Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1198/12.0TBCVL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE ARCANJO
Descritores: CENTRO COMERCIAL
CEDÊNCIA DE ESPAÇOS
CLÁUSULA DE INGRESSO
ABUSO DE DIREITO
Data do Acordão: 02/11/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COVILHÃ – 3º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTº 334º DO C. CIVIL.
Sumário: I – É hoje pacífica, doutrinária e jurisprudencialmente, a qualificação da cedência de espaços ou a instalação de lojas em centros comerciais como contratos atípicos ou inominados.

II - A cláusula do chamado “direito de ingresso ou de entrada” deve ser concebida como pagamento pelo lojista que visa compensar o acesso a uma estrutura organizada, e, por conseguinte, com uma mais valia comercial.

III - A teoria contratual contemporânea já não se funda apenas nos princípios liberais (autonomia privada, força obrigatória, relatividade dos efeitos), assentando antes em novos princípios, chamados “princípios sociais contratuais” (princípio da função social do contrato, da boa fé objectiva, da justiça contratual), com o objectivo de adequar os contratos aos valores ético-jurídicos vigentes, devendo, por isso, o contrato ser perspectivado no seu contexto social vinculante, com implicações não apenas quanto à conformação do objecto negocial, mas também quanto à sua interpretação/integração, servindo ainda de parâmetro para o controlo judicial, designadamente em sede de abuso de direito.

IV - Constitui abuso de direito, na modalidade do desequilíbrio de prestações, exigir a quantia de € 15.000,00 convencionada numa cláusula de valor de ingresso aposta num contrato de cedência de loja em centro comercial, quando o lojista apenas a utilizou durante quatro dias e pagou a renda convencionada.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

I – RELATÓRIO

1.1.– A Autora – S..., Lda, - instaurou a presente acção declarativa, com forma de processo sumário, contra a Ré – R...

Alegou, em resumo:

Em 7 de Dezembro de 2011 celebrou com a Ré um “contrato de licença de utilização de loja integrada em centro comercial”, através do qual lhe cedeu uma loja no centro comercial “C… Shopping”, tendo sido convencionado entre as partes que esta última entregaria à Autora, a título de direito de ingresso, a quantia de € 15.000,00 acrescidos de IVA à taxa legal.

A Ré resolveu o contrato em 13 de Dezembro de 2011 e recusou-se a pagar a quantia mencionada.

Pediu a condenação da Ré a pagar-lhe a quantia de € 15.000,00, acrescida de juros vencidos, no montante de € 481,64 e vincendos.

Contestou a Ré, defendendo-se, em síntese:

Não lhe foi dada a possibilidade de negociar as cláusulas contratuais, pré-elaboradas, sendo o contrato nulo.

Além disso, após a assinatura arrependeu-se, tendo posto fim ao contrato, a através de carta dirigida à Autora.

A Autora não teve quaisquer prejuízos e o contrato é nulo devido ao desequilíbrio das prestações.

Concluiu pela improcedência da acção.

Respondeu a Autora.

No saneador afirmou-se a validade e regularidade da instância

1.2. - Realizada audiência de julgamento, foi proferida sentença a julgar a acção improcedente, absolvendo a Ré do pedido.

1.3.- Inconformada, a Autora recorreu de apelação, com as seguintes conclusões:

Não houve contra-alegações.

II – FUNDAMENTAÇÃO

2.1. – O objecto do recurso

A questão submetida a recurso, delimitado pelas respectivas conclusões, consiste em saber se constitui exercício abusivo o direito de exigir o cumprimento da cláusula de valor de ingresso ( cláusula 5ª ), aposta no contrato outorgado entre as partes.

2.2. – Os factos provados ( descritos na sentença )

2.3.- O mérito do recurso

A sentença recorrida qualificou o contrato celebrado entre as partes, em 7 de Dezembro de 2011 , como “ um contrato atípico de utilização de loja em centro comercial”, socorrendo-se, aliás, de pertinentes elementos doutrinários sobre o tema.

Depois de afirmar a validade da cláusula do “valor de ingresso”, considerou ser abusivo ( art.334 CC) o exercício do direito da Autora a exigir judicialmente o valor de ingresso ( € 15.000,00 ) por violar o princípio da materialidade subjacente e do equilíbrio das prestações.

Para tanto, após excurso sobre o abuso de direito, nas suas variadas manifestações, e em concretização factual refere-se que tal valor “longe de conferir um direito subjectivo de exploração irrestrito por 5 anos (por força das regras legais de contratuais de cessação), foi todavia estipulado em face de tal período, confiando as partes, aquando da previsão de tal valor, numa execução completa do acordo”. E acrescentou que por força da denúncia feita pela Ré, decorridos quatro dias de vigência do contrato, “ocorreu um manifesto desequilíbrio das posições contratuais (…). Tal desequilíbrio, pela intensidade que reveste, traduzindo-se na exigência de € 15.000,00 pela cedência de 4 dias de loja integrada em centro comercial, traduz-se numa verdadeira afronta ao princípio da materialidade subjacente”, sem que a tal obste o facto de a cessação do contrato ter sido desencadeada pela Ré.

A corroborar ainda a circunstância de a Autora, em face da denúncia ter entregue o estabelecimento a terceiro, em Janeiro de 2012, ou seja, um mês após da denúncia, o que demonstra a ausência de um efectivo prejuízo para a Autora.

Em contrapartida, objecta a Apelante dizendo, em síntese, que o direito de ingresso não está dependente da duração do contrato, pelo que inexiste abuso de direito, tendo a sentença violado o princípio da boa fé na formação dos contratos ( art. 227 CC ).

É hoje pacífica, doutrinária e jurisprudencialmente, a qualificação da cedência de espaços ou a instalação de lojas em centros comerciais como contratos atípicos ou inominados ( cf., por ex., A. VARELA, RLJ ano 122, pág. 62 e segs.; Ac STJ de 1/7/2010 ( proc. nº 4477/05 ), em www dgsi.pt ) e esta qualificação não está posta em causa. Também se aceita a validade da cláusula do “ valor de ingresso” aposta no contrato – “ A Segunda Outorgante obriga-se a pagar a título de direito de ingresso o valor de € 15.000,00 (quinze mil euros), acrescidos de IVA, à taxa legal em vigor, valor esse repartido por dois pagamentos, sendo o primeiro a efectuar no dia 16/12/2011 e o valor restante até 31/12/2011” (cláusula 5ª).

A questão essencial é a de saber se é ou não abusivo o direito da Autora em exigir tal valor, em face da especificidade do caso concreto.

Adiante-se, desde já, a inteira adesão à argumentação expendida na sentença, que se dá por reproduzida, com impecável rigor metodológico assente no “círculo hermenêutico” da ligação entre o “caso” e a “norma”, dentro de uma lógica material, e com apoio de pertinentes contributos doutrinários e jurisprudenciais.

Importa, antes de mais, aquilatar dentro da economia do contrato da relevância da cláusula de valor de ingresso, o que postula um problema de interpretação da declaração negocial, enquanto actividade tendente a determinar o que as partes quiseram ou declararam querer, não apenas numa vertente puramente factual ou psicológica, mas visando fixar o sentido normativo dessa declaração ( interpretação normativa).
Na fenomenologia dos contratos, a intersubjectividade vinculante ultrapassa o processo formativo, pois tratando-se de um negócio jurídico bilateral, rectius, um contrato sinalagmático, dele emergem direitos e deveres consubstanciados numa relação jurídica complexa. De tal forma que o direito positivo assevera que todo o negócio jurídico deve ser pontualmente cumprido e no cumprimento das obrigações como no exercício do direito correspondente devem as partes proceder de boa-fé ( arts.406 nº1 e 762 nº2 do CC ).

Na interpretação dos contratos prevalecerá, em regra, a vontade real do declarante, sempre que for conhecida do declaratário. Faltando esse conhecimento, o sentido decisivo da declaração negocial é aquele que seria apreendido por um destinatário normal, ou seja, medianamente instruído e diligente, colocado na posição do declaratário real, em face do comportamento do declarante. Neste âmbito, deve recorrer-se para a fixação do sentido das declarações a determinados tópicos, ou seja, à “ordem envolvente da interacção negocial”, como a letra do negócio, as circunstâncias do tempo, lugar e outras, que precederam a sua celebração ou são contemporâneas desta, bem como as negociações respectivas, a finalidade prática visada pelas partes, o próprio tipo negocial, a lei, os usos e costumes por ela recebidos, bem assim o comportamento posterior dos contraentes. Nos negócios formais, se o sentido da declaração não tiver reflexo ou expressão no texto do documento, ele não pode ser deduzido pelo declaratário e não deve por isso ser-lhe imposto ( art.238 do CC ). Isto significa que a letra do negócio ( o texto do documento ) surge como limite à validade de sentido com que o negócio deve valer, nos termos gerais da interpretação. Optou-se por uma orientação objectiva porque se pretende apurar qual o sentido a atribuir à declaração considerada relevante para o direito, em face dos termos que a constituem.

Por seu turno, a aplicação do art.237 do CC confina-se, como, desde logo, resulta da sua epígrafe, aos casos duvidosos. A sua doutrina não prevalece contra as regras do art.236 do CC, aplicando-se apenas se estas não puderem definir o sentido da declaração, ou seja, “vale para os casos em que a declaração, consultados todos os elementos utilizáveis para a sua interpretação de harmonia com o critério fixado no artigo anterior, comporta ainda dois ou mais sentidos, baseados em razões de igual força” (cf., P LIMA/A.VARELA, Código Civil Anotado, Vol. I, 3ª ed, pág.224 ).

Nada tendo silo alegado sobre a interacção negocial das partes, nem a concreta finalidade da cláusula 5ª, apenas se poderá convocar a natureza e finalidade do contrato e os usos comerciais. Na verdade, é frequente nestes contratos a convenção do chamado “direito de ingresso ou de entrada”, concebido como pagamento pelo lojista que visa compensar o acesso a uma estrutura organizada, e, por conseguinte, com uma mais valia comercial.

Claro está que o texto da cláusula não condiciona tal direito à duração efectiva do contrato, mas impõe-se tomar em consideração o contrato no seu conjunto, os riscos do mesmo e a repercussão económica para as partes.

Não basta, por isso, apelar ao princípio da liberdade contratual para, sem mais, afastar o exercício abusivo. Como é sabido, a teoria contratual contemporânea já não se funda apenas nos princípios liberais ( autonomia privada, força obrigatória, relatividade dos efeitos) , segundo uma concepção tradicional, falando-se hoje de novos princípios, chamados “ princípios sociais contratuais”( princípio da função social do contrato, da boa fé objectiva, da justiça contratual ), com o objectivo de adequar os contratos aos valores ético-jurídicos vigentes, com a chamada “socialização do direito civil”. Daqui decorre o entendimento de que o contrato não pode ser mais concebido pelo primado individualista da utilidade para os contraentes, mas no sentido da utilidade para a comunidade e a necessidade de o perspectivar no seu contexto social vinculante, com implicações não apenas quanto à conformação do objecto negocial, mas também quanto à sua interpretação/integração, servindo ainda de parâmetro para o controlo judicial.

Ora, é também neste contexto que deve perspectivar-se o abuso de direito, que a Autora exercita com base no contrato.

O art.334 do CC diz que é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.

Aceitando o legislador a concepção objectiva, não é preciso que o agente tenha consciência da contrariedade do seu acto à boa fé, aos bons costumes ou ao fim social e económico do direito exercido.

O instituto do abuso de direito surge como uma forma de adaptação do direito à evolução da vida, servindo como válvula de escape a situações que os limites apertados da lei não contemplam por forma considerada justa pela consciência social em determinado momento histórico e a jurisprudência tem exigido que o exercício do direito se apresente em termos clamorosamente ofensivos da justiça.

Uma das manifestações típicas do abuso de direito é a do “desequilíbrio no exercício jurídico”, em cuja categoria se integra “ a desproporcionalidade entre a vantagem auferida pelo titular e o sacrifício imposto pelo exercício a outrem”, ou seja, “ o titular, exercendo embora um direito formal, fá-lo em molde que atentam contra vectores fundamentais do sistema com relevo para a materialidade subjacente “ ( cf. MENEZES CORDEIRO, Da Boa Fé no Direito Civil, vol. II, pág. 853, e “ Do Abuso de Direito- Estado das Questões e Perspectivas”, ROA 2005, ano 65 ).

Na ponderação da factualidade apurada, concorda-se com a sentença ao enquadrar a questão no âmbito do “desequilíbrio no exercício das posições jurídicas” e do princípio da materialidade subjacente.

Na verdade, tendo em conta a razão contratual de ser da cláusula do valor de ingresso, só é de aceitar como razoável desde que haja uma contraprestação efectiva, o que manifestamente aqui não sucede. Fere o mais elementar sentimento de justiça exigir € 15.000,00 pelo período de 4 dias de utilização da loja de um centro comercial, quando já havia pago a renda convencionada.

Mais, como se refere na sentença, “pela cedência de 4 dias da sua loja no centro comercial, a Autora pretende receber, no total, 18.919,28 €, somando o valor da entrada inicial que peticiona na presente acção aos pagamentos de dois meses de renda que já recebeu (descontando benevolamente o IVA) ou, quiçá, 21.750,00 €, na possibilidade de exigir à Ré o pagamento dos 90 dias de pré-aviso em falta”.

Além disso, não pode olvidar-se o facto de a Autora negociar a loja no mê seguinte o que revela ausência de prejuízo económico.

Em resumo, e como diz a sentença:

“ Na verdade, a desproporção verificada é tão gritante, assumindo a ofensa da materialidade uma intensidade tão elevada, que o titular exercente do direito deveria, por si só, respeitar a solução especial oferecida pela simples constatação da realidade e não procurar, ao abrigo de uma cláusula formulada em termos gerais e exercida em termos meramente formais, obter um enriquecimento injustificado.

“Nestes termos é forçoso considerar que a pretensão da Autora, de exercer um direito formal nos termos estritos do clausulado contratual, em face da realidade fáctica apurada, traduz-se num exercício contrário à boa fé, inadmissível à luz do nosso ordenamento jurídico, por violação do disposto no artigo 334.º do Código Civil”.

Improcede a apelação, confirmando-se a sentença recorrida.

2.4. – Síntese Conclusiva

1.- É hoje pacífica, doutrinária e jurisprudencialmente, a qualificação da cedência de espaços ou a instalação de lojas em centros comerciais como contratos atípicos ou inominados

2.- A cláusula do chamado “direito de ingresso ou de entrada” deve ser concebida como pagamento pelo lojista que visa compensar o acesso a uma estrutura organizada, e, por conseguinte, com uma mais valia comercial.

3.- A teoria contratual contemporânea já não se funda apenas nos princípios liberais ( autonomia privada, força obrigatória, relatividade dos efeitos), assentando antes em novos princípios, chamados “ princípios sociais contratuais”( princípio da função social do contrato, da boa fé objectiva, da justiça contratual ), com o objectivo de adequar os contratos aos valores ético-jurídicos vigentes, devendo, por isso, o contrato ser perspectivado no seu contexto social vinculante, com implicações não apenas quanto à conformação do objecto negocial, mas também quanto à sua interpretação/integração, servindo ainda de parâmetro para o controlo judicial, designadamente em sede de abuso de direito.

4.- Constitui abuso de direito, na modalidade do desequilíbrio de prestações, exigir a quantia de € 15.000,00 convencionada numa cláusula de valor de ingresso aposta num contrato de cedência de loja em centro comercial, quando o lojista apenas a utilizou durante quatro dias e pagou a renda convencionada.

III – DECISÃO

                Pelo exposto, decidem:

1)

                Julgar a apelação improcedente a confirmar a sentença.

2)

                Condenar a Apelante nas custas.

Coimbra, 11 de Fevereiro de 2014.

( Jorge Arcanjo )

( Teles Pereira )

( Manuel Capelo )