Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3174/06.3TBVIS-B.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FONTE RAMOS
Descritores: RESPONSABILIDADES PARENTAIS
COMPETÊNCIA INTERNACIONAL DO TRIBUNAL
ACÇÃO DE ALTERAÇÃO
QUESTÃO DE PARTICULAR IMPORTÂNCIA
MUDANÇA DE DOMICÍLIO
ESTRANGEIRO
ORDEM PÚBLICA
Data do Acordão: 05/16/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU - VISEU - JUÍZO FAM. MENORES - JUIZ 2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: CONVENÇÃO DE HAIA DE 19/10/1996, ARTS.59, 62, 63, 1906 CC, LEI Nº 61/2008 DE 31/10, LEI Nº 141/2015 DE 8/9
Sumário: 1.- A Convenção de Haia de 19.10.1996 relativa à responsabilidade parental e medidas de protecção das crianças (aprovada pelo DL n.º 52/2008, de 13.11, e em vigor desde 01.8.2011) tem por objecto, nomeadamente, determinar qual o Estado cujas autoridades têm competência para tomar as medidas orientadas à protecção da pessoa ou bens da criança, bem como a lei aplicável por estas autoridades no exercício da sua competência.

2.- A competência internacional é determinada, em princípio, pela residência habitual do menor, à data em que o processo é instaurado.

3.- No entanto, o tribunal do Estado de origem no qual se operou a regulação do exercício das responsabilidades parentais (jurisdição de origem da criança) surge ainda como a especialmente vocacionado para se pronunciar sobre a alteração da residência do menor consubstanciada numa mudança de país, questão de particular importância que, em princípio, requer um acordo prévio dos pais.

4.- A Lei n.º 61/2008, de 31.10, aplica-se à acção autónoma de alteração das responsabilidades parentais intentada na vigência dos normativos que alterou no que respeita às responsabilidades parentais.

5.-. O regime legal instituído por aquela lei, ao impor o dever de informação ao progenitor que não exerça no todo ou em parte as responsabilidades parentais (sobre a educação e as condições de vida do filho), aplica-se à mudança de domicílio do menor para país estrangeiro, para acompanhar a sua mãe - a quem foi confiada a guarda - por se tratar de questão de particular importância para a vida do filho (art.º 1906º do CC).

6.- Tais preceitos são de interesse e ordem pública.

7.- Reconhecendo o Direito Português ser do máximo interesse que as crianças portuguesas, filhas de pais separados, que em Portugal acordaram na regulação do poder paternal, que não sejam levadas para o estrangeiro por qualquer dos progenitores sem conhecimento e consentimento do outro, não abdica da sua competência para regular as responsabilidades parentais, mormente estando igualmente em causa o direito de deslocação e de emigração dos progenitores (art.º 44º, n.º 2 da CRP).

Decisão Texto Integral:







           
            Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

            I. Em 08.11.2016, por apenso ao processo de regulação do exercício das responsabilidades parentais relativo ao menor M (…) nascido a 26.4.2005, F (…) residente na Suíça, veio requerer a alteração da regulação contra V (…) residente em (...), Viseu, determinando-se, principalmente, que o menorpassará a residir com a progenitora/requerente fora do país, desde logo na Suíça” e que “poderá viajarpara o estrangeiro com a mãe ou pessoa por esta indicada.

            Alegou, em síntese:

            - Requerente e requerido são pais do menor M (…)

            - Nos autos apensos foi homologado por sentença de 15.12.2006 o acordo relativo às responsabilidades parentais, ficando o menor entregue à guarda e cuidados da mãe, que então residia em Portugal;

            - Desde 2010, o menor passou a residir na Suíça com a mãe;

            - A ida do menor para o estrangeiro contou com o apoio e autorização do progenitor, que foi dando a autorização necessária e exigível, desde logo pelas companhias aéreas;

            - Há mais de dois anos deixou de haver notícias do requerido, tendo a requerente obtido a informação de que “este se encontraria em parte incerta”;

            - A requerente nunca obteve autorização expressa do requerido, nem judicial, para que o menor resida naquele país, a apresentar junto das entidades helvéticas, quer seja escolas, quer seja hospitais, etc.

            - Como o requerido se encontra “em parte incerta”, passou a ser impossível obter a dita “autorização” para viajar de avião.

            - Assim, o menor deverá continuar à guarda e cuidados da mãe, cabendo-lhe o exercício das responsabilidades parentais quanto aos actos da vida corrente e às questões de particular importância para a vida da criança, até que o requerido informe a requerente do seu paradeiro e sempre que tais actos não possam aguardar o contacto do requerido.

            Na sequência da promoção do M.º Público de fls. 10 (reiterada a fls. 28) e da pronúncia da requerente de fls. 20, a Mm.ª Juíza a quo, por sentença de 19.12.2016, ao abrigo dos art.ºs 59º do CPC, 1º e 17º da Convenção de Haia de 1996 e art.º 8º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa, declarou competente para a alteração da regulação das responsabilidades parentais da criança o Tribunal com competência em família e menores na área da residência da criança, sendo assim a Instância Central de Família e Menores de Viseu, 1 Secção, internacionalmente incompetente para o prosseguimento de tal acção, pelo que, excepcionando a incompetência internacional deste tribunal, julgou verificada a excepção dilatória de incompetência absoluta do Tribunal (art.ºs 96º, alínea a), 99º, n.º 1, 577º, alínea a), e 578º, do CPC, e art.ºs 8º e 17º do Regulamento (CE) 2201/2003, de 27.11, absolvendo o Requerido da instância.
            Inconformada, a requerente apelou formulando as seguintes conclusões:

            1ª - Os Tribunais Portugueses serão, in casu, os únicos que poderão decidir sobre a autorização de saída do menor para fora de Portugal e os que melhor poderão defender os interesses do menor, sendo que o país da residência habitual do menor deverá considerar-se Portugal.

            2ª - O menor encontra-se num estado de “precaridade” na Suíça enquanto não houver autorização expressa do pai para aí residir. Essa mesma autorização servirá para lhe permitir aceder ao exercício pleno dos seus direitos, que ainda não tem, nem para efeitos de residência!

            3ª - Quanto ao Regulamento 2201/2003 do Conselho, de 27.11, não se aplica à Suíça, mas unicamente a países da Comunidade Europeia, porém, se algo há a retirar deste, será o espírito do critério da proximidade, que, interpretado segundo o previsto no referido Regulamento, tendo em conta que o pai, os avós paternos e maternos, tios, primos, amigos de infância, etc., residem em Portugal, sendo que a mãe e o menor sempre aí residiram, mudando-se há pouco tempo para a Suíça, teria de entender-se competente o tribunal português.

            4ª - Quanto ao RGPTC, art.ºs 42º e 9º, tal não pode ser aplicado de per se: o menor reside com a requerente na Suíça sem autorização expressa e indispensável do pai e Portugal continua a ser o seu país de origem e de referência, da família.

            Todos os envolvidos - menor e progenitores - são portugueses, tendo unicamente nacionalidade portuguesa, falando a língua portuguesa.

            5ª - Tal pedido só pode decorrer do processo de regulação, e não ex novo e num Estado que ainda, e por essa razão, não lhe reconhece residência.

            6ª - Pois, não se pode considerar que o local do destino passou a constituir o da residência permanente ou habitual do menor, porque essa residência permanente ou habitual demanda consenso do outro progenitor, e inexistindo, deverá ter-se por residência permanente ou habitual a anterior à deslocação.

            7ª - Ou seja, é competente o tribunal do local da residência do menor, aquele onde tinha a sua ´residência habitual` com a progenitora a quem fora confiada a guarda, única residência com a qual o pai expressamente concordou.

            8ª - Existe pois uma temporária situação de facto mas não de direito - é necessário consenso acerca dessa decisão de mudança de residência do menor, que inexistindo, impõe a intervenção do tribunal do país que decidiu acerca da residência do progenitor a quem foi confiada a guarda.

            9ª - Tendo em conta que a regulação ocorreu no âmbito de um processo de divórcio, analisando a Lei 61/2008, de 31.10, vemos que esta visou preservar relações de proximidade, e consagrar um regime legal em que mesmo o progenitor que não detenha o poder paternal deve ser ouvido e, assim, ser co-responsável pela educação e destino do filho, estando em causa “questões de particular importância para a vida do filho”, que, em regra, passam a ser exercidas em comum e ser objecto de informação recíproca – n.º 1 do art.º 1906º do Código Civil/CC. Trata-se, inquestionavelmente, de um preceito de interesse e ordem pública.

            10ª - As disposições da Convenção podem ser afastadas pelos estados contratantes se a sua aplicação se revelar incompatível com a ordem pública.

            11ª - De facto não houve o expresso consentimento do pai do menor, e sem o mesmo, não há autorização para com ele residir na Suíça, nem viajar (o que está em causa).

            12ª - É o próprio Direito Português a reconhecer a importância de as crianças portuguesas, filhas de pais separados, não sejam levadas para o estrangeiro por qualquer dos progenitores sem conhecimento e consentimento do outro, não abdicando da sua competência para regular as responsabilidades parentais.

            13ª - Foi em Portugal, no Tribunal da Comarca de Viseu, que ocorreu a regulação das responsabilidades parentais, processo de onde parte a alteração, pelo que seria de todo conveniente que se desenrole no mesmo tribunal, evitando repetição de actos judiciais e em prol da celeridade do processo, dada a urgência da questão.

            14ª - Não pode o tribunal suíço autorizar a saída do menor de Portugal e a residência noutro país, bem como a saída de outro país, por falta de legitimidade e ainda por risco de não acautelar devidamente os interesses do menor, desde logo pela dificuldade do progenitor em se deslocar à Suíça, bem como ao desconhecimento dos trâmites legais inerentes ao processo por parte da Requerente.

            15ª - Quanto à natureza do pedido formulado pela requerente, note-se que no art.º 3º da Convenção de Haia nada se lhe refere, uma vez que a requerente pede apenas para que seja autorizada a saída de Portugal, a residência e deslocação do menor entre o seu país de origem, Portugal, onde foram reguladas as responsabilidades parentais, e o país onde a Requerente se encontra, Suíça (cf. art.ºs 16 a 18, 20 e 21 do requerimento de alteração). E que só o estado português, melhor, o processo onde o mesmo não foi dado, tenha esse aditamento e dê esse consentimento.

            16ª - Não tem legitimidade o tribunal suíço para ele próprio autorizar que o menor possa sair de Portugal e residir fora de Portugal, é algo que tem de provir dos tribunais portugueses, pois foi aqui que correu o processo inicial de regulação e o que se requer é indissociável do já regulado e não um pedido ab initio que goze de autonomia suficiente para se tratar num outro país.

            17ª - No fundo, a requerente veio pedir uma autorização de saída e residência do menor fora de Portugal, nenhuma das situações previstas nos art.ºs 3º ou 5º da Convenção de Haia, nem o art.º 17º da mesma.

            Remata dizendo que deverá ser declarada a competência dos Tribunais Portugueses e o prosseguimento dos autos visando obter autorização de saída expressa do menor do país de origem para residir noutro país.

            O M.º Público respondeu concluindo pela improcedência do recurso.

            Atento o referido acervo conclusivo, delimitativo do objecto do recurso, importa decidir se são os tribunais portugueses ou os suíços os competentes para conhecer da pretendida “alteração” da regulação das responsabilidades parentais relativa ao menor M (...) .


*

            II. 1. Para a decisão do recurso releva apenas o que consta do precedente relatório, sendo que não foram juntos aos autos quaisquer elementos referentes à regulação homologada por sentença de 15.12.2006.

            Porém, nenhuma dúvida existe sobre a tramitação do presente apenso, a posição dos intervenientes e o sentido e a razão de ser da decisão sob censura.

            2. Cumpre, apreciar e decidir com a necessária concisão.

            Através da presente acção, a requerente diz pretender alterar a regulação do exercício das responsabilidades parentais relativa ao seu filho menor, para que este “passe a residir” com a progenitora na Suíça, obtendo-se a necessária autorização para “viajar” para o estrangeiro.

            Este, pois, o núcleo essencial da pretensão deduzida em juízo.

            3. Tendo presente o Regime Geral do Processo Tutelar Cível/RGPTC (aprovado pela Lei n.º 141/2015, de 08.9), em matéria de competência territorial, para decretar as providências tutelares cíveis é competente o tribunal da residência da criança no momento em que o processo foi instaurado (art.º 9º, n.º 1); se no momento da instauração do processo a criança residir no estrangeiro e o tribunal português for internacionalmente competente, é competente para apreciar e decidir a causa o tribunal da residência do requerente ou do requerido (n.º 7).

            Quando o acordo ou a decisão final (de regulação do exercício das responsabilidades parentais) não sejam cumpridos por ambos os pais, ou por terceira pessoa a quem a criança haja sido confiada, ou quando circunstâncias supervenientes tornem necessário alterar o que estiver estabelecido, qualquer um daqueles ou o Ministério Público podem requerer ao tribunal, que no momento for territorialmente competente, nova regulação do exercício das responsabilidades parentais (art.º 42º, n.º 1, sob a epígrafe “alteração de regime”).

             4. A questão da competência internacional surge quando no pleito se desenham elementos em conexão com outra ordem jurídica, para além da portuguesa. Trata-se de saber se a questão submetida a tribunal deve ser resolvida pelos tribunais portugueses ou se pelos tribunais estrangeiros.

            Partindo-se do pressuposto de que a questão em apreço se insere no âmbito da competência internacional dos tribunais portugueses, importaria atender ao preceituado no art.º 59º do Código de Processo Civil (CPC), que estabelece a competência dos tribunais portugueses quando se verifique algum dos elementos de conexão referidos nos art.ºs 62º e 63º[1] ou quando as partes lhes tenham atribuído competência nos termos do art.º 94º.

            Porém, o referido art.º começa, desde logo, por ressalvar o estabelecido em regulamentos europeus e outros instrumentos internacionais, pelo que, em princípio, tratando-se de um país não membro da União Europeia (Suíça), seria aplicável a Convenção de Haia de 19.10.1996 relativa à responsabilidade parental e medidas de protecção das crianças (aprovada pelo DL n.º 52/2008, de 13.11, e em vigor desde 01.8.2011, sendo Portugal e a Suíça Estados Contratantes).

            A referida Convenção tem por objecto, nomeadamente: a) Determinar qual o Estado cujas autoridades têm competência para tomar as medidas orientadas à protecção da pessoa ou bens da criança; b) Determinar qual a lei aplicável por estas autoridades no exercício da sua competência; c) Determinar a lei aplicável à responsabilidade parental (art.º 1º, n.º 1). Para os efeitos desta Convenção, a expressão «responsabilidade parental» designa a autoridade parental ou qualquer outra relação análoga de autoridade que determine os direitos, poderes e responsabilidades dos pais, tutores ou outros representantes legais relativamente à pessoa ou bens da criança (n.º 2).

            As medidas previstas no art.º 1º poderão, nomeadamente, envolver: a) Atribuição, exercício, termo ou redução da responsabilidade parental, bem como a sua delegação; b) Direito de custódia, incluindo os direitos de cuidar da criança e, em particular, o direito de determinar o local de residência da criança, bem como o direito de visita incluindo o direito de levar uma criança, por um período limitado de tempo, a outro local que não aquele da sua residência habitual (art.º 3º).

            Em matéria de «competência» ficou estabelecido que as autoridades jurídicas ou administrativas do Estado Contratante no qual a criança tem a sua residência habitual possuem competência para tomar as medidas necessárias à protecção da pessoa ou bens da criança (art.º 5º, n.º 1). Com ressalva do art.º 7º [que tem por objecto situações de “afastamento ou de retenção ilícita da criança”], em caso de mudança da residência habitual da criança para outro Estado Contratante, as autoridades do Estado da nova residência habitual terão a competência (n.º 2).

            Porém, se a autoridade competente do Estado Contratante com a competência prevista nos art.ºs 5º e 6º, excepcionalmente, considerar que a autoridade do outro Estado Contratante se encontra numa posição melhor para apreciar, num caso particular, os melhores interesses da criança, poderá: Solicitar a essa outra autoridade, directamente ou através do auxílio da Autoridade Central desse Estado, que assuma essa competência para tomar as medidas de protecção que considere necessárias; ou Deixar de tomar em consideração o caso e convidar as Partes a apresentar tal pedido à autoridade desse outro Estado (art.º 8º, n.º 1). 

            Preceitua o n.º 3 do art.º 16º da mesma convenção que “a responsabilidade parental existente ao abrigo da lei do Estado da residência habitual da criança manter-se-á após a mudança dessa residência habitual para outro Estado”.

            E prevê o art.º 17º que “o exercício da responsabilidade parental é regido pela lei do Estado da residência habitual da criança. Se a residência habitual da criança se alterar, será regido pela lei do Estado da nova residência habitual”.

            5. Contudo, importa ainda considerar alguns normativos da lei civil substantiva nacional e da Lei Fundamental.

            Assim, prevê o art.º 1906º do CC (na redacção conferida pela Lei n.º 61/2008, de 31.10) que “as responsabilidades parentais relativas às questões de particular importância para a vida do filho são exercidas em comum por ambos os progenitores nos termos que vigoravam na constância do matrimónio, salvo nos casos de urgência manifesta, em que qualquer dos progenitores pode agir sozinho, devendo prestar informações ao outro logo que possível (n.º 1). Quando o exercício em comum das responsabilidades parentais relativas às questões de particular importância para a vida do filho for julgado contrário aos interesses deste, deve o tribunal, através de decisão fundamentada, determinar que essas responsabilidades sejam exercidas por um dos progenitores (n.º 2). O tribunal determinará a residência do filho e os direitos de visita de acordo com o interesse deste, tendo em atenção todas as circunstâncias relevantes, designadamente o eventual acordo dos pais e a disponibilidade manifestada por cada um deles para promover relações habituais do filho com o outro (n.º 5). Ao progenitor que não exerça, no todo ou em parte, as responsabilidades parentais assiste o direito de ser informado sobre o modo do seu exercício, designadamente sobre a educação e as condições de vida do filho (n.º 6). O tribunal decidirá sempre de harmonia com o interesse do menor, incluindo o de manter uma relação de grande proximidade com os dois progenitores, promovendo e aceitando acordos ou tomando decisões que favoreçam amplas oportunidades de contacto com ambos e de partilha de responsabilidades entre eles (n.º 7).[2]

            De entre os “direitos, liberdades e garantias pessoais”, a Lei Fundamental reconhece e garante a liberdade de deslocação transfronteiras (o “direito de emigração”): “A todos é garantido o direito de emigrar ou de sair do território nacional e o direito de regressar” (art.º 44º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa/CRP).

            6. O Tribunal de 1ª Instância julgou procedente a excepção de incompetência internacional e considerou os Tribunais Suíços competentes para a pedida “alteração” da regulação do exercício das responsabilidades parentais face à superveniente alteração da residência do menor.

            Considerou-se que “a progenitora da criança vive na Suíça com a criança, desde o ano de 2010, sendo esse país o da residência habitual da criança”, pelo que importa atender à Convenção relativa à Cooperação em Matéria de Responsabilidade Parental e Medidas de Protecção das Crianças, concluída em Haia, em 19.10.1996 - “sendo aplicável a lei do estado da residência habitual da criança, no caso é competente o Tribunal Suíço e aplicável a lei Suíça, sendo, ademais, esse tribunal o melhor colocado para decidir”; “não se verifica aqui qualquer situação de emergência que justifique a intervenção dos tribunais Portugueses nem nenhum interesse de ordem pública, tanto mais que a guarda e residência da criança foram atribuídas à mãe, cabendo-lhe o exercício das responsabilidades parentais”.

            7. Como tudo surge configurado na petição é irrecusável que a questão suscitada tem pontos de conexão entre duas ordens jurídicas de países diferentes, tratando-se assim de definir a quem cabe a competência, sabendo-se que na competência internacional equaciona-se “a competência dos tribunais portugueses no seu conjunto, em face dos tribunais estrangeiros. Verdadeiramente, do que se trata aqui é dos limites da jurisdição do Estado Português; de definir quando é que este se arroga o direito e se impõe o dever de exercitar a sua função jurisdicional”.[3]

            8. Tem-se considerado, e é jurisprudência corrente, que a acção de alteração da regulação das responsabilidades parentais constitui uma acção autónoma (nova acção).[4]

            A Lei n.º 61/2008, de 31.10, aplica-se à acção autónoma intentada na vigência dos normativos que alterou, sendo pacífico que veio a consagrar um regime jurídico que preserva relações de proximidade, em que mesmo o progenitor que não detenha a “guarda” deve ser ouvido e, assim, ser co-responsável pela educação e destino do filho, estando em causa “questões de particular importância para a vida do filho”, que, em regra, passam a ser exercidas em comum e objecto de informação recíproca; o art.º 1906º, do CC, na sua nova e actual redacção, integra, pois, normativos de interesse e ordem pública, sendo que vigorava à data em que foi requerida a “alteração” da regulação em análise, ditada pela superveniente alteração das circunstâncias com a partida/emigração da mãe para a Suíça, pelo que sempre haverá que ponderar se tais alterações e a ratio delas contende com a decisão a tomar (cf., ainda, o art.º 12º, n.º 2, 2ª parte, do CC e, designadamente, os art.ºs 988º, n.º 1, do CPC e 12º do RGPTC).[5]

            9. Ainda que não comprovado nos autos o acordado regime de regulação das responsabilidades parentais, não se questiona que, à data da regulação inicial, o menor, os progenitores e todos os familiares paternos e maternos residiam no concelho de Viseu, e, posteriormente, apenas terá ocorrido a deslocação da progenitora e do menor para a Suíça, ao que tudo indica, em contexto de emigração.

            Atento o preceituado no art.º 1906º do CC, podemos e devemos afirmar que, em geral, na falta de consenso/acordo dos progenitores, devidamente expresso, compete ao Tribunal, nos termos do n.º 5 do citado art.º, determinar o local da residência do filho, e esse tribunal não é o da residência actual do filho na Suíça, mas aquele onde tinha a sua residência habitual com a progenitora a quem fora confiada a guarda; essa residência permanente ou habitual demanda agora, informação senão mesmo consenso do outro progenitor, e inexistindo, a afirmação soberana do Tribunal da residência habitual (aquela que o progenitor detentor da guarda tinha ao tempo em que decidiu sair do país levando consigo o menor).

            Nesta linha de entendimento, será pois de (re)afirmar o seguinte “corolário”: reconhecendo o Direito Português ser do máximo interesse que as crianças portuguesas, filhas de pais separados, que em Portugal acordaram na regulação do poder paternal, não sejam levadas para o estrangeiro por qualquer dos progenitores sem conhecimento e consentimento do outro, não abdica da sua competência para regular as responsabilidades parentais.[6]

            10. Resulta dos elementos disponíveis que a requerente, o requerido e o filho terão nacionalidade portuguesa e que em Portugal foi regulado o exercício das responsabilidades parentais, ficando o menor entregue à guarda e cuidados da mãe/requerente.

            O menor, que vivia em Portugal, acompanhou a mãe para a Suíça, que aí se encontrará emigrada; o pai/requerido continuou e continuará a residir em Portugal.

            Tudo aponta no sentido de que, à data em que foi instaurado o presente pedido de “alteração”, os progenitores continuavam a ter uma especial ligação a Portugal, de onde são nacionais e onde residirá o requerido; é evidente que a requerente considera o tribunal português competente para apreciar a sua pretensão; não se vislumbra que tal competência comprometa o superior interesse da criança, sendo certo que está sobretudo em causa, por um lado, o regime jurídico (legal e constitucional) relativo ao direito de deslocação e de emigração, designadamente, o princípio consagrado no n.º 2 do art.º 44º, da CRP (“A todos é garantido o direito de emigrar ou de sair do território nacional e o direito de regressar”; cf., ainda, os art.ºs 18º da CRP e 13º da Declaração Universal dos Direitos do Homem[7])[8] e, por outro lado, a actuação do regime jurídico consagrado no art.º 1906º do CC, salvaguardando e conciliando os direitos da criança e os direitos e deveres dos progenitores.

            Na ponderação de tais direitos e deveres antolha-se evidente que não estarão os tribunais suíços em condições de acautelar e regular da mesma forma a matéria que justifica a pretendida “alteração”; naturalmente, será o tribunal a quo aquele que mais facilidade terá em instruir e apreciar as questões abordadas no presente processo, averiguando e coligindo os elementos indispensáveis a decidir a acção em conformidade com o interesse do menor (visando, além do mais, a plena actuação do acordo de regulação, nas actuais circunstâncias, e, quiçá, a averiguação do paradeiro de um cidadão português).[9]

            11. Sabendo-se que a competência do Tribunal, em geral, deve ser aferida em função do pedido formulado pelo autor e dos fundamentos (causa de pedir) que o suportam, ou seja, de acordo com a relação jurídica tal como é configurada pelo autor, e que a competência internacional pressupõe que o litígio, tal como o autor o configura na acção, apresenta um ou mais elementos de conexão com uma ou várias ordens jurídicas distintas[10], e considerada ainda a legitimidade do Estado para intervir no exercício dum direito fundamental dos cidadãos (a liberdade de circulação, constitucionalmente garantida) associada, in casu, à concomitante defesa e salvaguarda do interesse do menor e da sua relação afectiva com os progenitores[11], apenas podemos concluir que a assunção da jurisdição nacional viabiliza a atribuição do escrutínio do mérito a um tribunal em concreto melhor posicionado, e vocacionado, para o fazer - também no caso em análise se poderá dizer que o menor, embora a morar no estrangeiro, aí não dispõe de residência habitual, juridicamente relevante, designadamente para efeitos atributivos de competência jurisdicional[12], apresentando-se os tribunais portugueses como os únicos que poderão decidir sobre o peticionado (autorização de saída do menor para o estrangeiro) e os que melhor poderão defender os interesses do menor, sendo que, o que se requer, é indissociável do já regulado, originalmente, em Portugal.

            12. Por conseguinte, se é certo que, em princípio, a competência internacional é determinada pela residência habitual do menor à data em que o processo é instaurado (é o tribunal da residência habitual da criança que normalmente se encontra em melhores condições para aferir o circunstancialismo que rodeia o caso concreto), contudo, in casu, atentas as descritas particularidades, a instância nacional que operou a regulação do exercício das responsabilidades parentais, na jurisdição de origem da criança, surge ainda como a especialmente vocacionada para se pronunciar sobre a alteração da residência do menor consubstanciada numa mudança de país, questão de particular importância que, em princípio, requer um acordo prévio dos pais, sendo que o Tribunal originalmente competente não deixará de ultrapassar qualquer impasse (e providenciar pela eventual demais alteração da regulação derivada daquela nova circunstância), decidindo com base na ponderação dos interesses do menor, no confronto com as particularidades que sejam relevantes dos interesses dos pais (é o critério de decisão a este respeito fixado no n.º 5 do art.º 1906º do CC).[13] [14]

            Conclui-se, assim, pela competência internacional dos Tribunais Portugueses (Instância Central de Família e Menores de Viseu) para conhecer do pedido deduzido nos autos.


*

            III. Pelo exposto, procedendo a apelação, revoga-se a decisão recorrida, prosseguindo os autos conforme se refere em II. 11. e 12., supra.

            Sem custas.


16.5.2017


Fonte Ramos ( Relator )

Maria João Areias

Vítor Amaral

[1] Preceitua o art.º 59ª: “Sem prejuízo do que se encontre estabelecido em regulamentos europeus e em outros instrumentos internacionais, os tribunais portugueses são internacionalmente competentes quando se verifique algum dos elementos de conexão referidos nos artigos 62º e 63º ou quando as partes lhes tenham atribuído competência nos termos do artigo 94º”.

   E Estatui o art.º 62ª: “Os tribunais portugueses são internacionalmente competentes: a) Quando a acção possa ser proposta em tribunal português segundo as regras de competência territorial estabelecidas na lei portuguesa; b) Ter sido praticado em território português o facto que serve de causa de pedir na acção, ou algum dos factos que a integram; c) Quando o direito invocado não possa tornar-se efectivo senão por meio de acção proposta em território português ou se verifique para o autor dificuldade apreciável na propositura da acção no estrangeiro, desde que entre o objecto do litígio e a ordem jurídica portuguesa haja um elemento ponderoso de conexão, pessoal ou real.”


[2] O regime jurídico vigente à data do acordo de regulação dos autos era o seguinte: Desde que obtido o acordo dos pais, o poder paternal é exercido em comum por ambos, decidindo as questões relativas à vida do filho em condições idênticas às que vigoram para tal efeito na constância do matrimónio (art.º 1906º, n.º 1, do CC, na redacção introduzida pela Lei n.º 59/99, de 30.6). Na ausência de acordo dos pais, deve o tribunal, através de decisão fundamentada, determinar que o poder paternal seja exercido pelo progenitor a quem o filho for confiado (n.º 2). No caso previsto no número anterior, os pais podem acordar que determinados assuntos sejam resolvidos entre ambos ou que a administração dos bens do filho seja assumida pelo progenitor a quem o menor tenha sido confiado (n.º 3). Ao progenitor que não exerça o poder paternal assiste o poder de vigiar a educação e as condições de vida do filho (n.º 4).

[3] Vide Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1979, pág. 92.

[4] Vide, neste sentido, Rui Epifânio e António Farinha, Organização Tutelar de Menores, Almedina, 1987, págs. 371 e seguintes e, entre outros, os acórdãos do STJ de 28.9.2010-processo 870/09.7TBCTB.C1.S1 e da RP de 15.4.2013-processo 7-A/2000.P1, publicados no “site” da dgsi.
[5] Cf. o cit. acórdão do STJ de 28.9.2010-processo 870/09.7TBCTB.C1.S1.
[6] Ibidem.
[7] Preceitua o referido art.º:
   Toda a pessoa tem o direito de livremente circular e escolher a sua residência no interior de um Estado (n.º 1).
   Toda a pessoa tem o direito de abandonar o país em que se encontra, incluindo o seu, e o direito de regressar ao seu país (n.º 2).
[8] Vide, entre outros, Elias da Costa e Carlos Oliveira Matias, Notas e Comentários à Lei Tutelar de Menores, 2ª edição, Livraria Petrony, 1982, págs. 208 e seguinte e Rui Epifânio e António Farinha, ob. cit., págs. 219 e seguintes.
[9] Vide, numa situação com alguma similitude, o acórdão da RL de 08.11.2016-processo 22246/15.7T8SNT.L1-7, publicado no “site” da dgsi.
[10] Cf. o acórdão da RL de 27.3.2012-processo 703/11.4TBLNH.L1-1, publicado no “site da dgsi.
[11] Cf. o acórdão da RG de 04.02.2016-processo 1233/14.8TBGMR.G1, publicado no “site” da dgsi.
[12] Cf. o cit. acórdão da RP de 15.4.2013-processo 7-A/2000.P1.

[13] Cf., ainda, o acórdão da RC de 02.12.2014-processo 1045/12.3TBCLD-A.C1, publicado no “site” da dgsi.

[14] Ademais, na fase liminar do processo e admitida, naturalmente, uma ainda porventura insuficiente configuração da realidade da acção, em princípio/regra, não será de afastar a competência dos tribunais portugueses - cf. o acórdão da RG de 17.11.2016-processo 338/07.6TBPRG.G1, publicado no “site” da dgsi.


*http://www.dgsi.pt/icons/ecblank.gif