Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
244/11.0TBTBU.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA DOMINGAS SIMÕES
Descritores: ÓNUS DE ALEGAÇÃO
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
Data do Acordão: 10/21/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TÁBUA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART. 514º Nº2 DO CPC
Sumário: I. Não sendo pacífico o entendimento do que sejam estes “factos conhecidos do Tribunal por virtude do exercício das suas funções”, parece que “Na melhor interpretação, o art.º 514.º, n.º 2 do CPC constitui manifestação do princípio geral da eficácia do caso julgado ou do valor extraprocessual das provas”.

II. Não deve ser caracterizado e conhecido como tal o facto, declarado pelo réu perante o ISS para efeitos de obtenção de protecção jurídica, do seu filho e tomador do seguro integrar o seu agregado familiar, em ordem a considerá-lo para efeitos de preenchimento de excepção peremptória não invocada.

III. Se o réu assim declarou em requerimento de protecção jurídica, que fez juntar aos autos com o (único) propósito de lhe não ser exigido comprovativo do pagamento da taxa de justiça inicial, tal declaração não supre a falta de alegação dos factos integradores da excepção nem constitui meio de prova bastante para que se dê como provado que vive em economia comum com o tomador do seguro, a tal obstando o consagrado ónus da alegação e o ainda o princípio do contraditório.

Decisão Texto Integral:

I. Relatório
No Tribunal Judicial de Tábua,
A..., S.A., com sede na Av. (....), Lisboa, instaurou contra B...., casado, residente na Rua (....), Custóias, a presente acção declarativa de condenação, a seguir a forma ordinária do processo comum, pedindo a final a condenação do réu no pagamento da quantia de € 55.751,58 (cinquenta e cinco mil, setecentos e cinquenta e um euros e cinquenta e oito), acrescida dos juros à taxa legal, contados desde a citação até efectivo e integral pagamento.
Em fundamento alegou, em síntese útil, ter celebrado com C... contrato de seguro do ramo “casa”, titulado pela apólice n.º 588805001, nos termos do qual assumiu, para além do mais, o risco de incêndio, tendo por objecto a casa de habitação situada no Lugar (...), em Tábua, propriedade do tomador do seguro.
Mais alegou que a referida casa veio a sofrer extensos danos em consequência de incêndio que deflagrou no dia 6/1/2009, provocado com culpa pelo ora réu, pai do segurado, que ali se deslocara, tendo abandonado o local deixando acesas a lareira, salamandra e velas, indiferente ao facto do local se encontrar repleto de materiais inflamáveis, tudo conforme consta da sentença condenatória proferida no âmbito do processo 12/09.9 GATBU em 10/03/2011, já transitada em julgado.
Da peritagem e orçamentação -efectuadas pela empresa L...., S.A., no que alega ter despendido €1 649,50- resultou que a reparação dos danos provocados pelo incêndio, incluindo a substituição dos objectos e mobiliários destruídos, ascendia a €54.247,08 quantia que, em cumprimento do contrato celebrado, satisfez ao C... deduzida da franquia fixada, no montante de €145,00.
Sucede que, aquando do pagamento da referida indemnização, o lesado C... declarou exonerar a Autora “de toda e qualquer responsabilidade que diga respeito ao mesmo sinistro, sem excepção alguma, subrogando-a em todos os direitos, acções e recursos”. Por força da sub-rogação voluntária assim operada, adquiriu a demandante os direitos do sub-rogante nomeadamente o direito de acção contra o aqui réu, tendo direito a ser reembolsada dos montantes despendidos, no valor global de € 55.751,58 (cinquenta e cinco mil, setecentos e cinquenta e um euros e cinquenta e oito) que reclama.
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Citado o ré, invocou ter actuado com mera negligência (inconsciente), tal como foi considerado na sentença proferida no âmbito do processo-crime invocada pela autora. Uma vez que a esta só assiste o direito a ser reembolsada quando o terceiro lesante tiver actuado de forma dolosa, não lhe assiste, no caso, tal direito contra o contestante.
Com tais fundamentos, concluiu pela improcedência da acção e sua consequente absolvição.
Juntou aos autos documento comprovativo do pedido de apoio judiciário formulado.
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Prosseguiram os autos com selecção dos factos assentes e organização da base instrutória, peças que se fixaram sem reclamação das partes.
Teve lugar audiência de discussão e julgamento, com observância do legal formalismo como da respectiva acta consta, vindo a final a ser proferida sentença que, na parcial procedência da acção, condenou o réu a pagar à autora a quantia de a quantia de €54.102,08 (cinquenta e quatro mil, cento e dois euros e oito cêntimos), acrescida de juros de mora à taxa legal desde a citação e até efectivo e integral pagamento.
Inconformado, apelou o réu e, tendo apresentado alegações, rematou-as com as seguintes conclusões:
“1.ª- O Tribunal condenou o Recorrente ao pagamento da quantia de 54.102,08€, à Recorrida, A..., S.A., em virtude desta ter despendido tal quantia com o incêndio ocorrido na habitação de C..., filho do Recorrente;
2.ª- Para tanto, baseou-se o Tribunal na prova documental junta aos autos em conjunto com a prova testemunhal produzida.
3.ª- Entende o Recorrente estar-se perante o paradigma consagrado no n.º 2, do artigo 412.º, do Código de Processo Civil: “Também não carecem de alegação os factos de que o tribunal tem conhecimento por virtude do exercício das suas funções; quando o tribunal se socorra destes factos, deve fazer juntar ao processo documento que os comprove.”
4.ª- Teve o Tribunal a quo conhecimento (e prova) da existência da relação de parentesco, e da vivência em economia comum, entre o segurado e o ora Recorrente: seu pai.
5.ª- Vários são os documentos constantes dos autos que isso mesmo atestam:
a. o requerimento de apoio judiciário junto aos autos com a contestação onde, no mais, é referido (pág. 1) ser o segurado dependente do recorrente e fazendo o mesmo, parte do seu agregado familiar;
b. nesse mesmo documento, pág. 4, pode constatar-se a assunção do pagamento de propinas, por parte do Recorrente, de ambos os descendentes, nele se incluindo o tomador do seguro: C....
c. as diversas notificações relativas à apólice de seguro foram sempre enviadas pela Recorrida para a direcção do segurado que é, e sempre foi, a casa de morada de família do Recorrente: Rua (....), Custóias.
d. As próprias notificações judiciais realizadas pelo Tribunal ao segurado, C..., foram, também elas sempre dirigidas para a casa do Recorrente, bem sabendo que era aí que vivia o segurado: Rua (....), Custóias.
6.ª Bem sabia a Recorrida e o Tribunal que o segurado C...residia com o seu pai, ora Recorrente, em economia comum, na morada do agregado familiar: Rua (....), Custóias.
7.ª Objectivamente, no ponto 3. do Requerimento de Apoio Judiciário acima referido e constante dos autos, pode constar-se expressamente que são indicadas todas as pessoas que vivem em economia comum (…) e aí figura, sem qualquer margem de dúvida, o seu cônjuge e os dois filhos de ambos, concretamente o segurado, C... e sua irmã, D...
8.ª Também a sentença penal que foi junta aos autos elucida que “…a casa do seu filho C...., que se encontra descrita na Conservatória do Registo Predial de Tábua sob o número (...), destinada exclusivamente a habitação e composta por cave, rés-do-chão e sótão, mas não estava a ser habitada pelo próprio nem por outras pessoas.”
9.ª A decisão sob censura refere também que “o Réu actuou com culpa, na forma negligente (…)”, ou seja, está assim cumprido o pressuposto intimado pelo n.º 4, do artigo 136.º, do Regime Jurídico do Contrato de Seguro: o pressuposto da ascendência e da exigibilidade do não dolo.
10.ª Este artigo veio alinhar o regime nacional com a solução comum no direito comparado próximo, ao fixar a exclusão da sub-rogação pelo segurador em certos casos em que a sua admissão iria resultar em prejuízo directo ao segurado, prejudicando portanto a protecção que a este foi dada pelo funcionamento da cobertura do contrato de seguro.
11.ª Por outro lado, não se poderia deixar de observar um dos princípios legais pelos quais se pautam as condutas judiciais, consagrado no n.º 1 e 2, do artigo 7.º, do Código de Processo Civil.
12.ª Este Princípio da Cooperação destina-se, precisamente, a transformar o Processo Civil numa comunidade de trabalho, responsabilizando-se as partes e o Tribunal pelo seu resultado.
13.ª- Resulta de forma clara e inequívoca dos documentos constantes do processo, nos quais fundou o Tribunal “a quo” a sua convicção, o preenchimento do requisito vertido na alínea b), do n.º 4, do artigo 136.º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro, relativamente à sub-rogação pelo segurador. Todavia,
14.ª Esse entendimento não faz a sentença que se ousa censurar. Apenas se escuda numa interpretação que confronta com um princípio basilar do Direito: o Princípio da cooperação inter-subjectiva.
15.ª Apesar dos diferentes documentos elucidarem tal questão, se dúvidas ainda subsistissem, sempre se formaria a referida comunidade de trabalho, diluindo-se quaisquer perguntas para as quais o julgador não tinha então resposta.
Mas tal não foi seguido!
16.ª Entende o Recorrente estar perante facto não merecedor de alegação; por um lado, por se vislumbrar que sendo o segurado estudante e não habitando na casa segurada haveria de habitar no lugar onde recebe, e sempre recebeu, toda e qualquer notificação judicial ou não judicial. Por outro lado, existe ainda nos autos o requerimento supra referido nos pontos 6. 7. e 8. que, expressamente, refere o segurado como fazendo parte do agregado familiar vivendo, então, em economia comum com os demais, onde se inclui o seu pai, ora Recorrente.
17.ª- Condenar o Recorrente no pagamento do valor superior a 54.000,00€, por uma conduta negligente e por não alegar um facto que, apesar de não notório, o Tribunal poderia e deveria ter-se socorrido dos elementos constantes dos próprios autos, mais não é do que enveredar por solução ao arrepio do sentimento de justiça e paz jurídica – acabando por adjudicar uma condenação a uma tecnicalidade jurídica”.
Com os aludidos fundamentos, no pressuposto do provimento do recurso interposto, pretende a prolação de decisão que absolva o recorrente do pedido.
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Contra alegou a autora apelada e, destacando a circunstância do recorrente não ter alegado nem provado que vivia em economia comum com o tomador do seguro, não podendo, para além do mais, ser utilizado como meio de prova o requerimento apresentado tendo em vista a concessão do benefício do apoio judiciário, concluiu pela manutenção da sentença impugnada.
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Assente que pelo teor das conclusões se define e delimita o objecto do recurso, consoante resulta do disposto no art.º 639.º, n.ºs 1 e 3 do CPC, constitui única questão a decidir saber se o Tribunal devia/podia ter tomado em consideração o que pelo recorrente foi declarado em sede do requerimento de concessão do apoio judiciário, daí extraindo o facto do tomador do seguro com ele residir em economia comum, corroborado, para além do mais, por outros factos dispersos constantes dos autos, e assim dando como preenchida a excepção consagrada no n.º 4 do art.º 136.º da Lei do Contrato de Seguro.
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II. Fundamentação
De facto
Não tendo sido impugnada a matéria de facto dada como assente na 1.ª instância, nem sendo caso de proceder à sua modificação oficiosa, são os seguintes os factos a considerar:
1. No exercício da sua actividade comercial, a Autora celebrou com C..., a 18.05.2006, com renovação anual, um acordo, titulado pela apólice de seguro n.º 588805001, através do qual a primeira declarou assumir a responsabilidade pelos danos decorrentes do risco de ocorrência de alguma das circunstâncias ali melhor indicadas, designadamente de incêndio na casa de habitação sita ao Lugar do (...), Tábua.
2. Por sentença proferida no dia 10.03.2011, transitada em julgado em 30.03.2011, no âmbito do processo n.º 12/09.9GATBU que correu termos neste Tribunal, o Réu, aí arguido, foi condenado pela prática de um crime de incêndio previsto e punido pelo artigo 272.º n.º 1, al. alínea a) e n.º 3 do Código Penal, numa pena de oito meses de prisão substituída por 150 dias de multa, à razão diária de €.25,00, perfazendo o montante global de €.3750,00 (três mil setecentos e cinquenta euros).
3. Da sentença referida em 2., e como fundamento da condenação do Réu, aí arguido, constam como provados os seguintes factos:
«A. No dia 6 de Janeiro de 2009 o arguido dirigiu-se à localidade de (...), a uma casa do seu filho C..., que se encontra descrita na Conservatória de Registo Predial de Tábua sob o número (...), destinada exclusivamente a habitação e composta por cave, rés-do-chão e sótão, mas que não estava a ser habitada, nem pelo próprio nem por outras pessoas.
B. A casa é de construção antiga, com cerca de 80/90 anos, com paredes exteriores em alvenaria (granito), paredes interiores em tabique, soalho em madeira, forro do tecto e estrutura do telhado também em madeira.
C. O rés-do-chão do imóvel, que corresponde à parte habitacional, continha algum mobiliário e materiais diversos, como cadeiras, portas, janelas, tábuas, roupas, que ali estavam sob a forma de depósito e que iam sendo levadas para o local pelo arguido nas diversas vezes que aí se deslocou.
D. A mencionada casa havia sido adquirida por C..., por escritura pública de 18 de Maio de 2006, celebrada no 2.º Cartório Notarial de Matosinhos, constando como primeiros outorgantes o arguido e mulher F..., aquele também na qualidade de sócio gerente da sociedade de E..., Lda., pelo preço de €75.000,00.
E. Para aquisição do imóvel o comprador contraiu um empréstimo no mesmo valor junto do Banto Espírito Santo, SA, para garantia do qual foi constituída hipoteca sobre o imóvel acima descrito, tendo sido celebrado contrato de seguro para cobrir designadamente os riscos de incêndio na A..., com a apólice 588805001.
F. No dia supra referido o arguido entrou na mencionada habitação, acendeu a lareira da cozinha, a salamandra e algumas velas existentes em várias divisões da casa, designadamente na sala e num quarto.
G. Cerca das 20h30 desse mesmo dia o arguido ausentou-se do local em direcção à sua residência sita em Matosinhos, fechando devidamente as portas e janelas, mas sem apagar a lareira da cozinha, a salamandra e as velas.
H. Porque a habitação estava repleta de materiais facilmente inflamáveis, designadamente junto à lareira da cozinha, rapidamente o fogo emanado da lareira se propagou aos materiais circundantes, destruindo quase integralmente o forro do tecto e os diversos objectos que se encontravam nas proximidades, nomeadamente tábuas, portas, mesas e cadeiras.
I. Simultaneamente, a chama de uma vela deixada num dos quartos com 5 m2, anexo à cozinha, propagou-se aos diversos materiais existentes nessa divisão destruindo as paredes e o forro do tecto.
J. Embora o incêndio tivesse tido origem nestas duas divisões, destruindo-as quase por completo, a restante habitação, devido sobretudo às correntes de convecção e à desenfumagem dos espaços onde os focos de incêndio se iniciaram, ficou também com alguns danos, designadamente fixação de fuligem e derretimento de materiais plásticos, causando um prejuízo total de pelo menos € 54 102,08.
K. O incêndio em causa foi detectado pelas 21h42 do mencionado dia 6 de Janeiro de 2009, tendo sido combatido pelos Bombeiros Voluntários de Tábua, que acorreram ao local de imediato e evitaram, com a sua acção, um maior nível de destruição na residência e a sua propagação às residências próximas, que com ela confrontam a Norte.
L. O arguido não ignorava que, deixando velas e a lareira acesas junto a materiais potencialmente inflamáveis ou de fácil combustão, poderia vir a causar incêndio naquela casa de habitação, susceptível de se propagar a outras habitações contíguas, não se conformando, porém, com esse resultado.
M. Actuou o mesmo de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era susceptível de colocar em perigo bens patrimoniais alheios de valor elevado.
N. O arguido sabia que a sua conduta era prevista e punida por lei como ilícito criminal.»
4. Por força do acordo referido em 1), a Autora entregou a C... a quantia de €.54.102,08 a título de indemnização pelos danos decorrentes do incêndio referido, tendo aquele declarado por escrito «exonerar a A..., S.A. de toda e qualquer responsabilidade que diga respeito ao mesmo sinistro, sem excepção alguma, subrogando-a em todos os direitos, acções e recursos.»
5. Para além da indemnização referida em 4), a Autora despendeu €.1.649,50 para pagamento dos honorários da empresa L..., S.A. que contratou para efectuar a peritagem dos danos causados na referida casa de habitação.
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De Direito
Encontra-se assente sem discussão nos autos que a autora celebrou com o filho do réu C...-a própria demandante invocou o parentesco- contrato de seguro do ramo “casa”, tendo por objecto uma casa de habitação pertença do tomador de seguro, sita na vila de Tábua, nos termos do qual garantiu a cobertura de determinados riscos, incluindo o de incêndio.
Demonstrado ficou também que, por via de incêndio que deflagrou no dito imóvel no dia 6 de Janeiro de 2009, o mesmo sofreu estragos, quer ao nível da estrutura, quer do recheio que o equipava, ascendendo o custo da recuperação ao valor de €54.247,08, que a autora satisfez ao tomador de seguro, deduzida da quantia de €145,00 correspondente à franquia contratualmente fixada.
Invocando ter ficado sub-rogada nos direitos do lesado tomador do seguro por via de declaração por este efectuada, veio a demandante seguradora exercer contra o réu o direito de acção que àquele competia, tendo em vista ser indemnizada pelos prejuízos por este causados.
Não questionou o apelante em sede de recurso a verificação de todos e cada um dos pressupostos da responsabilidade civil por acto ilícito, tal como os enuncia o art.º 483.º do Código Civil, defendendo no entanto que à autora não assiste o direito de sub-rogação que pretende exercer, atenta a excepção consagrada na al. b) do n.º 4 do art.º 136.º da Lei do Contrato de Seguro. Vejamos, pois, da razão que lhe assiste (ou não).
Antes de mais, cabe referi-lo, temos as maiores dúvidas que ao caso seja aplicável o regime dos contratos de seguro aprovado pelo citado diploma.
Conforme resulta do disposto no art.º 7.º do DL n.º 72/2008, de 16 de Abril, o diploma iniciou a sua vigência no dia 1 de Janeiro de 2009, encontrando-se portanto em vigor à data do sinistro, ocorrido escassos 8 dias depois. No entanto, a norma transitória constante do n.º 2 do art.º 2.º, subtraía expressamente à aplicação do novo regime “os sinistros ocorridos entre a data da entrada em vigor do presente decreto-lei e a data da sua aplicação ao contrato de seguro em causa”. A compreensão desta estipulação impunha a sua leitura conjunta com a disposição imediata, estabelecendo o art.º 3.º que “Nos contratos de seguro com renovação periódica, o regime jurídico do contrato de seguro aplica-se a partir da primeira renovação posterior à data da entrada em vigor do presente decreto-lei, com excepção das regras respeitantes à formação do contrato, nomeadamente….” (vide o teor do n.º 1).
Sucede que o contrato dos autos, tendo tido o seu início de vigência em Maio de 2006, conforme consta da respectiva apólice, junta aos autos com a petição inicial, renovava-se anualmente, daqui resultando que a primeira renovação posterior à data da entrada em vigor do diploma em referência ocorreu em Maio de 2009, data posterior à da ocorrência do sinistro.
Tendo assim por aplicável quanto a respeito dispunha o velhinho Código Comercial, a verdade é que consagrando, no seu art.º 441.º[1], em termos idênticos, a sub-rogação do segurador nos direitos do segurado, não consagrava excepção idêntica à agora constante do n.º 4 do seu sucessor art.º 136.º.
De todo o modo, nem decidindo pela aplicabilidade do novo normativo a pretensão do apelante mereceria acolhimento.
Nos termos do convocado art.º 136.º, o segurador que tiver pago a indemnização fica sub-rogado, na medida do montante pago, nos direitos do segurado contra o terceiro responsável pelo sinistro (vide n.º 1). Todavia, em obediência ao princípio da intangibilidade da indemnização, é inaplicável aquele n.º 1 “Contra o cônjuge, pessoa que viva em união de facto, ascendentes e descendentes do segurado que com ele vivam em economia comum, salvo se a responsabilidade destes terceiro for dolosa ou se encontrar coberta por contrato de seguro” (al. b) do n.º 4 do mesmo preceito). Com a consagração da aludida excepção quis o legislador evitar que, por via da sub-rogação legal consagrada, o prejuízo acabasse afinal por recair na esfera jurídica do tomador do seguro.
Não obstante a solução consagrada -e é esta a primeira nota a reter- a norma em apreço não reveste natureza imperativa, podendo ser afastada se essa for a vontade das partes. Resulta claro do art.º 11.º do mencionado diploma que o princípio geral nesta matéria é o da liberdade contratual e consequente supletividade das regras do regime jurídico do contrato de seguro. Sem embargo, prescreve-se nos art.º 12.º e 13.º a designada imperatividade mínima, distinguindo entre as regras absolutamente imperativas, que não podem ser afastadas, com excepção dos seguros de grande risco, e as regras relativamente imperativas, que podem ser afastadas mediante convenção pelas partes de solução mais favorável ao tomador do seguro. Sucede, porém, que o dito art.º 136.º não se encontra contemplado no elenco de nenhuma das aludidas normas, donde impor-se a conclusão que se trata de solução que podia ser afastada pelas partes.
Por outro lado, tratando-se de matéria exceptiva, parece fora de dúvida que os factos fundamento da excepção teriam de ser alegados pelo réu -art.º 5.º, n.º 1, aqui consagrando o ónus de alegação sem desvio relevante quando confrontado com o art.º 263.º, n.º 1 do CPC cessante- e, sob pena de preclusão, teria de o fazer na contestação que oportunamente apresentou. Tal é a solução que resulta do disposto nos artigos 489.º e 490.º do CPC em vigor à data em que foi apresentada a contestação e que o NCPC manteve (cfr. art.ºs 573.º e 574.º deste diploma).
No caso em apreço, conforme o réu reconhece, não alegou o facto nem invocou a excepção. Defende, porém, que o Tribunal deveria ter por adquirido que o tomador do seguro, seu filho, consigo vivia em economia comum, porque tal resulta do requerimento apresentado no ISS para efeitos de concessão do benefício do apoio judiciário, tratando-se por esta via de facto conhecido da Mm.ª juíza por força do exercício das suas funções, não carecido portanto de ser alegado.
Tal entendimento, porém, não o podemos validar.
“Prima facie”, há que referi-lo, trata-se de questão nova, suscitada pela primeira vez por esta via do recurso. É sabido que os recursos ordinários visam o reexame da decisão proferida, assentando nos pressupostos considerados pelo Tribunal que a proferiu. Se assim é, estão excluídas do poder de cognição do Tribunal de Recurso quaisquer questões não colocadas perante o Tribunal que proferiu a decisão recorrida.
Mas ainda que assim não fosse, obstáculos intransponíveis se levantavam à procedência da pretensão assim formulada.
É certo que o art.º 412.º do NCPC, reproduzindo o anterior 514.º, estabelece, no seu n.º 2, que “Também não carecem de alegação os factos de que o Tribunal tem conhecimento por virtude do exercício das suas funções; quando o Tribunal se socorra desses factos, deve fazer juntar ao processo documento que os comprove”.
Não sendo pacífico o entendimento do que sejam estes “factos conhecidos do Tribunal por virtude do exercício das suas funções”, parece que “Na melhor interpretação, o art.º 514.º, n.º 2 constitui manifestação do princípio geral da eficácia do caso julgado ou do valor extraprocessual das provas”[2], não podendo ultrapassar-se por esta via a falta de alegação de factos integradores de uma excepção que não é de conhecimento oficioso. Ademais, vem sendo entendido que só integram a previsão legal os factos já julgados pelo mesmo juiz num outro processo[3], o que não é aqui o caso.
Equacionada a questão à luz do art.º 413.º, que reproduziu sem alteração o art.º 515.º, segundo o qual o Tribunal deve tomar em consideração todas as provas produzidas, tenham ou não emanado da parte que devia produzi-las -princípio da aquisição processual- também aqui a pretensão do apelante não encontra acolhimento.
Nos termos do aludido princípio, as provas acumuladas no processo consideram-se adquiridas para o efeito da decisão de mérito, pouco importando saber por via de quem foram trazidas para os autos[4]. Todavia, o assim consagrado há-de ser concertadamente interpretado com o disposto no art.º 410.º (correspondendo ao cessante art.º 513.º), nos termos do qual a instrução tem por objecto os temas da prova enunciados ou, quando não tenha havido lugar a esta enunciação, os factos necessitados de prova. E que temas e factos são estes? Os que provêm da alegação das partes nos termos do antes citado art.º 5.º, seleccionados em função do objecto do litígio que haja sido definido (cfr. art.ºs 591.º, n.º1, al. f), 595.º e 596.º do NCPC). Se assim é, não estão contemplados factos integradores de uma excepção não invocada, tratando-se, para além do mais, de factos declarados pelo réu num outro contexto e que vieram ao processo de forma oblíqua, não tendo sido sujeitos a contraditório nem sido objecto de instrução.
O réu declarou perante a Segurança Social, em requerimento de protecção jurídica, que o seu agregado familiar era composto, para além do mais, pelo tomador do seguro C..., documento que juntou aos autos com a contestação, com o (único) propósito de lhe não ser exigido comprovativo do pagamento da taxa de justiça inicial. Pretender agora que a junção do aludido documento supre a falta de alegação dos factos integradores da excepção e constitui ainda meio de prova bastante para que se dê como provado que vive em economia comum com o tomador do seguro, colide frontalmente com o ainda consagrado ónus da alegação e com o princípio do contraditório (cfr. art.º 415.º). Acresce que, nem o alegado no requerimento em causa, na sua literalidade, corresponde ao facto integrador da excepção, nem o facto invocado se encontra demonstrado, posto que proveniente de mera declaração do interessado, não confirmada, efectuada pelo próprio réu, é certo, mas nas suas vestes de requerente do benefício da protecção jurídica.
Por outro lado, invocar os princípios da cooperação e da justiça material em abono da derrogação da decisão proferida é esquecer os enunciados princípios -do dispositivo, ainda que temperado, e do contraditório- que (ainda) enformam o nosso direito processual civil, estabelecidos, também eles, tendo em vista garantir um processo justo e equitativo. Com efeito, que justiça seria feita à autora apelada se, em total desrespeito pelo ónus da alegação e flagrante violação do princípio do contraditório, fosse na decisão admitido e valorado um meio de prova sem que lhe tivesse sido dada a oportunidade de o contraditar, e dando como provado um facto de importância crucial do qual, por não alegado, não se tinha defendido? Salvo melhor opinião, não se trata aqui de “adjudicar uma condenação a uma tecnicalidade[5] jurídica”, não só porque não estamos perante um pormenor ou detalhe, mas e sobretudo porque a lei repele a pretensão do apelante.
Ademais, tal como a apelada não deixou de fazer notar, atento o teor da declaração emitida pelo tomador do seguro, a sub-rogação neste caso é voluntária (cfr. art.º 589.º do Código Civil), pelo que sempre teria de se concluir pelo afastamento da regra de excepção estabelecida no n.º 4 do art.º 136.º da Lei do Contrato de Seguro.
Em suma, tendo a apelada satisfeito a indemnização devida ao lesado tomador do seguro e ficado sub-rogada nos seus direitos por expressa declaração deste, traduzindo a sub-rogação “a substituição do credor, na titularidade do direito a uma prestação fungível, pelo terceiro que cumpre em lugar do devedor ou que faculta a este os meios necessários ao cumprimento”[6] podia, como fez, reclamar do réu a quantia despendida.
Em face do exposto, improcedendo todas as conclusões de recurso, impõe-se manter a irrepreensível sentença recorrida.
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V. Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes da 1.ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra em julgar improcedente o recurso interposto pelo réu, mantendo a sentença apelada.
Custas a cargo do apelante, sem prejuízo do benefício da protecção jurídica que lhe tenha sido concedido.
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Maria Domingas Simões (Relator)
Nunes Ribeiro
Helder Almeida

                                                           
[1] Com o seguinte teor:
441.º
Sub-rogação do segurador nos direitos do segurado

O segurador que pagou a deterioração ou perda dos objectos segurados fica sub-rogado em todos os direitos do segurado contra terceiro causador do sinistro, respondendo o segurado por todo o acto que possa prejudicar esses direitos.
§ único. Se a indemnização só recair sobre parte do dano ou perda, o segurador e o segurado concorrerão a fazer valer esses direitos em proporção à soma que a cada um for devida.
[2] Lebre de Freitas, Introdução ao processo civil (conceito e princípios gerais), 2.ª Ed., Reimpressão, pág. 148.
[3] A propósito destes factos, a que se reportava o art.º 518.º do CPC 1939, anotava o Prof. José Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, vol. III, 3.ª edição, reimpressão, Coimbra Editora, 1981, p. 264, que: "O facto há-de constar de qualquer processo, acto ou peça avulsa em que o juiz tenha intervindo como tal".
[4] Prof. Alberto dos Reis, Código do Processo Civil Anotado, vol. III citado, pág. 273.
[5] Do inglês technicality “a small detail in a rule, law, and especially one that forces an unwanted or unexpected result”, no dicionário on line.
[6] Prof. Antunes Varela, in Das Obrigações em Geral, vol. II, 7.ª ed., pág. 335 e 336, citado na decisão recorrida.