Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
31/19.7GAMDA-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOSÉ NOGUEIRA
Descritores: ALTERAÇÃO NÃO SUBSTANCIAL
COMUNICAÇÃO DA ALTERAÇÃO
RECURSO
Data do Acordão: 11/24/2021
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: GUARDA (JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DE VILA NOVA DE FOZ CÔA)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART. 358.º DO CPP
Sumário: É irrecorrível o despacho que, ao abrigo do disposto no artigo 358.º do CPP, comunica ao arguido uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação, porquanto tal comunicação, justificada pela necessidade de conciliar o correto “acontecer” dos factos ou o seu correto enquadramento jurídico-criminal com o respeito pelas garantias de defesa, de modo a propiciar o exercício do contraditório, consubstancia sempre uma declaração de intenções que pode, ou não, vir a concretizar-se, consoante os casos, na pronúncia ou na sentença e que, logo por si, é insuscetível de afetar qualquer direito do arguido carecido de tutela jurisdicional.
Decisão Texto Integral:





Acordam em conferência os juízes na 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

I. Relatório

1. No âmbito do proc. n.º 31/19.7GAMDA-A.C1, do Tribunal Judicial da Comarca da Guarda, V.N.F. Côa – Juízo C. Genérica, findo o inquérito o Ministério Público, por entender não haverem sido recolhidos indícios suficientes da prática, pela arguida L., de um crime de ofensa à integridade física, p. e p. pelo artigo 143.º, n.º 1, do Código Penal, na pessoa de V., determinou o arquivamento dos autos.

2. Não se tendo conformado com o arquivamento, a assistente V. requereu a abertura de instrução, requerendo a final a pronúncia da arguida L. pela prática do crime de ofensa à integridade física.

3. Admitida a fase de instrução, realizados os atos instrutórios, teve lugar o debate instrutório - no decurso do qual, ao abrigo do disposto no artigo 358.º, n.º 1, do CPP, foi comunicada à arguida a seguinte alteração dos factos constantes do requerimento de abertura de instrução: “1. No dia 23 de abril de 2019, por volta das 13h00m, no interior da residência de A., na cidade de (…), na sequência de uma discussão, a arguida L. desferiu com as mãos várias bofetadas que atingiram a face da assistente V.” – e, após, proferido despacho de pronúncia contra a arguida L., imputando-lhe a prática, em autoria material, e na forma consumada, de um crime de ofensa à integridade física, p. e p. pelo artigo 143.º, n.º 1, do Código Penal.

4. Inconformada com a decisão instrutória de pronúncia, recorreu a arguida L., formulando as seguintes conclusões:

1.º O presente recurso impugna a decisão proferida de alteração dos factos constantes do requerimento de abertura de instrução da Assistente V. (ata com a ref. n.º 28265096) e da douta decisão instrutória de pronúncia da ora Recorrente L. pelo crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo artigo 143.º, n.º 1 do C.P., que tinha sido objeto de douto despacho de arquivamento pelo Ministério Público.

2.º As doutas decisões recorridas enfermam dos vícios de violação de lei, mormente, por incorreta interpretação e aplicação do disposto nos artigos 283.º, n.º 3, al. b), 287.º, n.º 2, 303.º, 358.º, n.º 1 e 359.º todos do Código de Processo Penal (doravante CPP), artigos 118.º, n.º 1, al. c), 121.º, n.º 3 e 143.º, n.º 1, todos do Código Penal (doravante designado de CP), e 32.º da Constituição da República Portuguesa, enfermando do vício de nulidade, previsto no artigo 379.º, n.º 1, alínea b) do CPP.

3.º E de inconstitucionalidade, por violação do direito de defesa da Arguida Recorrente, previsto no artigo 32.º da CRP, inconstitucionalidade que se invoca para e com todos os efeitos legais.

4.º Pois que, uma correta interpretação e aplicação destes dispositivos legais impunham decisão diversa, ou seja, de não alteração da factualidade constante do requerimento de abertura de instrução da Assistente V. e de decisão de não pronúncia da Arguida L., ora Recorrente.

5.º Do ponto 1 do requerimento acusatório da Assistente V., consta que os factos pelos quais acusa a Arguida reportam-se: “No dia 23 de abril de 2010, por volta das 13h00m, no interior da residência A., cidade da (…)”.

6.º Porém, no dia 24 de fevereiro de 2021, foi comunicado, à ora Arguida Recorrente, pelo douto Tribunal a quo, alteração do ano constante do ponto 1 requerimento de abertura de instrução da Assistente V., de 23 de abril de 2010, para o ano de 23 de abril de 2019.

7.º Impunha-se à Assistente Recorrida no seu requerimento de Instrução narrar os factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido, com a indicação dos elementos constantes do artigo 283.º, n.º 3, al. b) do CPP, mormente com a indicação da data da ocorrência dos factos, vinculando esta narração o douto Tribunal.

8.º A Arguida Recorrente face ao requerimento acusatório da Assistente Recorrida, beneficiava do instituto da prescrição previsto nos artigos 118.º, n.º 1, al. c) e 121.º, n.º 3 ambos do Código Penal – ou seja, entre a data da prática dos factos descritos no requerimento de instrução – mormente do requerimento acusatório da Assistente – 23 de abril de 2010, estariam prescritos, quanto ao crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo artigo 143.º do C. Penal (punido com pena de prisão até 03 anos ou com pena de multa), diz respeito, uma vez que se encontravam já decorridos mais de 7 anos e 06 meses, prazo máximo de prescrição.

9.º Prescrição que se invoca para e com todos os efeitos legais, pois que, a Arguida Recorrente não abdica de exercer a defesa de prescrição dos factos descritos e imputados no requerimento acusatório formulado pela Assistente Recorrida.

10.º O douto Tribunal a quo ao fazer no douto despacho recorrido, alteração do ano constante do ponto 1 requerimento de abertura de instrução da Assistente V., de 2010, para o ano de 2019, limitou os direitos de defesa da Arguida, mormente de poder arguir e beneficiar da declaração de prescrição do procedimento criminal, nos termos dos artigos 118.º, n.º 1, al. c) e 121.º, n.º 3 ambos do Código Penal, enfermando assim de inconstitucionalidade, por violação do artigo 32.º da CRP que se invoca para e com todos os efeitos legais.

11.º Salvo o devido respeito e douto entendimento, o douto Tribunal estava vinculado à factualidade constante do requerimento acusatório formulado pela Assistente Recorrida – cf. Acórdão da Relação de Guimarães de 02-11-2015, Acórdão do STJ de 13-01-2011 in www.dgsi.pt.

12º Vigora no processo penal o princípio da vinculação temática, ou seja, a subordinação do juiz de instrução ao objeto pelo requerimento pelo requerimento acusatório da Assistente Recorrida – a demarcação do thema probandum por objeto, e também os limites da decisão, thema decidendum, estava o douto Tribunal a quo vinculado à descrição factual constante do requerimento acusatório da Assistente Recorrida, mormente quanto ao ano da ocorrência dos factos, indicado pela Assistente como 2010.

13.º Quanto à factualidade que não consta do requerimento acusatório formulado pelo Assistente na sua abertura de instrução, o despacho de arquivamento tornou-se definitivo.

14.º Assim, identificado/indicação pela Assistente da data, mormente do ano, da prática dos factos, fica fixado o lapso temporal pelo qual se pretende que o/a arguido/a responda criminalmente, qualquer alteração, a esta factualidade, mormente ao ano, configura uma alteração substancial dos factos, 359.º do CPP, não sendo admissível atenta a oposição expressa da Arguida a tal alteração.

15.º Atente-se à redação do artigo 303.º, n.º 3 do CPP, que estatui “uma alteração substancial dos factos descritos na acusação ou no requerimento para abertura de instrução não pode ser tomada em conta pelo tribunal para efeitos de pronúncia no processo em curso, nem implica a extinção da instância.”

16.º Assim, deve ser o douto despacho recorrido quanto à alteração dos factos descritos no requerimento de abertura de instrução – alteração da data indicada da ocorrência dos factos, do ano de 2010, para o ano de 2019 – (ata com a ref. 28265096), ser revogado e substituído por outro que não altere a factualidade descrita no requerimento acusatório da Assistente formulado no requerimento de abertura de instrução, e consequentemente, seja a Arguida Recorrente não pronunciada, com as legais consequências.

(…).

Termos em que e sempre com o mui douto suprimento de V. EXAS., deve ser dado provimento ao recurso, julgando-o procedente por procedente e revogada as doutas decisões recorridas nos termos supra expostos, mormente, o despacho que oficiosamente alterou a data da prática dos factos constantes do requerimento de abertura de instrução e o douto Despacho de Pronuncia recorridos nos precisos termos supra requeridos, pois desta forma far-se-á a costumada justiça.

5. Foi proferido despacho de admissão do recurso.

6. Em resposta ao recurso o Ministério Público concluiu:

1. A alteração realizada pelo Meritíssimo Juiz de Instrução Criminal não consubstancia uma alteração substancial dos factos, pois que se trata de um manifesto lapso de escrita constante do requerimento de abertura de instrução.

(…).

Vossas Excelências, porém, melhor decidirão conforme for de justiça!

7. O Senhor Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, contrariando a invocada alteração substancial dos factos (…).

8. Cumprido o disposto no n.º 2 do artigo 417.º do CPP, nenhum dos sujeitos processuais interessados reagiu.

9. Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos foram os autos à conferência, cabendo, pois, decidir.

II. Fundamentação

2. Delimitação do objeto do recurso

Tendo presente as conclusões, pelas quais se delimita o objeto do recurso, sem prejuízo do conhecimento de eventuais questões de natureza oficiosa, no presente caso cabe apreciar se (i) Ocorre a alteração substancial dos factos descritos no requerimento para abertura da instrução; (ii) não podia o tribunal a quo, sem incorrer em violação dos princípios da presunção de inocência e/ou do in dubio pro reo, ter concluído pela verificação de indícios suficientes da prática pela arguida/recorrente do crime que lhe foi imputado no RAI apresentado pela assistente/recorrida.

2. A decisão recorrida

Ficou a constar do despacho em crise [transcrição parcial]:

(…).

V. DECISÃO

Em face do supra exposto, e nos termos do disposto nos arts. 307.º e 308.º do C.P.P., o Tribunal decide:

1. Pronunciar para julgamento, em processo comum e perante Tribunal Singular, a arguida L. pelos seguintes factos:

a) No dia 23 de abril de 2019, por volta das 13h00m, no interior da residência de A., na cidade da (…), na sequência de uma discussão, a arguida L. desferiu com as mãos várias bofetadas que atingiram a face da assistente V..

b) Em consequência, direta e necessária, do comportamento da arguida L. sofreu a assistente V. dores na face.

c) Ao agir da forma descrita, atuou a arguida L. com o propósito concretizado de atingir a saúde e o corpo da assistente V., muito embora soubesse que ao agir daquela forma atuava contra a sua vontade.

d) Agiu arguida L. de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta é proibida e punida por lei, os quais consubstanciam a prática, em autoria material e na forma consumada, de 1 (um) crime de ofensa à integridade física simples, previsto e punido pelo art. 143.º, n.º 1 do C.P.

(…)

3. Apreciação

§1. Da alteração substancial dos factos

Insurge-se a recorrente contra a decisão instrutória enquanto, na sua perspetiva, teria procedido à alteração substancial dos factos descritos no requerimento para abertura da instrução apresentado pela assistente. Com efeito, pese embora, não deixe igualmente de se manifestar contra o despacho (exarado em ata) que lhe comunicou uma alteração não substancial dos factos (artigo 358.º do CPP), o certo é que, o seu caráter meramente provisório e transitório, o torna, de per se, irrecorrível. Na verdade, uma tal comunicação, justificada pela necessidade de conciliar o correto “acontecer” dos factos ou o seu correto enquadramento jurídico-criminal com o respeito pelas garantias de defesa, de modo a propiciar o exercício do contraditório, consubstancia sempre uma declaração de intenções que pode, ou não, vir a concretizar-se, consoante os casos, na pronúncia ou na sentença e, logo, por si, insuscetível de afetar qualquer direito do arguido carecido de tutela jurisdicional – [cf. v.g. os acórdãos do TRE de 31.05.2011 (proc. n.º 26/09.9ZRLSB.E1), TRP de 20.05.2015 (proc. n.º 266/11.0TAVFR.P1), 07.02.2018 (proc. n.º 137/14.9IDAVR-A.P1), do TRL de 07.09.2010 (proc. n.º 1511/04.PBSXL.L1-5)].

Isto dito, vejamos se assiste razão à recorrente.

(…).

§2. Da ausência de indícios suficientes

(…).

III. Dispositivo

Termos em que acordam os juízes que compõem este tribunal em julgar improcedente o recurso.

Custas, com taxa de justiça que se fixa em 3 (três) UCs, a cargo da recorrente [cf. artigos 513.º e 514.º do CPP; artigo 8.º do RCP, com referência à Tabela III].

Texto processado e revisto pela relatora.

Coimbra, 24 de Novembro de 2021

Maria José Nogueira (relatora)

Frederico Cebola (adjunto)