Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
426/16.8PBCTB-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: VASQUES OSÓRIO
Descritores: VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
SUSPENSÃO PROVISÓRIA DO PROCESSO
REQUERIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO DA VÍTIMA
Data do Acordão: 06/21/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: CASTELO BRANCO (J L SERTÃ)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ART. 281.º, N.º 7, DO CPP
Sumário: I – O requerimento livre e esclarecido ou, preferindo-se, a manifestação de vontade no sentido da aplicação do instituto, livre e esclarecida significa, desde logo, que o declarante portanto, a vítima, a faz livre de qualquer coacção.
II – A manifestação de vontade esclarecida significa que o declarante, a vítima, deve ter pleno conhecimento do que significa, relativamente a si e ao agressor, a aplicação do instituto, a fim de, sabedora de todos os dados relevantes, poder manifestar a sua vontade no sentido da aplicação ou não, da suspensão provisória do processo, tanto mais que, depende exclusivamente de si, a iniciativa para o desencadear o mecanismo de consenso.

III – A omissão da informação à vítima do quantitativo do montante da indemnização a opor ao arguido, traduz-se numa omissão de acto legalmente obrigatório, causadora da nulidade relativa de insuficiência do inquérito (art. 120.º, n.º 2, d), do CPP.

IV – Referindo a vítima «Que concorda com a possibilidade da aplicação do instituto da suspensão provisória do processo mediante a injunção do arguido nunca mais a maltratar nem fisicamente nem verbalmente e mediante o pagamento de uma indemnização que seja adequada.», não se pode entender que requereu a aplicação da suspensão provisória do processo.

Decisão Texto Integral:




Acordam, em conferência, na 4ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra


I. RELATÓRIO

No inquérito nº 426/16.8PBCTB, que corre termos na Comarca de Castelo Branco – Sertã – Procuradoria da Instância Local, em que é arguido, A..., com os demais sinais nos autos, e assistente, B..., a Digna Magistrada do Ministério Público proferiu em 19 de Dezembro de 2016, o seguinte despacho:

“ (…).

I – Dos Elementos Probatórios Recolhidos Resulta Suficientemente Indiciado Que:

1. O arguido A... viveu como se de marido e mulher se tratasse com B... desde o ano de 1999.

2. Habitaram, em conjunto, uma casa sita em Vale da Carreira, área desta Instância Local, propriedade da ofendida e dos seus familiares.

3. Desde data não concretamente apurada que B... foi vítima de diversos maus tratos físicos e psicológicos levados a cabo pelo arguido.

4. Por diversas vezes durante a vivência em comum o arguido bateu em B... e apelidava-a de "puta, vaca, porca, andas com os cavaleiros".

5. O arguido sofreu, há cerca de três anos, um acidente de viação, tendo, em consequência do mesmo, ficado paraplégico, o que agravou as desconfianças para com a companheira, começando a intensificar as agressões quer físicas quer verbais.

6. No dia 14 de Agosto de 2016, pelas 01h30, chegados a casa vindos de uma festa, em sequência de uma discussão entre o casal, o arguido dirigiu-se a B... e agrediu-a no seu corpo, com bofetadas e murros em todo o corpo, com o que lhe causou hematomas e naturais subjectivos dolorosos.

7. Ao mesmo tempo que lhe dizia, de forma agressiva: "és uma puta, és uma merda, não vales nada, vão para o caralho, tu em mim não mandas, eu sou o dono disto", "és uma puta, uma vaca, tem os cavaleiros que queres":

8. Como consequência direta e necessária da conduta do arguido B... sofreu equimose de cor amarelada sobre a face externa do braço, seu terço médio, medindo 6x7 cm, com o que lhe determinou 8 dias para a cura sem afectação da capacidade de trabalho geral e sem afectação da capacidade de trabalho profissional.

9. Em consequência do descrito B... recebeu tratamento hospitalar no Hospital Amato Lusitano e nos Hospitais da Universidade de Coimbra.

10. Estes episódios de maus-tratos fragilizaram de sobremaneira a ofendida.

11. A ofendida permaneceu em acolhimento de emergência no HAL até 26 de Agosto de 2016, tendo, posteriormente, sido acolhida por um amigo.

12. B... apresenta sinais de dificuldades cognitivas e de instabilidade psicológica.

13. Em tudo o arguido agiu livre, voluntaria e conscientemente com o intuito logrado de lesar a ofendida, sua companheira, na sua integridade física e na dignidade enquanto pessoa humana, atingindo-a física, emocional e psicologicamente através da mencionada conduta, bem sabendo que tais comportamentos são punidos por lei, e não se coibindo ainda assim de os praticar no interior da casa de morada de família.

14. Sabia e quis lesar, com o que conseguiu, a dignidade pessoal e a saúde física da ofendida, explorando a sua debilidade física, não obstante ter perfeito conhecimento que a deveria tratar com respeito e consideração.

15. Agiu o arguido de forma livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.

Ao actuar do modo descrito cometeu o arguido em autoria material, em concurso real e efectivo e na forma consumada: um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152.º n.º 1 alínea a) e n.º 2 do Código Penal.

- A convicção do Ministério Público foi formada com base no conjunto dos elementos probatórios constantes dos autos e valorados à luz das regras da experiência comum e da normalidade social, nomeadamente:

- auto de notícia – fls. 3;

- relatório pericial de avaliação do dano corporal em direi to penal – fls. 14 a 16;

- elementos médicos e hospitalares – fls. 24 a 39;

- informação social – fls. 43 a 45;

- auto de inquirição de B... – fls. 107 e 121; 

- auto de inquirição de C.... – fls. 87;

- auto de inquirição de D.... – fls. 101;

- interrogatório do arguido – fls. 155;

- CRC – fls. 166;

- print da base de dados da suspensão provisória do processo.

Os factos apurados em sede de inquérito indiciam a prática, pelo arguido, de um crime de violência doméstica p. e p. pelo art. 152.º, n.º 1 al. a) e n.º 2 do Código Penal punível com pena de prisão de dois a cinco anos.

A ofendida manifestou desejo pela aplicação do instituto da suspensão provisória do processo.

O arguido já manifestou concordância com o instituto da suspensão provisória do processo.

O instituto da suspensão provisória do processo encontra-se previsto no art. 281.º do Código de Processo Penal e, no que ao caso em referência diz respeito, refere o n.º 6 do art. 281.º do Código de Processo Penal que "em processo por crime de violência doméstica não agravado pelo resultado, o Ministério Público, mediante requerimento livre e esclarecido da vítima, determina a suspensão provisória do processo, com a concordância do juiz de instrução e do arguido, desde que se verifiquem os pressupostos das alíneas b) e c)".

Assim, no crime de violência doméstica, não agravado pelo resultado, são três os pressupostos para que ocorra a suspensão provisória do processo:

- o requerimento livre e esclarecido da vítima;

- a ausência de condenação anterior, por crime da mesma natureza;

- a ausência de aplicação anterior da suspensão provisória do processo, por crime da mesma natureza.

No caso sub judice, estamos perante um crime de violência doméstica, a que corresponde, em abstracto, uma punição com pena de prisão de dois a cinco anos, conforme se alcança do art, 152.º nº 1 al. a) com referência ao n.º 2 do Código Penal.

O arguido A... não tem antecedentes criminais nem foi determinada anteriormente qualquer suspensão provisória do processo.

A ofendida requereu de forma livre e esclarecida a suspensão provisória do processo. O arguido aceitou a suspensão provisória do processo com imposição de injunções.

Há ainda que ponderar factores relativos à natureza do concreto ilícito praticado e à culpa do arguido, para que se possa fazer um juízo de que, previsivelmente, a suspensão provisória do processo será adequada e suficiente a garantir as finalidades de prevenção geral e especial subjacentes à intervenção do Direito Penal.

Considerando as necessidades de prevenção especial e atendendo às circunstâncias em que o evento ocorreu, estando já o casal separado a que acresce o facto de o arguido ter assumido os factos, o que revela consciencialização do ilícito praticado, entendemos que a aplicação das injunções permitem restabelecer o sentimento de segurança e confiança da comunidade face ao que a norma violada é reafirmada.

A imposição do cumprimento de injunções, bem como a possibilidade de prosseguimento do inquérito caso não as cumpra, mostra-se suficiente para afirmar junto do arguido a censurabilidade da sua conduta, conduzindo a que este se abstenha da prática de novos comportamentos ilícitos.

Pelo exposto, ao abrigo do art.º 281.º, n.º 1 e 282.º, ambos do C.P.P., e realizado o correspondente juízo de oportunidade, o Ministério Público determina a suspensão provisória do presente processo, em que é arguido A... pelo prazo de oito meses (ao abrigo do art.º 282º, n.º 1, do mesmo diploma legal, ficando o arguido sujeito a:

a) Não voltar a maltratar B... ;

b) Frequentar um programa especialmente vocacionado para o arguido a delinear pela DGRS com vista à problemática da violência doméstica;

c) Entregar a quantia de 300,00 € à vítima a efectuar no prazo de seis meses (ou seja, cinquenta euros por mês) o que efectuará por transferência bancária para o NIB a indicar pela ofendida;

d) Encontrar uma casa para habitar, distinta daquela onde se encontra, no prazo de três meses.


***

            Para tanto, remeta os autos à distribuição a fim de serem conclusos à Mma. Juiz de instrução nos termos e para os efeitos do disposto no art. 281.º nº 1 do Código de Processo Penal e, sendo caso disso, dar a sua concordância ao presente despacho.

            (…)”.


*

            Em 20 de Dezembro de 2016 a Mma. Juíza de instrução proferiu o seguinte despacho:

            Concordo com a suspensão provisória do processo nos termos determinados pelo Ministério Público (art. 281.º, n.ºs 1 e 7 do Código de Processo Penal.


*

            Com carimbo de entrada em juízo de 1 de Janeiro de 2017, a assistente apresentou o seguinte requerimento:

            “ (…).

            B... , assistente nos autos à margem referenciada, notificada do despacho que antecede vem expor requerendo o seguinte:

1º Foi a assistente B... notificada de despacho que ordena a suspensão provisória do processo.

2º A aplicação de tal instituto jurídico tem subjacente que haja requerimento livre e esclarecido da vítima.

3º Entendemos que não houve requerimento e que mesmo que tivesse existido não foi o mesmo esclarecido.

4º O que existiu foram declarações da assistente em sede de inquérito nas quais confirmou a existência dos factos objecto da denúncia inicial e que a final refere que "concorda com a possibilidade da aplicação do instituto da suspensão provisória do processo mediante a injunção do arguido nunca mais a mal tratar nem fisicamente nem verbalmente e mediante o pagamento de uma indemnização que seja adequada."

5º Em primeiro lugar a Assistente não requer, mas somente concorda com a possibilidade …

6º Em segundo lugar, a ora assistente condiciona a sua concordância com a possibilidade mediante também o pagamento de uma "indemnização que seja adequada".

7º A assistente não tendo proposto qualquer montante e/ou não lhe sendo comunicado o montante, deita completamente por terra o pressuposto do "esclarecimento".

Mas mais grave,

8º Entretanto vem a assistente requerer a sua constituição como assistente bem, como informar os autos do seu propósito de pedir indemnização civil.

9º Ora tal actividade processual é completamente incompatível com a concordância à possibilidade de suspensão do processo mediante designadamente o pagamento de quantia adequada.

10º Era por isso legalmente exigível que a ora assistente fosse notificada das injunções que realmente seriam aplicadas para dar o seu assentimento esclarecido.

11º Designadamente do quantitativo da indemnização arbitrada.

11º O que não sucedeu de todo.

12º Entendemos que o montante de trezentos euros é manifestamente insuficiente/inadequado atenta a factualidade vertida nos presentes autos.

12º Não tendo a vítima, ora assistente, sido cabalmente esclarecida nomeadamente do quantitativo da indemnização para decisão esclarecida.

13º Ademais, decorre suficientemente dos autos que a assistente padece de doença psiquiátrica, que como é óbvio a limita na sua compreensão das consequências processuais ora subjacentes.

14º Sem necessidade de outros considerandos nessa parte.

Termos em que se vem expressamente arguir a nulidade nos termos do art. 120 do CPP dos despachos que antecedem, de suspensão provisória do processo, uma vez que não foram praticados actos legalmente obrigatórios em sede de inquérito, nomeadamente as decisões para suspensão provisória do processo não foram precedidas de requerimento/concordância livre e esclarecida da vítima/assistente, pelo simples facto de desconhecer o que realmente foi proposto a final, nos termos do art. 281 nº 7 do C.P.P, dando sem efeito a suspensão provisória dos presentes, com as legais consequências.

(…)”.

Em 4 de Janeiro de 2017 a Digna Magistrada do Ministério Público promoveu o que segue:

“ (…).

Vem a Assistente Insurgir-se contra a aplicação do instituto da suspensão provisória do processo aduzindo, em suma, nada ter requerido a propósito da aplicação de tal instituto, tratando-se de requisito obrigatório para tal, concluindo, portanto, que devem os anteriores despachos ser declarados nulos.

Ora, B... foi inquirida nos presentes autos, a fls. 121, e declarou concordar «com a aplicação do instituto da suspensão provisória do processo mediante a injunção do arguido nunca mais a maltratar nem fisicamente nem verbalmente e mediante o pagamento de uma indemnização que seja adequada».

Como tal a ofendida, vítima do crime em apreço, concordou com a aplicação do instituto da suspensão provisória do processo. Acresce que não resulta das normas legais que a vítima tenha de dar a sua anuência às concretas injunções que sejam propostas, mas apenas a sua concordância à aplicação do instituto em causa.

Por outro lado, o facto de, entretanto a vítima ter vindo requerer a sua constituição como assistente e manifestado pretensão de pedir indemnização civil, não permite, só por si, extravasar a conclusão de que já não pretendia a aplicação do instituto da suspensão provisória do processo, uma vez que nada foi, a propósito, derrogado, sendo certo que à vítima cabe o arbitramento de uma indemnização mesmo que tal não tenha sido por si deduzido – cfr. art. 21.º da Lei 112/2009, de 16 de Setembro, indemnização, essa, aliás, contemplada em sede de injunção aplicada.

Como tal, remeta os autos à Mma Juiz de Instrução para apreciação do ora requerido, com a promoção de indeferimento.

 (…)”.


*

            Em 5 de Janeiro de 2017 a Mma. Juíza de instrução proferiu o seguinte despacho:

            A assistente veio apresentar reclamação relativamente ao despacho de concordância com a aplicação, pelo Ministério Público, do instituto da suspensão provisória do processo, nestes autos.

Em síntese, alega que somente "concordou com a possibilidade de aplicação do instituto da suspensão provisória do processo", não o tendo requerido; entendendo que o montante pecuniário que lhe foi arbitrado é insuficiente e inadequado.

O Ministério Público promoveu o indeferimento da reclamação.

Cumpre apreciar e decidir.

Em primeiro lugar, relativamente ao "requerimento livre e esclarecido" a que se refere o n.º 7 do art. 281.º do Código de Processo Penal, tem vindo a ser adorada prática por parte dos serviços do Ministério Público de, no decurso do inquérito, conceder à vitima de crimes de violência doméstica a explicação/informação das características e finalidades do instituto da suspensão provisória do processo, de modo a que esta possa, de modo livre e esclarecido, concordar, ou não, com a eventual aplicação desse instituto ao processo.

Afirmar que, quando a vítima "concorda" apenas o faz ("concorda") e nada "requer", significaria dizer que, afinal, "não concordava" com a eventual aplicação do instituto da suspensão provisória do processo. Então, se a vítima não concordava, não deveria afirmar precisamente o oposto no respectivo auto, como sucedeu nos presentes autos.

Tendo-o feito, o Tribunal entendeu que efectivamente concordava, ou seja, que requereria a sua aplicação, por sua iniciativa espontânea, caso soubesse da existência desse instituto processual, das suas características e finalidades; ao invés destas lhe terem sido explicadas e, após, essa explicação ter dito que concordava com essa possibilidade de aplicação.

De facto, não existem fórmulas sacramentais e, no caso sob apreço, entendo que a circunstância de ,e mencionar que a vítima "concorda", ao invés de "requer", o mesmo exato significado vem a representar.

No que concerne ao montante pecuniário que lhe foi arbitrado, a assistente defende que este é insuficiente e inadequado.

Trata-se, como refere o Ministério Público, de uma injunção, e não de pedido de indemnização civil.

Com efeito, no, termos do art.72.º, n.º 1, alínea b) do Código de Processo Penal, a ofendida pode deduzir pedido de indemnização civil em separado, perante o tribunal civil, quando o processo penal tiver sido suspenso provisoriamente.

É, precisamente esse, o caso.

De resto, cabe à ofendida a alegação e prova dos danos (morais ou patrimoniais) por si sofridos.

Pelo exposto, julgo improcedente a reclamação apresentada.

Taxa de justiça a cargo da assistente, que se fixa em 1,5 (uma e meia) UC, dada a significativa complexidade da, questões suscitadas (cfr. tabela III anexa ao Regulamento das Custas Processuais: Reclamação e pedidos de retificação).

Notifique.


*

            Inconformada com as decisões de 20 de Dezembro de 2016 e de 5 de Janeiro de 2017, recorreu a assistente, formulando no termo da motivação as seguintes conclusões:

            1º Dispõe o art. 281 nº 7 do C.P.P que "Em processos por crime de violência doméstica … o Ministério Público, mediante requerimento livre e esclarecido da vítima, determina a suspensão provisória …"

2º Declarando a vítima a Fls. 121: "que concorda com a possibilidade da aplicação do instituto da suspensão provisória do processo mediante a injunção do arguido nunca mais a maltratar nem física nem verbalmente e mediante o pagamento de uma indemnização que seja adequada", não se pode extrair a conclusão que a mesma requereu a aplicação do instituto da suspensão provisória do processo.

3º O facto da lei exigir que a vítima "requeira" terá certamente o intuito daquela ficar ciente que está a solicitar a aplicação e não a admitir a possibilidade longínqua da aplicação de tal instituto.

4º Sendo que as declarações imputadas à vitima facilmente induzem em erro, ou demonstram que a mesma apreendeu um sentido errado do que se pretendia.

5º Ademais, ainda que por mera hipótese, o que se não tolera, se entenda que quando a vítima estava a concordar com a possibilidade, estava a requerer, ainda assim falha em absoluto o pressuposto "esclarecido"

6º Porquanto, dizer-se que concorda com suspensão do processo mediante o pagamento de uma indemnização que seja adequada …", não esclarece minimamente a vítima da dimensão da compensação, não podendo esta aferir da adequação quantitativa.

7º A quantia proposta é manifestamente insuficiente.

8º É verdade que a ora assistente poderá sempre demandar civilmente o arguido, no entanto materialmente será muito penoso para a assistente ter que accionar novamente, com as suas limitações nomeadamente de saúde mental, quando o art. 21 da Lei 112/2009 de 16 de Setembro no seu número 1 prevê expressamente que "à vítima é reconhecido o direito de obter uma decisão de indemnização por parte do agente do crime em prazo razoável".

9º Dispõe o art. 31 da Lei 112/2009 de 16 de Setembro que no prazo de 48 horas após constituição de arguido o tribunal deve ponderar nomeadamente a medida de coacção do arguido não permanecer na residência onde o crime tenha sido cometido ou onde habite a vítima, o que não sucedeu e deveria ter sucedido.

10º Entendemos que o requerimento para constituição de assistente e a manifestação do propósito de dedução de indemnização civil, são absolutamente antagónicos às declarações prestadas anteriormente pela vítima.

11º Pelo que deveriam as declarações, enquanto vítima, terem sido dadas sem efeito.

12º Também, uma vez que a vítima se constituiu assistente, deveria obrigatoriamente ser consultada nessa qualidade relativamente à concordância com as injunções concretas a aplicar.

13º Conforme escreve a Dra. Isabel Branco in "considerações sobre a aplicação do instituto da suspensão provisória do processo" "A concordância do assistente e do arguido, tem de ser, não só para com a suspensão, mas também com a sua duração, e com as injunções e/ou regras de conduta associadas à suspensão."

14º Sendo legalmente exigível que a ora assistente, nessa qualidade fosse notificada das concretas injunções que efectivamente foram propostas, dando o seu assentimento esclarecido, designadamente do quantitativo da indemnização/compensação arbitrada, não tendo a assistente, nessa qualidade sido cabalmente esclarecida.

15º Consta da informação médica nomeadamente a Fls. 130 que a assistente terá perturbação mental designada por oligofrenia, o que faz pressupor a inconsistência das suas declarações e fraca compreensão das consequências processuais aumentando fazendo aumentar a gravidade da omissão processual em apreço.

16º Pelo que, considerando-se que houve violação do estatuído no art. 281 nº 1 al. a) do C.P.P.

17º Se requer a este Venerando Tribunal que declare a nulidade dos despachos judiciais que confirmaram a suspensão provisória dos presentes, por ilegais, dando sem efeito a mesma, com o prosseguimento normal dos autos nomeadamente a dedução da competente acusação pública.


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            Respondeu ao recurso a Digna Magistrada do Ministério Público, formulando no termo da contramotivação as seguintes conclusões:

            1. A vítima ao manifestar a sua concordância com a aplicação do instituto da suspensão provisória do processo, mais não fez do que requerer a aplicação do referido instituto, ou seja, a vítima concordou com a sua aplicação.

2. Refere a Assistente que deveria ter dado a sua concordância às concretas injunções aplicada e não deu.

3. Porém, em sede de inquirição, após lhe ter sido explicado o instituto em causa, a vítima requereu, inclusivamente, quais as medidas que, em concreto, pretendia que fossem aplicadas, o que fez, até, por sugestão própria, indicando que pretendia receber uma indemnização adequada e que o arguido não a voltasse a importunar.

4. O recorrente não concorda, agora, com o quantitativo arbitrado a propósito da injunção aplicada.

5. Sucede que tal compensação pecuniária foi tida em conta, considerando por um lado a situação da vítima e, por outro e, sem olvidar, a real situação, também ela do arguido, que não aufere rendimentos, e que é paraplégico.

6. Ademais, aquando da sua inquirição a vítima sugeriu a aplicação de quantia que fosse adequada, não avançando com qualquer montante.

            7. Sendo certo que, além dessas injunções, foram aplicadas ainda outras, havendo, portanto, um "plus" sobre as expectativas da vítima.

8. Não obstante a conduta do arguido, a verdade é que o mesmo é paraplégico, não tem rendimentos, afigurando-se-nos numa perspectiva de ponderação dos interesses em confronto que, a fim de organizar a sua vida, seriam suficientes os três meses que foram indicados para que abandonasse a sua casa, o que até foi proposto em sede de aplicação do instituto da suspensão provisória do processo.

9. O processo penal não tem como objectivo a resolução das questões patrimoniais ou semelhantes, designadamente a atribuição da casa de morada de família, mesmo naquelas situações em que um dos elementos é vítima de violência doméstica.

10. O crime de violência doméstica é um crime de investigação prioritária e reveste carácter urgente, o que não cessa com a aplicação do instituto da suspensão provisória do processo.

11. De qualquer forma, nenhuma consequência é extraída quanto ao facto da respectiva notificação ter sido efectuada em férias judiciais, não se vislumbrando que dali decorra qualquer nulidade a conhecer.

12. Pelo exposto, não violou o Tribunal a quo qualquer norma ou princípio jurídico-penais e, não cabendo razão ao Recorrente, deverá manter-se na íntegra os despachos ora recorridos, os quais foram exarados em harmonia com as normas legais, não se verificando a violação de quaisquer preceitos ou princípios jurídico-penais.

Termos em que Vossas Excelências farão a habitual Justiça!


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Também o arguido respondeu ao recurso, formulando no termo da contramotivação as seguintes conclusões:

1 – Decorre da motivação apresentada, que a Assistente recorre do despacho de concordância com a aplicação pelo Ministério Publico da suspensão provisória do processo e do despacho que manteve tal decisão após arguição de nulidade.

2 – Refere o artigo 281º n.º 6 do CPP que a decisão de suspensão em conformidade com o nº 1 não é susceptível de recurso.

3 – Ora, salvo melhor opinião, com a camuflada pretensão de impugnação de uma decisão que julgou de supostas nulidades, pretende a assistente alterar uma decisão que nos termos do 281º n.º 6 do CPP é irrecorrível,

4 – Tanto assim que nas suas motivações e conclusões a Assistente aproveita para censurar e pôr em crise as injunções aplicadas ao arguido, alegando que as mesmas são “intoleráveis” e, para alem disso, que o montante indemnizatório fixado é “manifestamente insuficiente”.

5 – Atendendo ao constante dos autos e face ao disposto no artigo 281º n.º 6 do CPP, é convicção do arguido que o presente não poderia ter sido admitido.

6 – Assim, e porque de acordo com o n.º 3 do artigo 414º do CPP, a decisão que admita o recurso ou que determine o efeito que lhe cabe ou o regime de subida não vincula o tribunal superior,

7 – Deverá o presente ser rejeitado.

Sem prejuízo do alegado supra dir-se-á que:

8 – Refere o artigo 281º n.º 1 alínea a) que para a suspensão provisória do processo é necessária a concordância do arguido e do assistente.

9 – Ora decorre das declarações de fls. 122 que a assistente declarou que “concorda com a possibilidade de aplicação do instituto da suspensão provisória do processo mediante a injunção do arguido nunca mais a maltratar nem física nem verbalmente e mediante o pagamento de uma indemnização que seja adequada”

10 – Das declarações prestadas pela assistente resulta claramente que a mesma concordou, deu o seu assentimento, à suspensão provisória do processo.

11 – E não se diga o contrário por força da redacção dada ao n.º 7 do mesmo preceito legal.

12 – Como bem sabe a Assistente, as declarações são prestadas, reduzidas a escrito e assinadas pelo Declarante depois de, em pormenor, lhes ser explicado o que é o instituto da suspensão, pressupostos, seus efeitos, consequências do mesmo para os ofendidos e respectivo processo.

13 – Da leitura do auto de folhas 122, resulta claramente que ofendida concordou com tal instituto e que à aplicação do mesmo não colocou qualquer condição.

14 – Carece igualmente de fundamento a Assistente quando diz que não se verificou o pressuposto ínsito no número 7 do 281º do CPP no que concerne ao “esclarecido”.

15 – Porquanto tal pressuposto nada tem a ver com o montante indemnizatório mas sim, e apenas, com o que é o instituto da suspensão no seu todo, ou seja, pressupostos de aplicação e respectivas injunções e regras de conduta.

16 – Insurge-se ainda a Assistente com a decisão proferida pelo facto de se ter constituído assistente e ter manifestado o propósito de formular pedido de indemnização civil.

17 – E ainda porque, segundo alega, a assistente terá perturbação mental.

18 – A ser verdade tal factualidade, ou seja, que as declarações da assistente são inconsistentes e que a mesma tem um fraca capacidade de compreensão como alega e que não foi devidamente esclarecida aquando das declarações de fls. 122, facto este que o arguido não aceita nem pode aceitar.

19 – Deveria o Ilustre Patrono nomeado, aquando da apresentação do requerimento para constituição de assistente, ter declarado desde logo que se opunha à suspensão provisória do processo.

20 – Com o devido e merecido respeito por opinião contrária, não vislumbra o arguido a razão de ser da argumentação vertida sob os números 20, ou seja, de que a constituição da ofendida como assistente e a manifestação do propósito de formulação de pedido indemnizatório, são antagónicas às declarações prestados a fls. 122. devendo estas ser declaradas sem efeito.

21 – Não existe nos autos qualquer contradição ou antagonismo.

22 – Tendo querido mudar de posição processual no que concerne a concordância prestada inicialmente, quanto à suspensão provisória o processo, deveria tê-lo feito de modo expresso e enquanto os autos o permitissem, declarando que se opunha à suspensão provisória do processo.

23 – E não ter-se remetido ao silêncio.

Termos que deverá o presente ser rejeitado, ou caso assim se não entenda, o que por mera hipótese de raciocínio se admite, deverá o Recurso improceder por manifesta falta de fundamento.

Assim se fazendo Justiça!


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Na vista a que se refere o art. 416º, nº 1 do C. Processo Penal, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, no sentido de que a assistente assentiu na possibilidade da suspensão provisória do processo mas não foi posteriormente informada dos concretos termos, fixados pelo Ministério Público, em que o instituto iria ser aplicado não podendo, assim, considerar-se ter havido concordância e, muito menos, esclarecida, já que não teve a possibilidade de avaliar e decidir se aceitava ou não as injunções a impor ao arguido, padecendo, por isso, os despachos recorridos de nulidade, e concluiu pelo provimento do recurso.

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            Foi cumprido o art. 417º, nº 2 do C. Processo Penal.

            Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre decidir.


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            II. FUNDAMENTAÇÃO

Dispõe o art. 412º, nº 1 do C. Processo Penal que, a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido. As conclusões constituem pois, o limite do objecto do recurso, delas se devendo extrair as questões a decidir em cada caso.

Assim, atentas conclusões formuladas pela recorrente, a questão a decidir, sem prejuízo das de conhecimento oficioso é a de saber se existe falta de requerimento livre e esclarecido da assistente e por via dela, a violação do disposto no art. 281º, nº 7 do C. Processo Penal.


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Com relevo para a resolução desta questão, colhem-se dos autos, ainda, os seguintes elementos:

i) No auto de declarações de 10 de Outubro de 2016, a fls. 124 a 125 do presente recurso [fls. 121 a 122 dos autos principais], a então ofendida B... , ouvida por uma técnica de justiça adjunta, disse o que segue:

“ (…).

Que confirma na íntegra a sua participação bem com as suas declarações já prestadas a Fls. 107, 108 e 109, querendo esclarecer novamente que não se recorda de qual a data em que começou a viver com o arguido sabendo sim que viveu com o mesmo cerca de 17 anos.

Que já não se recorda muito bem de tudo o que se passou nos dias 19/08/2016 e 13/08/2016, sabendo sim que o arguido lhe desferiu vários murros, sopapos na cabeça e chapadas e tudo porque tinham estado numa festa e esta andou a dançar e o arguido não gostou e quando chegaram a casa o mesmo e já no quarto começou a bater-lhe chamando-a de puta, vaca e porca e ainda lhe disse que esta tinha os cavaleiros que queria. Refere também que tem problemas de cabeça (depressão) andando a ser seguida na Psiquiatria em Castelo Branco, sendo a sua médica a Dra. K.... Tem consulta marcada para o dia 11/11/2016.

Que todos os meses tem que levar uma injecção, pensando que tem a ver com o seu sistema nervoso. Que vai levar essa injecção do Departamento de Psiquiatria de Castelo Branco.

Que o arguido e desde que se juntou com o mesmo sempre a tratou mal, injuriando-a e batendo-lhe. Que o arguido estava sempre a chamá-la de puta, vaca, porca e constantemente a acusava de esta ter amantes.

Que o seu filho por várias vezes lhe bateu com murros e também a chamou de puta, vaca e porca. O seu filho procedia deste modo por ver o pai fazer o mesmo. Que não deseja procedimento criminal contra o seu filho o qual se encontra a residir há cerca de 2 anos com uma irmã sua de nome H.... – Sintra. O mesmo encontra-se a estudar. O seu filho de vez em quando vem visitá-la e já não a trata mal. 

Já não se encontra a viver com o arguido, estando a viver há cerca de 3 semanas em união de facto com o Sr. C... o qual é seu amigo e a ajuda em tudo o que precisa.

Que o arguido se encontra a viver numa casa que é sua e das suas irmãs a qual se encontra em processo de partilhas. Que pretende que o arguido abandone a casa que não é dele.

Que concorda com a possibilidade da aplicação do instituto da suspensão provisória do processo mediante a injunção do arguido nunca mais a maltratar nem fisicamente nem verbalmente e mediante o pagamento de uma indemnização que seja adequada.

 E mais não disse. Lidas as suas declarações as achou conforme, ratifica e vai assinar.

(…)”.

ii) Por requerimentos, com carimbos de entrada em juízo de 2 de Novembro de 2016, a ofendida B... requereu a sua intervenção como assistente e manifestou o propósito de deduzir pedido de indemnização civil.

iii) Por despacho da Mma. Juíza de instrução de 12 de Dezembro de 2016, foi a ofendida B... admita a intervir nos autos como assistente.


*

            Da existência ou não de requerimento livre e esclarecido da assistente e da violação do disposto no art. 281º, nº 7 do C. Processo Penal

            1. Alega a recorrente – conclusões 2, 3, 6, 7, 10,14 e 15 – em abono da sua posição, que não requereu a suspensão provisória do processo, apenas concordou com a possibilidade da sua aplicação, que ainda que assim não fosse, o seu consentimento não foi esclarecido pois, ao concordar com a aplicação do instituto mediante indemnização adequada não lhe permite ajuizar da adequação quantitativa da quantia proposta, que o requerimento de constituição de assistente e manifestação de deduzir pedido de indemnização contraria as declarações anteriormente prestadas e que, já na qualidade de assistente, deveria ter sido obrigatoriamente consultada relativamente à concordância com as concretas injunções a aplicar e a elas deveria ter dado assentimento. 

            Vejamos se lhe assiste ou não razão.

            A eficiência do processo penal, entendida no sentido de eficiência para a concretização dos seus fins isto é, realização da justiça e paz social, levou o legislador a estabelecer, no que respeita à pequena criminalidade, espaços de consenso a par de espaços de conflito (cfr. 6, b) do Preâmbulo do C. Processo Penal), contando-se entre os primeiros, como procedimento alternativo de justiça negociada, a suspensão provisória do processo.   

           

            O instituto da suspensão provisória do processo que consiste, basicamente, em, existindo indícios suficientes do cometimento do crime pelo arguido, o inquérito não terminar com a dedução da acusação antes ficando suspenso durante um certo período, com a sujeição do arguido a injunções e regras de conduta fixadas pelo Ministério Público com a concordância do juiz, encontra-se previsto nos arts. 281º a 282º do C. Processo Penal [no que respeita à fase de inquérito].  

            1.1. No regime regra, a suspensão provisória pode ser da iniciativa do Ministério Público ou pode ser requerida pelo arguido ou pelo assistente e depende da verificação cumulativa, dos seguintes pressupostos (art. 281º, nº 1 do C. Processo Penal):

            - Concordância do arguido e do assistente;

            - Ausência de condenação anterior por crime da mesma natureza;

            - Ausência de aplicação anterior da suspensão provisória por crime da mesma natureza;

- Não haver lugar a medida de segurança de internamento;

- Ausência de um grau de culpa elevado; e

- Ser de prever que o cumprimento das injunções e regras de conduta dêem resposta suficiente às exigências de prevenção;

- Concordância do juiz de instrução.

O que confere carácter consensual a esta modalidade de justiça restaurativa é a necessária concordância, quanto à sua aplicação, quer do arguido, quer do assistente. Nenhuma justificação é exigível para as respectivas declarações de vontade, sendo bastante a simples afirmação de concordância com a suspensão, mas esta concordância deve abranger a totalidade da decisão de suspensão (cfr. Maia Costa, Código de Processo Penal Comentado, obra colectiva, 2014, Almedina, pág. 984).  

1.2. Ao lado do regime geral, a lei prevê regimes especiais de suspensão provisória, para determinados tipos legais, entre eles, para o crime de violência doméstica não agravado pelo resultado [que é o crime objecto dos autos].

No regime aplicável a este crime, compete à vítima, independentemente de ter ou não a qualidade de assistente, a iniciativa de desencadear o processo, mediante requerimento livre e esclarecido, e depende da verificação cumulativa dos seguintes pressupostos (art. 281º, nº 7 do C. Processo Penal):

- Concordância do arguido;

- Ausência de condenação anterior por crime da mesma natureza;

            - Ausência de aplicação anterior da suspensão provisória por crime da mesma natureza;

            - Concordância do juiz de instrução.

           

            Aqui chegados, a questão fulcral do presente recurso é a de saber se a vítima portanto, a ofendida B... , que não tinha então, a qualidade de assistente, desencadeou o processo mediante requerimento livre e esclarecido.

            2. Começa a recorrente por dizer que, como resulta das suas declarações, a fls. 121, nada requereu quanto à suspensão provisória do processo, apenas se limitou a admitir a possibilidade longínqua da sua aplicação, sendo que tais declarações facilmente induzem em erro ou demonstram que apreendeu um sentido errado do que se pretendia.

            No que respeita à suspensão provisória do processo, nas ditas declarações, a vítima, ouvida por uma senhora funcionária judicial, declarou: «Que concorda com a possibilidade da aplicação do instituto da suspensão provisória do processo mediante a injunção do arguido nunca mais a maltratar nem fisicamente nem verbalmente e mediante o pagamento de uma indemnização que seja adequada.». Conterá esta fórmula um requerimento?

            Requerimento é o acto ou efeito de requerer, petição por escrito, segundo certas fórmulas legais, pedido (Dicionário da Língua Portuguesa, Edição Revista e Actualizada, 2014, Porto Editora, pág. 1382). Na prática judiciária, os requerimentos podem ser orais e/ou escritos, mas o seu sentido é sempre o mesmo, a formulação de um pedido ou de uma exigência.

            Já a concordância significa o acto ou efeito de concordar, harmonia, acordo (ob. cit., pág. 396).

            Considerando o teor das declarações prestadas pela vítima, parece-nos evidente que a mesma não requereu a aplicação da suspensão provisória do processo, apenas concordou com ela, mediante o pagamento de uma indemnização que seja adequada. Com efeito, requerer e concordar não são sinónimos. E isso mesmo reconheceu a Mma. Juíza a quo quando, no segundo despacho recorrido, de indeferimento de nulidade, explicou ter entendido a concordância da vítima como significando que esta requereria a aplicação do instituto em causa, por sua espontânea iniciativa, se soubesse da sua [do instituto] existência, suas características e finalidades. Adiante, voltaremos a esta questão.

            Neste ponto, basta reter que o que a lei visa e não prescinde, em nosso entender, é que a vítima manifeste a sua vontade de forma voluntária e com pleno conhecimento de causa sobre as implicações da suspensão provisória do processo. Se o faz motu proprio ou, depois de esclarecida sobre tais questões, por entender que o instituto satisfaz os seus interesses, concorda com a sua aplicação, é apenas e só uma questão de forma. 

            3. O requerimento livre e esclarecido ou, preferindo-se, a manifestação de vontade no sentido da aplicação do instituto, livre e esclarecida significa, desde logo, que o declarante portanto, a vítima, a faz livre de qualquer coacção. Compreende-se a preocupação da lei pois, sendo o crime em questão, em regra, praticado no seio da família, onde, não obstante a sua prática, se mantém os laços entre agressor e vítima e não raras vezes, a permanência desta, ao menos, em termos relativos, na dependência afectiva e/ou económica daquele, existe o manifesto perigo de ter a sua vontade, a sua liberdade de decisão, condicionada pelo agressor.

            Por outro lado, a manifestação de vontade esclarecida significa que o declarante, a vítima, deve ter pleno conhecimento do que significa, relativamente a si e ao agressor, a aplicação do instituto, a fim de, sabedora de todos os dados relevantes, poder manifestar a sua vontade no sentido da aplicação ou não, da suspensão provisória do processo, tanto mais que, como vimos, depende exclusivamente de si, a iniciativa para o desencadear o mecanismo de consenso.

            Porém, embora não caiba ao Ministério Público a iniciativa, deve este avaliar se a vítima apresentou um requerimento livre e esclarecido sendo mesmo desejável, como nota Plácido Conde Fernandes (Violência doméstica – novo quadro penal e processual penal, Jornadas sobre a revisão do Código Penal, Revista do CEJ 1º semestre 2008, Número 8 Especial, pág. 327) a inquirição pessoal pelo magistrado do MP, para poder aquilatar da sua efectiva situação, confirmando se não se encontra de algum modo pressionada ou com a vontade diminuída.      

            Dito isto.

            A Mma. Juíza a quo, no despacho recorrido que indeferiu a arguição de nulidade, escreveu que «tem vindo a ser adotada prática por parte dos serviços de Ministério Público de, no decurso do inquérito, conceder à vítima de crimes de violência doméstica a explicação/informação das características e finalidades do instituto da suspensão provisória do processo, de modo a que esta possa, de modo livre e esclarecido, concordar, ou não, com a eventual aplicação desse instituto ao processo.».

            Não temos qualquer razão para duvidar de que assim seja. Todavia, independentemente da conformidade da prática adoptada, o que nos parece inegável, é que do auto de inquirição de fls. 124 a 125 destes autos [121 a 122 do processo principal] supra, transcrito, não consta que a senhora funcionária que realizou a diligência, tenha concedido à vítima e ora recorrente, qualquer explicação/informação das características e finalidades do instituto da suspensão provisória do processo. Muito menos constam os termos concretos em que tal explicação/informação teria sido efectuada.    

            O que sabemos, através da leitura de tais declarações, é que a vítima, ora recorrente, concordou com a possibilidade da aplicação do instituto da suspensão provisória do processo mediante a injunção do arguido nunca mais a maltratar nem fisicamente nem verbalmente e mediante o pagamento de uma indemnização que seja adequada.

            Não sendo a recorrente nem jurista nem cidadã habituada ao léxico judicial, a referência, nas suas declarações, a «injunção» e a «indemnização que seja adequada» só podem ficar a dever-se à senhora funcionária judicial, que desta forma exprimiu o que entendeu ser a vontade daquela. Por outro lado, independentemente de a injunção do arguido nunca mais a maltratar nem fisicamente nem verbalmente poder ser ou não [e não pode], como tal, considerada [a injunção tem por objecto a imposição de uma conduta activa ou passiva, condicionante da actividade normal do arguido, e não, a obrigação de não violar uma norma penal, que se impõe, ope legis, a todo e qualquer cidadão], o que, com toda a certeza decorre das declarações da vítima é que a mesma só considerou realizado ou suficientemente protegido o seu interesse, com a oposição ao arguido das injunções de não mais a maltratar e de a indemnizar de forma adequada. Dito de outra forma, só com a imposição destas duas injunções a vítima concordaria com a suspensão provisória do processo.

            É certo, como nota a Digna Magistrada do Ministério Público, na resposta ao recurso, que a vítima pretendeu uma indemnização adequada mas sem avançar qualquer montante. Mas cabe então perguntar: foi-lhe explicado que deveria indicar a quantia precisa que considerava adequada? Foi-lhe explicado que, mesmo que indicasse uma quantia concreta, sempre a injunção a fixar poderia ser de montante inferior? Não sabemos, e também não o podia saber a Mma. Juíza a quo, porque tal não consta do auto.

E se tais explicações tivessem sido dadas, cabendo exclusivamente à vítima decidir, teria ela, agora, plenamente esclarecida, dado a sua concordância à aplicação do instituto nessas condições? Também não sabemos.

            As injunções e regras de conduta a opor ao arguido no âmbito da suspensão provisória do processo visam repor o bem jurídico violado na tripla perspectiva, da reparação da vítima, da reparação do Estado e da ressocialização do arguido.

            Mas o que não pode ignorar-se é que, no âmbito da violência doméstica, o instituto visa, em primeira linha assegurar, os interesses da vítima (cfr. Sónia Fidalgo, O Consenso no Processo Penal: Reflexões Sobre a Suspensão Provisória do Processo e o Processo Sumaríssimo, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 18, Nºs 2 e 3, Abril – Setembro 2008, pág. 294).     

            Consideramos, portanto, que no concreto circunstancialismo dos autos, o requerimento livre e esclarecido ou, preferindo-se, a manifestação de vontade livre e esclarecida da vítima, de concordância com a suspensão provisória do processo, subordinada às referidas injunções, só revestiria a qualidade de esclarecida, se e quando a vítima fosse informada do quantitativo da indemnização que o Ministério Público propunha para a injunção e o aceitasse.

Na verdade, embora a lei não preveja, expressamente, que vítima tenha que concordar com as injunções em concreto, certo é que o requerimento livre e esclarecido é feito para cada caso concreto de violência doméstica e não, para uma abstracção, para uma situação hipotética e por isso, o estatuto da vítima neste tipo de criminalidade, com o maior protagonismo que lhe é atribuído, impõe que ela tenha um conhecimento, no mínimo, aproximado, do concreto conteúdo do regime de suspensão provisória que o Ministério Público se propõe aplicar, sob pena de o princípio de justiça restaurativa, com vista à reparação da vítima, que preside ao instituto, acabar por se frustrar.

In casu, o requerimento livre e esclarecido da recorrente ou a sua manifestação de vontade livre e esclarecida, enquanto vítima, só teria efectivamente tais características, se antes de proferido o despacho que determinou a suspensão provisória do processo, com as referidas injunções, a vítima tivesse sido informada do montante da indemnização que iria ser oposta ao arguido e com ele tivesse concordado.

            Como assim não aconteceu, foi esta medida de diversão e consenso determinada sem que se verificasse um dos seus pressupostos legais, a existência de requerimento livre e esclarecido da vítima, previsto no nº 7 do art. 281º do C. Processo Penal.

            4. A omissão da informação à vítima do quantitativo do montante da indemnização a opor ao arguido, ao consubstanciar, pelas razões sobreditas, a não verificação de pressuposto da determinada suspensão provisória do processo fosse, traduz-se numa omissão de acto legalmente obrigatório, causadora da nulidade relativa de insuficiência do inquérito (art. 120º, nº 2, d) do C. Processo Penal.

            Tal nulidade deveria ter sido arguida nos termos previstos no art. 120º, nºs 1 e 3, c) do C. Processo Penal. A recorrente foi notificada do despacho determinativo da suspensão provisória do processo no dia 2 de Janeiro de 2107 [cfr. fls. 206 e 214] e o seu Ilustre Patrono foi notificado do mesmo despacho a 26 de Dezembro de 2016 [cfr. fls. 207], tendo o requerimento de arguição de nulidade carimbo de entrada nos serviços do Ministério Público de 1 de Janeiro de 2017 (!) [cfr. fls. 210]. A nulidade foi, portanto, tempestivamente arguida.

            Nos termos do disposto no art. 122º, nº 1 do C. Processo Penal, a verificação da nulidade torna inválido o acto em que se verificou, bem como os que dele dependerem e aquela puder afectar. Por outro lado, a declaração de nulidade determina os actos que passam a considerar-se inválidos e ordena, sendo necessário e possível, a sua repetição (nº 2 do mesmo artigo).

            Impõe-se, portanto, o suprimento da nulidade, através da comunicação à recorrente da indemnização proposta e a consequente recolha da sua anuência ou não, o que implica a invalidação do processado a partir do despacho da Digna Magistrada do Ministério Público de 19 de Dezembro de 2016, inclusive – despacho que foi submetido, para concordância, à Mma. Juíza de instrução – e os termos subsequentes designadamente, o despacho de concordância da Mma. Juíza de instrução de 20 de Dezembro de 2016 e o despacho da Digna Magistrada do Ministério Público de 21 de Dezembro de 2016, que determinou a suspensão provisória do processo.


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            III. DECISÃO 

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação em conceder provimento ao recurso. Em consequência, decidem:

A) Julgar verificada a nulidade prevista no art. 120º, nº 2, d) do C. Processo Penal, pelas razões sobreditas e com as consequências de invalidação apontadas em II., 4., que antecede;

B) Revogar o despacho recorrido de 5 de Janeiro de 2017 e determinar a sua substituição por outro que, na decorrência da declarada nulidade e com vista ao seu suprimento, ordene a realização da omitida informação à vítima.


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C) Recurso sem tributação, atenta a sua procedência (art. 515º, nº 1, b) do C. Processo Penal).

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Coimbra, 21 de Junho de 2017

(Heitor Vasques Osório – relator)

(Helena Bolieiro – adjunta)