Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
60/16.2GCSCD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: VASQUES OSÓRIO
Descritores: DOLO
ERRO SOBRE O FACTO TÍPICO
ERRO SOBRE A ILICITUDE
Data do Acordão: 11/08/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VISEU (JC GENÉRICA DE SANTA COMBA DÃO)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS.13.º, 16.º E 17.º DO CP
Sumário: I - O dolo consiste no conhecimento e vontade de praticar o facto com consciência da sua censurabilidade.

II- O que distingue o erro sobre o facto típico, previsto na primeira parte do nº 1 do art. 16º do erro sobre a ilicitude, previsto no art. 17º, é o respectivo objecto.

O primeiro tem por objecto os mala prohibita, os crimes cuja ilicitude não se presume conhecida de todos os cidadãos, nem lhes é de exigir tal conhecimento.

O segundo tem por objecto os mala in se, os crimes cuja ilicitude se presume conhecida de todos os cidadãos, sendo-lhes exigível tal conhecimento.

III - O dolo é sempre um facto da vida interior do agente, um facto subjectivo, não directamente apreensível por terceiro. A sua demonstração probatória, sobretudo, quando não existe confissão, não pode ser feita directamente, designadamente, através de prova testemunhal.

IV - Nestes casos, a prova do dolo tem que ser feita por inferência, terá que resultar da conjugação da prova de factos objectivos – particularmente, dos que integram o tipo objectivo de ilícito – com as regras de normalidade e da experiência comum [onde a premissa maior é composta pela ou pelas regras da experiência comum convocadas e a premissa menor é composta pelo facto ou pelos factos objectivos provados].

V - Não basta a simples afirmação, pelo recorrente, de que desconhecia a ilicitude da sua conduta, ainda que “justificada” pela alegada necessidade de autodefesa [justificação aplicável à detenção de qualquer arma, incluindo, arma de guerra] para afastar a referida presunção de conhecimento da punibilidade.

Decisão Texto Integral:







Acordam, em conferência, na 4ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra

 

I. RELATÓRIO

            No Tribunal Judicial da Comarca de Viseu – Juízo de Competência Genérica de santa Comba Dão – Juiz 1, o Ministério Público requereu o julgamento, em processo comum, com intervenção do tribunal singular, do arguido A... , com os demais sinais nos autos, imputando-lhe a prática de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelos arts. 3º, nº 2, g) e 86º, nº 1, d) da Lei nº 5/2006, de 23 de Fevereiro.

 

            Por sentença de 27 de Março de 2017 foi o arguido condenado, pela prática do imputado crime, na pena de cento e sessenta dias de multa à taxa diária de € 7, perfazendo a multa global de € 1.120. 


*

Inconformado com a decisão, recorreu o arguido, formulando no termo da motivação as seguintes conclusões:

1º Pela Douta Sentença ora recorrida o arguido foi condenado pela prática de um crime de detenção de arma proibida previsto e punido pelo artº 86 nº 1 al. d) da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, por referencia ao artº 3° n.º 2 alínea g), na pena de 160 dias de multa, à taxa diária de 7 €, o que perfaz a multa global de 1.120,00 €.

2º O arguido confessou todos os factos constantes da Douta Acusação Pública, à excepção do Ponto 4 da mesma, onde se refere que o arguido conhecia as caraterísticas de tal instrumento e sabia que lhe estava vedada por lei penal a sua detenção, tendo agido de forma livre, voluntária e consciente.

3º Isto é, o arguido confessou que detinha no interior do seu veículo automóvel um "pau de madeira", de construção artesanal, por si fabricado, com as dimensões e características descritas na acusação.

4º Destinado, não a agressão mas à sua defesa.

5º Uma vez que o arguido foi alvo de um assalto à sua residência no passado mês de Setembro de 2015.

6º E desde essa data, que vem sendo ameaçando pelo assaltante, afirmando este perante todos " … que o mata …" e " … que sabe onde os seus filhos andam na escola …"

7º Ora tais ameaças constantes e reiteradas levou a que o arguido construísse tal objeto artesanal para sua defesa e da sua família.

8º Longe de imaginar que tal objecto artesanal pudesse configurar a prática de crime.

9º Erro sobre a ilicitude que o arguido vincou por diversas vezes quer perante as perguntas do Sr. Procurador quer da Sr.ª Juiz.

10º Da análise da vertente subjetiva do tipo, traduzida no dolo ou negligência do agente resulta o preenchimento dos elementos do tipo objectivo?

11º Isto é, terá o arguido, conhecido ou representado correctamente os factos da acusação e consciência plena das circunstâncias de facto e do seu preenchimento ou adequação ao tipo ilícito objetivo? 

12º A resposta terá de ser negativa.

13º A conduta do agente enquadra-se no n.º 1 do art.º 17 do Código Penal, excluindo assim o dolo, em virtude da ausência de culpa do agente.

14º Pois esta representação factual por parte do arguido, como este referiu desde a primeira hora, carece de consciência da ilicitude da sua conduta.

15º Devendo, pois, ser totalmente absolvido do crime de que vem acusado.

TERMOS EM QUE com o douto suprimento de Vossas Ex.as deve o presente recurso ser julgado totalmente procedente, devendo ser proferida decisão que revogue a Douta Sentença recorrida e decidir-se pela absolvição do arguido da prática do crime de detenção de arma proibida em que foi condenado, com o que será feita JUSTIÇA!


*

            Respondeu ao recurso o Digno Magistrado do Ministério Público, alegando que no decurso da audiência o arguido evitou qualificar o objecto que construiu como «bastão», referindo-se ao mesmo como «pau» o que revela que reconhece desvalor ético-jurídico na construção e detenção de um instrumento de defesa/agressão, pelo que esteve sempre ciente do dever de dele se desfazer, o que afasta a existência de erro sobre a ilicitude, e concluiu pela improcedência do recurso.

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Na vista a que se refere o art. 416º, nº 1 do C. Processo Penal, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, afirmando a inexistência de nulidades da sentença, a inexistência de vícios decisórios, a correcta valoração probatória feita na sentença, a plena observância do pro reo, acompanhando a resposta do Ministério Público quanto às demais questões suscitadas e concluiu pela improcedência do recurso.

Foi cumprido o art. 417º, nº 2 do C. Processo Penal.


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Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre decidir.

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II. FUNDAMENTAÇÃO

            Dispõe o art. 412º, nº 1 do C. Processo Penal que, a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido. As conclusões constituem pois, o limite do objecto do recurso, delas se devendo extrair as questões a decidir em cada caso.

Assim, atentas as conclusões formuladas pelo recorrente, a questão a decidir, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, é a de saber se o arguido e ora recorrente actuou, em erro sobre a ilicitude e, em caso afirmativo, suas consequências.


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            Para a resolução destas questões, importa ter presente o que de relevante consta da sentença recorrida. Assim:

            A) Nela foram considerados provados os seguintes factos:

            “ (…).

            1. No dia 24 de Março de 2016, pelas 22 horas, na EN 234, em Carregal do Sal, junto da sociedade comercial C..., o arguido detinha, na porta do condutor do veículo automóvel com a matrícula (...) , um bastão em madeira, de construção artesanal e por si fabricado, com o comprimento de 43 centímetros e o diâmetro de 3 centímetros e ostentando, numa das extremidades, uma cobertura em borracha, com 17 centímetros e um cordão em forma de argola destinada a envolver o pulso.

2. Tal veículo é habitualmente utilizado pelo arguido, sendo que, nas circunstâncias aludidas em 1., o veículo era utilizado por B... , filho do arguido.

3. O arguido construiu e detinha tal bastão para o utilizar como instrumento de defesa/agressão.

4. O arguido conhecia as características de tal instrumento e sabia que a sua detenção lhe estava vedada por lei penal.

5. Agiu, em tudo, livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era punida e proibida por lei.

6. O arguido é electromecânico, trabalha por conta própria e aufere mensalmente, em média, 800 € a 1000 €.

7. O arguido é casado, tem dois filhos, com 15 e 19 anos de idade, ambos a estudar.

8. Reside, em casa arrendada, pagando 225 € de renda, com os seus filhos e a sua esposa, que explora um restaurante, no (...) , há cerca de três meses.

9. Tem o 9.º ano de escolaridade.

10. Do seu certificado de registo criminal nada consta.

            (…)”.

            B) Inexistem factos não provados e dela consta a seguinte motivação de facto:

“ (…).

            A convicção do tribunal da matéria de facto dada como provada funda-se no conjunto da prova produzida em audiência, devidamente conjugada e ponderada de acordo com as regras da experiência comum.

            O arguido prestou declarações, nas quais confirmou as circunstâncias de tempo e lugar, admitindo a construção e detenção do bastão em causa na porta do condutor do seu veículo, justificando a construção de tal objecto pelo facto de se pretender defender de um indivíduo que, em Setembro de 2015, tentava furtar a sua residência, tendo sido por si apanhado e entregue às autoridades, sendo que, desde então, esse indivíduo, que era já seu conhecido, o vem ameaçando, a si e à sua família, confirmando ainda que o objecto em causa é o constante das fotografias de fls. 6 e 7, negando, contudo, que soubesse que não podia deter tal objecto e desconhecer que o mesmo era considerado uma arma proibida.

            Na parte em que admitiu a factualidade respectiva, tal admissão levou a que se considerassem os respectivos factos como provados.

            Já quanto ao demais constante da sua versão, a mesma não merece credibilidade.

            Vejamos.

            Em primeiro lugar, olhando para o objecto em causa constante das fotografias de fls. 6 e 7, vemos que o mesmo só pode ser considerado um bastão, pela sua similitude com objectos da mesma tipologia, tamanho e dimensão.

            Em segundo lugar, o próprio arguido admitiu que construiu tal objecto para se defender de um terceiro, pelo que se conclui que estaria disposto a usá-lo contra este, se necessário.

            Em terceiro lugar, o facto de o mesmo ser dotado de um cordão, em forma de argola, numa das suas extremidades, que permite que, em caso de defesa/agressão, o mesmo não fuja do pulso com facilidade.

            Em quarto lugar, temos que o arguido, nas suas declarações, qualificou o objecto em causa como pau, pretendendo, assim, evitar designá-lo pelo que efectivamente aquele objecto é – um bastão; ora, tal designação surge como esforçada e não natural, tendo em conta o objecto de que estamos a falar.

            Tal esforço de designar aquele objecto de outra forma e não atribuir-lhe a designação própria, afigura-se-nos indiciador de que o arguido tem pleno conhecimento que não pode deter um objecto com aquelas características.

            Por último, lançando mão das regras da experiência comum e do normal acontecer, tendo em conta a idade do arguido, que conta com 46 anos de idade, é comerciante em nome próprio e também auxilia a esposa no seu restaurante, bem como as finalidades de tal objecto, não vemos como pudesse o mesmo não saber que não podia deter um objecto com as características do que lhe foi apreendido.

            Diga-se ainda que o arguido, quando questionado, referiu que a utilização ou uso do objecto em causa era para se defender, sendo certo que, em caso de defesa, sempre ponderaria a sua utilização como arma para repelir alguma agressão, afirmando, nas suas declarações, que o usaria para agredir (ainda que apenas se referisse ao terceiro que identificou), em caso de necessidade.           

            As condições pessoais do arguido foram pelo próprio relatadas, de forma que logrou convencer o tribunal, dado que inexistem elementos nos autos que as contrariem.

            Para a prova da ausência de antecedentes criminais do arguido serviu o certificado de registo criminal junto a fls. 103.          

            (…)”.



            Da existência de erro sobre a ilicitude e suas consequências

            1. Alega o arguido – conclusões 3 a 15 – que, tendo confessado a construção artesanal e subsequente detenção de um pau de madeira destinado a assegurar a sua defesa e não, a agredir, face às ameaças de que vem sendo alvo por parte de um assaltante da sua residência, sempre esteve longe de admitir que a sua conduta pudesse configurar a prática de um crime, tendo actuado em erro sobre a ilicitude, que várias vezes afirmou nas declarações prestadas na audiência de julgamento, erro que exclui o dolo e impõe a sua absolvição. 

            Oposta é a posição do Ministério Público para quem a conduta do recorrente não revela que tenha actuado em erro sobre a ilicitude e, ainda que se não entendesse, sempre o erro lhe seria censurável.

            Vejamos a quem assiste razão.

            O recorrente entende que actuou com desconhecimento da ilicitude penal da sua conduta pelo que, verificando-se um erro sobre a ilicitude, nos termos do disposto no art. 17º, nº 1 do C. Penal, actuou sem culpa, o que exclui o dolo.

            A questão que tem por objecto a verificação do dolo e do erro sobre a ilicitude é, primeiro que tudo, uma questão de facto pelo que, ainda que tal não seja expressamente afirmado no recurso, deve entender-se ser propósito do recorrente impugnar a matéria de facto no que a esta questão, respeita.

2. Na lei processual penal o recurso da matéria de facto foi concebido como um remédio para sanar o que a lei tem por excepcional no julgamento feito pela 1ª instância, o erro na definição do facto, não tendo sido, nem podendo ser perspectivado como um novo julgamento, como se o efectuado pelo tribunal a quo não tivesse acontecido. Por isso, a lei impõe ao recorrente, e apenas a este, a identificação precisa do erro [ou erros] que pretende corrigir pela via do recurso e a sua demonstração.

A modificação da decisão da 1.ª instância sobre a matéria de facto só pode ocorrer, como preceitua o art. 431.º do C. Processo Penal, sem prejuízo do disposto no art. 410º do mesmo código, a) se do processo constarem todos os elementos de prova que lhe serviram de base, b) se a prova tiver sido impugnada nos termos do nº 3 do artigo 412º, ou c) se tiver havido renovação da prova.

Adiantando-se, desde já, que na sentença recorrida não se evidencia a presença de qualquer dos vícios decisórios, previstos no nº 2 do art. 410º do C. Processo Penal, temos que, in casu, a modificabilidade da matéria de facto fixada na sentença não pode ter lugar ao abrigo da situação prevista em a), posto que a mesma se não verifica, já que o recorrente lançou mão de prova por declarações prestada na audiência de julgamento cujos precisos termos não constam, obviamente, do processo, nem pode ter lugar ao abrigo da situação prevista em c), pois não houve renovação da prova [até porque, como se disse, a sentença não enferma de vícios decisórios e da sua existência depende, nos termos do disposto no art. 430º, nº 1 do C. Processo Penal, tal renovação], restando a possibilidade de a modificação poder ocorrer suportada pela situação prevista na alínea b) que designaremos por impugnação ampla da matéria de facto.

Já vimos que compete exclusivamente ao recorrente a fixação do objecto e limites do recurso. Para tanto, a lei – art. 412º, nº 3 do C. Processo Penal – sujeita-o à observância do ónus de uma tripla especificação: a especificação dos concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; a especificação das concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida e; a especificação das provas que devem ser renovadas [esta, nos termos do art. 430º, nº 1 do C. Processo Penal, apenas quando se verificarem os vícios da sentença e existam razões para crer que a renovação permitirá evitar o reenvio]. A este ónus acresce uma outra exigência legal quando as concretas provas especificadas sejam prova por declarações gravadas. Quando tal sucede, as duas últimas especificações devem ser feitas por referência ao consignado na acta da audiência de julgamento, com a concreta indicação das passagens em que o recorrente funda a impugnação.

Em termos formais, todas estas especificações devem constar ou poder ser deduzidas das conclusões apresentadas no recurso (cfr. art. 417º, nº 3 do C. Processo Penal).

Mas para a procedência da impugnação e, portanto, para a modificação da decisão de facto, não basta que as provas especificadas pelo recorrente permitam uma decisão diversa da proferida pelo tribunal, não basta contrapor à convicção do juiz outra convicção diversa. É que o tribunal decide, ressalvados os casos de prova tarifada, de acordo com as regras da experiência e a livre convicção [o que, não raras vezes, é ignorado pelos recorrentes], sendo por isso necessário que as provas especificadas, na observância do referido ónus, imponham decisão diversa da recorrida isto é, é necessária a demonstração de que a convicção expressa na motivação de facto da sentença quanto aos pontos de facto impugnados, é impossível e/ou desrazoável. E, como não podia deixar de ser, a demonstração desta imposição de decisão diversa, recaí também sobre o recorrente que, para tanto, deve relacionar o conteúdo específico de cada meio de prova que impõe decisão diversa da recorrida com o facto individualizado que considera incorrectamente julgado (Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, 2007, Universidade Católica Editora, pág. 1135).

Pois bem.

Nem nas conclusões formuladas na motivação do recurso interposto, nem no corpo desta, o recorrente individualizou um qualquer ponto de facto provado [não existem factos não provados] da sentença que considere incorrectamente julgado. Não obstante, do teor das conclusões, em particular, da conclusão 2, onde refere que confessou todos os factos da acusação com excepção da matéria do seu artigo 4, resulta que o recorrente considera incorrectamente julgados os pontos 4 e 5 dos factos provados da sentença [porque correspondentes àquele artigo 4] ainda que, aparentemente, não em toda a sua extensão, mas apenas, quanto ao primeiro, no segmento «(…) sabia que a sua detenção lhe estava vedada por lei penal» e, quanto ao segundo, no segmento «(…) sabendo que a sua conduta era punida e proibida por lei» segmentos que, na realidade, dizem a mesma coisa, referindo-se à consciência da ilicitude do agente na prática do facto.

Também, nem nas conclusões formuladas, nem no corpo da motivação do recurso interposto, o recorrente precisou a concreta prova ou as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida, embora resulte do por si alegado – quer no corpo da motivação, quer nas conclusões que, praticamente, se limitam a repeti-lo – que suporta a sua divergência quanto à decisão proferida sobre a matéria de facto – pontos 4 e 5 dos factos provados – nas suas próprias declarações.

Finalmente, o recorrente, nem no corpo da motivação, nem nas conclusões que apresentou, indicou as concretas passagens das suas declarações, em que funda a impugnação deduzida.

De tudo isto resulta que o recorrente não cumpriu, de forma minimamente aceitável o ónus de especificação viabilizador do conhecimento da impugnação ampla da matéria de facto deduzida. Ainda assim, a Relação ouviu o registo gravado das declarações feitas pelo recorrente na audiência de julgamento pelo que, sempre se dirá o que segue.

3. Começamos por notar que, como se dispõe no art. 13º do C. Penal, só é punível o facto praticado com dolo ou, nos casos especialmente previstos na lei, com negligência. O erro intelectual ou de percepção ou seja, a incorrecta ou errada percepção ou representação da realidade erro [distinto do erro de execução, da aberratio ictus], releva ao nível do dolo, e apresenta duas modalidades, o erro-ignorância, quando o agente desconhece o que existe, e o erro-suposição, quando o agente supõe o que não existe.

            O dolo consiste no conhecimento e vontade de praticar o facto com consciência da sua censurabilidade. Para afirmar a sua existência não é necessária uma consciência reflexiva, bastando uma consciência marginal e liminar isto é, a consciência ou saber de situação (cfr. José António Veloso, Erro em Direito Penal, 1993, AAFDL, pág. 7 e ss.).

3.1. No C. Penal, a matéria do erro intelectual encontra-se tratada nos seus arts. 16º e 17º.

O erro-ignorância sobre o facto típico é regulado na primeira parte do nº 1 do art. 16º segundo a qual, o erro sobre elementos de facto ou de direito de um tipo de crime (…), exclui o dolo.

O erro-ignorância sobre a ilicitude ou punibilidade é regulado na segunda parte do nº 1 do art. 16º segundo a qual, o erro (…) sobre proibições cujo conhecimento for razoavelmente indispensável para que o agente possa tomar consciência da ilicitude do facto, exclui o dolo. E é também regulado no art. 17º, com a epígrafe «Erro sobre a ilicitude», nos termos seguintes:

1 – Age sem culpa quem actuar sem consciência da ilicitude do facto, se o erro lhe não for censurável.

2 – Se o erro lhe for censurável, o agente é punido com a pena aplicável ao crime doloso respectivo, a qual pode ser especialmente atenuada.

O que distingue o erro sobre o facto típico, previsto na primeira parte do nº 1 do art. 16º do erro sobre a ilicitude, previsto no art. 17º, é o respectivo objecto. O primeiro tem por objecto os mala prohibita, os crimes cuja ilicitude não se presume conhecida de todos os cidadãos, nem lhes é de exigir tal conhecimento. O segundo tem por objecto os mala in se, os crimes cuja ilicitude se presume conhecida de todos os cidadãos, sendo-lhes exigível tal conhecimento.

No que às respectivas consequências respeita, o primeiro exclui o dolo, o segundo exclui a culpa, se não for censurável.

3.2. Em qualquer caso, o dolo é sempre um facto da vida interior do agente, um facto subjectivo, não directamente apreensível por terceiro. Por assim ser, a sua demonstração probatória, sobretudo, quando não existe confissão, não pode ser feita directamente, designadamente, através de prova testemunhal. Nestes casos, a prova do dolo tem que ser feita por inferência, terá que resultar da conjugação da prova de factos objectivos – particularmente, dos que integram o tipo objectivo de ilícito – com as regras de normalidade e da experiência comum [onde a premissa maior é composta pela ou pelas regras da experiência comum convocadas e a premissa menor é composta pelo facto ou pelos factos objectivos provados].

O recorrente nega ter confessado a consciência do carácter ilícito da sua conduta, e dessa negação dá também conta a Mma. Juíza a quo na motivação de facto da sentença em crise quando menciona, referindo-se ao arguido «(…) negando, contudo, que soubesse que não podia deter tal objecto e desconhecer que o mesmo era considerado uma arma proibida». No entanto, o meio de prova especificado, digamos assim, pelo recorrente, é precisamente, o meio de prova que a Mma. Juíza a quo relevou para proferir a decisão de facto, as declarações do arguido, credibilizando-as quanto à fabricação e detenção do objecto apreendido e desconsiderando-as, quanto à falta de consciência do carácter ilícito da conduta.   

A Relação ouviu o registo gravado das declarações prestadas pelo recorrente na audiência de julgamento, dele resultando ter sido dito, em síntese e na parte em que agora releva:

[A perguntas da Mma. Juíza presidente]

- O pau que fez não estava na bagageira mas na porta do carro, do lado do condutor, foi aí que a GNR o encontrou; quando o fez não tinha ideia de que estava a praticar um crime; tempos antes encontrou um assaltante em sua casa que o tem vindo a ameaçar; o assaltante já foi a julgamento e mesmo depois disso continua com ameaças e danifica o seu carro; fez o pau para se precaver porque ele é muito grande e violento; nunca utilizou o pau, estava longe de ter consciência de que cometia um crime; fez o pau para se defender e ao seu filho; caçou um ladrão dentro de casa que, por azar, era conhecido, era filho de uma funcionária sua que teve de despedir, não ataca ninguém, mas se fosse preciso defender-se desse criminoso que, com toda a certeza, o utilizaria.

No ponto 1 dos factos provados, o objecto apreendido é descrito como um bastão em madeira, de construção artesanal, com o comprimento de 43 cm e o diâmetro de 3 cm, ostentando numa das extremidades uma cobertura em borracha, com 17 cm, e um cordão em forma de argola, destinado a envolver o pulso.

Se esta descrição já era elucidativa quanto à natureza do objecto apreendido, a sua visualização, através do documento fotográfico de fls. 17, esclarece ainda que a referida cobertura em borracha, com 17 cm, mais não é do que uma mãozeira, para facilitar o seu manuseamento e proteger a palma da mão do utilizador, e que o referido cordão em forma de argola, visa, sobretudo, impedir que o utilizador do objecto o deixe cair, designadamente, na sequência de um impacto provocado durante o seu uso.

Trata-se, portanto, de um bastão em madeira, de um bordão, cuja única utilização, pela suas dimensões e demais características, só pode ser a de servir como arma ofensiva e/ou defensiva. E este preciso fim admitiu o próprio recorrente, ao afirmar que o construiu para se defender, por se sentir ameaçado por um terceiro.

A Lei nº 5/2006, de 23 de Fevereiro, que aprovou o Regime Jurídico das Armas e Munições [doravante, RJAM], com última redacção dada pela Lei nº 50/2013, de 24 de Julho, não inclui nas definições legais dos tipos de armas, previstas no seu art. 2º, o bastão, limitando-se a definir, nas alíneas am) e an) do seu nº 1, o bastão eléctrico, e o bastão extensível.

O art. 3º, nº 2, g) do RJAM classifica como armas da classe A, quaisquer engenhos ou instrumentos construídos exclusivamente com o fim de serem utilizados como arma de agressão [enquanto a alínea i) do mesmo número classifica como armas da classe A, os bastões eléctricos ou extensíveis, de uso exclusivo das Forças Armadas ou forças e serviços de segurança]. 

Já o art. 86º do RJAM, que tipifica o crime de detenção de arma proibida, dispõe, na parte em que agora releva:

1 – Quem, sem se encontrar autorizado, fora das condições legais ou em contrário das prescrições da autoridade competente, detiver, transportar, importar, transferir, guardar, comprar, adquirir a qualquer título ou por qualquer meio ou obtiver por fabrico, transformação, importação, transferência ou exportação, usar ou trouxer consigo:

(…);

d) Arma da classe E, arma branca dissimulada sob a forma de outro objecto, faca de abertura automática, estilete, faca de borboleta, faca de arremesso, estrela de lançar, boxers, outras armas brancas ou engenhos ou instrumentos sem aplicação definida que possam ser usados como arma de agressão e o seu portador não justifique a sua posse, aerossóis de defesa não constantes da alínea a) do n.º 7 do artigo 3.º, armas lançadoras de gases, bastão, bastão extensível, bastão eléctrico, armas eléctricas não constantes da alínea b) do n.º 7 do artigo 3.º, quaisquer engenhos ou instrumentos construídos exclusivamente com o fim de serem utilizados como arma de agressão, silenciador, partes essenciais da arma de fogo, artigos de pirotecnia, excepto os fogos-de-artifício de categoria 1, bem como munições de armas de fogo independentemente do tipo de projéctil utilizado, é punido com pena de prisão até 4 anos ou com pena de multa até 480 dias.  

(…).

Vale isto dizer que a detenção de um bastão, per se, isto é, independentemente de este objecto poder ser qualificado como instrumento sem aplicação definida que possa ser usado como arma de agressão não justificando o portador a sua posse, ou como instrumento construído exclusivamente com o fim de ser utilizado como arma de agressão, preenche o tipo objectivo do crime de detenção de arma proibida.

A circunstância de este crime ter deixado de estar previsto no C. Penal [art. 275º, até à entrada em vigor do RJAM] não lhe retira a qualidade de mala in se, de ‘crime em si’, presumindo-se portanto, de todos conhecida a sua punibilidade.

O recorrente, como se retira dos pontos 6, 8 e 9 dos factos provados, é um cidadão normalmente socializado que, se não tem os conhecimentos técnicos de um jurista, tem por certo a noção, que é comum, de que é interdita a todo e qualquer cidadão a detenção de determinados objectos, em função da perigosidade inerente às suas características e fim.

Assim, não basta a simples afirmação, pelo recorrente, de que desconhecia a ilicitude da sua conduta, ainda que ‘justificada’ pela alegada necessidade de autodefesa [justificação aplicável à detenção de qualquer armas, incluindo, arma de guerra] para, afastando a referida presunção de conhecimento da punibilidade, impor a modificação dos pontos 4 e 5 dos factos provados no sentido pretendido isto é, deles sendo retirados os segmentos «(…) sabia que a sua detenção lhe estava vedada por lei penal» e «(…) sabendo que a sua conduta era punida e proibida por lei», respectivamente, passando estes a constar como factos não provados.

Deste modo, tem-se por definitivamente fixada a matéria de facto, nos exactos termos em que o foi pela 1ª instância.

            4. A matéria de facto provada preenche o tipo objectivo e subjectivo do crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art. 86º, nº 1, d) do RJAM, por cuja prática foi o recorrente condenado o que, necessariamente, afasta a pretendida existência de erro sobre a ilicitude.

A pena decretada pela 1ª instância respeita os critérios legais aplicáveis (arts. 40º, 70º e 71º do C. Penal).

Improcedem, portanto, as conclusões do recurso.


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III. DECISÃO

            Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação em negar provimento ao recurso e, em consequência, confirmam a sentença recorrida.


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 Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UCS. (arts. 513º, nº 1 do C. Processo Penal e 8º, nº 9 do R. das Custas Processuais e tabela III, anexa).

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Coimbra, 8 de Novembro de 2017

(Heitor Vasques Osório – relator)

(Helena Bolieiro – adjunta)