Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
81/14.0GTCBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE FRANÇA
Descritores: SUSPENSÃO PROVISÓRIA DO PROCESSO
INJUNÇÃO
CUMPRIMENTO
ACUSAÇÃO
JULGAMENTO
EXCEPÇÃO DILATÓRIA INOMINADA
ABSOLVIÇÃO DO ARGUIDO DA INSTÂNCIA PENAL
Data do Acordão: 09/13/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA (JUÍZO LOCAL CRIMINAL DE COIMBRA – J2)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 281.º, 282.º E 383.º, N.º 4, DO CPP
Sumário: I – Antes de proferir acusação e, assim, introduzir o processo na fase de julgamento, o Ministério Público deve diligenciar cabalmente no sentido de determinar se as injunções condicionantes da suspensão provisória do processo foram (in)cumpridas.

II – Se, não obstante estarem cumpridas as injunções, o Ministério Público deduziu acusação, na fase de julgamento, esse cumprimento, consubstanciador de uma excepção dilatória inominada, determina a absolvição do arguido da instância penal.

Decisão Texto Integral:


ACORDAM NA SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA

Na Secção Criminal, da Instância Local de Coimbra, Comarca de Coimbra, no Processo Abreviado que aí correu termos sob o nº 81/14.0GTCBR, ainda na fase de inquérito - após ter entendido resultar suficientemente indiciada a prática pelo arguido de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelos artigos 292.º, n.º 1 e 69.º, n.º 1, al. a), do Código Penal - considerou o Ministério Público, mostrarem-se verificados os pressupostos enunciados nos n.ºs 1 e 2 do artigo 281.º do CPP, propondo, assim, a suspensão provisória do processo mediante a imposição de injunções, entre as quais a inibição do arguido «de conduzir veículos com motor pelo período de três meses, entregando a sua carta de condução, no prazo de dez dias, após a notificação» - [cf. fls. 13 a 26], proposta, essa, que, em toda a sua extensão, maxime quanto às injunções - mereceu a concordância do juiz de instrução criminal, conforme decorre do despacho de 19.11.2014 [cf. fls. 21].

Para cumprimento da injunção de proibição de conduzir, o arguido/recorrente entregou nos autos a sua carta de condução em 06.01.2015, a qual veio a ser levantada em 06.04.2015 [cf., respetivamente o termo de entrega e recebimento de fls. 28 a 31 e 43].

A outra injunção a que o ora arguido/recorrente foi sujeito foi “Entregar a quantia de €280,00 á Comissão de Proteção de Vitimas de Crimes, fazendo prova nos autos em 60 dias”, sendo que posteriormente por despacho proferido pela Procuradora Adjunta do Ministério Público, proferiu que poderia fazer prova até a cessão da suspensão provisória, fls 42.

Considerada que foi a inobservância da falta de comprovação nos autos - da injunção da entrega dos 280,00€ à CPVT, que lhe foi imposta, os autos prosseguiram para julgamento, sob a forma de processo especial abreviado, sendo, então, imputada ao arguido a prática do já identificado crime de condução de veículo em estado de embriaguez.

Realizada a audiência de discussão e julgamento foi proferida sentença contendo o seguinte dispositivo:

Pelo exposto, julgo procedente por provada a acusação e, consequentemente, condeno o arguido, A... , solteiro, distribuidor logístico, filho de (...) e de (...) , nascido em 28-10-1985, na freguesia de (...) , concelho de Soure, residente na (...) (...) , em Soure, pela prática, como autor material, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido pelo art.º 292º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 70 (setenta) dias de multa, à razão diária de € 8,00 (oito euros), o que perfaz o total de € 560,00 (quinhentos e sessenta euros).

Mais condeno o arguido na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor, de qualquer categoria, nos termos do art.º 69.º, n.ºs 1, al. a), e 2, do Cód. Penal, com referência ao art.º 292.º, n.º 1, do mesmo código, pelo período de 4 (quatro) meses.

Haverá que proceder ao desconto, na pena de multa, nos termos do art.º 80.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal, de 1 (um) dia de detenção.

Custas a cargo do arguido, com taxa de justiça que, ponderada a “complexidade da causa”, se fixa em 1 e ¾ UC – e que se reduzirá a ½ por força da confissão – compreendendo, ainda, os respectivos encargos (art.ºs 513.º, n.º 1, 514.º, n.º 1, do Cód. de Proc. Penal, 8.º, n.º 9, e Tabela Anexa III, do Regulamento das Custas Processuais).

Após trânsito em julgado:

a) Remeta boletim ao registo criminal;

b) Comunique à ANSR (Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária) e ao IMT, IP (Instituto da Mobilidade e dos Transportes, IP).

Proceda-se ao depósito da presente sentença.

Neste momento, foi o arguido advertido, pelo Mmo. Juiz de Direito, para entregar a sua carta de condução, no prazo de 10 (dez) dias, a contar do trânsito em julgado da presente sentença, na secretaria deste Tribunal ou em qualquer posto policial, sob pena de, não o fazendo, incorrer na prática de um crime de desobediência.

            Inconformado, o arguido interpôs o presente recurso, que motivou, concluindo nos seguintes termos:
I. Foi o arguido condenado pela prática de um crime de condução de veículos motorizados em estado de embriaguez, previsto e punido pelo artigo 292.º, n.º 1 e 69.º, n.º 1, al. a) do CP, numa pena de multa de 70 dias à taxa diária de 7,00€ e ainda na pena acessória de inibição de conduzir veículos motorizados por um período de 4 meses.
II. Os presentes autos iniciaram-se com a suspensão provisória do processo, tendo sido aplicadas ao arguido duas injunções: a sanção inibitória de conduzir veículos motorizados por um período de 3 meses e a entrega de 280,00 € à CPVC.
III. Para cumprimento da 1.ª injunção o arguido entregou aos 06/01/2015 a sua carta de condução, ou seja cumpriu na íntegra a injunção aplicada.
IV. Por não ter apresentado comprovativo de cumprimento da 2.ª injunção, os autos prosseguiram para julgamento.
V. O Tribunal a quo julgou e condenou o arguido pela prática de um crime de condução em estado de embriaguez praticado aos 17.11.2014, aplicando-lhe uma pena de multa de 70  dias, à taxa diária de 7,00 € e uma sanção acessória de inibição de conduzir por um período de quatro meses, nos termos do disposto no artigo 69º do CP.
VI. Viola o ne bis in idem (previsto no art. 29.º, n.º 5, da CRP e consagrado no art. 54.º da CAAS como princípio de preclusão e verdadeira proibição de cúmulo de acções penais) a acusação formulada pelo Ministério Público contra arguido que, tendo beneficiado da suspensão provisória do processo, cumpriu as injunções impostas e não cometeu crime da mesma natureza no prazo da suspensão do processo.
VII. O arguido cumpriu as injunções que o Estado lhe impôs no intuito de suspender o processo, pelo que a sua condenação posterior, constitui uma violação clara do artigo 29º da CRP.
VIII. No caso presente, encerrado o inquérito, e por manifesto erro de avaliação - não dos pressupostos da suspensão provisória do processo (esta foi devidamente aplicada), mas da conduta do arguido no decurso do período da suspensão -, o Ministério Público proferiu ilegalmente uma acusação, em detrimento de arquivar o inquérito.
IX. O Ministério Público não está dispensado de proceder a avaliação dos requisitos gerais de aplicação do instituto, bem como à sua concretização casuística. No caso presente, cumpriu esse poder-dever e aplicou o instituto.
X. O art. 282º, nº 3, do CPP preceitua depois que “se o arguido cumprir as injunções e regras de conduta, o Ministério Público arquiva o processo, não podendo ser reaberto”. E o nº 4 determina que o processo prossegue “se o arguido não cumprir as injunções e regras de conduta” ou “se, durante o prazo de suspensão do processo, o arguido cometer crime da mesma natureza pelo qual venha a ser condenado”.
XI. O Ministério Público, tendo aplicado a suspensão provisória do processo, proferiu acusação.
XII. Como se disse, o arguido foi indevidamente acusado (e, logo, indevidamente julgado e condenado).
XIII. Incompreensivelmente, porém, as autoridades judiciárias prosseguiram o processo e sujeitaram o arguido a um julgamento (o Ministério Público ao acusar, o juiz ao receber a acusação) em detrimento de terem procedido, como se impunha, à imediata reparação da ilegalidade cometida.
XIV. Reparação que se apresentava como imperiosa, sobretudo a partir do momento em que a ilegalidade se tornou intoleravelmente evidente, ou seja, após junção da certidão do comprovativo de pagamento e declaração da CPVC.
XV. No estudo “Incumprimento parcial dos prazos, injunções e regras de conduta fixados na suspensão provisória do processo”, em que aborda o problema do vazio legal para tratamento de casos de incumprimento parcial de prazos, injunções e regras de conduta, Conde Correia refere que na prática judiciária “a forma se sobrepõe (demasiadas vezes) ao conteúdo” (Conde Correia, loc. cit., p. 44).
Mesmo em situações de incumprimento (parcial), o autor defende que “ao consenso inicial pode ainda suceder um consenso subsequente”. Acompanhamo-lo também quando afirma que “só devemos resolver pela via conflitual aquilo que manifestamente não podemos resolver pela via consensual. Se a violação não é irremediável, nada deverá obstar à conservação do consenso possível” (Conde Correia, loc. cit. p. 50). Secundamo-lo, por fim, quando propugna que, mesmo em casos de deficiente avaliação das exigências de prevenção, “o Ministério Público deve assumir as consequências de uma decisão errada ou precipitada”. “Se não há incumprimento do arguido, o Ministério Público não pode deixar de cumprir. Neste caso, a paz jurídica do arguido sobreleva o ius puniendi estadual” (Conde Correia, loc. cit., p. 54).
XVI. No caso sub judice, o arguido não incumpriu as injunções aplicadas e não cometeu crime no decurso do prazo da suspensão provisória do processo.
XVII. Este contexto, a decisão de proferir acusação em detrimento do arquivamento do processo (art. 282º, nº 3, do CPP) afronta o princípio constitucional do non bis in idem (art. 29º, nº 5, da CRP), pois permitiu, em concreto, materialmente, a instauração de “um outro processo”.
XVIII. Ao ter acusado o arguido por crime relativamente ao qual, com a concordância do juiz de instrução, aplicara a suspensão provisória do processo não ocorrendo qualquer motivo para o prosseguimento do processo, não pode deixar de se considerar que “instaurou um processo novo”, não em sentido formal, é certo, mas em sentido material.
XIX. O Ministério Público deu assim lugar a uma “nova acção” contra o mesmo arguido, pelos mesmos factos e crime.
XX. O art. 29º, nº 5 da CRP preceitua que “ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime”, assim se impedindo que uma mesma questão seja de novo apreciada. Do ne bis in idem resulta que o mesmo facto não pode ser valorado por duas vezes, isto é, a mesma conduta ilícita não pode ser apreciada com vista à aplicação de sanção por mais do que uma vez.
XXI. No presente contexto, a sentença proferida sobre uma acusação indevidamente formulada, ao ter condenado o arguido em pena, não só manteve a violação do ne bis in idem, como afrontou o princípio constitucional da necessidade (art. 18º, nº 2, da CRP).
XXII. O princípio da necessidade, subprincípio do princípio da proibição do excesso que “proíbe que a restrição [de direitos, liberdades e garantias] vá além do que o estritamente necessário ou adequado para atingir um fim constitucionalmente legítimo”, “impõe que se recorra, para atingir esse fim, ao meio necessário, exigível ou indispensável, no sentido do meio mais suave ou menos restritivo que precise de ser utilizado para atingir o fim em vista” (Reis Novais, Os Princípios Constitucionais Estruturantes da República Portuguesa, Coimbra Ed. 2004, p. 167).
XXIII. O sistema normativo (processual-penal), que consagra e regula a suspensão provisória do processo, pressupõe que este instrumento de consenso acautela, suficientemente, a protecção dos bens jurídicos.
O que significa que as finalidades preventivas “da punição” se consideram abstractamente garantidas através da aplicação de injunções. E essas finalidades preventivas são, então, de considerar como concretamente asseguradas sempre as injunções aplicadas se mostrem cumpridas e não ocorra motivo para que o processo prossiga (ou seja, não ocorra causa que obste ao arquivamento do inquérito).
XXIV. Nestas situações, qualquer condenação posterior numa pena representaria uma violação do princípio da necessidade, consagrado no art. 18º, nº 2, da CRP. Constituição que o juiz de julgamento não pode deixar de aplicar. A sentença recorrida, ao condenar o arguido numa pena, não só manteve a violação do ne bis in idem, como afrontou o princípio constitucional da necessidade (da pena).
XXV. O despacho de recebimento da acusação, o julgamento e a sentença são, por tudo, nulos.
XXVI. Apresentam-se como constitucionalmente insustentáveis e o primeiro (o despacho de recebimento da acusação) deverá ser substituído por outro que, fazendo aplicação do ne bis in idem, rejeite a acusação do Ministério Público.
 XXVII. Sem se conceder sempre se dirá que:
 XXVIII. A injunção que foi cumprida no âmbito da suspensão provisória do processo teve em vista o mesmíssimo facto e foi cumprida da mesma forma como o seria a pena acessória, em cujo cumprimento foi condenado, ou seja, tem a mesma finalidade, a mesma justificação e o mesmo modo de execução.
XXIX.  Assim, e uma vez que o arguido cumpriu a injunção de inibição de conduzir por um período de 3 meses, seria impróprio que “alguém possa ser obrigado a cumprir a mesma pena duas vezes, (…) a pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor por um período de 3 meses, mostra-se extinta, por cumprimento” ou seja,
XXX. A injunção de proibição de conduzir veículos com motor, aplicada no âmbito da suspensão provisória do processo, deve ser objecto de desconto na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados, aplicada em sentença (no mesmo sentido vide Acórdão da Relação de Guimarães datado de 06.01.2014, e Acórdão da Relação de Évora de 11.07.2013, ambos disponíveis em www.dgsi.pt).
XXXI. Em súmula, o Tribunal a quo deveria ter efectuado o desconto da injunção de inibição de conduzir por um período de 3 meses, cumprida pelo arguido conforme factos dados como provados na douta sentença, na pena acessória de inibição de conduzir por um período de 4 meses aplicada e com base no desconto efectuado considerar a sanção acessória extinta pelo seu cumprimento.
XXXII. Visto que, se considera manifestamente exagerada a aplicação como pena acessória o período de quatro meses, sendo que o tribunal a quo deveria ter aplicado o mínimo previsto, três meses, pugnando-se ainda por essa redução temporal.
NORMAS VIOLADAS
 XXXIII. O Tribunal fez incorrecta interpretação e aplicação do que vem disposto nos artigos 29º, n.º 5, e 18.º, n.º 2 da CRP, 69º do Código Penal, 281º e 282º do Código de Processo Penal.

PEDIDO

 XXXIV. Nestes termos e nos melhores de Direito deve o presente recurso vir a ser julgado procedente por provado e a douta sentença revogada, decidindo-se que: O ora arguido/recorrente cumpriu as injunções que lhe foram cometidas, sendo que o processo deveria terminar com o período pelo qual a suspensão provisória de processo ficou designado, até dia 8 de agosto de 2015, existindo uma clara violação do princípio ne bis in idem, artigo 29.º, nº 5 e 18.º, n.º 2 da CRP, anulando-se o despacho de recebimento da acusação e, consequentemente, o julgamento e a sentença, devendo aquele despacho ser substituído por outro que, aplicando o ne bis in idem, rejeite a acusação do Ministério Público.
XXXV. Se assim não se considerar, sempre se deverá considerar que:
A sanção acessória de inibição de conduzir veículos motorizados por um período de três meses aplicada ao arguido se considera extinta pelo seu cumprimento, uma vez efetuado o desconto da injunção de inibição de conduzir por um período de 3 meses, cumprida pelo arguido, na pena acessória de inibição de conduzir ora aplicada.
Somando-se ainda, que deverá ser aplicada a pena acessória no seu mínimo, três meses, e diminuída a pena de multa aplicada, por efetiva condenação excessiva e desproporcional.

NESTES TERMOS, e nos melhores de Direito que V. Exas. doutamente suprirão, deverá a douta sentença ser revogada e substituída por outra que se coadune com a pretensão exposta, assim se fazendo a costumada JUSTIÇA!

            A este recurso respondeu o MP em primeira instância, retirando dessa sua peça as seguintes conclusões:

            O recurso não merece provimento.

O despacho de recebimento da acusação, o julgamento e a sentença não enfermam de qualquer vício.

Foram observados todos os preceitos legais exigíveis.

Não se mostra qualquer afronta ao princípio constitucional consagrado no art. 29º, nº 5 da Constituição da República Portuguesa.
As penas aplicadas traduzem uma equilibrada e adequada aplicação dos critérios estabelecidos nos arts. 40º, 47º, 69º, 70º e  71º do Código Penal.

A injunção cumprida pelo arguido, não sendo uma pena nem uma obrigação imposta sem a sua anuência, não é de descontar na pena acessória a que foi condenado.

Vossas Excelências, Senhores Desembargadores, negando provimento ao presente recurso, farão JUSTIÇA

            Nesta Relação, o Ex.mo PGA emitiu douto parecer no sentido de ser declarada a nulidade da sentença e reenviado o processo para que seja apreciada e decidida a questão que identifica.

            Ainda respondeu o recorrente, mostrando concordância com o referido parecer.

            Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

QUESTÃO PRÉVIA:

            Nos presentes autos com processo especial abreviado, com a concordância do juiz, foi decidida a suspensão do processo pelo período de 8 meses, mediante a obrigação de o arguido entrega 280 euros à CPVC, a que acresce a proibição de conduzir veículos com motor pelo período de 3 meses (v. fls. 24).

            O arguido cumpriu esta proibição, pois que entregou no tribunal a sua carta de condução a 6/1/2015 (v. fls. 29), tendo procedido ao seu levantamento em 6/4/2015 (v. fls. 43).

            Cumpriu também a imposição de entrega daquela quantia de 280 euros à CPVC dentro do prazo da suspensão, pois que o fez em 17/12/2014 (v. fls. 69).

            No despacho de fls. 31, datado de 13/1/2015, a magistrada do MP alerta o arguido para o cumprimento da injunção pecuniária (a qual havia sido já satisfeita). Novamente, por despacho de fls. 47, e tendo terminado o prazo já o prazo da SPP, foi ordenada a notificação do arguido para que, em 10 dias, comprovasse a entrega daquela quantia, sob pena de prosseguir o processo para julgamento.

            Face ao silêncio do arguido, o processo prosseguiu para julgamento, sendo ele aí condenado nos termos já referidos.

            A questão que se põe agora é a de saber se, face a tal estado de coisas, deveria ter ocorrido o julgamento e a posterior condenação do arguido. Cremos que não.

            Com efeito, embora após a designação de data para a audiência de julgamento (despacho datado de 14/11/2016), por expediente remetido a 19/1/2017 - v. fls. 67 a 69) a CPVC comunicou ao MP que o arguido havia procedido ao depósito, na conta dessa comissão, da quantia de 280 euros, relativa à injunção do presente processo, em 17/4/2014.

            Não obstante esse conhecimento, manteve-se o julgamento agendado, tendo mesmo ocorrido a condenação do recorrente.

            A injunção em causa foi cumprida dentro do prazo estabelecido na decisão que decretou a SPP; o que não fez o arguido, não obstante os convites que para o efeito lhe foram endereçados, foi a prova de que havia procedido a tal pagamento, não obstante o ter realizado.

            Que ilações daqui retirar?

            Se é verdade que o arguido não fez oportuna prova de que cumpriu também essa injunção, o certo é que, ainda no decurso do inquérito, nem a CPVC comunicou ao processo que tal havia ocorrido, nem o MP, de forma oficiosa, e dentro do seu dever legal de investigação, se lembrou de averiguar, junto daquela comissão se tal havia sucedido (do teor da notificação a que se procedeu, na sequência do despacho de fls. 24, 2ª parte, resulta que o depósito identifica a causa respectiva).

            Quando o processo é remetido a juízo, tal cumprimento é desconhecido, mas antes da realização do julgamento o mesmo vem a revelar-se.

            Será que se pode fazer prevalecer as normas de cariz adjectivo, relativas à demonstração da ocorrência do facto, sobre o próprio facto, que efectivamente ocorreu? Cremos que não!

            O MP, para além da omissão investigatória a que fizemos referência, poderia ter determinado, previamente à formulação da acusação, que se procedesse à audição do arguido, com vista ao esclarecimento da questão. Mas também o não fez.

            Face a este estado de coisas, e recebidos os autos em juízo, a partir do momento em que se toma conhecimento de que aquela injunção, que se julgava incumprida, se mostra afinal atempadamente cumprida, o que fazer?

Segundo o princípio constitucional e processual penal ‘non bis in idem’, é interdita aos Tribunais a condenação de um agente que, relativamente aos mesmos factos, haja já sido objecto de julgamento penal. Como escreveu o Prof. Eduardo Correia (Caso Julgado e Poderes de Cognição do Juiz, Coimbra, 1983, pag. 302, «o fundamento central do caso julgado radica-se numa concessão prática às necessidades de garantir a certeza e a segurança do direito. Ainda mesmo com possível sacrifício da justiça material, quer-se assegurar através dele aos cidadãos a sua paz jurídica, quer-se afastar definitivamente o perigo de decisões contraditórias».

Inexistindo, no âmbito da lei processual penal, norma regulamentadora deste instituto e dos respectivos efeitos jurídicos, e verificada a ocorrência de tal lacuna, o respectivo regime integrador há-de ser o que resulta das normas do processo civil «que se harmonizem com o processo penal», e, na falta delas, os princípios gerais do processo penal (artº 4º, CPP).

Assim, esta excepção, que pressupõe a repetição de uma causa idêntica a uma outra anteriormente julgada e transitada em julgado (artº 580º, 1, CPC), visa evitar que o tribunal «seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior» (nº 2).

Ora, analisado assim o regime legal do instituto do caso julgado, logo se constata que não ocorreu, no caso presente, tal figura de excepção processual; com efeito, não ocorreu ainda uma qualquer condenação penal que possa servir de excepção relativamente a uma segunda condenação.

Por isso, não ocorre a pretendida violação de caso julgado anterior, na perspectiva em que a analisamos (nem, reflexamente, ocorre qualquer violação da garantia constitucional ínsita no artº 29º, 5, da CRP).

            O que ocorre, isso sim, é uma excepção dilatória inominada, que obstará a que o tribunal conheça do mérito da causa, dando lugar à absolvição da instância (v. o subsidiário artº 576º, 2, do CPC).

            Com efeito, verificado, embora em momento tardio, que o arguido cumprira atempadamente as injunções a que havia sido sujeito aquando da SPP, deveria o tribunal ter proferido despacho declarando tal e absolvendo-o da instância.

            Nos termos do disposto no artº 282º, 4, a) do CPP, o processo prossegue e as prestações feitas não podem ser repetidas «se o arguido não cumprir as injunções e regras de conduta» e, nos termos do disposto no nº 4 do artº 383º do mesmo CPP, o MP deduz acusação no prazo de 90 dias «a contar da verificação do incumprimento».

            O prosseguimento do processo, está bom de ver, só acontecerá face ao incumprimento das injunções e regras de conduta e não de um qualquer prazo a que seja concedida natureza peremptória, sem o devido apoio legal. Seu pressuposto legal é, nos termos estritos da lei, aquele incumprimento.

            No nosso caso, o arguido cumpriu as injunções que lhe foram fixadas e só não demonstrou postura colaborante para fazer prova de que o fizera, quando convidado para o efeito. E daí, poderia o MP considerar que, face a tal postura, incumprira ele as injunções? Cremos que não. O que deveria ter feito era, ‘motu próprio’ e impulsionado pelo seu dever de investigação, ter solicitado a necessária informação à entidade beneficiária do pagamento u proceder à audição do arguido. Mas não o fez.

            Não podemos, deste modo, deixar que as questões de ordem formal se sobreponham às questões de fundo, de modo a fazer prevalecer a justiça material.

            Verificando que o arguido cumprira as injunções que lhe haviam sido fixadas para a SPP, o juiz de julgamento deveria ter proferido despacho em que, julgando esgotado o objecto do presente processo especial, desse sem efeito a audiência de julgamento designada, absolvendo o arguido da respectiva instância. Não poderia o MP, sem previamente se certificar de que a injunção em causa fora incumprida, proferir acusação e remeter os autos a juízo.

           

            Termos em que, nesta Relação, se acorda em conceder provimento ao recurso, ainda que por razões diversas, revogando a sentença recorrida e absolvendo o arguido.

            Recurso sem tributação.

Coimbra, 13 de Setembro de 2107

(Jorge França – relator)

(Elisa Sales – adjunta)