Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
232/15.7GEACB-D.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JOÃO NOVAIS
Descritores: SUSPENSÃO DA PRISÃO SUBSIDIÁRIA; ÓNUS DO CONDENADO; INTERVENÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO
Data do Acordão: 06/15/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA (JUÍZO LOCAL CRIMINAL DE ALCOBAÇA)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 49.º, N.º 3, DO CP, E 491.º, N.º 3, DO CPP
Sumário: Cabe ao condenado, quando a multa não for paga voluntária ou coercivamente, obstar à execução da prisão subsidiária pagando o respectivo valor ou requerendo, se o Ministério Público o não fizer, a suspensão da dita prisão, provando que a razão do não pagamento devido não lhe é imputável.
Decisão Texto Integral:


I - Relatório

       1.1.  O Ministério Público interpôs recurso do despacho sentença proferida pelo Juízo Local Criminal ..., do Tribunal Judicial da Comarca ..., que indeferiu o requerimento do arguido a solicitar o pagamento em prestações de multa que lhe fora aplicada nos autos como pena principal, tendo determinado a conversão daquela pena de multa em prisão subsidiária por considerar que o requerimento apresentado pelo arguido era extemporâneo, considerando o recorrente que aquele requerimento do arguido – face ao contexto dos autos – deveria ter sido interpretado ou avaliado como princípio de prova de falta de culpabilidade do arguido no não pagamento,  de forma a permitir a suspensão da prisão subsidiária.

   

       1.2. No recurso em apreciação o Ministério Público apresentou as seguintes conclusões:

       1. Decorre do artigo 49.º, n.º 3, do Código Penal, lido conjuntamente com o prescrito pelo artigo 491.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, que compete ao arguido requerer, se o Ministério Público o não fizer, a suspensão da prisão subsidiária, provando que a razão do não pagamento da multa lhe não é imputável.

        2. Todavia, no caso concreto, julgando equivocadamente que ainda se encontrava em tempo de requerer o pagamento da pena de multa em que foi condenado, o arguido alegou, através do requerimento que apresentou a 04-03-2021, que apenas se encontra empregado desde 08-02-2021 – tendo feito juntar o respectivo contrato de trabalho -, o que, face ao teor do requerimento que apresentou 23-01-2020, em que alega que iria ter ajuda de terceiros para pagar tal pena de multa, porque se encontrava desempregado, aliado às pesquisas nas bases de dados disponíveis, permite o juízo de que nunca deixou de estar desempregado.

      3. Mais, no sobredito requerimento que apresentou 23-01-2020, o arguido referiu que, por não auferir rendimentos, iria ter “ajuda de terceiros” para proceder ao pagamento da pena de multa, o que, face ao teor literal do seu mais recente requerimento remetido aos autos, permite o juízo indiciário de que, mesmo a ter recebido tal ajuda, ela não tenha sido suficiente para obstar à impossibilidade de pagamento da pena de multa ou que, em última instância, ela não tenha sequer sido providenciada ao arguido.

     4. Ora, no despacho recorrido, ao fazer consignar que, face ao mais recente requerimento do arguido, não se vislumbra que exista um princípio de prova do pressuposto da suspensão da execução da prisão subsidiária, o Tribunal a quo parte do princípio de que o arguido, por ter requerido, num primeiro momento, a substituição da multa em que foi condenado por trabalho a favor da comunidade e depois revertido tal pedido porque iria ter “ajuda de terceiros”, deixou de poder gozar da possibilidade da não culpabilidade quanto ao não pagamento da pena de multa, uma vez que naquele segundo momento afirmou ter meios para a pagar.

      5. Em bom rigor, tal interpretação, tendo por base a alegação do arguido de que havia recebido “ajuda de terceiros” (ainda que no mesmo momento tenha referido que não auferia quaisquer rendimentos), é insensível, não só ao alegado, mas também ao esforço probatório trazido aos autos pelo arguido, que logrou provar que apenas começou a trabalhar na data que referiu no seu requerimento, e ignora todas as vicissitudes que sempre podem ocorrer nas dinâmicas interpessoais, naturalmente mais acentuadas durante um período de crise sanitária e, por arrastamento, económica, como a que vivemos.

      6. Em face do exposto, entende o Ministério Público que, pelo menos, indiciariamente o arguido demonstrou que o não cumprimento da pena de multa em que foi condenado lhe não é imputável, reputando-se, portanto, ilegal o raciocínio vertido no despacho recorrido, em confronto com o disposto no artigo 49.º, n.º 3, do Código Penal.

     7. Pois bem, tendo em conta que o alegado pelo arguido relativamente à sua situação económica é susceptível de fundar um juízo de não culpabilidade quanto ao não pagamento da pena de multa, deve o Tribunal cuidar de saber se a concreta situação económica e financeira do arguido justificava ou não a falta de pagamento da multa em que foi condenado.

      8. Em face do exposto, o Ministério Público pugna pela revogação do despacho recorrido e a sua substituição por outro que, para efeitos do disposto no artigo 49.º, n.º 3, do Código Penal, se solicite à Direcção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais a elaboração de breve informação acerca da situação económica do arguido, devendo tal informação conter os deveres ou regras de conduta de conteúdo não económico ou financeiro a cumprir pelo mesmo, em caso de eventual suspensão da prisão subsidiária.                 

       1.3. O arguido não respondeu ao recurso.

       1.4. No parecer a que alude o art. 416º, n.º 1, do Código de Processo Penal, o Ministério Público junto ao Tribunal da Relação emitiu parecer no sentido de ser julgado procedente o recurso, concordando genericamente com a posição do recorrente.


***
  II -  Fundamentação de Facto
  A - (Transcrição do despacho sob recurso)      
 O arguido foi condenado, por sentença transitada em julgado em 14.10.2019 na pena de 150 dias de multa, à taxa diária de €6,00.
O arguido requereu a substituição por trabalho da multa por trabalho, que veio a ser deferida.
Porém, em 23.01.2020 o arguido requereu que lhe fosse autorizado o pagamento da pena de multa, por ter “recebido ajuda de terceiros”, o que foi deferido, sem que o arguido tenha procedido ao pagamento.
Foi instaurada execução para cobrança coerciva da pena de multa, sem que se tenha logrado a cobrança de qualquer quantia.
Notificado para se pronunciar sobre a eventual conversão da pena em prisão subsidiária, veio agora o arguido requerer o pagamento da multa em prestações.
O Digno Magistrado do Ministério Público pugnou pelo indeferimento do requerido, por extemporâneo.
Cumpre apreciar.
Nos termos do art.47.º, n. º3, do Código Penal, «Sempre que a situação económica e financeira do condenado o justificar, o tribunal pode autorizar o pagamento da multa dentro de um prazo que não exceda um ano, ou permitir o pagamento em prestações, não podendo a última delas ir além dos dois anos subsequentes à data do trânsito em julgado da condenação.».
Para além do pagamento da multa poder ser diferido ou realizado em prestações, o art.48º, n. º1, do Código Penal, prevê a possibilidade de substituição da multa por trabalho, ao estatuir que «A requerimento do condenado, pode o tribunal ordenar que a pena de multa fixada seja total ou parcialmente substituída por dias de trabalho, quando concluir que esta forma de cumprimento realiza de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.»
Dispõe ainda o artigo 49.º, n. º1 do Código Penal que “se a multa, que não tenha sido substituída por trabalho, não for paga voluntária ou coercivamente, é cumprida prisão subsidiária pelo tempo correspondente reduzido a dois terços, ainda que o crime não fosse punível com prisão”.
No que concerne ao “prazo de pagamento” da pena de multa, o art. 489º, do Código de Processo Penal estabelece que «A multa é paga após o trânsito em julgado da decisão que a impôs e pelo quantitativo nesta fixado, não podendo ser acrescida de quaisquer adicionais.» (nº 1); «O prazo de pagamento é de 15 dias a contar da notificação para o efeito.» (nº 2); e «O disposto no número anterior não se aplica no caso de o pagamento da multa ter sido diferido ou autorizado pelo sistema de prestações.» (n.º 3).
Por seu turno, sob a epígrafe “Substituição da multa por dias de trabalho”, dispõe o artigo 490º do mesmo C. P. Penal, que «O requerimento para substituição da multa por dias de trabalho é apresentado no prazo previsto nos nº 2 e 3 do artigo anterior…» (nº 1), e que «Em caso de não substituição da multa por dias de trabalho, o prazo de pagamento é de quinze dias a contar da notificação da decisão.» (nº 4).
Da conjugação dos artigos 47.º, n.º 3, 48.º, n. º1 e 49.º do Código Penal, com os artigos 489.º e 490.º, n. º1 do Código de Processo Penal, resulta, assim, que o pagamento voluntário da multa deverá ter lugar no prazo de 15 dias a contar da notificação para o efeito e que o requerimento para pagamento diferido ou em prestações da multa ou para substituição da multa por dias de trabalho, deve ser apresentado naquele prazo de 15 dias, sob pena de se passar á fase do pagamento coercivo.
Conclui-se assim que no caso em apreço, o arguido não está já em tempo de requerer o pagamento da multa em prestações, uma vez que, por aplicação conjugada ainda do disposto nos artigos 47.º, n.º3, 48.º, n.º2 e no n.º 1 do artigo 49.º do Código Penal e artigo 490.º, n.º1 do Código de Processo Penal, decorrido o prazo para pagamento voluntário, e não sendo possível a cobrança coerciva, nos termos do artigo 491.º, n.º1 deste diploma legal, pode ser determinado o cumprimento da prisão subsidiária.
É certo que a signatária entendeu já que, num domínio tão sensível, considerando a importância do valor em causa - a liberdade pessoal, e atenta a exiguidade do prazo estabelecido, deve haver alguma maleabilidade nesta matéria, desde que respeitados 2 (dois) limites inultrapassáveis: por um lado, os prazos máximos para pagamento previstos no artigo 47.º, n.º 3 do Código Penal, por outro a conversão da multa em prisão subsidiária, nos termos do citado artigo 49.º, n.º 1 do mesmo diploma.
Sucede que, em virtude da recente jurisprudência do Tribunal da Relação de Coimbra parece-nos que está na altura de reponderar tal posição.
Na verdade, se não existe jurisprudência uniforme quanto à natureza deste prazo, que para uns tem natureza peremptória e para outros, natureza meramente ordenadora, a jurisprudência dos nossos tribunais superiores tem vindo recentemente a, de forma praticamente unanime, pugnar pela natureza peremptória de tal prazo (assim, entre outros, neste sentido, acs. da R. de Coimbra proferidos nos processos nº 158/14.1GATBU-A.C1, 12/12.1GECTB-A.C1 368/11.3GBLSA.C1, 233/17.0GEACB-A.C1 e 239/17.0GCACB-A.C1 todos disponíveis em dgsi.pt).
Assim, decorrido que está o prazo legal de pagamento voluntário da pena de multa e consequentemente o prazo para pedir o seu pagamento faseado, sem que tenha sido invocado qualquer justo impedimento, indefere-se o requerido.
Notifique.
*
O arguido foi condenado, por sentença transitada em julgado em 14.10.2019 na pena de 150 dias de multa, à taxa diária de €6,00.
O arguido requereu a substituição da multa por trabalho, que veio a ser deferida.
Porém, em 23.01.2020 o arguido requereu que lhe fosse autorizado o pagamento da pena de multa, por ter “recebido ajuda de terceiros”, o que foi deferido, sem que o arguido tenha procedido ao pagamento.
Foi instaurada execução para cobrança coerciva da pena de multa, sem que se tenha logrado a cobrança de qualquer quantia.
Notificado para se pronunciar sobre a eventual conversão da pena em prisão subsidiária, veio o arguido requerer o pagamento da multa em prestações, supra indeferido, alegando estar agora empregado e juntando contrato de trabalho do qual resulta auferir a quantia de €665,00 acrescido de subsídio de refeição diário no valor de €5,90.
Cumpre apreciar.
Estabelece o artigo 49º do Código Penal que “se a multa, que não tenha sido substituída por trabalho, não for paga voluntária ou coercivamente, é cumprida prisão subsidiária pelo tempo correspondente reduzido a dois terços, ainda que o crime não fosse punível com prisão, não se aplicando, para o efeito, o limite mínimo dos dias de prisão constante do n.º 1 do artigo 41º”.
Assim, uma vez que o arguido não procedeu ao pagamento da pena de multa, deve a mesma ser convertida em prisão subsidiária, nos termos do preceituado no artigo 49º do Código Penal.
Face ao exposto, determino a conversão do remanescente da pena de multa em que foi condenado o arguido AA em prisão subsidiária pelo tempo correspondente reduzido a 2/3, que, nos termos do preceituado no n.º 3 do artigo 49º do Código Penal, fixo em 100 dias de prisão.
Notifique o defensor e o arguido deste despacho, com expressa advertência de que o mesmo pode, a todo a tempo, evitar, total ou parcialmente, a execução da prisão subsidiária, pagando, no todo ou em parte, a pena de multa em que foi condenado (cfr. artigo 49º, n.º 2 do Código Penal).
*
Quanto ao mais promovido, decorre do preceituado no artigo 49.º, n.º 3 do código Penal que a eventual suspensão da execução da prisão subsidiária depende de o condenado provar que o não pagamento da pena de multa não lhe é imputável.
Ora, no caso em apreço, depois de lhe ter sido deferida a substituição da pena de multa por prestação de trabalho a favor da comunidade o arguido, pelo seu próprio punho, veio manifestar não ter interesse nessa prestação de trabalho, alegando ter angariado meios para proceder ao pagamento da pena de multa, apesar da sua situação de desemprego (requerimento de 23.01.2020, onde o arguido afirma “venho solicitar a V.ª Ex.ª se digne autorizar o pagamento da multa em que fui condenado pelo facto de ter recebido ajuda de terceiros, uma vez que não aufiro qualquer rendimento”).
 Parece-nos assim, sem quebra de vénia por distinta opinião, que o próprio arguido afastou qualquer possibilidade de se considerar minimamente indiciado que o não pagamento da pena de multa não lhe seja imputável, já que foi o próprio quem afirmou ter meios para proceder ao pagamento.
Pelo exposto, não se vislumbrando que exista um principio de prova do pressuposto da suspensão da execução da prisão subsidiária, indefere-se o promovido.
*
Após trânsito
- remeta boletim ao registo criminal, averbando-se o facto
modificativo da descrição registral – cfr. artigo 6.º da Lei n.º 37/2015, de 5 de Maio.
- emita os competentes mandados de detenção e condução do arguido ao estabelecimento prisional para cumprimento da pena de prisão subsidiária de 100 (cem) dias, com expressa advertência de que o mesmo pode, a todo a tempo, evitar, total ou parcialmente, a execução
da prisão subsidiária, pagando, no todo ou em parte, a pena de multa em que foi condenado (cfr. artigo 49º, n.º 2 do Código Penal), correspondendo a cada dia de privação da liberdade a quantia de € 9,00 (nove euros).
(texto elaborado em computador e revisto pela signatária, art.º 94º, nº 4 do C.P.P.)

 B - Requerimento do arguido de 04-03-2021 (em momento anterior ao despacho sob recurso), na sequência da notificação para, no prazo de 10 dias, comprovar nos autos o pagamento da pena de multa ou justificar o seu não pagamento, sob pena de conversão da mesma em 100 dias de prisão subsidiária:
 “AA, Arguido nos presentes autos e aí melhor identificado, notificado nos termos do despacho que antecede, vem, informar V. Exª que celebrou contrato de trabalho com a sociedade C..., UNIPESSOAL LDA, com o NIPC ..., no pretérito 08-02-2021, onde exerce funções inerentes à categoria profissional de serralheiro.
Informa, ainda, que só no dia de ontem, 03-03-2021, lhe foi entregue cópia assinada do contrato de trabalho, motivo pelo qual não justificou, dentro do prazo legal, a impossibilidade que tem de solver de uma só vez a quantia de € 900,00 (novecentos euros), em que foi condenado em pena de multa.
Assim, e porque se encontra a trabalhar, solicita a V.Exª, pese embora o lapso de tempo decorrido, que lhe seja concedida a possibilidade de liquidar a referenciada quantia, em 9 (nove) prestações mensais, iguais e sucessivas.”.
Mais, o arguido instruiu o supra transcrito requerimento, com ... fotografias do contrato de trabalho que assinou com a sociedade “C..., UNIPESSOAL LDA” para exercer as funções de serralheiro, do qual decorre que terá começado a trabalhar no dia 08-02-2021.

C- Promoção do Ministério Público na sequência desse requerimento do arguido:
Ref. ...52: visto, promovendo-se, atento o disposto no artigo 489.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Penal, o indeferimento do pedido de pagamento da pena de multa em prestações, por extemporâneo. Não obstante, o alegado pelo arguido relativamente à sua situação económica é susceptível de fundar um juízo de não culpabilidade quanto ao não pagamento da pena de multa, tendo em conta, designadamente, que terá começado a trabalhar no dia 8 de Fevereiro de 2021 e, bem assim, que o montante recebido em contrapartida do trabalho prestado (e muito recentemente iniciado) corresponde ao salário mínimo nacional.
Assim, para efeitos do disposto no artigo 49.º, n.º 3, do Código Penal, mais se promove que se solicite à Direcção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais a elaboração de breve informação acerca da situação económica do arguido, devendo tal informação conter os deveres ou regras de conduta de conteúdo não económico ou financeiro a cumprir pelo mesmo, em caso de eventual suspensão da prisão subsidiária.”.
 

       III – Fundamentação de Direito 

       a) O objecto do recurso encontra-se limitado pelas conclusões apresentadas pelo recorrente, sem prejuízo da necessidade de conhecer oficiosamente a eventual ocorrência de qualquer um dos vícios referidos no artigo 410º do Código de Processo Penal (jurisprudência fixada pelo Acórdão do STJ n.º 7/95, publicado no DR, I Série-A, de 28.12.1995);

       b) A única questão a apreciar nesta instância de recurso, prende-se em saber se o Tribunal a quo deveria ter considerado o requerimento do arguido no qual manifestou não ter já interesse na substituição da pena de multa por prestação de trabalho a favor da comunidade, alegando ter angariado meios para proceder ao pagamento da pena de multa em prestações, deverá ser considerado como princípio de prova relativamente à impossibilidade que permitiria a suspensão da execução da prisão subsidiária.

       c) Iniciando a apreciação do recurso, a norma a considerar é o art 49º do Cód. Penal, que dispõe:

      1 - Se a multa, que não tenha sido substituída por trabalho, não for paga voluntária ou coercivamente, é cumprida prisão subsidiária pelo tempo correspondente reduzido a dois terços, ainda que o crime não fosse punível com prisão, não se aplicando, para o efeito, o limite mínimo dos dias de prisão constante do n.º 1 do artigo 41.º

2 - O condenado pode a todo o tempo evitar, total ou parcialmente, a execução da prisão subsidiária, pagando, no todo ou em parte, a multa a que foi condenado.

3 - Se o condenado provar que a razão do não pagamento da multa lhe não é imputável, pode a execução da prisão subsidiária ser suspensa, por um período de 1 a 3 anos, desde que a suspensão seja subordinada ao cumprimento de deveres ou regras de conduta de conteúdo não económico ou financeiro. Se os deveres ou as regras de conduta não forem cumpridos, executa-se a prisão subsidiária; se o forem, a pena é declarada extinta.
       4 – (…)

  

       d) Recorde-se que a o tribunal a quo decidiu - por despacho, nessa parte, já transitado em julgado - que já se mostrava ultrapassado o prazo para pedir o pagamento da multa em prestações (como o arguido expressamente pediu). Todavia, o Ministério Público, ora recorrente, defende a possibilidade daquele requerimento do arguido ser avaliado, não já como um pedido de pagamento da pena de multa em prestações, mas sim como a apresentação de um princípio de prova que permitirá eventualmente a suspensão da execução da prisão subsidiária nos termos do citado n.º 3 do art 49º do Cód. Penal.

    

        e)  Apreciando:

        O ordenamento penal português, resultante da reforma legislativa de 1982, assenta na ideia de que as sanções privativas da liberdade constituem a última ratio da política criminal, aqui relevando os princípios da necessidade/subsidiariedade da intervenção penal e da proporcionalidade das sanções penais (art 18º n.º 2 da CRP e, por exemplo os arts 70º e 98º do Cód. Penal) – cfr. Maria João Antunes, Penas e Medidas de Segurança, p. 17, Ed. Almedina.

          Em coerência com essa orientação, o legislador de 1982 privilegiou a pena de multa, em contraponto com a pena de prisão, elevando-a a pena principal, vertente que veio a ser aprofundada com a revisão operada pelo DL nº 48/95, de 15 de Março, onde se pode ler no preâmbulo que “impõe-se, pois, devolver à pena de multa a efectividade que lhe cabe.  A dignificação da multa enquanto medida punitiva e dissuasora passa por um significativo aumento, quer na duração (…)  quer no montante máximo diário (…). E assim sendo, afastado o carácter residual ou secundário que a pena de multa assumia antes de 1982, o legislador rodeou aquela pena dos mecanismos aptos a acentuar a sua natureza de verdadeira pena criminal, conferindo-lhe a dignidade que esse estatuto reclamava, sob pena de não conseguir responder ao desafio de relegar a pena detentiva para o papel de ultima ratio do sistema penal. E tal desiderato passou – para além do mais -   pelo estabelecimento de um sistema de execução da pena orientado para a preservação da dignidade penal da pena pecuniária, visando evitar que esta se convertesse numa (…) forma disfarçada de absolvição ou (…) de uma dispensa ou isenção da pena que se não tem a coragem de proferir “-  Figueiredo Dias, Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime», § 123.  

             Assim sendo, a interpretação do regime legal relativo à execução da pena de multa,  “deverá ser em sintonia com as finalidades apontadas às penas; sem que se ignore, pois, em momento algum, no decurso da respectiva execução, que constituindo a pena de multa uma verdadeira pena criminal haverá que assegurar sempre a tutela do bem jurídico violado e a reintegração social do condenado, qualquer que seja a modalidade da execução que venha a ser seguida, porquanto é através da execução da pena, qualquer que ela seja, que se confere razão prática à sentença condenatória e se asseguram as finalidades de prevenção. Dito de outro modo, precisamente porque se trata de uma pena criminal, o condenado tem que a sentir como tal, sob pena de frustração das finalidades visadas através da sua aplicação; razão que justifica que as alternativas de cumprimento da pena de multa exijam a sua intervenção concreta e interessada, pois é a ele que cabe explicar o não cumprimento da pena em que foi condenado e para cujo cumprimento foi devidamente notificado sendo, pois, ao condenado que cabe requerer a suspensão da pena de prisão subsidiária e provar que o não pagamento lhe não é imputável -   – cfr. Ac. desta Rel. de Coimbra de 13-5-2020, processo n.º 36/16.6T9LSA-A.C1, in www.dgsi.pt, em que foi relator o 1º adjunto deste acórdão, cuja doutrina seguimos de perto, tal como já tinha sucedido no Ac. desta mesma Relação de 13-10-2021, processo n.º 111/19.9GBACB-A.C1 (com o mesmo relator deste acórdão); na doutrina, cfr.  Paulo Pinto de Albuquerque, C.P.P. anotado, 3ª edição, p. 1237.

          

           f) Assim concluímos que o condenado em pena de multa só poderá beneficiar de algum mecanismo da suspensão da prisão subsidiária caso o requeira.

           E é essa conclusão que se impõe não só face à salvaguarda dos efeitos que a pena de multa deve produzir, atenta a sua dignidade de pena principal, como ainda da interpretação da própria lei, como veremos de seguida:

           Após o tribunal decidir pela aplicação de uma pena de multa ao condenado, cabe a este a iniciativa de pedir o diferimento do prazo de pagamento, ou o pagamento em prestações (como aliás ocorreu no caso em apreciação, mas já após o prazo concedido para o efeito), o que resulta das expressões («…o tribunal pode autorizar (…) ou permitir…» -  art. 47º, nº 3, do Cód. Penal.

           Tal como se estabelece expressamente, que a substituição da multa por dias de trabalho depende de manifestação e vontade do condenado nesse sentido («A requerimento do condenado (…)» -  art. 48º, nº 1, do CP. – tal como ocorreu neste processo num primeiro momento, uma vez que o arguido pediu essa substituição, sendo a mesma deferida, e que apenas não foi executada porque o arguido veio apresentar o referido requerimento manifestando vontade de pagar a pena de multa em prestações

          

           g) Igualmente a suspensão da prisão subsidiária, aplicada em consequência do não pagamento da pena de multa, deverá resultar não de uma iniciativa do tribunal, mas sim de um requerimento do condenado, o que se retira da expressão «Se o condenado provar - art. 49º, nº 3, do Cód. Penal, ou ainda da redacção do art. 491º, nº 3, do CPP: «(…) parecer do Ministério Público, quando este não tenha sido o requerente», o que implica que a suspensão tem que ser requerida pelo M.P., ou pelo condenado.

           Como se considerou no já citado cfr. Ac. desta Rel. de Coimbra de 13-5-2020, deixaria de fazer sentido  a previsão normativa do  n.º 3 do art 49º do Cód. Penal; exigindo o n.º 2 do mesmo art 49º,  como pressuposto de conversão da pena de multa em prisão subsidiária, que o tribunal tente a execução patrimonial, no caso de a mesma se frustrar por inexistência de bens (como ocorreu no caso), então imediatamente o tribunal deveria suspender a execução da  pena subsidiária, sem qualquer iniciativa do condenado nesse sentido, e sem ter que alegar e provar que a razão do pagamento não lhe é imputável, o que tornaria inútil, e mesmo contraditório o referido n.º 3 do art 49.

              h)  Em suma; a pena de multa não se traduz numa indiferenciada  prestação patrimonial a favor do Estado, na qual se realizam diligências no sentido de apurar património que possa satisfazer aquela dívida, suspendendo-se o seu  pagamento, caso não se encontrem bens ou rendimentos penhoráveis, como se de uma simples execução por custas se tratasse; a pena de multa, ainda que se concretizando através de um sacrifício patrimonial, é uma verdadeira pena, dotada de distinta dignidade jurídico-penal, visando a sua aplicação as finalidades descritas no art 40º do Cód. Penal, tanto que se procura a sua efectivação através da privação de liberdade, situação que não ocorre relativamente à não satisfação de qualquer outra prestação pecuniária no nosso ordenamento jurídico.

              Essa específica natureza de pena, exige que, após o seu incumprimento, e sua conversão em prisão subsidiária, seja o condenado a requerer a suspensão dessa prisão, como aliás resulta da interpretação na redacção das normas acima citadas.

            No caso, o arguido não só não pediu expressamente essa mesma suspensão, como até apresentou um requerimento no qual pedia a substituição da prestação por dias de trabalho (que lhe tinha sido concedida), por um requerimento (extemporâneo) do pagamento da pena multa em prestações.

            Assim sendo, constata-se que o arguido não requereu a suspensão da prisão subsidiária nos termos do art 49º n.º 3 (devendo ser o aquele a tomar tal iniciativa, nos termos acima expostos), não podendo retirar-se de um requerimento no qual pede o pagamento da multa em prestações (declarando ter conseguido celebrar um contrato de trabalho) uma manifestação dessa vontade.

             i) No entanto, resta ainda por apreciar uma outra possibilidade.

            Apesar de se recusar que o tribunal deva oficiosamente suspender a aplicação da prisão subsidiária (ou, ao menos desenvolver diligências nesse sentido), devendo  essa iniciativa caber ao condenado, não é só o condenado que pode assumir essa diligência; como já referimos acima, também o Ministério Público pode requerer a referida suspensão da aplicação da prisão subsidiária, resultando essa legitimidade, inequivocamente, da parte final do n.º 3 do art 491º do C.P.P.

            No caso, parece-nos que pode ser retirada, da promoção acima transcrita (II – Fundamentação de Facto - C), a manifestação de vontade do Ministério Público no sentido de dever ser ponderada a possibilidade de suspensão da execução da pena subsidiária.

          Recorde-se, que nessa promoção, o Ministério Público para além de avaliar o alegado pelo arguido relativamente à sua situação económica como sendo  susceptível de fundar um juízo de não culpabilidade quanto ao não pagamento da pena de multa,  acabou por promover que se solicitasse à Direcção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais a elaboração de informação acerca da situação económica do arguido, contendo os deveres ou regras de conduta a cumprir pelo mesmo, em caso de eventual suspensão da prisão subsidiária, citando expressamente o 49º n.º 3 do Cód. Penal .

             Assim sendo, ainda que o condenado não tenha exprimido essa vontade através de um requerimento que a consubstanciasse, o Ministério Público expressou-a (posição que coerentemente manteve ao interpor este recurso), tendo legitimidade para tal nos termos do citado art 491º n.º 3 do CPP.

              O recurso deve assim proceder.


*

            IV- Dispositivo

            Face ao exposto, acordam os juízes da secção criminal deste Tribunal da Relação de Coimbra, em revogar o despacho sob recurso, devendo ser acolhida a promoção do Ministério Público no sentido de se solicitar à Direcção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais a elaboração de informação acerca da situação económica do arguido, incluindo os deveres ou regras de conduta de conteúdo não económico ou financeiro a cumprir pelo mesmo, de forma a ser ponderada a possibilidade de suspensão da execução da prisão subsidiária.

            Sem custas.

Coimbra, 15 de Junho de 2022

João Novais (Relator)


                         

Jorge Jacob (Adjunto)


Alberto Mira (Presidente)