Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2047/08.0TBPDL-D.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: REGINA ROSA
Descritores: ASSOCIAÇÃO
DIREITO CANÓNICO
ASSOCIAÇÃO PÚBLICA
ASSOCIAÇÃO PRIVADA
REPRESENTAÇÃO
Data do Acordão: 05/17/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: OURÉM – 2º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: CÓDIGO DE DIREITO CANÓNICO DE 1983
Sumário: I – Nos termos dos cânones 298 a 329 do actual Código de Direito Canónico todos os fiéis (católicos) têm o direito de associação para apostolado, o que inclui fundar associações, autonomia estatutária e governo das associações.

II – Quando são erigidas pela autoridade (cân. 301) são consideradas públicas; de contrário, serão sempre privadas.

III – O direito de associação visa a “evangelização, as obras de caridade, o culto e a presença do cristão na sociedade”.

IV – O critério diferenciador das associações de nível público e de nível privado reside na finalidade por que foram criadas – assim, as públicas visam ensinar a doutrina cristã em nome da Igreja ou promover o culto público, ou proporem-se obter outros fins cuja obtenção está reservada à autoridade eclesiástica (cân. 301 § 1); nas privadas, os fiéis empenham-se para fomentar uma vida mais perfeita, promover o culto público ou a doutrina cristã, iniciativas de evangelização, exercício de obras de piedade ou caridade (cân. 298 §1).

V – As associações privadas de fiéis estão sujeitas à vigilância da autoridade eclesiástica competente (cân. 305 § 1 e cân. 325 § 1); porém, não pode a autoridade eclesiástica competente, a coberto desse dever de vigilância, designar comissários que representem a associação.

VI – Segundo o cân. 309, compete às associações legitimamente constituídas, de acordo com o direito e os estatutos, estabelecer normas particulares relativas à associação, realizar reuniões, designar os moderadores, os oficiais, os funcionários e os administradores dos bens.

Decisão Texto Integral:             ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA

            I- RELATÓRIO

            I.1- «Pia União das Escravas do Divino Coração de Jesus» instaurou em 28.7.08, procedimento cautelar comum contra A..., «Fundação do Divino Coração de Jesus» e B... e C..., alegando, em síntese, que:

- Sendo uma pessoa jurídica canónico-concordatária erecta canonicamente pelo Bispo de Leiria-Fátima, tem personalidade jurídica no foro canónico e civil, estando representada actualmente por uma Comissão, de que faz parte C..., por força da nomeação Bispal de 15/07/2008;

- Os seus bens - de que fazem parte os prédios que identificou no art°7°, os móveis que constituem o respectivo recheio e uma quantia de 150.000,00 € -, constituem bens eclesiásticos, cuja alienação, transmissão, oneração ou afectação para outros fins que não os religiosos, carecem de autorização da entidade competente, no caso o Bispo de Leiria-Fátima;

- A requerida, B..., na qualidade que se arrogou de Superiora Geral da Requerente, outorgou, em 19/10/2005, no Cartório Notarial de Ourém, procuração notarial a favor do 1º Requerido (seu sobrinho), A..., em que lhe conferiu poderes para a constituição de uma Fundação de natureza social, com fins meramente civis, bem como poderes para administrar e alienar bens;

- No uso dessa mesma procuração, o Requerido A..., em representação da Requerente, outorgou em 22 de Junho de 2006 escritura pública em que instituiu uma Fundação de solidariedade social que denominou de «Fundação do Divino Coração de Jesus» (a 2º requerida), à qual afectou todo o património eclesiástico da ora requerente, afectação essa a que foi atribuído o valor global de 285.588,81 €;

 - A constituição da requerida Fundação - uma mera entidade civil, sem fins religiosos - acarreta um prejuízo irreparável para a entidade instituidora, pois ficou despida de todo o seu património;

- Atenta a circunstância de o 1ºrequerido ter outorgado como representante da entidade instituidora e nesse mesmo acto ter-se nomeado a si mesmo como Presidente da Fundação, tal acto consubstanciou a prática de um negócio consigo mesmo, nos termos do disposto no art.261° do C. Civil, pelo que aquela escritura é anulável;

- O negócio jurídico em causa ainda não está cumprido - a autoridade administrativa competente não reconheceu a Fundação ora Requerida -, pelo que a anulação do acto institutivo da mesma pode ser arguida (art.287º/2, C.C.);

- Os Requeridos A... e B... conseguiram proceder ao registo predial dos prédios em nome da Requerida

Fundação - com excepção do ali identificado na alínea 3) - tendo a requerente tomado conhecimento de que os mesmos têm vindo a diligenciar a promoção da venda desses bens;

- O requerido A... também já tratou de comunicar a rendeiros a denúncia dos contratos de arrendamento relativos a imóveis cuja venda já foi acordada com terceiros;

- Em face desta actuação em curso por parte dos requeridos, existe o justo receio de que os mesmos consigam para muito breve escritura de vendas dos prédios em causa e, consequentemente, que ocorra a perda desses bens eclesiásticos, assim como se receia que os Requeridos se apoderem da quantia de 150.000,00 € em dinheiro já depositado em conta bancária da Fundação.

- A autoridade eclesiástica competente nomeou comissário para representar a ora requerente mandatando-o no sentido de diligenciar à protecção dos bens;

- A 23 de Julho de 2008, no Cartório Notarial da Povoação, foi revogada a procuração conferida em 19/10/2005 ao requerido A..., tendo nessa mesma data sido feita notificação da revogação;

- A prática dos iminentes actos de alienação, só se conseguirá impedir mediante providência destinada a obter ordem judicial de que os bens em causa não poderão ser objecto de qualquer acto de alienação ou oneração até trânsito em julgado da decisão a proferir na acção principal, acção essa que, adiantou, visará a declaração de nulidade ou anulabilidade do acto de constituição da requerida «Fundação» e que, por isso, terá como objecto também a universalidade de bens que lhe foram afectos.

Com estes fundamentos, concluiu, requerendo ao Tribunal a quo para: “a) decretar que os bens identificados no artigo 7° do presente Requerimento Inicial não poderão ser alienados ou por qualquer outra forma transmitidos nem onerados até ao trânsito em julgado da sentença a proferir na acção principal; b) ordenar o registo da providência decretada nas competentes conservatórias onde os ditos bens imóveis se encontram registados e a sua notificação à dependência de Fátima-Norte do Banco ... sita na Rua ... (…) onde a quantia em dinheiro se encontra depositada em conta bancária em nome da «Fundação» aqui Requerida”.

Citados, os requeridos, na oposição que vieram deduzir, além do mais, a irregularidade da representação da requerente, e por impugnação, sustentam, em síntese, a natureza privada dos bens em causa e a inexistência de qualquer óbice à prática dos actos referidos no art.7° da petição, até porque, alegam, a 3ª requerida, que é Superiora eleita da requerente e a sua única representante, sempre teve legitimidade para os praticar, sendo que estes correspondem à vontade livremente expressa pela «Pia União».

No que concerne à irregularidade da representação da «Pia União», sustentam que, tendo a requerente a natureza de associação privada de fiéis, representada exclusivamente pela sua Superiora, a 3ª requerida, não tem o Bispo legitimidade para a designação de comissários - poder conferido apenas relativamente às associações públicas de fiéis -, não tendo o Bispo, também, nem quem outorgou procuração ao distinto mandatário judicial, quer individualmente quer no exercício de autoridade eclesiástica, legitimidade, poder ou atribuição, para a designação de representante da Pia União, o que fez contra os Estatutos e violando o disposto no n°1 do art.21º do CPC.

Assim, não tendo, defendem, o designado «comissário», Dr. C..., que conferiu procuração ao distinto mandatário, poderes de representação da requerente, representada exclusivamente pela 3° requerida, e não querendo esta sanar a irregularidade da representação, como expressamente declara, sustentaram que deveriam “… ser absolvidos da instância, com custas por quem agiu indevidamente em nome da A. - que não esta, que não quis e não quer o resultado pretendido na presente providência.”.

I.2- A fls.17 consta procuração que, segundo nela se refere, a «Pia União das Escravas do Divino Coração de Jesus», representada pelo Dr. C..., conforme Credencial de 16/07/2008, passou em 23 de Julho de 2008, a favor do Sr. Dr. Q..., Advogado, conferindo-lhe os poderes gerais forenses em Direito permitidos para a representar em juízo ou poder para confessar, transigir, desistir, receber quantias entregues a titulo de provisão, taxa de justiça e ainda as quantias provenientes de precatórios cheques.

A fls.19, o Chefe de Gabinete do Bispo de Leiria-Fátima certifica, além do mais, que, “dos livros do Cartório a cargo da Chancelaria desta Cúria, consta que existe a entidade canónico-concordatária pessoa colectiva religiosa Pia União das Escravas do Divino Coração de Jesus, com o NIF 501 232 222, e com sede no lugar de Aljustrel, freguesia de Fátima, concelho de Ourém, com personalidade jurídica que lhe advém da respectiva Comunicação do Prelado ao Governo Civil de Santarém, em 06 de Março de 1959”, certificando, também que, por Decreto do Prelado Diocesano D. António Augusto dos Santos Marto, Bispo de Leiria-Fátima, de 15 de Julho de 2008, aquela Pia União é actualmente representada em Juízo e fora dele, em todos os assuntos a ela referentes segundo a normas do direito, por uma Comissão de que faz parte o Dr. C...”.

 Dos Estatutos da «Pia União» consta, além do mais:

Art.2° - O fim desta Pia União é, em primeiro lugar, a santificação individual pelo cumprimento dos Preceitos e Conselhos Evangélicos e normas da Igreja; em segundo lugar, a evangelização dos Pobres pelo exemplo e prática das Obras de Misericórdia.

Art.15º - A Pia União das Escravas deve ter uma Superiora eleita por três anos e por todas as associadas já com votos.

Art.16° - Uma vez eleita, a Superiora deve apresentar-se imediatamente ao seu Prelado a quem prestará juramento de fidelidade absoluta as normas da Santa Igreja.

Art.17° - Depois de eleita, a Superiora deve escolher, entre as associadas já com votos, duas ou três que sejam suas auxiliares na direcção das Casas que tiverem à sua conta.

A requerida B..., em religião chamada Irmã Maria D..., é a Superiora reeleita pelas associadas em 25 de Maio de 2008.

 II.3- Por despacho de 30.10.08, entendendo-se ser questão prévia, impeditiva do conhecimento de mérito do procedimento cautelar, a determinação da capacidade para representar em juízo a Requerente, questão essa que não cabia na jurisdição da ordem judicial, pois considerou-se da competência da autoridade eclesiástica, julgou-se verificada a excepção dilatória inominada de falta de jurisdição do Tribunal Judicial e, em consequência, absolveram-se os requeridos da instância.

Recorreu a requerente.

Por acórdão desta Relação proferido a 3.3.09, revogou-se o despacho recorrido, ordenando-se o prosseguimento dos autos com a apreciação da invocada questão da irregularidade da representação da requerente da providência.

I.4- Na 1ª instância foi então, na sequência do assim decidido, proferido despacho datado de 19.5.09, no qual, conhecendo da referida excepção dilatória, julgou-se que a representação da requerente cabe à requerida B.... Considerando existir conflito de interesses entre a requerente e a sua representante legal, nomeou-se, nos termos do art.21º/2, C.P.C., E... como representante da requerente nos presentes autos, por se tratar da segunda associada mais votada na eleição para Superiora.

Esta decisão veio a ser anulada por acórdão desta Relação, por não se ter dado oportunidade à requerente de contraditar as excepções alegadas na oposição. Veio a mesma a fazê-lo em extenso articulado, para concluir pela validade formal da representação por força de Decretos emitidos pela Autoridade Eclesiástica competente, não ocorrendo, a seu ver, irregularidade de representação que obste a que o tribunal conheça de mérito.

A resposta não foi admitida por se ter considerado que foi trazida a juízo fora de tempo.

Em 24.6.10, proferiu-se o seguinte despacho: “Pelos requeridos foi arguida a excepção da irregularidade de representação da requerente. Notificada, a requerente não se pronunciou (em tempo, conforme exarado supra).

Por entendermos nada termos a acrescentar aos fundamentos de facto e de direito exarados no despacho proferido nestes autos a 19.5.09, por razões de economia processual aqui se dá o mesmo por integralmente reproduzido para efeitos de conhecimento da excepção dilatória da irregularidade de representação suscitada.

Notifique, dando-se cópia do despacho proferido a 19.5.09 para melhor compreensão do presente.”.

De novo recorreu a requerente.

Alegando, formulou 35 conclusões, depois de ter sido convidada a sintetizar as anteriores 72 conclusões, e que assim se expõem:

[…]

I.5- Contra-alegaram os requeridos, pugnando pelo improvimento do recurso e confirmação do despacho impugnado.

Dispensados os vistos, cumpre apreciar e decidir, nada a tal obstando.

                                               #                     #

II - FUNDAMENTOS

Os elementos factuais a tomar em conta, são os enunciados no precedente relatório.

Como é sabido, são as conclusões que delimitam o objecto do recurso, visando este a reapreciação de questões decididas pelo tribunal a quo, não podendo conhecer-se de matéria nova aí não apreciada, salvo de conhecimento oficioso.

Neste âmbito, percorrendo as conclusões do recurso, constata-se que a questão essencial que vem colocada e que aliás decorre do acto recorrido, prende-se com regularidade da representação da requerente da providência, aqui recorrente.

II.1- Mas como ponto inicial do seu desacordo com a decisão recorrida, alega a recorrente nas 13 primeiras conclusões, que a mesma está ferida de nulidade por falta de fundamentação, já que remeteu para os fundamentos de uma decisão declarada nula.

Esta crítica parece-nos infundada.

Como resulta do despacho proferido a 24.6.10 acima transcrito, o tribunal limitou-se a dar por reproduzidos os fundamentos de facto e de direito em que assentara a anterior decisão de 19.5.10, que havia sido anulada bem como os actos subsequentes, devido a uma falha processual - o não exercício do contraditório.

Ora, tendo sido dada à requerente a oportunidade de se debruçar sobre a invocada excepção dilatória da irregularidade da sua representação em juízo, como fez, seguindo-se nova decisão sobre tal matéria, podia o tribunal, por razões de economia processual, reproduzir os mesmos fundamentos da anterior decisão, sem que isso signifique a sua repristinação. A alternativa de elaboração de outro despacho em tudo idêntico ao primeiro, seria pura perda de tempo e de actividade.

A verificar-se a nulidade contemplada no art.668º/1-b), C.P.C., como defende a recorrente, não faria sentido que a Relação mandasse baixar o processo à 1ª instância para ser suprido o vício da decisão, para depois os autos voltarem de novo à Relação.

De todo o modo, pela regra de substituição ao tribunal recorrido prevista no art.715º/C.P.C., a Relação não deixará de conhecer do objecto da apelação.

Diz ainda a recorrente que o tribunal não dispunha de todos os elementos para decidir, pois que faltava o Decreto que nomeou o comissário C.... Ainda que assim fosse, essa falta não constituiu, aquando do despacho de 19.5.09, óbice à sua prolação, não se justificando prévia produção de prova.

De resto, a desnecessidade ou não de produção de prova antes do conhecimento da arguida excepção, será matéria a apreciar no mérito do recurso, e se for caso disso. Não é, como parece ser o entendimento da recorrente, questão impeditiva dessa mesma apreciação.

II.2- Cuidemos, então da questão de fundo, ou seja, da alegada irregularidade da representação da requerente.

A fundamentar o decidido, e após análise da factualidade pertinente já disponível e legislação aplicável, a 1ª instância considerou que a requerente «Pia União» era uma associação privada de fiéis sujeita à vigilância da autoridade eclesiástica competente, constituída a partir da iniciativa privada, não sendo determinante na sua qualificação jurídica, ter sido erecta canonicamente em Pessoa Moral, erecção que teria resultado apenas da aprovação dos seus estatutos.

Neste contexto, citando a norma do art.21º/1 do C.P.C. e o art.18º/2 das «Normas Gerais das Associações de Fiéis», aprovadas pela Conferência Episcopal Portuguesa em 4.4.08, considerou o tribunal caber à requerida B..., a representação da requerente, E nos termos do nº2 do citado art.21º, verificando-se existir conflito de interesses entre requerente e sua representada, nomeou-se outra Irmã como sua representante.

Não interessa agora saber se a pessoa nomeada está em condições, por razões de saúde, de exercer essa função. Será assunto a ponderar no momento próprio, não neste recurso, pois o que aqui importa é decidir quem representa a requerente «Pia União»: se C..., mandatado pela Comissão, de que faz parte, nomeada por Decreto do Bispo de Leiria – Fátima, de 15.7.08, ou a requerida B ..., que defende ser ela a representante exclusiva da requerente. Nesta situação, como é óbvio, depara-se um conflito de interesses entre representante e representada, a ser solucionada nos termos do nº2 do art.21º, como foi, e posterior sanação da irregularidade (art.23º/C.P.C.).

Não se trata de decidir se a requerente está representada como diz a recorrente. É verdade que ela fez-se representar em juízo por uma Comissão de que faz parte o Dr. C..., a coberto do dito Decreto. Mas o que importa apurar – e é essa a questão essencial – é a regularidade dessa representação.

Ora, esta questão nuclear pressupõe a análise preliminar de uma outra, que é a da validade do referido Decreto Bispal. E esta, por seu turno, suscita a avaliação prévia da natureza pública ou privada da associação de fiéis, «Pia União».

Adiantando desde já a nossa posição, temos para nós que a «Pia União» deve ser considerada uma associação privada de fiéis.

Foi este o entendimento seguido no recente Ac. do STJ de 22.2.2011, proferido no âmbito do processo nº332/09.2TBPDL, que confirmou o Ac. da R. Lisboa de 24.6.10, ambos juntos aos autos.

Nesse processo, é requerente o «Seminário Pio XII», e requerida, entre outros, B..., na qualidade de Irmã Superiora da «Pia União». Em sua defesa pôs em causa o acto de nomeação do comissário operado pelo já referido Decreto Bispal de 15.7.08, ficando a validade desse acto dependente, na perspectiva dos dois arestos, da natureza, pública ou privada, da associação de fiéis «Pia União».

Neste conspecto, louvar-nos-emos na doutrina proferida nos citados arestos, cuja clareza argumentativa merece o nosso total acolhimento e por isso iremos aqui seguir.

A requerente «Pia União» foi erecta canonicamente em Pessoa Moral, em 2.3.1959, pelo Bispo de Leiria que aprovou os respectivos estatutos, e segundo os cânones do Código de Direito Canónico, primeiro código de leis da Igreja Católica promulgado em 1917.

Em 27.11.1983 entrou em vigor um novo Código de Direito Canónico para a igreja latina, promulgado através da Constituição Apostólica em 25.1.1983.

O actual Código veio distinguir, nos cânones 298 a 329, as associações de fiéis em públicas e privadas.

No § 1º do cân. 298 dispõe-se: “Na Igreja existem associações, distintas dos institutos de vida consagrada e das sociedades de vida apostólica, nas quais os fiéis, clérigos ou leigos, ou conjuntamente clérigos e leigos, se empenham, mediante esforço comum, para fomentar uma vida mais perfeita, e promover o culto público ou a doutrina cristã, ou para outras obras de apostolado, isto é, iniciativas de evangelização, exercício de obras de piedade ou caridade, e animação da ordem temporal com espírito cristão”.

Por sua vez, dispõe o § 1 do cân.299: “Por acordo privado, os fiéis têm o direito de constituir associações, para a obtenção dos fins mencionados no cân.298 § 1, salva a prescrição do cân.301 § 1”.

Dispõe a seguir o § 2 que, “Essas associações, mesmo se louvadas e recomendadas pela autoridade eclesiástica, denominam-se associações privadas”.

O cân.301 § 1 determina: “Cabe unicamente à autoridade eclesiástica competente erigir associações de fiéis que se proponham ensinar a doutrina cristã em nome da Igreja ou promover o culto público, ou as que se proponham outros fins, cuja obtenção está reservada, por sua natureza, à mesma autoridade eclesiástica”.

Refere depois o § 3 que “As associações de fiéis erigidas pela autoridade eclesiástica competente denominam-se associações públicas”.

Pelo cân.312 § 1, é autoridade competente para erigir associações públicas, a Santa Sé, a Conferência de Bispos e o Bispo Diocesano.

Nos termos do cân.321, “Os fiéis, segundo as prescrições dos estatutos, dirigem e governam as associações privadas”. De harmonia com o cân.322 § 1, “Uma associação privada de fiéis pode adquirir personalidade jurídica mediante decreto formal da autoridade eclesiástica competente mencionada no cân.312.”. E embora gozem de autonomia, as associações privadas de fiéis estão sujeitas à vigilância da autoridade eclesiástica, de acordo com o cân.305, bem como ao governo dessa autoridade. (cân.313 § 1).

Temos, assim, que à luz destes cânones, todos os fiéis têm o direito de associação para apostolado, o que inclui fundar associações, autonomia estatutária e governo das associações. Quando são erigidas pela autoridade (cân.301) são consideradas públicas; de contrário, serão sempre privadas.

O direito de associação visa a “evangelização, as obras de caridade, o culto e a presença do cristão na sociedade”. [1]O critério diferenciador das associações de nível público e de nível privado reside na finalidade por que foram criadas. Assim, as públicas visam ensinar a doutrina cristã em nome da Igreja ou promover o culto público, ou proporem-se obter outros fins cuja obtenção está reservada à autoridade eclesiástica (cân.301 § 1); nas privadas, os fiéis empenham-se para fomentar uma vida mais perfeita, promover o culto público ou a doutrina cristã, e iniciativas de evangelização, exercício de obras de piedade ou caridade (cân.298 § 1).

A associação «Pia União» foi constituída, como se disse, em 1959. O Código de então não previa a apontada distinção das associações de fiéis na Igreja.

Dos seus estatutos relevam os três primeiros artigos: do nome – art.1º: “ «Escravas do Divino Coração de Jesus» é o nome de família das Senhoras que, por livre vontade, quiseram viver em comunidade e dar-se totalmente a Nosso Senhor Jesus Cristo, na pessoa dos pobres, em todas as Obras de caridade”; dos fins – art.2º: “O fim desta Pia União é, em primeiro lugar, a santificação individual pelo cumprimento dos Preceitos e Conselhos Evangélicos e normas da Igreja; em segundo lugar, a evangelização dos Pobres pelo exemplo e prática das Obras de Misericórdia”; da dedicação – art.3º: “Esta Pia União será consagrada aos Sagrados Corações de Jesus e Maria e propõe-se desagravá-Los pela oração, penitência e caridade”.

Deles ressalta desde logo que, embora constituída no seio da Igreja, o seu escopo não é incrementar ou promover o culto público. Por isso, não actua “ em nome da Igreja”. A finalidade da sua constituição por fiéis cristãos foi o exercício de obras de piedade ou de caridade.

Daí, a sua índole privada. Acresce, outrossim, a circunstância de a mesma ter surgido por livre iniciativa de fiéis (Senhoras que quiseram viver em comunidade), ainda que carecendo da aprovação pela competente autoridade eclesiástica que sobre ela exercerá vigilância. Se tivesse sido criada pela autoridade eclesiástica, então seria do tipo público.

A este propósito, escreve o Pe. Victor Melícias. “As associações de fiéis que tenham sido erigidas para exercer alguma obra de piedade ou de caridade denominam-se pias uniões, as quais se estão constituídas a modo de corpo orgânico chamam-se irmandade. Mas as irmandades que foram constituídas que foram erigidas também para incremento do culto público recebem o nome especial de confrarias”.[2]

É verdade que a associação em referência foi erigida canonicamente, e hoje as associações privadas não carecem de erecção canónica. Mas tal como se argumentou nos ditos arestos, “No ano de 1959 o Código não fazia distinção entre associações de fiéis públicas e privadas e aquela era a única forma de conferir personalidade moral ou jurídica, a uma associação de fiéis. (…) se a situação tivesse ocorrido na vigência do Código de 1983, estariam reunidos os pressupostos do reconhecimento de uma associação privada de fiéis”.

Em suma, conjugando os cânones citados e os fins prosseguidos pela «Pia União», esta é de considerar como uma associação privada de fiéis, porque votada a piedade, oração e prática de actos de caridade.

E assim sendo, não lhe é aplicável o cânone 318 § 1, inserido no capítulo II referente ás associações públicas de fiéis, que prescreve: “Em circunstâncias especiais, onde graves causas o exijam, a autoridade eclesiástica mencionada no cân.312 § 1, pode designar um comissário que, em seu nome, dirija temporariamente a associação”.

Foi com fundamento neste cânone, que o decreto bispal de 15.7.08 nomeou um comissário para representar em juízo a «Pia União», o que veio a ser confirmado por decreto bispal de 29.7.08. Ora, nem a nomeação de comissários para dirigir a associação, feita através deste último decreto, pode fundar-se no referido cânone 318º, ainda que para tal se invoquem os cânones 305 §1, 323 § 1 e 325. As associações privadas de fiéis estão, como se disse, sujeitas à vigilância da autoridade eclesiástica competente, a quem cabe “cuidar que nelas se conserve a integridade da fé e dos costumes e velar para que não se introduzam abusos na disciplina eclesiástica (…)” (cân.305 § 1), cabendo-lhe ainda o direito “de velar a fim de que os bens sejam empregados para os fins da associação” (cân.325 § 1).

Porém, não pode a autoridade eclesiástica competente, no caso o Bispo diocesano, a coberto desse dever de vigilância, designar comissários que representem a associação, estendendo aqui o poder conferido pelo referido cânone 318 § 1, de aplicação exclusiva ás associações públicas de fiéis, não havendo norma do Código Canónico que o consinta.

Consequentemente, deverá ser considerada inválida a nomeação operada pelo referido decreto bispal do comissário, Dr. C..., para, em representação da «Pia União», intentar o presente procedimento cautelar.

Segundo o cân.309, compete às associações legitimamente constituídas, de acordo com o direito e os estatutos, estabelecer normas particulares relativas à associação, realizar reuniões, designar os moderadores, os oficiais, os funcionários e os administradores dos bens.

Pela deliberação tomada em 25.5.08, foi eleita Superiora da Associação em causa para triénio 2008/2011, a Irmã Maria D ..., a aqui requerida B... (doc. fls.410), a qual, pois, a representa em juízo, de acordo como o estabelecido no art.21º/1, C.P.C. .

Porém, existindo manifesto conflito de interesses entre a requerente e sua representante legal, foi correcta a nomeação feita no despacho recorrido, da segunda associada mais votada na eleição para Superiora, como impõe o art.21º/2.

Agora, se a mesma está ou não em condições de exercer o cargo, isso será, como se disse, questão a decidir no momento próprio, após recolha dos necessários elementos.

Isto posto, improcedem as conclusões do recurso, não merecendo, portanto, censura a decisão impugnada, que é de manter.

                                               #                #

III - DECISÃO

Acorda-se, pelo exposto, em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a decisão apelada.

Custas em ambas as instâncias pela requerente.

                                                           ##
Regina Rosa (Relatora)
Artur Dias
Jaime Carlos Ferreira


[1]   Cfr. Pe. Saturino Gomes, in www.agencia.ecclesia.pt
[2]   citado no Ac. R.P. de 5.6.06, CJIII/06-183