Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1696/13.9PBVIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FERNANDO CHAVES
Descritores: SENTENÇA
PENAS DE SUBSTITUIÇÃO
FUNDAMENTAÇÃO
NULIDADE
Data do Acordão: 05/21/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: 1º JUÍZO CRIMINAL DO TRIBUNAL JUDICIAL DE VISEU
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 43º E 45º CP E 379º Nº 1 C) CPP
Sumário: 1.- O juiz ao fundamentar a necessidade de aplicação de pena de prisão efectiva, afastando a suspensão da sua execução e optando, fundamentadamente, pelo seu cumprimento em prisão por dias livres, está necessariamente a afastar o regime de prestação de trabalho a favor da comunidade, assim como a substituição da pena de prisão por multa;

2.- Assim, implicitamente, foi ponderado que a aplicação da pena de multa de substituição bem como da prestação de trabalho a favor da comunidade não eram adequadas a alcançar as finalidades da punição.

Decisão Texto Integral: Acordam na 4ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

I – Relatório

1. No âmbito do processo sumário n.º 1696/13.9PBVIS, do 1º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Viseu, foi proferida sentença que decidiu condenar o arguido A..., já melhor identificado nos autos, como autor de um crime de desobediência, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 152.º, nºs 1, a) e 3 do Código da Estrada e 348.º, n.º 1, a) do Código Penal, na pena de 4 (quatro) meses de prisão, substituída por igual período de prisão por dias livres, a cumprir em 24 períodos sucessivos, com a duração de 40 (quarenta) horas cada um, bem como na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de 18 (dezoito) meses.

2. Inconformado com a decisão, o arguido dela interpôs recurso, suscitando as seguintes questões: erro notório na apreciação da prova; substituição da pena de prisão pela pena de prestação de trabalho a favor da comunidade; redução da pena acessória para o período de 12 (doze) meses.

3. O Ministério Público respondeu ao recurso, pugnando pela manutenção do julgado.

4. Nesta instância, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, na intervenção a que alude o artigo 416.º do Código de Processo Penal, emitiu parecer no sentido de que a sentença recorrida é nula por enfermar do vício de omissão de pronúncia, ao não ter ponderado a possibilidade ou impossibilidade da substituição da pena aplicada pela prestação de trabalho a favor da comunidade.

5. No âmbito do disposto no 417.º, n.º 2 do Código de Processo Penal([i]), o arguido nada disse.

6. Colhidos os vistos, o processo foi presente à conferência para decisão.

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II - FUNDAMENTAÇÃO

1. A sentença recorrida.

1.1. Na sentença proferida na 1ª instância foram dados como provados os seguintes factos (transcrição):

«1) No dia 14 de Novembro de 2013, cerca das 02:25 horas, na Rua Pintor António de Almeida, via aberta à circulação pública de trânsito rodoviário, da área desta cidade e comarca de Viseu, o arguido conduziu o veículo automóvel, ligeiro de passageiros, serviço particular, de matrícula (...), marca Porsche, modelo Boxter, registado a favor da empresa que detém e trabalha;

2) Foi então fiscalizado por elementos da P.S.P. de Viseu, em missão de fiscalização e controlo do trânsito;

3) Na sequência da fiscalização, porque exalasse odor alcoólico, tivesse os olhos brilhantes, s expressasse por palavras “enroladas” e cambaleava um pouco – sinais exteriores de embriaguez –, foi-lhe solicitada pelo agente policial autuante a efectivação do exame de pesquisa de álcool no sangue, através do método do ar expirado, através do aparelho “SD-2” – teste quantitativo –, mas não foi possível a efectivação do teste, em virtude de o arguido alegar que não tinha conduzido aquele veículo, recusando-se a ser submetido a tal exame, ou a qualquer outro, pelo que não foi possível proceder à prévia detecção da presença de álcool no sangue do arguido/condutor em quantidade superior à legalmente permitida para o efeito do exercício da condução, a fim de se proceder à análise quantitativa;

4) Foi então o arguido expressamente advertido – e por várias vezes – pelo agente policial autuante da obrigatoriedade legal de cumprir tal ordem de submissão a análise sanguínea, cuja recusa era legalmente considerada crime de desobediência, o que o arguido bem sabia e entendeu, visto não ter sido possível a realização da comprovação do estado de embriaguez ou influenciado pelo álcool do arguido através do método do ar expirado, tendo sido explicado que, caso mantivesse a sua recusa, seria detido;

5) Tendo o arguido mantido a sua recusa à efectivação da análise sanguínea, foi o arguido detido pelo agente policial autuante;

6) A ordem de que deveria soprar a fim de se submeter ao teste foi emanada de autoridade competente, que o arguido reconheceu;

7) A comunicação para efectuar o teste foi comunicada regularmente por agente da autoridade em exercício das funções, o qual também comunicou ao arguido que incorreria em crime de desobediência, caso persistisse naquela conduta. Acresce que a própria Lei comina com desobediência a recusa;

8) O arguido agiu de forma voluntária, livre e consciente, e quis deliberadamente desrespeitar o normativo legal e a ordem que lhe foi comunica, bem sabendo que tal conduta não lhe era permitida – antes lhe era vedada por lei – e, bem assim, que a sua conduta era proibida e punida por Lei;

9) O arguido tem os antecedentes criminais que constam do seu C.R.C., junto a fls. 23 a 29, tendo sido condenado pela prática de crime de condução em estado de embriaguez, previsto e punido pelos artigos 292.º/1 e 69.º/1, a) do Código Penal, por decisões já transitadas em julgado;

a) No Processo Especial Sumário n.º 234/06.4GTVIS, do 2.º Juízo Criminal deste Tribunal, por factos de 05-10-2006, sentença datada de 21-10-2006, na pena de 60 dias de multa, à taxa diária de € 7,50 e pena acessória de proibição de conduzir, pelo período de 100 dias;

b) No Processo Especial Sumário n.º 138/08.6GTVIS, do 1.º Juízo Criminal deste Tribunal, por factos de 31-05-2008, sentença datada de 14-01-2009, na pena de 120 dias de multa, à taxa diária de € 7,50 e pena acessória de proibição de conduzir, pelo período de 6 meses e 15 dias, penas já declaradas extintas;

c) No Processo Especial Sumário n.º 12/12.9PTVIS, do 1.º Juízo Criminal deste Tribunal, por factos de 24-03-2012, sentença datada de 04-04-2012, na pena de 1 mês de prisão, suspensa na sua execução por 1 ano, e pena acessória de proibição de conduzir, pelo período de 9 meses, tendo a pena principal sido já declarada extinta;

10) O arguido é empresário/comerciante, declarando auferir para efeitos fiscais o S.M.N.;

11) Vive num T3, propriedade dos pais;»

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1.2. Quanto a factos não provados consta da sentença recorrida (transcrição):

«Nada mais se provou com interesse para a decisão da causa.»

                                                        *

1.3. O tribunal recorrido fundamentou a formação da sua convicção nos seguintes termos (transcrição):

«A convicção do Tribunal para considerar provados os factos resultou:

a) Do teor do Auto de Notícia, de fls. 2, elaborado nos termos do disposto no artigo 243.º do Código de Processo Penal , cuja genuinidade e fidedignidade não foi posta em causa, a qual, obedecendo às prescrições legais, goza de força probatória que é conferida aos documentos autênticos e autenticados, isto é, fazem prova plena dos factos de que documentam, enquanto a sua autenticidade e veracidade não forem postos em causa (cfr. artigo 169.º do Código de Pro-cesso Penal);

b) Fundou ainda a sua convicção no teor do C.R.C. do arguido, junto a fls. 23-29, cuja genuinidade e fidedignidade não foi posta em causa,;

c) Das declarações do arguido, quanto à sua situação social, já que negou a prática dos factos, alegando não ter sido visto conduzir e estar apenas no carro a telefonar, já que o “Viber” ali funciona melhor;

d) Do teor do depoimento da testemunha D..., agente principal da P.S.P. de Viseu, o qual confirmou integralmente o Auto de Notícia por si elaborado, o qual referiram que passaram junto do veículo do arguido, onde este estava ao telemóvel no seu interior, deslocaram-se mais abaixo para fiscalizar alguns veículos e, quando regressavam, vira o o veículo do arguido a estacionar, tendo atravessado a faixa de rodagem, com as luzes ligadas e era conduzido pelo argufido, pelo que foi fiscalizado. Logo que abordado exibiu claros sinais de estar embriagado, pelo que lhe foi solicitado que fizesse os legais e obrigatórios exames de quem conduziu, mas sem-pre os recusou fazer, apesar de por várias vezes advertido da sua obrigatoriedade e das sanções a que se expunha, o que bem entendeu, pelo que veio a ser detido por recusa em efectivar os testes de pesquisa de álcool, legalmente obrigatórios. Depôs com conhecimento directo dos factos, de forma clara, isenta, convicta e desapaixonada;

e) Dos depoimentos das testemunhas de defesa B...e C..., nada de útil resultou relativamente à factualidade provada do exercício da condução por parte do arguido;»

                                                        *

2. Apreciando.

2.1. Questão prévia.

No seu parecer o Exmo. Procurador-Geral defende que a sentença recorrida é nula por enfermar do vício de omissão de pronúncia, ao não ter ponderado a possibilidade ou impossibilidade da substituição da pena aplicada pela prestação de trabalho a favor da comunidade prevista no artigo 58.º do Código Penal.

Antes de mais, há que conhecer desta questão de índole processual na medida em que a sua procedência prejudica o conhecimento da parte substantiva do recurso([ii]).

Como é sabido, a discussão da causa tem por objecto os factos alegados pela acusação, os factos alegados pela defesa e os factos que resultarem da prova produzida em audiência, bem como todas as soluções jurídicas pertinentes, tudo sem prejuízo do regime aplicável à alteração de factos, tendo em vista as finalidades a que se referem os artigos 368.º e 369.º - artigo 339.º, n.º 4.

Na fase do julgamento, nisto se traduz o objecto do processo, que é conhecido na sentença, acto decisório do juiz por excelência – artigo 97.º, n.º 1, a).

Nos termos do artigo 379.º, n.º 1, c), a sentença é nula quando o tribunal deixe de se pronunciar sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia conhecer, sendo que, no primeiro caso, estamos perante uma omissão de pronúncia e, no segundo, perante um excesso de pronúncia.

A escolha da pena principal de prisão em detrimento da multa não significa que, desde logo, se opte pela execução ou cumprimento da pena privativa da liberdade, pois, entretanto, haverá que ponderar a aplicação das penas de substituição que apenas são aplicáveis depois de escolhida a pena de prisão e de concretamente determinado, nos termos do artigo 71.º do Código Penal, o seu quantum.

No caso em apreço, o tribunal a quo escolheu a prisão em detrimento da multa e aplicou ao arguido a pena de 4 (quatro) meses de prisão.

Da escolha da pena principal de prisão, no caso de moldura abstracta que contempla prisão ou multa, não decorre, necessariamente, que a pena privativa da liberdade tenha de ser cumprida.

O que pode acontecer é que o tribunal, atento o preceituado no artigo 70.º do Código Penal, opte pela prisão como pena principal, por entender que a multa não satisfaz de forma adequada e suficiente todas as finalidades da punição, mas que, num segundo momento, uma vez fixada a prisão em certa medida, deva proceder à sua substituição, por tal lhe ser legalmente imposto se a execução da prisão não for exigida pela necessidade de prevenir o cometimento de futuros crimes (artigo 43.º) ou porque, face às penas de substituição legalmente previstas, acaba por concluir que uma dessas penas satisfaz de forma adequada e suficiente as finalidades da punição([iii]).

As penas de substituição são aquelas que, uma vez determinada a medida da pena de prisão, podem ser aplicadas em vez desta([iv]).

penas de substituição em sentido próprio – aquelas que são cumpridas em liberdade, como a suspensão da execução da pena de prisão, a pena de multa de substituição ou a prestação de trabalho a favor da comunidade – e as penas de substituição em sentido impróprio – as quais são detentivas da liberdade, mas cuja execução não pressupõe a privação continuada da liberdade ou a privação de liberdade em meio prisional – artigos 44.º, 45.º e 46.º do Código Penal.

Uma vez verificados os respectivos pressupostos, o tribunal não pode deixar de optar por uma pena de substituição, pois a aplicação destas não é uma faculdade discricionária do juiz mas um poder/dever ou um poder vinculado([v]).

Assim, uma vez determinada a concreta medida da pena e sendo esta uma pena de prisão, impõe-se verificar se ela pode ser objecto de substituição.

A não ponderação de uma pena de substituição abstractamente aplicável ao caso em apreço é geradora da nulidade da sentença prevista no artigo 379.º, n.º 1, alínea c), posto que o tribunal deixou de se pronunciar sobre questão que tinha obrigatoriamente de apreciar.

No caso em apreço, o tribunal a quo, depois de fixar a medida concreta da pena de prisão, afastou a suspensão da sua execução ponderando que se trata já da 5ª condenação do arguido pela prática de crime relacionado com a condução automóvel (em rigor, trata-se da 4ª condenação) e que as condenações sofridas pelo arguido demonstram que as finalidades que determinaram a suspensão da execução da pena de prisão não foram atingidas pelo que não mais é possível fazer um juízo de prognose favorável em relação ao comportamento futuro do arguido com fundamento no seu passado criminal.

Não se pronunciou de forma expressa sobre a pena de prestação de trabalho a favor da comunidade, assim como também não se pronunciou acerca da aplicação da pena de multa de substituição, mas ao fundamentar a necessidade de aplicação de pena de prisão efectiva com as exigências de prevenção especial que no caso se fazem sentir está necessariamente a afastar o regime de prestação de trabalho a favor da comunidade, assim como a substituição da pena de prisão por multa.

Afigura-se-nos, pois, que, implicitamente, foi ponderado que a aplicação da pena de multa de substituição bem como da prestação de trabalho a favor da comunidade não eram adequadas a alcançar as finalidades da punição pelo que a sentença recorrida não padece da nulidade prevista no artigo 379.º, n.º 1, c).

                                          *

2.2. Passemos, então, a conhecer do recurso do arguido.

Dispõe o artigo 412.º, n.º 1 do Código de Processo Penal([vi]) que a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido.

Por isso é entendimento unânime que o âmbito do recurso se define pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação([vii]), sem prejuízo, contudo, das questões de conhecimento oficioso([viii]).

Atenta a conformação das conclusões formuladas, importa conhecer das seguintes questões, organizadas pela ordem lógica das consequências da sua eventual procedência:

- erro notório na apreciação da prova;

- substituição da pena de prisão pela pena de prestação de trabalho a favor da comunidade;

- medida da pena acessória.

2.2.1. Do erro notório na apreciação da prova.

De acordo com o disposto no n.º 2 do artigo 410.º, mesmo nos casos em que a lei restringe a cognição do tribunal, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:

a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;

b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;

c) Erro notório na apreciação da prova.

Em qualquer das referidas hipóteses, o vício tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo, por isso, admissível o recurso a elementos estranhos àquela para o fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento([ix]).

Os vícios do artigo 410.º, n.º 2 são vícios de lógica jurídica ao nível da matéria de facto que tornam impossível uma decisão logicamente correcta e conforme à lei.

Neste caso, o objecto da apreciação é apenas a peça processual recorrida.

No que respeita ao erro notório na apreciação da prova, tal vício verifica-se quando um homem médio, perante o teor da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente se dá conta que o tribunal violou as regras da experiência ou de que efectuou uma apreciação manifestamente incorrecta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios.

Esse vício do erro notório na apreciação da prova existe quando o tribunal valoriza a prova contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados, aferindo-se o requisito da notoriedade pela circunstância de não passar o erro despercebido ao cidadão comum ou, talvez melhor dito, ao juiz “normal”, ao juiz dotado da cultura e experiência que deve existir em quem exerce a função de julgar, devido à sua forma grosseira, ostensiva ou evidente([x]).

O vício existe quando se dão por provados factos que, face às regras de experiência comum e à lógica corrente, do homem médio, não se teriam podido verificar ou são contraditados por documentos que fazem prova plena e que não tenham sido arguidos de falsos([xi]).

Trata-se de um vício do raciocínio na apreciação das provas, evidenciado pela simples leitura do texto da decisão; erro tão evidente que salta aos olhos do leitor médio, sem necessidade de particular exercício mental; as provas revelam claramente um sentido e a decisão recorrida extraiu ilação contrária, logicamente impossível, incluindo na matéria fáctica provada ou excluindo dela algum facto essencial.

Os vícios do artigo 410.º, n.º 2 não podem ser confundidos com a divergência entre a convicção pessoal do recorrente sobre a prova produzida em audiência e a convicção que o tribunal firme sobre os factos, questão do âmbito da livre apreciação da prova, princípio ínsito no citado normativo.

Neste aspecto, o que releva, necessariamente, é essa convicção formada pelo tribunal, sendo irrelevante, no âmbito da ponderação exigida pela função de controlo ínsita na identificação dos vícios do artigo 410.º, n.º 2, a convicção pessoalmente alcançada pelo recorrente sobre os factos.

Como resulta quer da motivação, quer das conclusões do recurso, é manifesto que o recorrente confunde o âmbito dos vícios previstos no artigo 410.º, n.º 2, com o recurso versando a matéria de facto, isto é, com o chamado erro de julgamento.

Apenas assim se compreende que o recorrente invoque o apontado vício como corolário da sua apreciação da prova produzida chamando à colação elementos externos ao texto da decisão recorrida, como sejam as declarações por si prestadas e os depoimentos das testemunhas, confundindo, pois, vícios da decisão judicial com o erro de julgamento.

Trata-se, na verdade, de opções processuais distintas, reclamando tratamento diferenciado.

A divergência entre o que na sentença se deu como provado e aquilo que deveria ter sido dado como provado traduz erro de julgamento da matéria de facto, sindicável pelo tribunal superior se tiver havido documentação da prova produzida em audiência e o recorrente interessado na respectiva impugnação observar, em sede de recurso, o que dispõe o artigo 412.º.

A arguição deste vício nos termos legalmente previstos desencadeia a reapreciação da matéria de facto à luz da prova produzida em audiência e pode conduzir à alteração da factualidade provada.

Já a arguição dos vícios previstos no artigo 410.º pressupõe que estes resultem do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, portanto, sem recurso à reapreciação da prova produzida em audiência, não permitindo sindicar a matéria de facto nos termos amplos em que o consente a invocação de erro de julgamento mediante impugnação da matéria de facto provada, e conduzirá, normalmente, ao reenvio do processo para novo julgamento, total ou parcial.

De qualquer modo, diga-se que, do texto da sentença recorrida, por si só ou conjugado com os ditames da experiência comum, não resulta a verificação do apontado vício posto que nele não se detecta qualquer equívoco ostensivo contrário a facto do conhecimento geral ou ofensivo das leis da física, da mecânica, da lógica ou de conhecimentos científicos criminológicos e vitimológicos.

Improcede, pois, a invocação do referido vício.

2.2.2. Da substituição da pena de prisão pela pena de prestação de trabalho a favor da comunidade.

O arguido reclama a substituição da pena de prisão aplicada pelo tribunal recorrido pela pena de prestação de trabalho a favor da comunidade prevista no artigo 58.º do Código Penal.

Nos termos do n.º 1 do citado preceito, a pena de prisão não superior a dois anos é substituída por trabalho a favor da comunidade sempre que se concluir que por este meio se realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, sendo que a sua aplicação depende de consentimento do condenado (n.º 5).

No que diz respeito ao consentimento do condenado, há que reconhecer que o mesmo não se mostra dado pessoalmente pelo arguido, o qual se afigura exigível tendo em conta a natureza e conteúdo da pena em questão, mas tal circunstância não é verdadeiramente impeditiva pois o tribunal de recurso poderá sempre determinar que o arguido venha aos autos declarar pessoalmente o consentimento.

O critério geral de substituição da pena é o de que o tribunal deve dar preferência a uma pena de substituição, em detrimento da pena de prisão, sempre que, verificados que sejam os respectivos pressupostos de aplicação, a pena de substituição se revele adequada e suficiente para a realização das finalidades da punição.

São finalidades exclusivamente preventivas, de prevenção geral e de prevenção especial, que determinam a preferência por uma pena de substituição – como é a prestação de trabalho a favor da comunidade –, sem perder de vista que a finalidade primordial é a de protecção dos bens jurídicos.

No caso em apreço, face à personalidade refractária ao direito, revelada pelo arguido, como se conclui dos seus antecedentes criminais, entende-se que a tutela dos bens jurídicos não resulta suficientemente garantida por esta pena substitutiva.

Conforme resulta dos factos provados, o arguido viu já aplicadas – sempre pela prática do crime de condução de veículo em estado de embriaguez – duas penas de multa e uma pena de um mês de prisão cuja execução foi suspensa pelo período de um ano.

Acreditamos que o arguido aceitaria desenvolver trabalho comunitário mas tal não o desmotivaria para incorrer na prática de novos crimes, nomeadamente contra a segurança rodoviária, violando serenamente os bens jurídicos em presença (até eventualmente ser, mais cedo ou mais tarde, confrontado de novo com o sistema penal), o que se afigura de todo inadmissível num Estado de Direito em que a lei se deve impor com eficácia a todos os cidadãos e o risco de reincidência ser elevado em relação a este tipo de ilícitos.

Todas as referidas penas se revelaram insuficientes para prevenir a prática de novos crimes relacionados com a condução automóvel, demonstrando a prática do crime em causa nos presentes autos que nem sequer a ameaça da pena de prisão contida na última condenação constituiu advertência suficiente para prevenir a comissão de novo crime.

Não se justifica, portanto, aplicar a substituição por prestação de trabalho a favor da comunidade por a sua ineficácia preventiva, para o arguido, se mostrar comprovada pela prática de novo crime, além de que a comunidade não consideraria reposta a confiança na validade da norma violada com o sancionamento do arguido através da pretendida pena de substituição.

Improcede, portanto, também esta questão.

2.2.3. Da medida da pena acessória.

A proibição de conduzir veículos com motor como pena acessória que é deve ser graduada, tal como a pena principal, segundo os critérios gerais de determinação das penas que decorrem dos artigos 40.º e 71.º do Código Penal.

No entanto, apesar da identidade de critérios, tratando-se de realidades complementares e distintas, não pode deixar de se ter conta a natureza e finalidades próprias da pena acessória de modo a que a pena acessória aplicada em concreto se mostre ajustada às suas finalidades específicas dentro do programa político-criminal em matéria dos fins das penas enunciado pelo artigo 40.º do Código Penal.

Sendo certo que a pena acessória tem uma função preventiva adjuvante da pena principal, cuja finalidade não se esgota na intimidação da generalidade, mas dirige-se também, ao menos em alguma medida, à perigosidade do agente, reforçando e diversificando o conteúdo penal sancionatório da condenação([xii]).

 Daí que a determinação da pena acessória deva operar-se mediante recurso aos critérios gerais consignados no artigo 71º do Código Penal com a ressalva de que a finalidade a atingir pela pena acessória é mais restrita na medida em que a sanção acessória tem em vista sobretudo prevenir a perigosidade do agente, ainda que se lhe assinale também um efeito de prevenção geral([xiii]).

Ainda na vigência da versão originária do Código Penal, ensinava o Prof. Figueiredo Dias, no plano de lege ferenda, que a pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados tem como pressuposto material «a circunstância de, consideradas as circunstâncias do facto e da personalidade do agente, o exercício da condução se revelar especialmente censurável», circunstância essa que «vai elevar o limite da culpa do (ou pelo) facto. Por isso, à proibição de conduzir deve também assinalar-se (e pedir-se) um efeito de prevenção geral de intimidação que não terá em si nada de ilegítimo porque só pode funcionar dentro do limite da culpa» pelo que deve esperar-se desta pena acessória «que contribua, em medida significativa, para a emenda cívica do condutor imprudente ou leviano», desempenhando, assim, uma função adjuvante da pena principal, reforçando e diversificando o conteúdo sancionatório da condenação([xiv]).

E porque existe uma manifesta conexão entre o facto ilícito gerador da responsabilidade criminal – desobediência cometida mediante recusa de submissão a exame de pesquisa de álcool – e a proibição de conduzir veículos motorizados, compreende-se a aplicação daquela pena acessória em crimes da natureza do perpetrado pelo arguido, bastando a prova da prática do facto ilícito e da específica culpa do arguido que suporte (e exija) a aplicação daquela pena acessória, sem necessidade de fazer a demonstração de factos adicionais([xv]).

Ao crime de desobediência cometido mediante recusa de submissão às provas legalmente estabelecidas para detecção de condução de veículo sob efeito de álcool corresponde a pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor entre três meses e três anos – artigo 69.º, n.º 1, c) do Código Penal.

Assim, sabendo-se a moldura penal abstracta aplicável, a determinação da medida da pena acessória será feita de acordo com a culpa e as exigências de prevenção (geral e especial), tendo por base todas a circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra o agente – n.º 2 do artigo 71.º do Código Penal.

Nesta conformidade, há que ter em consideração que a culpa (enquanto censura dirigida ao agente em virtude da sua atitude desvaliosa e avaliada na dupla vertente de culpa pelo facto criminoso e de culpa pela personalidade), para além de constituir o suporte axiológico-normativo da pena, estabelece o limite máximo da pena concreta dado que sem ela não há pena e que esta não pode ultrapassar a sua medida (retribuição justa).

Por outro lado, ainda numa primeira linha, relevam as necessidades de prevenção (com um fim preventivo geral ligado à contenção da criminalidade e defesa da sociedade - e cuja justificação assenta na ideia de sociedade considerada como o sujeito activo que sente e padece o conflito e que viu violado o seu sentimento de segurança com a violação da norma, tendo, portanto, direito a participar e ser levada em conta na solução do conflito - e com um fim preventivo especial ligado à reinserção social do agente).

Deste modo, em termos de prevenção geral, a medida da pena é dada pela necessidade de tutela dos bens jurídicos concretos pelo que o limite inferior da mesma resultará de considerações ligadas à prevenção geral positiva ou reintegração, contraposta à prevenção geral negativa, de intimidação do delinquente.

Para além de constituir um elemento dissuasor da prática de novos crimes por parte de terceiros, a pena deve neutralizar o efeito negativo do crime na comunidade e fortalecer o seu sentimento de justiça e de confiança na validade das normas violadas.

No que toca à prevenção especial há a ponderar a vertente necessidade de ressocialização do arguido e a vertente necessidade de advertência individual para que não volte a delinquir (devendo ser especialmente considerado um factor que, de certo modo, também toca a culpa: a susceptibilidade de o agente ser influenciado pela pena).

O arguido invoca a necessidade de conduzir por motivos profissionais.

Trata-se de facto que não se encontra provado mas que, todavia, não constitui critério para a determinação da medida da pena acessória pois não há norma ou princípio da ordem jurídica que autorize ou tome menos censurável a desobediência cometida mediante recusa de submissão a exame de pesquisa de álcool no sangue por parte de quem necessita de conduzir veículos automóveis no desempenho da sua actividade profissional.

De todo o modo, considerando todos os factores de medida da pena constantes da decisão recorrida mas tendo ainda em conta outros casos paralelos, entende-se ser de alterar a pena acessória de proibição de conduzir veículos a motor aplicada pelo tribunal recorrido, reduzindo-a para o período de 12 (doze) meses.

Procede, portanto, nesta medida, o recurso interposto.

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III – DISPOSITIVO

Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar parcialmente procedente o recurso interposto pelo arguido e, em consequência, reduzir a pena acessória de proibição de conduzir veículos a motor aplicada pelo tribunal a quo para o período de 12 (doze) meses, mantendo-se, no mais, a sentença recorrida.

                                          *

Sem tributação.

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                   Coimbra, 21 de Maio de 2014

                  

Fernando Chaves (Relator)

Jorge Dias


[i] - Diploma a que se reportam os demais preceitos citados sem menção de origem.
[ii] - O artigo 660.º, n.º 1 do CPC, aplicável ex-vi artigo 4.º do CPP, estabelece o conhecimento das questões submetidas à apreciação do tribunal segundo a sua precedência lógica.
[iii] - Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As consequências jurídicas do crime, 1993, pág. 364.
[iv] - Figueiredo Dias, op. cit., págs. 91 e 326.
[v] - Neste sentido, entre outros, os Acórdãos do STJ de 25/5/2005 e 5/7/2007, in www.dgsi.pt/jstj e o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 61/06, de 18/1/2006, in www.tribunalconstitucional.pt.
[vi] - Diploma a que se referem os demais preceitos legais citados sem menção de origem.
[vii]  - Cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, volume III, 2ª edição, 335; Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 7ª edição, 107; Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 17/09/1997 e de 24/03/1999, in CJ, ACSTJ, Anos V, tomo III, pág. 173 e VII, tomo I, pág. 247 respectivamente.
[viii] - Acórdão de fixação de jurisprudência obrigatória do STJ de 19/10/1995, publicado no Diário da República, Série I-A, de 28/12/1995.
[ix] - Cfr. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 10ª ed., pág. 729, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, vol. III, Verbo, 2ª ed., pág. 339 e Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª ed., págs. 77 e seguintes.
[x] - Cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª Edição, pág. 341.
[xi] - Acórdão do STJ de 1/10/1997, Processo n.º 627/97-3ª.
[xii] - Cfr. Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, §§ 88 e 232.
[xiii] - Cfr. Acórdãos da Relação de Coimbra de 7/11/1996, 18/12/1996 e de 17/1/2001, publicados na Colectânea de Jurisprudência, Anos XXI, tomo V, págs. 47 e 62 e XXVI, Tomo I, pág. 51, respectivamente; Acórdãos da Relação de Coimbra de 3/12/008 e de 25/3/2009, disponíveis em www.dgsi.pt/trc.
[xiv] - Cfr. Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, §§ 205 e 232.
[xv] - Cfr. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 143/95, de 15/3/1995, in www.tribunalconstitucional.pt.