Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1686/12.9TBFIG-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FALCÃO DE MAGALHÃES
Descritores: INSOLVÊNCIA
CRÉDITOS SUBORDINADOS
PENHOR
Data do Acordão: 07/10/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA FIGUEIRA DA FOZ – 1º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 47º, 48º E 49º DO CIRE.
Sumário: I – De acordo com o artº 47º, nº 4, alínea b), do CIRE, são considerados créditos subordinados “os enumerados no artigo 48º, excepto quando beneficiem de privilégios creditórios, gerais ou especiais, ou de hipotecas legais, que não se extingam por efeito da declaração de insolvência”.

II - Por seu turno, o artº 48º do CIRE preceitua: “Consideram-se subordinados, sendo graduados depois dos restantes créditos sobre a insolvência: a) Os créditos detidos por pessoas especialmente relacionadas com o devedor, desde que a relação especial existisse já aquando da respectiva aquisição, e por aqueles a quem eles tenham sido transmitidos nos dois anos anteriores ao início do processo de insolvência”.

III - Nos termos do Artigo 49º do CIRE: “1 - São havidos como especialmente relacionados com o devedor pessoa singular:

(…);

b) Os ascendentes, descendentes ou irmãos do devedor ou de qualquer das pessoas referidas na alínea anterior;

(…)

2 - São havidos como especialmente relacionados com o devedor pessoa colectiva:

a) Os sócios, associados ou membros que respondam legalmente pelas suas dívidas, e as pessoas que tenham tido esse estatuto nos dois anos anteriores ao início do processo de insolvência;

(…)

c) Os administradores, de direito ou de facto, do devedor e aqueles que o tenham sido em algum momento nos dois anos anteriores ao início do processo de insolvência;

d) As pessoas relacionadas com alguma das mencionadas nas alíneas anteriores por qualquer das formas referidas no nº 1.

IV - O penhor, que é uma garantia real de cumprimento das obrigações que tem por objecto móveis ou direitos insusceptíveis de hipoteca (art. 666º, nº 1, do CC), pode ser constituído por terceiro não devedor, que não é, pois, sujeito da relação obrigacional, tendo por objecto, nesse caso, bens desse mesmo terceiro.

V - Parece não sofrer contestação a afirmação de que aquele que presta a garantia a um mútuo em que não é parte, dando em penhor móveis ou direitos de que seja titular, ou, mais especificamente, aplicações financeiras, não contrai qualquer dívida, nem adquire qualquer crédito.

VI - Mas ocorrendo o não cumprimento da obrigação pelo devedor mutuante e satisfeita a dívida deste pelo terceiro que constituiu o penhor - quer pelo pagamento voluntário, quer por via da execução do penhor -, fica esse terceiro sub-rogado, pelo que pagou, nos direitos do credor (cfr. artºs 592, nº 1 e 593, nº 1, do CC e Acórdão desta Relação, de 13/11/2012, Apelação nº 749/08.0TBTNV.C1).

VII - O crédito desse terceiro, adquirido por sub-rogação, não “nasce”, assim, na altura da constituição do penhor, ainda que esta, como é natural e sucedeu no “caso “sub judice”, ocorra na ocasião em que é outorgado o negócio jurídico de onde emergem as obrigações do devedor.

VIII - Sendo os sócios da ora insolvente (as duas últimas com funções de gerência) aquando da execução do penhor e consequente sub-rogação nos direitos do credor Banco também herdeiros da falecida M..., sua mãe, tal facto não configura qualquer uma das situações do CIRE que determinariam a classificação de tal crédito como subordinado, sendo certo, que, não só, por um lado, há que ter em conta que a herança indivisa é realidade jurídica bem distinta da dos respectivos herdeiros, como, por outro, o direito destes últimos não recai sobre qualquer bem ou direito específico que integre o património hereditário, mas tão-só sobre uma parte ideal da herança.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I - A) - 1) – A sociedade “Q..., Lda.”, requereu a sua declaração de insolvência, por requerimento entrado em juízo no dia 06/07/2012, tendo tal insolvência sido declarada por sentença do 1º Juízo do Tribunal Judicial da Figueira da Foz, proferida em 12/07/2012, ao abrigo do Código da Insolvência e Recuperação de Empresas[1], e transitada em julgado.

2) - Aberto o prazo para a reclamação de créditos, efectuadas que foram as legais citações, veio reclamar a verificação dos seus créditos, entre outros, a “Herança de M...”.

3) - No apenso de verificação e graduação de créditos, veio a Administradora da Insolvência apresentar a lista de todos os credores por si reconhecidos, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 129º, nºs 1 e 2, do CIRE.

4) - De acordo com tal lista foram reconhecidos créditos no montante total de €1.494.715,80, correspondendo €44.012,95, a créditos privilegiados, €604.808,82, a créditos subordinados, e o remanescente a créditos de natureza comum.

5) - Nessa lista, a Sr.ª Administradora da Insolvência atribuiu, ao crédito reclamado por “Herança de M...”, a natureza de subordinado, por entender encontrarem-se verificados os pressupostos enunciados nos artigos 48º, alínea a) e 49º, nº 2, alíneas c) e d), do C.I.R.E.

6) - Tal credor veio deduzir impugnação, alegando:

...

A terminar concluiu que o seu crédito deve ser verificado e graduado como crédito comum.

7) - Cumprido o disposto no artigo 131º do C.I.R.E., não foi deduzida nenhuma resposta à aludida impugnação, nem a comissão de credores juntou aos autos o parecer a que alude o artigo 135º do mesmo diploma.

8) - Na sequência de esclarecimentos que lhe foram solicitados pelo Tribunal veio a Sr.ª Administradora da Insolvência referir (requerimento de 21/12/2012), entre o mais, que:

- M... era a mãe dos sócios da insolvente e faleceu em 2008;

- O penhor foi accionado em 2012, data da constituição do crédito, pelo que os seus herdeiros, que também são sócios da insolvente, passaram a ser credores desta última.

- A mãe dos sócios era pessoa especialmente relacionada com os sócios da insolventes e os seus herdeiros, titulares do crédito por transmissão gratuita, também o são, razão porque atribuiu a tal crédito a natureza de subordinado.

9) - A massa insolvente é constituída exclusivamente por bens móveis, direitos e dinheiro.

B) – No saneador-sentença, proferido em 06 de Fevereiro de 2013, decidiu-se indeferir o requerimento de declaração de extemporaneidade da informação prestada pela Sr.ª Administradora da Insolvência, formulado pela credora;

C) – Na parte dispositiva desse sanedor-sentença consignou-se o que ora se reproduz:

«(…) Nos termos e pelos fundamentos expostos:

A) Julgo improcedente a impugnação deduzida pela “Herança de M...”, qualificando o crédito por si reclamado como crédito subordinado.

B) Julgo verificados os créditos reconhecidos pela Sr.ª Administradora da Insolvência, melhor discriminados a fls. 4 a 10 dos autos, com a rectificação de que o crédito reclamado pela Fazenda Nacional beneficia apenas de privilégio mobiliário geral.

Consequentemente, graduo da seguinte forma os créditos reclamados:

1.º lugar: Créditos privilegiados dos ex-trabalhadores da insolvente, ..., no montante total de €43.902,13.

2.º lugar: Crédito privilegiado reclamado pela Fazenda Nacional, no montante de €110,82.

3.º lugar: Todos os restantes créditos comuns reclamados, no montante total de €845.894,03.

4.º lugar: Todos os créditos subordinados reconhecidos, titulados por Herança de M, no montante total de €604.808,82.».

D) - A “Herança de M...”, interpôs recurso desse saneador-sentença, tendo a Mma. Juiz do Tribunal “a quo” recebido tal recurso como apelação, com subida imediata e efeito meramente devolutivo.

II - A Apelante, nas alegações de recurso que ofereceu, apresentou as seguintes conclusões:

...
III - Em face do disposto nos artºs 684º, nº 3 e 685º-Aº, nº 1, ambos do CPC[2], o objecto dos recursos delimita-se, em princípio, pelas conclusões dos recorrentes, sem prejuízo do conhecimento das questões de que cumpra apreciar oficiosamente, por imperativo do artº 660º, nº 2, “ex vi” do artº 713º, nº 2, do mesmo diploma legal.

Não haverá, contudo, que conhecer de questões cuja decisão se veja prejudicada pela solução que tiver sido dada a outra que antecedentemente se haja apreciado, salientando-se que, com as “questões” a resolver se não confundem os argumentos que as partes esgrimam nas respectivas alegações e que, podendo, para benefício da decisão a tomar, ser abordados pelo Tribunal, não constituem verdadeiras questões que a este cumpra solucionar (Cfr., entre outros, Ac. do STJ de 13/09/2007, proc. n.º 07B2113 e Ac. do STJ de 08/11/2007, proc. n.º 07B35862[3]).

Assim, a questão a solucionar consiste em saber como devem ser reconhecidos e graduados os créditos da ora Apelante.

IV – O Tribunal “a quo”, considerou como factualidade relevante a atender para a decisão a proferir, a seguinte:

...

V – a) – Sustenta a apelante que a “resposta ou comentários/esclarecimentos da Senhora Administradora da Insolvência” foi apresentada já depois de esgotado o prazo legal de 10 dias, pelo que se deveria ter considerado tal resposta como extemporânea, com a consequente procedência da impugnação apresentada, “ex vi” do artº 131º, nº 3, do CIRE, pelo que a sentença, não se tendo “pronunciado em termos minimamente fundamentados” sobre tal questão, padece de nulidade, devendo ser “corrigida, nos termos do art. 670º do CPC”.

No saneador-sentença ora impugnado, escreveu-se: «Como questão prévia, cumpre referir que a resposta da Sr.ª Administradora da Insolvência junta a fls. 83 e segs., não constitui uma resposta à impugnação deduzida pela credora reclamante/impugnante, porquanto a mesma apenas resultou do convite que o tribunal lhe endereçou, a fim de que a mesma prestasse os esclarecimentos necessários à compreensão do seu entendimento do crédito em causa como subordinado.

Com efeito, nenhuma resposta à impugnação, nos termos previstos no artigo 131º do C.I.R.E. foi deduzida, o que não importa desde logo que a impugnação seja julgada procedente, na medida em que a questão a apreciar é de direito e o tribunal não se encontra limitado pela alegação das partes neste conspecto.

Isto para concluir que as informações prestadas pela Sr.ª Administradora da Insolvência o foram a convite do tribunal, de forma a aferir da correcção da natureza do crédito reclamado e, naturalmente, decidir a impugnação deduzida.

Termos em que se indefere a requerida declaração de extemporaneidade da informação prestada pela Sr.ª Administradora da Insolvência e, consequentemente, a procedência sem mais da impugnação deduzida.».

Já se vê, do acima transcrito, que na decisão ora recorrida se tratou da questão suscitada pela ora Apelante, não só na perspectiva da putativa extemporaneidade da “resposta” da Sra. Administradora, como na vertente do efeito cominatório que se pretendia ver aplicado, apresentando-se as razões que levaram a tomar as posições que quanto a isso aí se adoptaram.

Assim, o que há a concluir é que a decisão impugnada nem omitiu pronúncia nem enferma de falta de fundamentação, pelo que outra conclusão se não pode extrair senão a de que tal decisão não padece da invocada nulidade, que foi o que se decidiu, aliás, no despacho de 23/03/2013.

Improcede, pois, a nulidade de decisão invocada pela Apelante.

b) - Está em causa a classificação de um crédito reclamado pela Herança de M..., que foi reconhecido da Sr.ª Administradora da Insolvência como crédito subordinado e que ascende ao montante de €596.225,97.

Na génese desse crédito está um penhor sobre os activos financeiros depositados, constituído em 26/09/2006 por M..., para garantia um empréstimo, no valor de €650.000,00, que a ora insolvente solicitou ao Banco B... e que lhe foi concedido em 26/09/2006, sendo que, a essa data, a gerência da sociedade era assumida pelos filhos da referida M..., que vieram a renunciar à gerência, respectivamente, em 22/09/2009 e 31/03/2009.

Tendo a referida M... falecido em 29/09/2008, o Banco B..., em virtude de incumprimento do mencionado contrato por parte da sociedade ora insolvente, em 18/05/2012, quando assumiam a gerência desta, ..., filhas da falecida, resolveu esse contrato e executou o penhor dos activos financeiros mencionados, no valor global de €590.851,65.

De acordo com o artº 47º, nº 4, alínea b), do CIRE, são considerados créditos subordinados “os enumerados no artigo 48º, excepto quando beneficiem de privilégios creditórios, gerais ou especiais, ou de hipotecas legais, que não se extingam por efeito da declaração de insolvência.”.

Por seu turno, o artº 48º do CIRE preceitua: “Consideram-se subordinados, sendo graduados depois dos restantes créditos sobre a insolvência: a) Os créditos detidos por pessoas especialmente relacionadas com o devedor, desde que a relação especial existisse já aquando da respectiva aquisição, e por aqueles a quem eles tenham sido transmitidos nos dois anos anteriores ao início do processo de insolvência”.

Nos termos do Artigo 49º do CIRE:

“1 - São havidos como especialmente relacionados com o devedor pessoa singular:

(…);

b) Os ascendentes, descendentes ou irmãos do devedor ou de qualquer das pessoas referidas na alínea anterior;

(…)

2 - São havidos como especialmente relacionados com o devedor pessoa colectiva:

a) Os sócios, associados ou membros que respondam legalmente pelas suas dívidas, e as pessoas que tenham tido esse estatuto nos dois anos anteriores ao início do processo de insolvência;

(…)

c) Os administradores, de direito ou de facto, do devedor e aqueles que o tenham sido em algum momento nos dois anos anteriores ao início do processo de insolvência;

d) As pessoas relacionadas com alguma das mencionadas nas alíneas anteriores por qualquer das formas referidas no nº 1.”

Tendo em conta estas disposições legais, escreveu-se na decisão ora sob recurso:

«Conforme se refere no ponto 25 do Preâmbulo do Decreto-Lei nº 53/2004, de 18-03, “A categoria dos créditos subordinados abrange ainda, em particular, aqueles cujos titulares sejam «pessoas especialmente relacionadas com o devedor» (…), as quais são criteriosamente indicadas no artigo 49º do diploma. Não se afigura desproporcionada, situando-nos na perspectiva de tais pessoas, a sujeição dos seus créditos ao regime de subordinação, face à situação de superioridade informativa sobre a situação do devedor, relativamente aos demais credores” (sublinhado e negrito nossos), visando-se ainda evitar o aproveitamento dessas relações especiais feito pelo próprio devedor para frustrar as finalidades do processo de insolvência.

É discutível se a enumeração do elenco de pessoas especialmente relacionadas com devedor, prevista no artigo 49º do C.I.R.E., tem carácter taxativo ou meramente exemplificativo.

Na nossa parte, consideramos que a enumeração é taxativa, já que para tal aponta o elemento literal de interpretação, bem como a circunstância de a regra no processo de insolvência é a de que todos os credores estão em situação de igualdade perante o património do devedor, nisso consistindo o princípio da par conditio creditorum. Donde, constituindo os créditos subordinados uma excepção a tal princípio, as normas a ele atinentes devem ser objecto de interpretação restritiva.

Contudo, como se salienta no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 02/02/2010, proc. nº 171/07.5TBOBR-C.C1, acessível in www.dgsi.pt, “… tal não impede que cada situação nela prevista em qualquer das suas alíneas possa ser razoavelmente interpretada em função dos contornos do caso concreto. Até porque a maioria delas não se atém a uma singularidade ou simplicidade tais que não deixe margem para a interpretação que se revelar mais adequada e justa perante o seu espírito e a teleologia e escopo legais nesta matéria de reclamação e pagamento de créditos”.

Ora, no caso concreto, temos como certo que M… era mãe de todos os sócios da insolvente e inclusivamente dos gerentes da mesma.

Além disso, julgamos que relevante para apurar a data da aquisição do crédito é a da sua constituição, que teve lugar em 26/09/2006, a par da celebração do contrato de empréstimo bancário.

Com efeito, nesse momento constituiu-se uma relação jurídica tripartida, em que interveio a Q…, o Banco B… e M…, tendo sido celebrado dois contratos interligados entre si – o contrato de empréstimo e o contrato de penhor, celebrado, neste caso, por terceiro, em favor do devedor.

E foi ao abrigo dessa relação jurídica tripartida que o penhor foi accionado já após o decesso da sua autora.

Além disso, o penhor é considerado, à semelhança da fiança, uma garantia acessória, pelo que a sua constituição, manutenção e extinção ficam dependentes da constituição, manutenção e extinção do crédito garantido.

Donde, a data em que a dívida foi assumida pela sociedade ora insolvente, por intrinsecamente ligada ao penhor então celebrado, é que releva para aferir da aquisição do crédito reclamado.

E nessa data, o crédito era titulado por uma pessoa especialmente relacionada com os gerentes da sociedade – a sua mãe, M… -, mostrando-se assim preenchida a previsão dos artigos 48º, alínea a) e 49º, nº 1, alínea b) e nº 2, alíneas c) e d), do C.I.R.E.

A circunstância de entretanto M… ter falecido e o penhor apenas ter sido executado após o seu decesso não poderá relevar para efeitos de se considerar que uma pessoa distinta é a titular do crédito sob impugnação.

Desde logo, na medida em que não foi o património dos seus herdeiros o atingido pelo accionamento do penhor, mas antes o acervo hereditário da autora da garantia, do qual fazia parte o crédito de que a mesma era titular, na hipótese de o empréstimo não ser cumprido, e que já havia nascido à data da constituição da garantia.

Por outro lado, embora a lei atribua à herança determinados atributos legais, a mesma não constitui uma pessoa jurídica distinta, mas antes um património autónomo, separado, em confronto com o património pessoal dos herdeiros, nela se integrando o crédito titulado por M…, sendo seus herdeiros os sócios e gerentes da insolvente.

A não se considerar este crédito subordinado postergar-se-iam as finalidades subjacentes à previsão deste tipo de créditos quando o mesmo é titulado por pessoa especialmente relacionada com o devedor.

É que não se poderá olvidar que a constituição do penhor apenas ocorreu, por inferência lógica, em virtude da relação de parentesco que então unia a sua autora aos gerentes da insolvente. Além disso, reconhecer agora aos herdeiros daquela, que são sócios e gerentes da sociedade, por via da transmissão gratuita do crédito operada pela sucessão mortis causa, uma situação de paridade em face dos demais credores, constituiria uma violação da teleologia dos preceitos consagrados nos artigos 48º e 49º, do C.I.R.E., pelo evidente interesse e conhecimento que os mesmos possuem no património da insolvente.».

Como se sabe, o penhor, que é uma garantia real de cumprimento das obrigações que tem por objecto móveis ou direitos insusceptíveis de hipoteca (art. 666º, nº 1, do CC), pode ser constituído por terceiro não devedor, que não é, pois, sujeito da relação obrigacional, tendo por objecto, nesse caso, bens desse mesmo terceiro.

Como se diz no Acórdão do STJ, de 07/05/2009 (Revista nº 3116/06TVLSB.S1)“…o penhor de aplicações financeiras, frequentemente, utilizado pelas instituições de crédito, pode revestir a modalidade de penhor de direitos, a que se aplica o artigo 679º e seguintes do CC, e que a terminologia específica designa por penhor bancário, que se traduz num penhor de créditos, uma vez que o objecto do penhor é o crédito do depositante sobre o banco, ou seja, numa garantia especial sobre direitos, porquanto incide sobre documentos e não sobre o saldo da conta e, portanto, sobre o dinheiro depositado (4), que é propriedade do banco credor, que adquire a sua disponibilidade e, simultaneamente, se constitui devedor da restituição do valor correspondente, vinculando-se, por seu turno, o depositante a manter subsistente o provisionamento da conta (5) .

O penhor de aplicações financeiras pressupõe um depósito no banco, em virtude do qual se transfere para esta entidade a propriedade do dinheiro depositado, nos termos do disposto pelo artigo 1144º do CC, que vai ser, posteriormente, transformado num determinado produto bancário, nos termos do acordo estabelecido entre o depositante e o depositário, criando-se na esfera jurídica do depositante o correspondente direito de crédito sobre o montante em causa.

A especialidade desta figura do penhor de aplicações financeiras está, assim, no empenhamento de um direito de crédito sobre um quantitativo monetário que se encontra em poder do credor pignoratício (6).».

Parece não sofrer contestação a afirmação de que, aquele que presta a garantia a um mútuo em que não é parte, dando em penhor móveis ou direitos de que seja titular, ou, mais especificamente, aplicações financeiras - como foi o caso de M..., que deu em penhor activos financeiros no valor global de €590.851,65 -, não contrai qualquer dívida, nem adquire qualquer crédito.

Mas, ocorrendo o não cumprimento da obrigação pelo devedor mutuante e satisfeita a dívida deste pelo terceiro que constituiu o penhor - quer pelo pagamento voluntário, quer por via da execução do penhor -, fica esse terceiro sub-rogado, pelo que pagou, nos direitos do credor (cfr. artºs 592, nº 1 e 593, nº 1, do CC e Acórdão desta Relação, de 13/11/2012, Apelação nº 749/08.0TBTNV.C1).

O crédito desse terceiro, adquirido por sub-rogação, não “nasce”, assim, na altura da constituição do penhor, ainda que esta, como é natural e sucedeu no “caso “sub judice”, ocorra na ocasião em que é outorgado o negócio jurídico de onde emergem as obrigações do devedor.

Como se viu, no caso, como se diz na sentença, no momento da contracção do empréstimo por parte da ora insolvente, “Q..., Lda.”, quando também foi constituído, por M..., o penhor que o garantiu, os filhos desta, ..., eram sócios daquela empresa.

Para efeito do raciocínio a expender, pondere-se a hipótese de a mencionada M... não ter falecido, como, de facto, sucedeu, antes de declarada a insolvência, tudo o mais ocorrendo como vem assente nos autos. Ou seja: Pondere-se a hipótese de ser a mencionada M..., a titular, por sub-rogação nos direitos do credor Banco, sobre o montante do crédito satisfeito por via da execução do penhor.

Segundo nos parece, as normas que regulam a sub-rogação não podem sobrepor-se àquelas – de lei especial – que, no CIRE, impõem a classificação de determinados créditos como subordinados.

Assim, parece que dúvidas não existiriam de que, na apontada hipótese, o crédito adquirido por via da sub-rogação nos direitos do credor Banco, em resultado da execução do penhor dos activos financeiros no valor global de €590.851,65, ocorrida na sequência da resolução do contrato, em 18/05/2012 (cerca de dois meses antes da declaração de insolvência da devedora), teria de ser classificado como subordinado, já que seria titulado por uma pessoa especialmente relacionada com as sócias-gerentes da sociedade insolvente, ... – a sua mãe, M... -, mostrando-se assim preenchida a previsão dos artigos 47º, nº 4, 48º, alínea a) e 49º, nº 1, alínea b) e nº 2, alíneas c) e d), do C.I.R.E.

Acontece que a situação dos autos é substancialmente diversa daquela que acima se hipotizou, sendo que a fundamental diferença radica, precisamente, na circunstância de, não obstante ter vindo a integrar a herança, já que resultou da execução de penhor de activos financeiros que faziam parte do seu acervo hereditário, o direito de crédito em questão jamais foi detido por M..., irrelevando, para esse efeito, que, na altura em que esta constituiu o penhor (2006) – cerca de dois anos antes do seu óbito (em 29/09/2008) e cerca de seis anos antes da transmissão do crédito, por sub-rogação, nos direitos do Banco (18/05/2012), e da declaração da insolvência da sociedade mutuante (em 18/05/2012 e 12/07/2012, respectivamente) – os seus filhos fossem os sócios desta, tendo, alguns deles, responsabilidade na respectiva gerência.

Como se diz no Acórdão de 22/04/2004 (Revista nº 04B404) “A sub-rogação supõe o pagamento e, portanto, o terceiro que paga pelo devedor só se sub-roga nos direitos do credor com o pagamento. Enquanto o não faz não é sub-rogado e não pode por isso exercer o direito do credor.».

Do exposto decorre, pois, que não nos parece correcto o afirmado na sentença quando aí se diz, que “…relevante para apurar a data da aquisição do crédito é a da sua constituição, que teve lugar em 26/09/2006, a par da celebração do contrato de empréstimo bancário.”, ou quando se afirma que “…a data em que a dívida foi assumida pela sociedade ora insolvente, por intrinsecamente ligada ao penhor então celebrado, é que releva para aferir da aquisição do crédito reclamado.”, merecendo a nossa dissensão, também, a conclusão aí tirada no sentido de que “…nessa data, o crédito era titulado por uma pessoa especialmente relacionada com os gerentes da sociedade – a sua mãe, M...”.

Daí que, salvo o devido respeito, assente em pressupostos que, afinal, não se verificam, não seja válida a conclusão que na sentença se tirou quanto ao crédito ajuizado no sentido de estar “preenchida a previsão dos artigos 48º, alínea a) e 49º, nº 1, alínea b) e nº 2, alíneas c) e d), do C.I.R.E.”.

Concorda-se com a Mma. Juiz do Tribunal “a quo”, quanto diz ter carácter taxativo a enumeração do elenco de pessoas especialmente relacionadas com o devedor, prevista no artigo 49º do CIRE.

Todavia, salvo o devido respeito por outro entendimento, a circunstância de ..., sendo sócios da ora insolvente (as duas últimas com funções de gerência) aquando da execução do penhor e consequente sub-rogação nos direitos do credor Banco, serem, também, herdeiros da falecida M..., sua mãe, não configura qualquer uma das situações do CIRE que determinariam a classificação de tal crédito como subordinado, sendo certo, que, não só, por um lado, como bem salienta a Apelante, há que ter em conta que a herança indivisa é realidade jurídica bem distinta da dos respectivos herdeiros, como, por outro, o direito destes últimos não recai sobre qualquer bem ou direito específico que integre o património hereditário, mas tão-só sobre uma parte ideal da herança.

Assim, não se acha ajustado dizer-se, como se faz da sentença, que, «reconhecer agora aos herdeiros daquela, que são sócios e gerentes da sociedade, por via da transmissão gratuita do crédito operada pela sucessão mortis causa, uma situação de paridade em face dos demais credores, constituiria uma violação da teleologia dos preceitos consagrados nos artigos 48º e 49º».

Do exposto resulta que, salvo o devido respeito, não existe comprovada nos autos qualquer situação que esteja prevenida nos artºs 47º, 48º e 49º do CIRE, e que, assim, determine a classificação do crédito em questão como subordinado, pelo que será de o ter como comum e assim o graduar.

Assim, reconhecendo-se ao crédito de € 596.225,97, da ora Apelante, Herança de M..., a natureza de comum, deixando o mesmo de ocupar o lugar onde estava graduado (4º), passa a graduar-se o mesmo em 3º lugar, com os restantes créditos da mesma natureza, alterando-se a decisão impugnada nessa medida e, consequentemente, também, no que tange aos montantes totais que aí se referem como graduados em 3º e 4º lugar.

VI - Em face de tudo o exposto, acordam os Juízes deste Tribunal em julgar procedente a Apelação e, revogando a sentença impugnada, na parte em que alteram a classificação do crédito reclamado pela Apelante e a graduação efectuada, reconhecem a tal crédito a natureza de comum e determinam que o mesmo fique, nos termos sobreditos, graduado em 3º lugar.

No mais, mantém-se o decidido no saneador-sentença impugnado.

Custas pela massa insolvente.


(Luís José Falcão de Magalhães - Relator)

(Sílvia Maria Pereira Pires)

(Henrique Ataíde Rosa Antunes)



[1] Código este aprovado pelo Decreto-Lei nº 53/2004, de 18/3, doravante designado por CIRE.
[2]   Código de Processo Civil, a considerar na redacção que lhe foi dada pelo DL n.º 226/2008, de 20/11.
[3] Consultáveis na Internet, através do endereço “http://www.dgsi.pt/jstj.nsf?OpenDatabase”, tal como todos os Acórdãos do STJ ou os respectivos sumários que adiante se citarem sem referência de publicação.