Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
72/14.0T9CTB-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ORLANDO GONÇALVES
Descritores: JURISPRUDÊNCIA FIXADA
PENA DE MULTA
PENA DE SUBSTITUIÇÃO
PRESTAÇÃO DE TRABALHO A FAVOR DA COMUNIDADE
Data do Acordão: 05/11/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: CASTELO BRANCO (INSTÂNCIA LOCAL)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 43.º, 48.º E 49.º DO CP; ARTS. 445.º E 446.º DO CPP
Sumário: I - Conquanto a jurisprudência fixada pelo STJ não constitua jurisprudência obrigatória para os tribunais judiciais a sua inobservância ou divergência impõe uma fundamentação com novos argumentos, anteriormente não ponderados.

II - No caso em apreciação, não vislumbramos argumentos novos, que não tenham sido apreciados oportunamente pelo STJ no acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/2016, para divergir da unidade jurisprudencial conferida nesta decisão.

III - Assim, e uma vez que aí ficou decidido, com a normal autoridade e força persuasiva de decisão do STJ, que em caso de condenação em pena de multa de substituição, nos termos do artigo 43.º, n.º 1, do CP, pode o condenado, após o trânsito em julgado daquela decisão, requerer, ao abrigo do disposto no artigo 48.º, do CP, o seu cumprimento em dias de trabalho, observados os requisitos dos arts. 489.º e 490.º do CPP, mais não resta que confirmar o douto despacho recorrido, que substituiu a pena de multa em que o arguido foi condenado, pela prestação de 120 horas de trabalho.

Decisão Texto Integral:




Acordam, em Conferência, na 4.ª Secção, Criminal, do Tribunal da Relação de Coimbra.

     Relatório

Por despacho proferido a 17 de dezembro de 2015, na Comarca de Castelo Branco Castelo Branco – Instância Local - Secção Criminal - J1, o Ex.mo Juiz decidiu substituir a pena de 120 dias multa em que o arguido A... foi condenado, pela prestação de 120 horas de trabalho, a prestar na Junta de Freguesia de Escalos de Baixo e da Mata, desempenhando tarefas de limpeza/manutenção de espaços.

           Inconformado com o douto despacho dele interpôs recurso o Ministério Público, concluindo a sua motivação do modo seguinte:

1. Nos presentes autos o arguido A... foi condenado pela prática de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social na pena de um ano de prisão substituída por 120 dias de multa.

2. A requerimento do condenado, por decisão proferida em 17 de Dezembro de 2015 o Tribunal a quo substituiu a pena de multa pela prestação de 120 horas de trabalho a prestar na Junta de Freguesia de Escalos de Baixo e da Mata, desempenhando tarefas de limpeza/manutenção de espaços.

3. Não se encontra legalmente prevista a possibilidade de substituição por trabalho a favor da comunidade da multa substitutiva da pena de prisão aplicada a título principal.

4. Isto porque, por um lado, o artigo 43° exclui essa possibilidade, sendo o legislador cuidadoso quanto às remissões que entendeu fazer e, por outro lado, porque a natureza das penas é distinta, bem como as consequências legais do seu incumprimento.

5. A possibilidade de substituição por trabalho a favor da comunidade, prevista no artigo 48° do Código Penal, apenas será possível quando a multa seja aplicada enquanto pena principal.

6. O incumprimento da pena de multa que substitui a pena de prisão dá azo ao cumprimento por inteiro da pena de prisão, nos termos do artigo 43°, n.º 2 do Código Penal, enquanto o incumprimento da pena de multa aplicada a título principal, dá lugar à substituição por pena de prisão reduzida de dois terços, nos termos do artigo 49°, n.° 1 do Código Penal.

7. No n.º 2, do artigo 43.º prevê-se que em caso de incumprimento da pena de multa o condenado cumpre a pena de prisão aplicada, sendo correspondentemente aplicável o disposto no artigo 49º°, n.º 3, do Código Penal.

8. Ou seja, se o condenado requerer e provar que a razão do não pagamento da pena de multa (principal ou de substituição) lhe não é imputável, designadamente em virtude das suas condições económicas exíguas não o permitirem sem pôr em causa a satisfação das suas necessidades básicas, pode a execução da prisão (principal ou subsidiária) ser suspensa, desde que a suspensão seja subordinada ao cumprimento de deveres ou regras de conduta de conteúdo não económico ou financeiro, que, as mais das vezes, se consubstanciam na prestação de trabalho a favor da comunidade.

9. Em sede de sentença ou, no caso, em sede de processo sumaríssimo, quando determinada a medida da pena foi já apreciada a pena mais adequada ao caso, segundo os critérios previstos no artigo 71.º, do Código Penal estando vedada ao Tribunal nova apreciação sobre esses factos após o trânsito em julgado da sentença condenatória e já em sede de execução da pena.

10. A decisão recorrida viola o disposto nos artigos 71.°, 43.°, 48.° e 49.°, n.º 3, do Código Penal.

11. Logo, só o indeferimento da substituição da multa por trabalho a favor da comunidade respeita o legalmente previsto nos artigos mencionados.

Nestes termos, deve o presente recurso ser julgado procedente, por provado e, em consequência, revogar-se a decisão proferida em 17/12/2015 que determinou a prestação de 120 horas de trabalho em substituição da multa substitutiva e, em consequência, indeferir-se o requerido pelo condenado, seguindo-se posteriormente, os trâmites legais previstos no artigo 43.º e 49.º, n.º 3, do Código Penal.

O arguido A... respondeu ao recurso interposto pelo Ministério Público , pugnando pelo não provimento do recurso e manutenção integral do douto despacho recorrido.

            O Ex.mo Procurador-geral adjunto neste Tribunal da Relação emitiu parecer no sentido de que o recurso deverá proceder, porquanto o douto despacho recorrido violou as normas dos artigos 43.º, 48.º e 49.º, n.º3 do Código Penal.

Notificado deste parecer, nos termos e para efeitos do n.º 2 do art.417.º do Código de Processo Penal, respondeu o arguido A... mantendo a posição de que o recurso deverá improceder.

 

            Colhidos os vistos, cumpre decidir.

     Fundamentação

            O despacho recorrido tem o seguinte teor:

« Fls.208 - Nos presentes autos, por Sentença transitada em julgado, foi A... condenado pela prática de crime de abuso de confiança em relação à Segurança Social, na pena de 1 ano de prisão substituída por 120 dias de multa.

   No seguimento daquela condenação veio o arguido apresentar requerimento no sentido de se proceder à substituição da pena de multa em que foi condenado por trabalho a favor da comunidade ilustrando profusamente as suas dificuldades económicas.

   Na sequência do aludido requerimento foi solicitada ao Instituto de Reinserção Social a elaboração de relatório no sentido de apurar as condições sociais e pessoais do arguido e a possibilidade de o mesmo poder prestar trabalho a favor da comunidade o qual se mostra junto a fls. 252 e 253, concluindo o mesmo estarem reunidas todas as condições para o condenado desempenhar tarefas na área de limpeza e manutenção de espaços.

   O Ministério Público pronunciou-se a fls. 223 pugnando pelo indeferimento da requerida substituição.

   Cumpre apreciar e decidir:

   Dispõe o art. 48.º, n.º 1 do Código Penal que, “a requerimento do condenado, pode o tribunal ordenar que a pena de multa fixada seja total ou parcialmente substituída por dias de trabalho em estabelecimentos, oficinas ou obras do Estado, ou de outras pessoas colectivas, de direito público, ou ainda de instituições particulares de solidariedade social, quando concluir que esta forma de cumprimento realiza de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”.

   O preceito em análise impõe que se atente na verificação de um requisito de natureza substancial: que essa forma de cumprimento da pena de multa ainda se mostre adequada e suficiente para realizar as finalidades da punição, ou seja, apta a reforçar a confiança da comunidade na ordem jurídica violada, e bem assim a promover a reintegração do agente na sociedade (art.40.º, n.º 1 do Código Penal).

   Para tanto, teremos que atentar na natureza desta medida. De facto, a substituição da pena de multa por trabalho a favor da comunidade encontra-se configurada pelo legislador, no art. 48.º do Código Penal, como uma forma de cumprimento da pena de multa aplicada a título principal, e inicialmente não como uma pena de substituição, podendo apenas ser considerada na fase de execução da pena de multa, e não, como sucede no caso do art. 43.º, n.º 3 do Código Penal, aquando da condenação, em sede de determinação da espécie da pena a ser aplicada.

   Sucede porém que recente jurisprudência vem enveredando por entendimento, que sufragamos, de ser também aplicável a substituição por trabalho de multa aplicada em substituição de pena de prisão, por razões de justiça material – cfr. neste sentido Ac.s do T. R. do Porto datado de 11.06.2014 e do T. R. de Lisboa datado de 11.03.2015, ambos disponíveis em www.dgsi.pt, sendo de ponderar também em sede do acórdão de fixação de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, nº 12/2013, proferido em 18.09.2013, (e publicado no Diário da República, 1ª Série, de 16 de Outubro de 2013), embora tendo como objecto temática díspar, se escreveu no respectivo ponto XV que “Condenado o arguido em pena de multa de substituição, nos termos do artº 43º, do cód. penal, a multa deve ser paga no prazo de 15 dias a contar do trânsito em julgado, após notificação que lhe deve ser feita , nos termos do artº 489º , nº 1 e 2 , do cód. procº penal, assistindo ao arguido o direito de requerer o pagamento em prestações ou dentro do prazo de um ano , nos termos do artº 47º nº 3 , do cód. penal, a substituição por dias de trabalho (artº 490º , do cód. procº penal), porém findo o prazo para pagamento da multa ou de alguma das suas prestações sem que o pagamento por inteiro esteja efectuado, procede-se, nos termos do artº 491º nº 1, do cód. procº penal, à execução patrimonial”, de onde se retira que o Supremo Tribunal também aceita essa substituição.

   Como particularidade do caso concreto, dada a aplicação do processo sumaríssimo também não se pode considerar que tenha sido possibilitada em sede prévia a sentença a obtenção do consentimento do arguido com vista à aplicação de trabalho a favor da comunidade.

   Com efeito, subjacente ao pedido de prestação de trabalho a favor da comunidade encontra-se a ausência de meios económicos suficientes que não é por norma imputável aos agentes, sendo caso paradigmático os presentes autos, tendo em conta as condições económicas descritas pelo arguido. E neste quadro a Lei Penal possui mecanismos para não penalizar os arguidos em virtude da sua condição económica, estabelecendo alternativas de cumprimento/ substituição da pena de multa, sendo

   Um dos mecanismos previsto na lei e que se aplica, não só à pena de multa principal mas também à pena de multa de substituição (tendo em consideração a remissão expressa do artigo 43º, nº 2, para o artigo 49º nº 3, do Código Penal) e consiste na suspensão da execução da prisão (subsidiária ou principal).

   Com efeito, se o condenado requerer e provar que a razão do não pagamento da pena de multa (principal ou de substituição) lhe não é imputável, designadamente em virtude das suas condições económicas exíguas não o permitirem sem pôr em causa a satisfação das necessidades básicas do seu agregado, pode a execução da prisão subsidiária ser suspensa, desde que a suspensão seja subordinada ao cumprimento de deveres ou regras de conduta de conteúdo não económico ou financeiro, onde se enquadra precisamente a prestação de trabalho a favor da comunidade.

   Por outro lado, não poderemos esquecer que a prestação do trabalho a favor da comunidade surge como uma medida positiva e socialmente útil, favorecendo atitudes de reparação que colocam o condenado numa tarefa em benefício da comunidade, promovendo a assimilação da censura do acto ilícito mediante a construção de um trabalho socialmente positivo, assente na adesão do próprio arguido. Ao mesmo tempo, apela a um forte sentido de co-responsabilização social e de reparação simbólica, uma vez que permite que se estabeleça uma certa correspondência entre a lesão social provocada pelo crime e um tipo de reacção penal mais dirigida aos factos e pessoas.

   Ora, da análise conjunta da sentença e do relatório da Direcção-Geral de Reinserção Social, resulta que o condenado se mostra familiarmente integrada, evidenciando empenho em colaborar com a DGRS, mostrando disponibilidade para cumprir o trabalho a favor da comunidade, em substituição da multa em que foi condenado.

   Acresce que, a prestação de tarefas na Junta de Freguesia de Escalos de Baixo e da Mata, desempenhando tarefas de limpeza/manutenção de espaços se adequa às valências que o mesmo possui e revestem carácter socialmente útil.

   Atento o disposto no art.58.º n.º 3, aplicável ex vi do art.48.º do mesmo Código, tendo-se em consideração que legislador optou por fazer corresponder uma hora de trabalho a cada dia de multa, a pena de multa aplicada será substituída por igual numero de horas de trabalho.

   Em face do exposto, decide-se substituir a pena de multa em que o arguido foi condenado, pela prestação de 120 (cento e vinte) horas de trabalho, a prestar no Junta de Freguesia de Escalos de Baixo e da Mata, desempenhando tarefas de limpeza/manutenção de espaços.

   Notifique, nos termos do disposto no art.490.º, n.º 3, do Código de Processo Penal.

                                                                           *

O âmbito do recurso é dado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação. (Cf. entre outros, os acórdãos do STJ de 19-6-96   e de 24-3-1999   e Conselheiros Simas Santos e Leal Henriques , in Recursos em Processo Penal , 6.ª edição, 2007, pág. 103).

São apenas as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas respectivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar , sem prejuízo das de conhecimento oficioso .

No caso dos autos, face às conclusões da motivação do Ministério Público a questão a decidir é a seguinte:

- se a pena de multa de substituição não pode ser substituída por dias de trabalho, pelo que o despacho recorrido violou o disposto nos artigos 71.º, 43.º, 48.º e 49.º, n.º 3, do Código Penal.

 

O recorrente,  Ministério Público, defende que só o indeferimento da substituição da multa por trabalho a favor da comunidade respeita o legalmente previsto nos artigos 71.°, 43.°, 48.° e 49.°, n.º 3, do Código Penal, pelo que deve revogar-se a decisão recorrida que determinou a prestação de 120 horas de trabalho, em substituição da multa substitutiva.

Argumenta para o efeito, no essencial, que o artigo 43° do Código Penal exclui a possibilidade de substituição por trabalho a favor da comunidade da multa substitutiva da pena de prisão aplicada a título principal.

Isto porque, por um lado, sendo o legislador cuidadoso quanto às remissões que entendeu fazer no art.43.º do Código Penal, este não remeteu para o disposto no art.48.º do mesmo Código, em que se dá a possibilidade de substituição da multa substitutiva por trabalho a favor da comunidade.

Por outro lado, a natureza das penas de multa principal e substitutiva é distinta, bem como as consequências legais do seu incumprimento.

A possibilidade de substituição por trabalho a favor da comunidade, prevista no artigo 48° do Código Penal, apenas será possível quando a multa seja aplicada enquanto pena principal.

O incumprimento da pena de multa que substitui a pena de prisão dá azo ao cumprimento por inteiro da pena de prisão, nos termos do art.43.°, n.º 2 do Código Penal, sendo correspondentemente aplicável o disposto no artigo 49º°, n.º 3, do Código Penal, enquanto o incumprimento da pena de multa aplicada a título principal, dá lugar à substituição por pena de prisão reduzida de dois terços, nos termos do artigo 49.º, n.º 1 do Código Penal.

Ou seja, se o condenado requerer e provar que a razão do não pagamento da pena de multa (principal ou de substituição) lhe não é imputável, designadamente em virtude das suas condições económicas exíguas não o permitirem sem pôr em causa a satisfação das suas necessidades básicas, pode a execução da prisão (principal ou subsidiária) ser suspensa, desde que a suspensão seja subordinada ao cumprimento de deveres ou regras de conduta de conteúdo não económico ou financeiro, que, as mais das vezes, se consubstanciam na prestação de trabalho a favor da comunidade.

Em sede de sentença ou, no caso, em sede de processo sumaríssimo, quando determinada a medida da pena foi já apreciada a pena mais adequada ao caso, segundo os critérios previstos no artigo 71.º, do Código Penal estando vedada ao Tribunal nova apreciação sobre esses factos após o trânsito em julgado da sentença condenatória e já em sede de execução da pena.

Vejamos.

O art.43.º do Código Penal, que prevê a substituição da pena de prisão por multa, estabelece , na parte aqui com interesse, o seguinte:

« 1 - A pena de prisão aplicada em medida não superior a um ano é substituída por pena de multa ou por outra pena não privativa da liberdade aplicável, exceto se a execução da prisão for exigida pela necessidade de prevenir o cometimento de futuros crimes. É correspondentemente aplicável o disposto no artigo 47.º

2 - Se a multa não for paga, o condenado cumpre a pena de prisão aplicada na sentença. É correspondentemente aplicável o disposto no n.º 3 do artigo 49

Por sua vez, o art.48.º, do mesmo Código, que regula a «substituição da multa por trabalho» estatui o seguinte:

« 1 - A requerimento do condenado, pode o tribunal ordenar que a pena de multa fixada seja total ou parcialmente substituída por dias de trabalho em estabelecimentos, oficinas ou obras do Estado ou de outras pessoas colectivas de direito público, ou ainda de instituições particulares de solidariedade social, quando concluir que esta forma de cumprimento realiza de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

2 - É correspondentemente aplicável o disposto nos n.os 3 e 4 do artigo 58.º e no n.º 1 do artigo 59.º.».

Por fim, com interesse para a problemática em apreciação, importa referir o art.490.º, n.º1 do Código de Processo Penal, estabelece a propósito da execução da pena de multa, e mais concretamente da «substituição da multa por dias de trabalho», o seguinte:

« 1 - O requerimento para substituição da multa por dias de trabalho é apresentado no prazo previsto nos n.ºs 2 e 3 do artigo anterior, devendo o condenado indicar as habilitações profissionais e literárias, a situação profissional e familiar e o tempo disponível, bem como, se possível, mencionar alguma instituição em que pretenda prestar trabalho. »

A substituição da multa por trabalho a favor da comunidade era pacificamente admitida na jurisprudência até à reforma do Código Penal de 1995, levada a cabo pelo DL n.º 48/95, de 15 de Março.

O art.43.º, n.º3 do Código Penal de 1982, na primitiva redação, estabelecia que « É aplicável   à multa que substituir a prisão o regime dos artigos 46.º e 47.º.» e o art.47.º estipulava que «

Se, porém, a multa não for paga voluntária ou coercivamente, mas o condenado estiver em condições de trabalhar, será total ou parcialmente substituída pelo número correspondente de dias de trabalho em obras ou oficinas do Estado ou de outras pessoas colectivas de direito público.».

Com a reforma do Código Penal de 1995 o art.43.º, n.º 3 passou para o agora art.43.º, n.ºs 1 e 2: no n.º 1, refere-se que é correspondentemente aplicável à pena de multa de substituição o disposto no artigo 47.º (o artigo 46.º antes da reforma de 1995) que se refere ao modo de determinação da pena de multa de substituição; no n.º 2, determina-se que não sendo a pena de multa de substituição paga é cumprida a pena principal de prisão, sendo certo, todavia, que se o não pagamento da pena de multa não for imputável ao condenado é aplicável o regime do artigo 49.º, n.º 3 (que corresponde, grosso modo, ao art. 47.º, n.º 4 da anterior redação do Código Penal).

Ou seja, o art.47.º, n.º 2, do Código Penal, na primitiva redação, que permitia o pagamento da multa em dias de trabalho, não só deixou de estar integrado no âmbito do atual art.49.º como passou a ser autonomizado no art.48.º.

A partir desta alteração do Código Penal, introduzida pela Reforma de 1995, a jurisprudência vem-se dividindo sobre a aplicabilidade do art.48.º do Código Penal à pena de multa de substituição imposta ao abrigo da norma do artigo 43.º, n.º 1 do mesmo Código.

Parte da jurisprudência defende que o condenado pode requerer, após o trânsito em julgado da decisão que impôs a pena de multa de substituição, a substituição da multa por dias de trabalho, de acordo com as normas do artigo 490.º, n.º 1 do Código de Processo Penal.[1]

Alegam os defensores desta posição, no essencial, que o atual art.43.º, n.º 1, do Código Penal, não afasta a possibilidade de, em fase de pagamento voluntário, a pena de multa poder vir a ser substituída por trabalho. Esta “substituição” é uma forma de cumprimento da pena de multa.

Se o condenado entrar em incumprimento, então terá de cumprir a pena de prisão aplicada, nos termos do artigo 43.º, n.º 2, do CP; apenas haverá lugar à aplicação do disposto no artigo 49.º, n.º 3, do CP, quando o condenado, tendo entrado em incumprimento, este não lhe é imputável, assim se permitindo a suspensão da execução da pena de prisão principal. Se o regime é idêntico no caso de incumprimento não imputável ao condenado, quer estejamos perante uma pena de multa principal, quer perante uma pena de multa de substituição, também numa situação análoga (a situação em que o condenado, estando impossibilitado de pagar, requer o pagamento em dias de trabalho) o regime deve ser idêntico, considerando que seria incompreensível que o regime seja idêntico em caso de incumprimento não imputável ao condenado e, todavia, diferente (por admissível num caso, e inadmissível em outro) quando o condenado pede para pagar a multa em dias de trabalho.

Assim, o constrangimento económico e financeiro subjacente à aplicação da pena de multa de substituição também é alcançado com o seu pagamento em dias de trabalho, e do mesmo modo se alcançando as finalidades da punição.

Esta é a posição seguida no douto despacho recorrido.

Para a outra posição, defendida pelo recorrente, o art.43.º, n.º 1, do Código Penal, exclui a possibilidade de substituição por trabalho a favor da comunidade da multa substitutiva da pena de prisão aplicada a título principal ao não remeter para o disposto no art.48.º do mesmo Código.[2]

O pagamento da multa em dias de trabalho constitui uma pena de substituição, e não uma forma diferente de execução da pena de multa e assim ou a pena de multa de substituição é paga em numerário imediatamente, ou a prazo, ou em prestações ou, não ocorrendo o pagamento em nenhuma destas modalidades, o condenado entra em incumprimento e apenas haverá lugar à suspensão da execução da pena de prisão principal, se o incumprimento não for imputável àquele ( art.49.º, n.º 3 do Código Penal).

Daqui resulta que o condenado impossibilitado de pagar a pena de multa principal , por falta de meios económicos e financeiros poderá requerer o seu pagamento em dias de trabalho; mas o condenado em multa de substituição, com falta de meios económicos e financeiros, não poderá pagar essa pena , voluntariamente, em dias de trabalho, tendo de aguardar pela decisão do juiz que lhe suspenda a execução da pena de prisão principal.

O condenado em multa de substituição é assim remetido para uma situação de incumprimento, ainda que pretenda pagar em dias de trabalho a multa em que foi condenado, aderindo voluntariamente, deste modo, às finalidades da punição.

O STJ veio já no corrente ano tomar posição sobre esta divergência jurisprudencial, fixando através do acórdão n.º 7/2016, proferido a 18 de fevereiro de 2016, a seguinte jurisprudência:

« Em caso de condenação em pena de multa de substituição, nos termos do artigo 43.º, n.º 1, do CP, pode o condenado, após o trânsito em julgado daquela decisão, requerer, ao abrigo do disposto no artigo 48.º, do CP, o seu cumprimento em dias de trabalho, observados os requisitos dos arts. 489.º e 490.º do CPP[3]

Fundamentou esta sua posição, designadamente, no seguinte:

     «Nos termos do artigo 43.º, n.º 1, do CP, há lugar a substituição da pena de prisão não superior a 1 ano por uma pena de multa ou outra pena não detentiva, sempre que a isso se não oponham as exigências de prevenção, nomeadamente, a necessidade de prevenir a prática de futuros crimes. Isto é, mantém-se o propósito já antigo de luta contra as penas curtas de prisão pelo seu efeito criminógeno e prejudicial à socialização do condenado. Se, por um lado, esta é uma exigência a manter - a de não aplicar penas curtas de prisão - acresce ainda uma outra subjacente a todo o regime sancionatório português: a de que a prisão só deve ser aplicada em ultima ratio, e por isso a preferência pela aplicação das penas não privativas da liberdade em detrimento das penas privativas da liberdade (tal como expressamente se estipula no artigo 70.º, do CP). E por isto se faz uma remissão expressa (no artigo 43.º, n.º 1, do CP) para o artigo 47.º do CP - assim permitindo que também no caso de uma pena de multa de substituição se possa proceder ao seu pagamento dentro de um certo prazo ou em prestações “sempre que a situação económica e financeira do condenado o justificar” (artigo 47.º, n.º 3, do CP).

     Coisa diferente são aqueles casos em que ocorre um incumprimento da pena de multa de substituição. Como a própria designação nos indica, esta pena é aplicada em vez de uma pena principal que terá sido de prisão em medida não superior a 1 ano. Pelo que, tal como em todas as penas de substituição, quando não haja o seu cumprimento (por motivo imputável ao condenado) deve proceder-se à execução da pena principal.

     Mas ainda aqui a execução da pena de prisão deve constituir a ultima ratio.

     Assim como na pena de substituição de suspensão da execução da pena de prisão a execução da pena principal de prisão só deve ocorrer no limite (cf. arts. 55.º e 56.º, do CP), também no caso de pena de multa de substituição deve ainda dar-se possibilidade ao condenado de, antes de entrar em incumprimento (45), poder proceder ao pagamento da multa em dias de trabalho. Na verdade, o condenado que não consegue, por motivo que lhe não é imputável, pagar num certo prazo ou a prestações, mas ainda assim pretende pagar em dias de trabalho vem de forma expressa demonstrar que uma das finalidades básicas que presidiu à substituição da pena de prisão - a de permitir a socialização do delinquente de modo a que este prossiga a sua vida de acordo com as regras estabelecidas na sociedade - está a atingir o seu objetivo: o condenado, ao requerer o pagamento em dias de trabalho quando não pode realizar o pagamento de outra forma, e pretendendo evitar entrar numa situação de incumprimento (que demonstraria expressamente não estar ainda a atuar de acordo com as regras da sociedade), demonstra que quer cumprir, ainda que através da força do seu trabalho, a pena em que foi condenado, assim ressarcindo a sociedade pelo crime cometido.

     Além disto, em caso de incumprimento, apenas podemos dizer que o não pagamento não lhe é imputável, quando possamos concluir que não só não tinha possibilidades económicas e financeiras para pagar, como não tinha possibilidades de pagar através do seu trabalho. Não estamos, pois, a admitir aquilo que por vezes incorretamente se afirma quando se diz que o condenado em pena de multa pode substituí-la por prestação de trabalho. Não se trata aqui de uma substituição, ou da aplicação de uma outra pena em vez de uma pena principal; a pena de substituição que lhe foi aplicada foi a pena de multa, apenas estando agora a pagá-la, diríamos, em espécie e não em numerário. Assim contribuindo para assegurar a finalidade que presidiu à aplicação daquela pena de substituição: evitar as penas curtas de prisão e aplicar uma pena detentiva apenas em ultima ratio.

     Aliás, tem já sido esta a posição da maioria da doutrina que tem considerado que se pode proceder ao pagamento voluntário da pena de multa de substituição (de forma imediata, a prazo ou em prestações) por prestação de dias de trabalho (46), pois não estamos perante uma "substituição" de uma pena de substituição, mas sim perante uma outra modalidade de execução da pena de multa de substituição.

     Acresce que já foi este - o de o pagamento da pena de multa de substituição constituir uma forma de execução da pena de multa - o entendimento do Supremo Tribunal de Justiça aquando do acórdão de fixação de jurisprudência 12/2013 (DR, 1.ª série, 16.10.2013), onde se afirmou expressamente:

Condenado o arguido em pena de multa de substituição, nos termos do artigo 43.º, do CP, a multa deve ser paga no prazo de 15 dias a contar do trânsito em julgado, após notificação que lhe deve ser feita, nos termos do artigo 489.º, n.ºs 1 e 2, do CPP, assistindo ao arguido o direito de requerer o pagamento em prestações ou dentro do prazo de um ano, nos termos do artigo 47.º, n.º 3, do CP, a substituição por dias de trabalho (artigo 490.º, do CPP), porém findo o prazo para pagamento da multa ou de alguma das suas prestações sem que o pagamento por inteiro esteja efectuado, procede-se, nos termos do artigo 491.º n.º 1, do CPP, à execução patrimonial.

Exaurida esta plúrima regra procedimental, não assiste outra alternativa ao tribunal, desde que ante este se não haja comprovado previamente a impossibilidade não culposa de satisfazer a multa, que não seja a de fazer cumprir a pena de prisão substituída.”

     Podemos ainda referir que o entendimento do disposto no artigo 48.º, do CP, como uma “forma de cumprimento da multa” (assim se distinguindo claramente das penas de substituição) é reafirmado pelo acórdão de fixação de jurisprudência 13/2013, onde se admitiu o cumprimento da pena de multa em dias de trabalho como sendo uma “possibilidade de cumprimento da pena”, uma forma de execução da pena de multa (principal), uma “possibilidade de cumprimento da pena de multa através da prestação de trabalho, não estando portanto ainda a multa dada como incumprida”(47).

     Sendo, pois, o pagamento da pena de multa em dias de trabalho, previsto no artigo 48.º, do CP, uma forma de execução da pena de multa, e não uma pena de substituição, e sendo uma forma de execução antes de o condenado entrar em situação de incumprimento, é aplicável quer se trate de uma pena de multa principal, quer de uma pena de multa de substituição. E assim se reafirmando que não há qualquer distinção entre a pena de multa principal e a pena de multa de substituição quando estamos perante um caso de cumprimento da pena. Na verdade, só o regime do incumprimento (por motivo imputável ao condenado) deve ser diferente consoante estejamos perante uma pena de multa principal ou uma pena de multa de substituição atenta a natureza desta última.

     4.5 - Admitindo, pois, o pagamento da multa de substituição em dias de trabalho, esta modalidade de pagamento apenas pode ocorrer quando haja requerimento do condenado (cf. artigo 48.º, do CP). Deve, então, o condenado requerer, no prazo de 15 dias após a notificação para o pagamento, aquela específica modalidade de execução antes de entrar em incumprimento (cf. artigo 490.º, do CPP e artigo 489.º, n.ºs 2, do CPP (48); caso tenha sido autorizado anteriormente o pagamento em prestações poderá requerer o pagamento em dias de trabalho antes de expirar o prazo para o pagamento da prestação, ou enquanto não ocorrer uma situação de mora (49). Ou seja, só após o trânsito em julgado da condenação em pena de prisão substituída por pena de multa, e antes de o condenado entrar em incumprimento, é que o tribunal a requerimento do condenado poderá permitir o pagamento da multa em dias de trabalho, se entender que através desta forma de cumprimento se realizam "de forma adequada e suficiente as finalidades de punição" (cf. artigo 48.º, do CP). Isto é, o tribunal terá que concluir que, perante o dever de pagamento da pena de multa e uma vez demonstrada a impossibilidade (não imputável ao condenado) de o cumprir, pode o condenado pagar em dias de trabalho. Na verdade, entendemos que só perante a impossibilidade de pagamento da multa imediatamente, ou em diferido, ou em prestações, é que se pode entender que, em respeito pelas finalidades de punição, maxime a de socialização do condenado, aquela possa ser cumprida deste outro modo. Até porque só assim se pode solicitar a tolerância da sociedade para com esta outra forma de pagamento. E “com a demonstração da vontade do condenado em prestar dias de trabalho, poderemos já, na maioria dos casos, considerar que as necessidades de prevenção especial, no sentido da adesão aos valores da comunidade e à reparação simbólica da lesão do bem jurídico violado se encontram já assimiladas pelo condenado”(50).

     Conclui-se, pois, que a pena de multa de substituição pode ser cumprida através de dias de trabalho, tal como o acórdão fundamento defendeu.».

Nos termos do art.445.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, «A decisão que resolver o conflito não constitui jurisprudência obrigatória para os tribunais judiciais, mas estes devem fundamentar as divergências relativas à jurisprudência fixada naquela decisão.».

Conquanto a jurisprudência fixada pelo STJ não constitua jurisprudência obrigatória para os tribunais judiciais a sua inobservância ou divergência impõe uma fundamentação com novos argumentos, anteriormente não ponderados.

Isso mesmo é realçado pelo Cons. Maia Gonçalves, em anotação ao art.445.º do Código de Processo Penal anotado ( Almedina, 17.ª edição, pág. 1044): « O segundo período deste n.º3, que seria talvez desnecessário face à obrigatoriedade geral de os atos decisórios serem fundamentados, contém uma particular chamada de atenção para o dever de fundamentar ponderada e meticulosamente as divergências relativamente à jurisprudência que se encontra fixada. Impõe-se ainda que os argumentos invocados para o efeito, além de ponderosos, sejam novos, no sentido de não terem sido considerados no acórdão uniformizador, e suscetíveis de criar algum desequilíbrio na avaliação do peso de argumentos a favor do reexame e alteração da doutrina fixada no acórdão uniformizador.”.

Nos ternos do n.º2 do art.446.º, do Código de Processo Penal, a  prolação de decisão contra a jurisprudência fixada pelo STJ é causa de interposição de recurso direto obrigatório do  Ministério Público para aquele tribunal e, de recurso facultativo, para o arguido, o assistente ou as partes civis.  

No caso em apreciação, não vislumbramos argumentos novos, que não tenham sido apreciados oportunamente pelo STJ no acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/2016, para divergir da unidade jurisprudencial conferida nesta decisão.

Assim, e uma vez que aí ficou decidido, com a normal autoridade e força persuasiva de decisão do STJ, que em caso de condenação em pena de multa de substituição, nos termos do artigo 43.º, n.º 1, do CP, pode o condenado, após o trânsito em julgado daquela decisão, requerer, ao abrigo do disposto no artigo 48.º, do CP, o seu cumprimento em dias de trabalho, observados os requisitos dos arts. 489.º e 490.º do CPP., mais não resta que confirmar o douto despacho recorrido, que substituiu a pena de multa em que o arguido A... foi condenado, pela prestação de 120 horas de trabalho.

Improcede, deste modo, o recurso interposto pelo Ministério Público.

 

            Decisão

            Nestes termos e pelos fundamentos expostos acordam os juízes do Tribunal da Relação de Coimbra em negar provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e manter o douto despacho recorrido.

 Sem custas.


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(Certifica-se que o acórdão foi elaborado pelo relator e revisto pelos seus signatários, nos termos do art.94.º, n.º 2 do C.P.P.). 

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Coimbra, 11 de Maio de 2016

(Orlando Gonçalves – relator)

(Inácio Monteiro - adjunto)


[1] Neste sentido, entre outros, os acórdãos da Relação do Porto de 11 de junho de 2014 e da Relação de Lisboa, 11 de março de 2015, in www.dgsi.pt.  
[2] Neste sentido, entre outros, o acórdão da Relação de Coimbra, de 17 de dezembro de 2014, in CJ, n.º 258, pág. 60  e o acórdão da Relação de Guimarães  de 30 de junho de 2014, in www.dgsi.pt.
[3] DR. 1.ª Série, de 21 de março de 2016