código Penal, pág. 460:
"O bem protegido pelo crime de falso testemunho ... é essencialmente a realização ou administração da justiça como função do Estado. Quer dizer: o interesse público na obtenção de declarações conformes à verdade no âmbito de processos judiciais ou análogos, na medida em que constituem suporte para a decisão ... ", seja ela qual for, diremos nós. Afigura-se-nos, desse modo, ter razão o Ministério Público junto da lª instância, na argumentação exposta, defendendo a existência de indícios suficientes para a pronúncia da arguida.
Com efeito, para efeitos da incriminação do art.º 360.º n.º 1 do C.P., indiciado que nos parece estar que a arguida, depois de devidamente advertida, ao serem-lhe tomadas declarações em inquérito penal e em audiência de julgamento, conscientemente, prestou dois depoimentos sobre os mesmos factos de que tinha conhecimento, contrários e inconciliáveis entre si, também entendemos que se indicia o indicado crime pelo qual foi acusada.
Sendo pois certo que, resulta dos autos que a mesma testemunha prestou ambos os depoimentos de forma livre e consciente, da realidade que estava cm causa indicia-se também, de acordo com as regras da experiência que intencionalmente faltou à verdade numa das referidas situações e que dessa forma pretendeu, então na qualidade de testemunha, defraudar a realização da justiça.
Poderia então colocar-se a questão de saber se a arguida faltou à verdade no primeiro ou no segundo momento, sempre independentemente da matéria que veio a ser dada como provada e como não provada.
Sobre esta questão em concreto já foram os Tribunais Superiores chamados a pronunciar-se, tendo o Tribunal da Relação do Porto decidido que:
"Preenche o tipo de crime de falsidade de testemunho a testemunha que, sobre a mesma realidade, presta dois depoimentos antagónicos, ainda que se não apure qual dos dois é falso." (Ac. de 30-1-2008, proc. n.º 0712790, in www.dg.i.pt).
Sumário este que no texto do mesmo douto acórdão surge melhor explicitado da seguinte forma:
"No caso a falsidade do depoimento resulta da contradição entre dois depoimentos antagónicos da mesma pessoa, mas haverá falso depoimento igualmente se e quando alguém faz uma declaração (falsa) em oposição à realidade demonstrada por outro meio de prova.
O caso presente é apenas um caso particular em que a prova do depoimento falso emerge do próprio depoente.
Não ofendem assim tais normas penais, as normas constitucionais ou os princípios alegados."
O que se pretende assentar é que o crime de falsidade de testemunho tanto pode estar em oposição à verdade que é demonstrada por outros meios de prova como ainda quando o agente, estando obrigado a falar com verdade, em dois momentos distintos presta dois depoimentos antagónicos sobre o mesmo facto.
Na verdade, neste caso a comprovação de que há depoimento falso emerge da própria depoente - em ambos os depoimentos - que, desta forma, está a violar o bem jurídico que o tipo legal pretende proteger: A realização da justiça.
Também neste mesmo sentido, este Tribunal da Relação de Coimbra, em Decisão Sumária de 18-5-2011, no proc. n.º 198/09 .8PAAVR.C1, in www.dgsi.pt decidiu ser:
"irrelevante para a verificação do tipo a circunstância de se não ter apurado em qual das ocasiões o ora recorrente faltou à verdade, se quando prestou declarações em inquérito, se quando prestou depoimento em audiência. O requisito material ou objectivo que condiciona a verificação do tipo legal previsto no art. 360º, nº 1, do Código Penal, na vertente do depoimento testemunhal, é a prestação de depoimento falso, elemento que está indesmentivelmente comprovado, já que tendo o recorrente prestado declarações dispares naquelas duas ocasiões, não restam dúvidas de que num dos depoimentos faltou à verdade. E nem se diga, como o faz o recorrente, que nestas circunstâncias deveria ter sido absolvido em homenagem ao princípio in dubio pro reo. Este é um daqueles casos "em que o juiz não logro esclarecer, em todas os suas particularidades juridicamente relevantes, um dado substrato de facto, mas em toda o caso o esclarece suficientemente para adquirir o convicção de que o arguido cometeu uma infracção, seja ela em definitivo qual for (…) Nestes casos ensinasse ser admissivel, dentro de certos limites, uma condenação com base em uma comprovação alternativa dos factos. Esta determinação alternativa dos factos constitui uma excepção ao funcionamento do principio in dubio pro reo, sofrendo apenas os limites decorrentes do principio da legalidade e os decorrentes da eventual verificação da prescrição relativamente a uma das incriminações (não necessariamente a mais antiga), já que no caso de factos temporalmente distanciados, a determinação alternativa nos termos preconizados não poderá funcionar em desfavor do arguido."
Correspondendo a citação feita na douta Decisão Sumária, anotada sob o nº 2 a uma passagem da obra de Figueiredo Dias, "Direito Processual Penal", pág. 218.
Deste modo, somos de parecer que, de acordo com a posição assumida também pelo Ministério Público na 1.ª instância, deve o recurso ser julgado procedente.
De outro modo, o despacho recorrido ao não pronunciar a arguida violou na sua aplicação o disposto nos artigos 283º, n.º 2, 3 e 4, 308º, n.º 1, 2 e 3 do CPP e no art.º 360º, n.º 1 e 3 do CP.
Com efeito, devendo presidir ao despacho referido no art.º 308.º n.ºs 1 e 2 do C.P.P, um juízo valorativo do Juiz de Instrução que, incidindo sobre a prova recolhida, avalie da existência de indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, e, nos termos do art.º 283.º n.º 2 do C.P.P., deve considerar-se que existem indícios suficientes, sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou medida de segurança.
Assim sendo, vista a matéria de facto recolhida e analisada, julgamos que não poderemos deixar de considerar que a mesma é suficientemente relevante para preencher os requisitos e conceitualização do que deve entender-se por indícios suficientes, ainda mesmo que se defenda que:
" ... para a pronúncia, não é preciso uma certeza da existência da infracção, mas os factos indiciários devem ser suficientes e bastantes, por forma que, logicamente relacionados e conjugados, formem um todo persuasivo da culpabilidade do arguido, impondo um juízo de probabilidade do que lhe é imputado" (Ac. R.C. de 26.06.63, JR 3, 777 e Sumo Jur. X, 275).
Assim, da análise global das provas e do acerto das conclusões a que chegou o Ministério Público, parece-nos que o despacho recorrido deverá ser revogado e substituído por outro que pronuncie a arguida, dando se provimento ao recurso.
Cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2 do Código de Processo Penal, não foi exercido o direito de resposta.
Efectuado o exame preliminar e corridos os vistos legais foi realizada conferência, cumprindo apreciar e decidir.
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II. Fundamentos da Decisão Recorrida
A decisão objecto do presente recurso é do seguinte teor:
Findo o inquérito o Ministério Público deduziu acusação contra a arguida A..., imputando-lhe a prática de um crime de falsidade de testemunho, p. e p. pelo artigo 360.° n.º 1 e 3 do Código Penal.

Por discordar do teor do douto despacho de acusação a arguida requereu a abertura de instrução.
Para tanto alega que inexistem indícios suficientes da prática do referido crime; a arguida não faltou à verdade na referida sessão de julgamento, a própria verdade ficou por apurar no referido processo; o referido processo n.º 195/07.2GTCTB - entretanto transitado em julgado - teve por objecto um gravíssimo acidente ocorrido na auto-estrada A-23, no dia 5/11/2007, do qual resultaram l7 vítimas mortais e 24 feridos; a arguida era transportada num dos dois veículos envolvidos no sinistro, designadamente, no autocarro; foi projectada no interior do mesmo, embatendo em diversos elementos da respectiva estrutura, acabando prostrada no solo, ladeada por cadáveres e feridos graves; a Arguida sofreu diversos hematomas e escoriações ao nível da cabeça, tronco e membros. Foi assistida no Hospital Amato Lusitano, de onde sairia no dia 6/11/2007. Após a alta, voltou ao HAL no dia 10/11/2007, por não suportar as dores. Durante os meses que se seguiram ao acidente, a Arguida não se conseguia baixar, tendo dificuldades em dobrar os membros inferiores. O depoimento com o qual a douta acusação compara as declarações proferidas em julgamento foi prestado em 22/01/2008, isto é, cerca de dois meses e meio após o sinistro, tendo sido prestado na casa da Arguida, uma vez que esta tinha dificuldades em se deslocar. Foi o depoimento prestado em julgamento aquele que efectivamente coincidiu com a percepção que a Arguida teve do acidente. Vários foram os motivos que justificaram um menor rigor do depoimento prestado em sede de inquérito. Nessa altura, a arguida encontrava-­se em pleno período de recobro do sinistro, quer a nível físico, quer a nível emocional, pelo que não dispunha da clarividência, nem do distanciamento emocional necessários para racionalizar e descrever convenientemente o sinistro. Em segundo lugar, o depoimento em sede de inquérito foi condicionado pela forma como foi conduzido. De forma, manifesta e claramente involuntária, os próprios elementos da GNR, imbuídos da sua própria percepção do acidente, conduziram vários dos depoentes, entre os quais a Arguida, a proferir depoimentos vagos. Pelo que, em suma, repise-se, o depoimento prestado em sede de inquérito não foi rigoroso, sendo que foi o prestado em julgamento o que efectivamente descreve a percepção que a Arguida teve da realidade, traumática, que vivenciou. Acresce que não se provou que o referido pela Arguida fosse falso. Do douto Acórdão apenas resultou provado que "por razões concretamente não apuradas", o veículo ligeiro se despistou e foi embater no veículo pesado. Não se tendo dado como provado que o condutor do autocarro fosse atento à faixa de rodagem, quais as concretas circunstâncias que conduziram ao despiste, apenas se tendo considerado, à luz do princípio da presunção de inocência, que não se logrou apurar se foi a desatenção a que se refere a ora Arguida o motivo causador do acidente, não se pode censurar à Arguida a explanação de uma versão dos factos que o próprio Tribunal, expressamente, na pronúncia, e implicitamente, no Acórdão, entende como possível.
Defende ainda a arguida que o tipo objectivo do crime em análise pressupõe um depoimento falso, pelo que não se conseguindo provar a falsidade do deposto pela Arguida - sequer indiciar, uma vez que não se encontra apurada a realidade objectiva -, não se encontra preenchido o elemento objectivo do tipo de ilícito,
Acrescenta que é por demais duvidoso que a Arguida, representando a possibilidade de prestar um testemunho falso, tenha actuado com intenção de, ainda assim, o prestar ou, sequer, que se tenha conformado com essa possibilidade. Motivo pelo qual se acha excluído o dolo, logo, a tipicidade da conduta.
A arguida requereu que fossem ouvidas duas testemunhas, vindo a prescindir de uma delas por a mesma não ter comparecido em Tribunal. Requereu ainda o interrogatório da arguida.

Foi realizada a instrução, no decorrer da qual foi ouvida a testemunha Deolinda Marques Esteves Geirinhas e procedeu-se a interrogatório da arguida.
Houve lugar a debate instrutório tendo sido observado o legal formalismo.
*
O Tribunal é competente.
Inexistem nulidades, questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa, de que possa desde já conhecer.
*
De harmonia com o preceituado no art. 286.º do Código de Processo Penal (CPP), “a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir a acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento”.
Dispõe o art. 308.º, n.º 1, do CPP, que “Se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia.”
De acordo com o n.º 2 do referido preceito legal, é correspondentemente aplicável o disposto no art. 283.º, n.º 2, CPP, ou seja, “consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança.”
Como salienta Germano Marques da Silva, “para a pronúncia, como para a acusação, a lei não exige, pois, a prova, no sentido da certeza moral da existência do crime, basta-se com a existência de indícios, de sinais da ocorrência de indícios, de sinais de ocorrência de um crime, donde se pode formar a convicção de que existe uma possibilidade de que foi cometido o crime pelo arguido” (in Curso de Processo Penal, III, 1994, p. 183). Note-se, porém, que não é de uma mera possibilidade ou probabilidade remota de que aqui se trata, pois “os indícios só serão suficientes e a prova bastante, quando, já em face deles, seja de considerar altamente provável as futura condenação do acusado, ou quando seja mais provável do que a absolvição.” (Figueiredo Dias, in Direito Processual Penal, I, 133).
Por último, a simples sujeição de alguém a julgamento não é um acto neutro quer do ponto de vista das suas consequências morais, quer jurídicas, e implica, por si só, incómodos, se não mesmo vexame, pelo que no juízo de quem pronuncia deverá estar sempre presente a necessidade de protecção da pessoa contra intromissões abusivas na sua esfera de direitos, mormente os salvaguardados na Declaração Universal dos Direitos do Homem e que entre nós se revestem de dignidade constitucional, como é o caso da liberdade (art. 3.º daquela declaração e art. 27.º CRP).
*
A arguida encontra-se acusada pela prática de um crime de de falsidade de testemunho, p. e p. pelo artigo 360.° n.º 1 e 3 do Código Penal.
Dispõe o art. 360.º, n.º 1 e 3, do Código Penal:
“1 – Quem, como testemunha, perito, técnico, tradutor ou intérprete, perante tribunal ou funcionário competente para receber como meio de prova, depoimento, relatório, informação ou tradução, prestar depoimento, apresentar relatório, der informações ou fizer traduções falsos, é punido com pena de prisão de seis meses a três anos ou com pena de multa não inferior a 60 dias.”
O bem jurídico protegido pela presente incriminação é a “administração da Justiça como função do Estado” traduzindo o “interesse público na obtenção de declarações conformes à verdade no âmbito de processos judiciais ou análogos, na medida em que constituem suporte para a decisão” in Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo III, Coimbra Editora, p. 460.
O crime de falso testemunho é um crime de mão própria, perigo abstracto e de mera actividade, pois é praticado por quem reveste certa qualidade, não é necessário que a declaração falsa prejudique efectivamente o esclarecimento da verdade suporte da decisão nem sequer que in concreto o tenha colocado em perigo, e a conduta esgota-se na prestação do depoimento falso não exigindo lei qualquer resultado (e quando o faz é como circunstância agravante – art. 361.º CP), cfr. Ob. Cit..

São elementos objectivos do tipo de crime legal em referência:
- a prestação de depoimento falso por parte de testemunha;
- perante tribunal;
- após o agente ter sido ajuramentado e advertido das consequências penais a que se expõe (elemento agravante da culpa – qualificador, n.º 3 do art. 360.º CP).
E são elementos subjectivos do tipo:
- o conhecimento de que o depoimento é falso;
- a intenção de prestar esse depoimento falso.

Dos elementos probatórios constantes dos autos resulta que:
- No dia 22 de Janeiro de 2008, pelas 14 horas e 30 minutos, a arguida A... prestou depoimento na qualidade de testemunha no âmbito do processo-crime com o NUIPC. 195/07.2GTCTB, que ficou conhecido como o processo do acidente da A23, então em fase de inquérito, o que fez perante o 1º sargento do Destacamento de Transito da Guarda Nacional Republicana de … .
- Em tal depoimento a testemunha, entre outros factos, afirmou: “Que ao longo da viagem o condutor pareceu-lhe uma pessoa bem disposta” “Que não se recorda da hora de saída mas não houve atrasos ate porque a viagem estava a correr lindamente.” “Que a condução do motorista foi sempre calma não tendo a depoente reparado em nada de anormal na condução do mesmo.” “Que nos momentos que antecederam o acidente, a depoente não notou qualquer desvio na marcha do auto carro nem nenhum rebentamento de pneu.” “Que, de repente, a testemunha ouviu uma "explosão" na parte traseira do auto carro tendo o mesmo ficado a "balançar"
- No dia 24 de Novembro de 2009, a arguida A..., após prestar juramento, depôs como testemunha na audiência de discussão e julgamento do processo com o NUIPC 195/07.2GTCTB, então já processo comum com intervenção do tribunal colectivo e que correu os seus termos no 2º Juízo deste Tribunal.
- Durante tal audiência de julgamento, a ora arguida A... declarou a perguntas do Magistrado do Ministério Público, nomeadamente, que: “Olhe Sr. Dr. para mim foi uma viagem muito atribulada.” “Foi atribulada. o barulho não era muito e eu fui muito coisa. sempre muito nervosa porque o condutor ia sempre a falar. sempre a falar. sempre a falar.” “Porque ele começou .... assim que ele começou a conduzir começou logo a conversa.”
- E a dada altura o Magistrado do Ministério Público pergunta-lhe se o condutor do autocarro interveniente no acidente fez uma condução sempre desatenta ao que a arguida responde “Sempre. Sempre.”
- E mais à frente, no seu depoimento, explica: “Testemunha (ora arguida) - No momento do acidente nós tivemos paradas na estação de serviço. fomos à casa de banho. houve colegas que até andaram lá a dançar. eu fui à casa de banho fui logo para dentro do autocarro. depois elas vinham a cantar cá para trás. vinham a cantar "a Sra. do Almortão". eu o meu cinto não apertava muito bem ficava um bocadinho largo. olhei para trás e fiz assim. "então vocês em vez de irem a cantar o Castelo Branco vão a cantar a Sra. do Almortão? e elas começaram a cantar a Sra. do Almortão. o senhor acendeu as luzes do autocarro. toda a gente bateu as palmas e andámos ali uns dez metros. suponho eu que de carro a gente nunca sabe. ouviu-se um estrondo que parecia uma bomba e começou toda a gente a gritar "Ai Jesus que foi uma bomba. ai Jesus que foi uma bomba".
MP - Ai Jesus que foi uma bomba? Toda a gente disse isso?
Testemunha (ora arguida) - Toda a gente gritava e toda a gente dizia que tinha sido uma bomba.
MP - E o motorista não disse nada?
Testemunha (ora arguida) - O motorista virou-se pró lado e disse. "o que teria sido isto".
(…)
Testemunha (ora arguida) - E ele ao virar-se pró lado perdeu o controle do autocarro.”

Assim, no caso dos autos é um facto incontroverso que a arguida prestou dois depoimentos, um na fase de inquérito perante o opc encarregue da investigação e outro perante o Tribunal, depois de prestar juramento. É também incontroverso que esses depoimentos foram divergentes e mesmo antagónicos em alguns pontos relevantes.
Defende a acusação que a versão dos factos que corresponde à realidade é diversa daquela que foi verbalizada pela arguida em sede de julgamento.
Desde já, cumpre referir, que não ficou demonstrada, nem suficientemente indiciada, a falsidade do depoimento prestado pela arguida em audiência de julgamento.
Com efeito, nos factos provados no acórdão, que veio a ser proferido no âmbito do processo comum colectivo n.º 195/07.2GTCTB, não se encontra fixada a verdade objectiva acerca daquele concreto pedaço de vida a que se reporta a arguida no seu testemunho, limitando-se o Tribunal a considerar que “não ficou concretamente apurado” o sucedido. Sem se saber qual é essa verdade, não se pode afirmar a falsidade do depoimento prestado pela arguida, e por isso não se pode afirmar a falsidade do depoimento prestado em conformidade, ou em desconformidade com o acontecimento real a que se reportou.
No caso em apreço, não consta da matéria provada do mencionado acórdão a descrição dos factos relativos à concreta condução do motorista. Ou seja, o Tribunal, perante o qual foram prestadas as alegadas falsas declarações, nada deu como provado, em contradição com o narrado pela arguida no seu depoimento.
Perante a ausência de prova da concreta conduta do motorista do autocarro, em contradição com o narrado pela arguida no seu depoimento prestado em julgamento, afigura-se-nos que não se encontra suficientemente indiciada a existência de uma contradição entre o declarado em julgamento e a realidade, e que a arguida tenha proferido esse testemunho sabendo que o conteúdo das suas declarações era objectivamente falso. A adensar esta insuficiência de indícios da falta de veracidade da versão narrada pela arguida em sede de julgamento temos ainda o depoimento da testemunha … , ouvida em sede de instrução. Esta testemunha também revelou ao Tribunal que a sua percepção do acidente também corresponde à versão narrada pela arguida em sede de julgamento. O depoimento desta testemunha não se nos ofereceu qualquer reparo, tendo-se afigurado isento e credível.

Antes pelo contrário, e no que ao elemento subjectivo diz respeito, afigura-se-nos que a percepção da arguida do acidente corresponde àquilo que narrou em audiência de julgamento. Com efeito, do interrogatório da arguida ficou o Tribunal plenamente convencido que a arguida está convicta que as declarações que prestou em julgamento é que correspondem à verdade, falhando desde logo o elemento subjectivo do tipo.
Ouvida a arguida em sede de instrução, pela mesma foi dito que quando prestou o depoimento perante o opc competente estava mal de saúde, ainda estava em casa, estava muito baralhada, sendo que após o acidente necessitou de ser acompanhada por uma psicóloga durante um ano e meio; referiu ainda não se lembrar bem do que afirmou perante a polícia, julgando que foi o mesmo que disse ao Tribunal, afirmando ainda que durante a prestação do depoimento em inquérito, os senhores polícias várias vezes chamaram a atenção da arguida, referindo-lhe que tinha que responder com verdade, não podia estar influenciada pelo que dizem os amigos e o que se vê na televisão, admitindo que possa ter-se confundido por estar baralhada e perante as afirmações da polícia.
Ora, a versão trazida aos presentes autos pela arguida, em sede de instrução, afigura-se-nos perfeitamente plausível, à luz das regras da experiência, tendo as suas declarações se afigurado sinceras e espontâneas, não obstante a arguida ter um necessário e compreensível interesse no desfecho da causa.
Com efeito, é perfeitamente plausível que a arguida após cerca de dois meses e meio de ter estado envolvida num trágico acidente de autocarro, onde faleceram 17 pessoas (muitos dos quais, possivelmente, amigos da arguida), se encontrasse baralhada, confundida, não sendo capaz de prestar um depoimento com o discernimento e clareza necessário. Aliás, não terá sido por acaso que o depoimento prestado em sede de inquérito foi prestado na própria residência da testemunha, conforme resulta de fls. 3 dos autos, o que não é prática corrente na investigação criminal.
Na verdade, em face das declarações da arguida, é perfeitamente plausível que aquela divergência dos depoimentos se ficasse a dever ao facto da arguida ter sido ouvida em sede de inquérito quando se encontrava em pleno período de recobro do sinistro, quer a nível físico, quer emocional, e que por isso não dispunha da clarividência, nem do distanciamento emocional necessários para racionalizar e descrever convenientemente o sinistro.

Por último, e não obstante o juízo de indiciação sobre o elemento subjectivo do tipo resultar muitas vezes dos demais factos provados, conjugados com critérios das regras da experiência, o certo é que da prova carreada para os autos resultam para nós sérias dúvidas que a Arguida, representando a possibilidade de prestar um testemunho falso, tenha actuado com intenção de, ainda assim, o prestar ou, sequer, que se tenha conformado com essa possibilidade. Com efeito, estamos perante uma senhora já de idade que não tinha qualquer motivo para faltar à verdade; da transcrição das declarações prestadas em audiência no referido processo n.º 195/07.2GTCTB resulta que a arguida foi por diversas vezes alertada pelo Exmo. Sr. Procurador e pela Exma. Sra. Juiz da incoerência dos depoimentos e da possibilidade de incorrer na prática do crime (não obstante as declarações prestadas em sede de inquérito não lhe terem sido lidas, por inadmissibilidade legal, face à oposição manifestada pelo assistente), mantendo sempre o seu depoimento, tudo levando a crer que está plenamente convicta da veracidade da versão que descreveu do acidente em sede de audiência, demonstrando ainda não ter consciência daquilo que afirmou perante o opc em sede de inquérito.
Motivo pelo qual se acha excluído o dolo, logo, a tipicidade da conduta.

Dispõe o artigo 283°, n.º 1 do Código de Processo Penal que o Ministério deduz acusação "se durante o inquérito tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se ter verificado o crime e de quem foi o seu agente. " E o n.º 2 do mesmo normativo estabelece que se consideram "suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança."
Segundo Figueiredo Dias (in "Direito Processual Penal", 1974. pág. 117) "os indícios só são suficientes e a prova bastante quando, já em face deles seja de considerar altamente provável a futura condenação do acusado ou quando esta seja mais provável do que a absolvição ". Para Maia Gonçalves (in "Código de Processo Penal Anotado, pág. 452) os indícios são suficientes quando exista "um conjunto de elementos convincentes de que o arguido praticou os factos incrimináveis que lhe são imputados."

Por tudo aquilo que se deixou exposto, deve concluir-se pela inexistência de indícios suficientes da prática do crime de que vem acusada, não só porque não se encontra suficientemente indiciada a falsidade do depoimento prestado pela arguida em julgamento, mas também porque não se verificarem indícios do elemento subjectivo do tipo, ou seja, do conhecimento de que o depoimento é falso e a intenção de prestar esse depoimento falso (falhando este elemento subjectivo quer para o depoimento prestado em sede de inquérito, quer para o depoimento prestado em julgamento)
Na verdade, do conjunto da prova indiciária recolhida em sede de inquérito e instrução não resulta uma probabilidade elevada de, em julgamento, vir a ser aplicada à arguida uma pena. Deve, assim, ser proferido despacho de não pronúncia quanto à mesma.
*
Nestes termos:
- não pronuncio a arguida pela prática de um crime de falsidade de depoimento, p. e p. pelo art. 360.º, n.º 1 e 3, do Código Penal, de que vinha acusada.
Consequentemente, determino o arquivamento dos autos.
***
III. Apreciação do Recurso
Como é sabido o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da respectiva motivação (artigos 403º, nº 1 e 412º, nº 1 do Código de Processo Penal) e, vistas essas conclusões, suscita-se a questão de saber se os autos contêm indícios suficientes da prática pela arguida de um crime de falsidade de depoimento p. e p. pelo artigo 360º, nº 1 e nº 3 do Código Penal devendo por ele ser pronunciada.
Embora reconhecendo-se na decisão instrutória que a arguida em dois momentos distintos do mesmo processo prestou depoimentos que em alguns aspectos se contradizem, acabou por se concluir que não estaria indiciado o elemento subjectivo do crime porque " (…) no que ao elemento subjectivo diz respeito, afigura-se-nos que a percepção da arguida do acidente corresponde àquilo que narrou em audiência de julgamento. Com efeito, do interrogatório da arguida ficou o Tribunal plenamente convencido que a arguida está convicta que as declarações que prestou em julgamento é que correspondem à verdade, falhando desde logo o elemento subjectivo do tipo.
Ouvida a arguida em sede de instrução, pela mesma foi dito que quando prestou o depoimento perante o opc competente estava mal de saúde, ainda estava em casa, estava muito baralhada, sendo que após o acidente necessitou de ser acompanhada por uma psicóloga durante um ano e meio; referiu ainda não se lembrar bem do que afirmou perante a polícia, julgando que foi o mesmo que disse ao Tribunal, afirmando ainda que durante a prestação do depoimento em inquérito, os senhores polícias várias vezes chamaram a atenção da arguida, referindo-lhe que tinha que responder com verdade, não podia estar influenciada pelo que dizem os amigos e o que se vê na televisão, admitindo que possa ter-se confundido por estar baralhada e perante as afirmações da polícia.
Ora, a versão trazida aos presentes autos pela arguida, em sede de instrução, afigura-se-nos perfeitamente plausível, à luz das regras da experiência, tendo as suas declarações se afigurado sinceras e espontâneas, não obstante a arguida ter um necessário e compreensível interesse no desfecho da causa.
Com efeito, é perfeitamente plausível que a arguida após cerca de dois meses e meio de ter estado envolvida num trágico acidente de autocarro, onde faleceram 17 pessoas (muitos dos quais, possivelmente, amigos da arguida), se encontrasse baralhada, confundida, não sendo capaz de prestar um depoimento com o discernimento e clareza necessário. Aliás, não terá sido por acaso que o depoimento prestado em sede de inquérito foi prestado na própria residência da testemunha, conforme resulta de fls. 3 dos autos, o que não é prática corrente na investigação criminal.
Na verdade, em face das declarações da arguida, é perfeitamente plausível que aquela divergência dos depoimentos se ficasse a dever ao facto da arguida ter sido ouvida em sede de inquérito quando se encontrava em pleno período de recobro do sinistro, quer a nível físico, quer emocional, e que por isso não dispunha da clarividência, nem do distanciamento emocional necessários para racionalizar e descrever convenientemente o sinistro.
Por último, e não obstante o juízo de indiciação sobre o elemento subjectivo do tipo resultar muitas vezes dos demais factos provados, conjugados com critérios das regras da experiência, o certo é que da prova carreada para os autos resultam para nós sérias dúvidas que a Arguida, representando a possibilidade de prestar um testemunho falso, tenha actuado com intenção de, ainda assim, o prestar ou, sequer, que se tenha conformado com essa possibilidade. Com efeito, estamos perante uma senhora já de idade que não tinha qualquer motivo para faltar à verdade; da transcrição das declarações prestadas em audiência no referido processo n.º 195/07.2GTCTB resulta que a arguida foi por diversas vezes alertada pelo Exmo. Sr. Procurador e pela Exma. Sra. Juiz da incoerência dos depoimentos e da possibilidade de incorrer na prática do crime (não obstante as declarações prestadas em sede de inquérito não lhe terem sido lidas, por inadmissibilidade legal, face à oposição manifestada pelo assistente), mantendo sempre o seu depoimento, tudo levando a crer que está plenamente convicta da veracidade da versão que descreveu do acidente em sede de audiência, demonstrando ainda não ter consciência daquilo que afirmou perante o opc em sede de inquérito.
Motivo pelo qual se acha excluído o dolo, logo, a tipicidade da conduta."
Já o recorrente entende que os autos contêm indícios no sentido de que a arguida terá mentido no depoimento que prestou em audiência devendo por consequência ser pronunciada.
A simplicidade de raciocínio favorece muitas vezes o encontrar da solução adequada sem que necessário seja buscar explicações rebuscadas.
Assim, é incontornável que a arguida quando ouvida na fase de inquérito do processo do processo 195/07.2GTCTB prestou depoimento que não coincide em aspectos essenciais com aquele que prestou na fase de julgamento do mesmo processo, tal como aliás se encontra transcrito, no que é mais significativo, no despacho de pronúncia.
A arguida tentou justificar a contradição nas declarações que prestou na instrução invocando que quando prestou depoimento perante o OPC estava mal de saúde, ainda estava em casa, estava muito baralhada, sendo que após o acidente necessitou de ser acompanhada por uma psicóloga durante um ano e meio, referindo ainda não se lembrar bem do que afirmou perante a polícia, julgando que foi o mesmo que disse ao Tribunal, afirmando ainda que durante a prestação do depoimento em inquérito, os senhores polícias várias vezes chamaram a sua atenção, referindo-lhe que tinha que responder com verdade, não podia estar influenciada pelo que dizem os amigos e o que se vê na televisão, admitindo que possa ter-se confundido por estar baralhada e perante as afirmações da polícia.
Porém, se atentarmos no depoimento prestado perante o OPC logo verificamos que ele não pode corresponder ao depoimento de alguém que se encontre severamente afectado por ter sido vítima de acidente, posto que nessa ocasião a arguida prestou depoimento rico em pormenores, nada compatível com estado de confusão mental que pudesse ter sido consequência do mesmo ou com eventual indução de respostas, sendo a nosso ver descabido invocar as regras da experiência para concluir pela falta de suficiente indiciação do elemento subjectivo do crime.
Parece resultar da decisão instrutória, por outro lado, que apenas se poderia concluir pela existência de indícios do crime em questão se simultaneamente se indiciasse que o depoimento falso seria o produzido em audiência de julgamento.
De facto não existem elementos probatórios certos e seguros no sentido de afirmar com algum grau de certeza em que momento terá a arguida prestado depoimento falso, se no inquérito, se na audiência de julgamento, ao contrário do que afirma o recorrente.
Certo é que comete o crime de falsidade de depoimento quem como testemunha perante tribunal ou funcionário competente para receber como meio de prova depoimento, prestar depoimento falso (artigo 386º, nº 1 do Código Penal) e se o depoimento falso ocorrer depois de o agente ter prestado juramento e de ter sido advertido das consequências penais a que se expõe, o crime é agravado nos termos do nº 3 do preceito.
Como bem refere O Exmº Procurador-Geral Adjunto no seu parecer a circunstância de não se ter indiciariamente apurado em que momento a arguida faltou à verdade não pode afastar a conclusão de que a prestação de depoimentos divergentes em dois momentos distintos integra, ainda assim, todos os elementos do tipo de crime em causa.
No recente Acórdão desta Relação de 28.9.2011, proferido no processo 157/10.8TAMMV.C1, relatado pelo Exmº Desembargador Paulo Guerra (publicado em www.dgsi.pt) a propósito de questão semelhante expendeu-se o seguinte:

"O que se passa é que o arguido mentiu num dos dois momentos processuais.
Com efeito, é inquestionável que o arguido mentiu, sendo tal mentira relevante em termos penais e resultando despiciendo pesquisar em que momento o fez.
Não se diga que tal indagação é necessária: é certo que o momento será importante para se aferir, por exemplo, de uma prescrição; mas por outro lado, o que interessa pesquisar é a razão da mentira, como foi proferida, como ocorreu e quando existiu (sendo lícito deixar em aberto o momento concreto, pois que de uma das vezes foi o crime cometido).
O arguido prestou, em dois momentos processuais distintos, depoimentos contraditórios e antagónicos.
Só que o tribunal não logrou apurar em qual dos dois momentos o arguido mentiu; porém, esse hiato só releva, como já se viu, para a determinação do momento da consumação do crime, sendo porém certo que este está consumado: com efeito, num dos momentos o arguido preencheu os elementos objectivos e subjectivos do crime pelo qual está acusado, assim prestando depoimento falso, dolosamente.
Neste caso concreto, a falta de determinação do momento da prática e da consumação do ilícito não tem qualquer consequência processual ou substantiva, tendo-se por assente que o crime foi realmente cometido.
Também nesta vertente, não é caso de se usar do princípio in dubio pro reo, nem há lugar à conclusão de existência de insuficiência para a matéria de facto provada, no sentido de se não lograr obter um juízo seguro que permita a condenação do arguido.
Como defendeu o Acórdão da Relação do Porto de 22/11/2006 «A questão que, antes de mais, tem de ser colocada consiste em saber qual a consequência jurídica que deve decorrer do facto de não ter sido possível ao tribunal apurar em que momento o recorrente cometeu uma falsidade de testemunho.
Com efeito, e como já dissemos, não subsistem dúvidas em face dos factos dados por provados de que em dois momentos processuais distintos, o recorrente, sujeito a um dever processual de verdade e de completude, prestou depoimentos divergentes e até antagónicos sobre a mesma realidade.
A realidade sobre que recaíram os dois depoimentos é só uma, mas os depoimentos prestados, nos dois momentos processuais, são discrepantes, entre si, e relatam realidades distintas. Por isso, em algum desses momentos processuais ocorreu uma contradição entre o depoimento prestado e a verdade histórica objectiva.
A narração do recorrente, em algum desses momentos, afastou-se da verdade objectiva, dele conhecida, violando, desse modo, o bem jurídico protegido: a realização da justiça como função do Estado, a qual requer a contribuição de todos os intervenientes processuais para o esclarecimento da factualidade relevante em ordem à correcta decisão.
O tribunal não conseguiu apurar em que momento processual o recorrente prestou o depoimento falso, mas tal falta de determinação, apenas releva para a determinação do momento de consumação do crime.
A consumação existe sempre que a declaração diverge da realidade objectiva.
Apurado que num dos momentos processuais o recorrente com a sua conduta preencheu os elementos objectivo (falsidade do depoimento) e subjectivo do tipo (sabendo que o conteúdo do seu depoimento era objectivamente falso – dolo), o tipo de ilícito está perfeitamente preenchido.
O facto de não se ter apurado se o crime foi cometido ou no dia 9 de Junho de 2003 ou no dia 26 de Outubro de 2001 não acarreta, como consequência, que não se possa ter por assente que o crime foi cometido. O crime foi, efectivamente, cometido, só não se sabe em que data o foi.
A não fixação da data de consumação do crime não impõe nem a absolvição da recorrente, por apelo ao princípio in dubio pro reo, nem traduz uma qualquer insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, no sentido de tornar impossível um juízo seguro de condenação.
O juízo seguro de condenação decorre da prova de que o recorrente, sujeito a um dever processual de verdade e de completude, prestou, em dois momentos processuais, depoimentos divergentes sobre a mesma realidade. O facto de o tribunal não ter logrado apurar a verdade objectiva, conhecida do recorrente (e, daí, não ter conseguido determinar em que momento foi cometida a falsidade) não prejudica uma convicção de certeza sobre a acção típica).
A certeza sobre a data de consumação do crime não é um requisito indispensável ao preenchimento do tipo-de-ilícito.
A incerteza sobre a data de consumação do crime só poderá relevar para certos efeitos jurídicos, v.g., de consideração de uma eventual prescrição do procedimento criminal ou de aplicação de uma hipotética lei de amnistia, devendo, para esses efeitos, a incerteza sobre a data de consumação sempre ser valorada a favor do recorrente, pela aceitação daquela que lhe seja mais favorável».
- no recurso nº 4016/04-4 -, «a certeza sobre a data de consumação do crime não é requisito indispensável ao preenchimento do tipo-de-ilícito», contrariando-se assim a doutrina explanada por Paulo Pinto de Albuquerque no seu Comentário ao CP (fls 848).
Também esta Relação de Coimbra assim decidiu em decisão sumária datada de 18/5/2011 (Pº 195/09.8T3AVR.C1):
«Por outro lado, é irrelevante para a verificação do tipo a circunstância de se não ter apurado em qual das ocasiões o ora recorrente faltou à verdade, se quando prestou declarações em inquérito, se quando prestou depoimento em audiência. O requisito material ou objectivo que condiciona a verificação do tipo legal previsto no art. 360º, nº 1, do Código Penal, na vertente do depoimento testemunhal, é a prestação de depoimento falso, elemento que está indesmentivelmente comprovado, já que tendo o recorrente prestado declarações dispares naquelas duas ocasiões, não restam dúvidas de que num dos depoimentos faltou à verdade. E nem se diga, como o faz o recorrente, que nestas circunstâncias deveria ter sido absolvido em homenagem ao princípio in dubio pro reo. Este é um daqueles casos “em que o juiz não logra esclarecer, em todas as suas particularidades juridicamente relevantes, um dado substrato de facto, mas em todo o caso o esclarece suficientemente para adquirir a convicção de que o arguido cometeu uma infracção, seja ela em definitivo qual for (…). Nestes casos ensina-se ser admissível, dentro de certos limites, uma condenação com base em uma comprovação alternativa dos factos”. Esta determinação alternativa dos factos constitui uma excepção ao funcionamento do princípio in dubio pro reo, sofrendo apenas os limites decorrentes do princípio da legalidade e os decorrentes da eventual verificação da prescrição relativamente a uma das incriminações (não necessariamente a mais antiga), já que no caso de factos temporalmente distanciados, a determinação alternativa nos termos preconizados não poderá funcionar em desfavor do arguido».
Ou seja, mentiu numa das vezes o arguido, sendo falsa toda a declaração que respeita a matéria sob dever de verdade e não corresponde à verdade histórica – e só isso releva para a perfectibilização do crime, para a conclusão de que o arguido violou o bem jurídico que se pretende proteger, ou seja, a realização da Justiça!"
(fim de transcrição)

O acórdão acabado de citar refere-se a recurso de sentença condenatória mas os respectivos argumentos são transponíveis na íntegra para o caso em apreço e merecem a nossa total adesão, primando, aliás, pela sua eloquente simplicidade e dando nota de jurisprudência sedimentada no mesmo sentido.
Ultrapassada, pois, a questão da indiciação do elemento subjectivo do tipo de crime de falsidade de testemunho, também dúvidas não se suscitam do preenchimento dos elementos objectivos respectivos pelo que importa no caso pronunciar a arguida não obstante não se haver indiciariamente apurado em que momento foi o crime cometido.
Nesta medida importa conceder provimento ao recurso e ordenar que o despacho recorrido seja substituído por despacho que pronuncie a arguida pela prática de crime de falsidade de testemunho.
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IV. Decisão
Pelo exposto, acordam em conceder provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e, em consequência, revogar o despacho recorrido e ordenar a sua substituição por despacho que pronuncie a arguida pela autoria de crime de falsidade de depoimento.
Não há lugar a tributação.
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Maria Pilar Pereira de Oliveira (Relatora)
José Eduardo Fernandes Martins