Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
749/08.0TBTMR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CARLOS MOREIRA
Descritores: MÚTUO
Data do Acordão: 06/29/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TOMAR
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 342, 1142, 1144 CC
Sumário: I – São elementos constitutivos do contrato de mútuo ( art.1142 CC ) - a entrega a outrem de dinheiro ou coisa fungível e a obrigação do mutuário de restituir a coisa ao mutuante.

II - Em princípio, a entrega do dinheiro, ou coisa fungível, não faz presumir a obrigação de restituição, pelo que terá que ser alegada e provada pelo autor, como facto constitutivo do seu direito ( art.342 nº1 do CC ).

Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA

1.

C (…) instaurou contra N (…) e P (…), acção declarativa, de condenação, com processo ordinário.

Pediu.

A condenação dos réus a pagarem-lhe a quantia de 32.500,00 euros, acrescida dos juros de mora à taxa legal.

Alegou.

Que a pedido dos réus, que invocaram dificuldades financeiras nos seus negócios, emprestou-lhes aquela quantia de 32.500,00 euros.

Que a mesma foi levantada por J (…) empregado da firma de que os réus são sócios-gerentes, o qual a entregou ao 1º réu.

Que, apesar de combinarem o prazo de um ano e os juros legais, os réus não restituíram o montante aludido.

Contestaram os réus.

Disseram.

Que a quantia titulada pelos cheques foi levantada pelo dito J (…) por livre vontade do autor e que em momento algum o autor emprestou qualquer quantia em dinheiro aos réus.

Pediram.

A improcedência da acção e a condenação do autor como litigante de má fé.

2.

Prosseguiu o processo os seus legais termos, tendo a final, sido proferida sentença que:

Julgou a acção improcedente, por não provada e, consequentemente, absolveu os réus do pedido.

3.

Inconformado recorreu o autor.

Rematando as suas alegações com as seguintes conclusões:

I

Da resposta à matéria de facto constante de Base Instrutória, ficou expressamente provado que o autor sacou os cheques em causa nos autos, no montante global de € 32.500,00 e que por acordo com os réus, assinou os cheques nos seus versos, a fim de poderem ser levantados ao balcão do banco sacado.

II

J (…) procedeu ao levantamento em numerário dos montantes dos cheques, sacados de conta bancária de que o autor era titular, entregando os respectivos valores aos réus, que lhes deram ordens para proceder a pagamentos a fornecedores e outras despesas prementes da sociedade F (…) Lda.

III

Os réus não provaram que «o autor nunca emprestou qualquer quantia em dinheiro», nem alegaram doação ou intuito liberatório por parte do autor ao entregar-lhes o montante dos cheques.

IV

O autor alegou que entregou os cheques (dinheiro) aos réus, que estes receberam e deram-lhe o destino que quiseram, confessando em depoimento de parte que assim sucedeu.

V

Com estes factos provados, o Tribunal a quo deveria concluir, ainda que por presunção natural, que quem recebe o montante de 32.500,00 €, não alegando que lhe foi oferecido, o aceita a título de empréstimo, com obrigação de os devolver, quanto mais não seja a partir de citação (interpelação) em acção judicial.

VI

«De acordo com os ditames da boa fé» e da vontade presumida das partes, deve concluir-se que o autor quis emprestar o dinheiro e não doa-lo, tendo os réus aceitado essa vontade e recebido tal valor, com obrigação de o devolver, pois as declarações negociais das partes devem ser integradas e interpretadas nesse sentido, nos termos do artigo 239.º do Código Civil Português.

VII

Ao decidir de modo diferente, a douta sentença fez errada interpretação dos factos, devendo ser substituída por douto acórdão que reconheça a obrigação dos réus de entregarem o que receberam, ainda que como repristinação de negócio nulo ou sem causa.

VIII

Havia obrigação de repristinar o montante dos cheques, como pedido pelo autor, o que foi omitido na douta decisão, que assim violou a regra da alínea d) do n.º 1, do artigo 668.º do Código de Processo Civil, incorrendo em nulidade.

IX

Finalmente se não for entendido revogar ou anular a douta sentença, deve o julgamento ser anulado parcialmente, nos termos do disposto no artigo 712.º, n.os 3 e 4 do Código de Processo Civil, com vista ao absoluto esclarecimento da verdade, para que Justiça seja feita e os réus não enriqueçam sem causa à custa do autor, com beneplácito judicial.

4.

Sendo que, por via de regra: artºs 684º e 690º do CPC - de que o presente caso não constitui excepção - o teor das conclusões define o objecto do recurso, a questão essencial decidenda é a seguinte:

Obrigação de restituição ao autor por parte dos réus da quantia por estes daquele recebida a título de mútuo.

5.

Os factos apurados e que importa considerar são os seguintes:

O autor, no dia 30.10.2006 sacou o cheque nº ..., sobre a conta nº ..., da agencia do Banco ...de ..., no valor de 8.500,00 euros.

No dia 31.10.2006 sacou o cheque nº ..., sobre a conta nº ..., da agencia do Banco ...de ..., no valor de 9.000,00 euros.

No dia 02.11.2006 sacou o cheque nº ..., sobre a conta nº ..., da agencia do Banco ...de ..., no valor de 7.500,00 euros.

No dia 03.11.2006 sacou o cheque nº ..., sobre a conta nº ..., da agencia do Banco ...de ..., no valor de 7.500,00 euros.

O autor, por acordo com os réus, assinou os cheques nos versos.

J (…) procedeu ao levantamento em numerário dos montantes dos cheques supra referidos entregando os respectivos valores aos réus.

6.

Apreciando.

6.1.

Estatui o artº 1142º do CC:

«Mutuo é o contrato pelo qual uma das partes empresta à outra dinheiro ou outra coisa fungível, ficando a segunda obrigada a restituir outro tanto do mesmo género e qualidade».

Prescrevendo ainda o artº 1144º:

«As coisas mutuadas tornam-se propriedade do mutuário pelo facto da entrega».

Temos assim que o contrato de mutuo se configura como um contrato real quod constitutionem que se consuma  - rectius a transferência da propriedade do bem - com a  sua entrega ao mutuário.

Vislumbrando-se ele ainda, tal como o comodato -  não obstante estar assente na obrigação de restituir imposta ao mutuário – como um contrato unilateral – Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, CC Anotado, 2ª ed., 2º, p.602.

Assim, são  seus elementos constitutivos, a saber:

- a entrega a outrem de dinheiro ou coisa fungível, isto é, a que é possível determinar pelo seu género, qualidade e quantidade – artº 207º do CC;

- a obrigação do mutuário de restituir  tal coisa ao mutuante.

Como é consabido, sobre o autor impende o ónus da prova dos elementos constitutivos do direito que invoca e que judicialmente pretende ver tutelado.

Sendo que, caso não cumpra tal ónus, ou mesmo em caso de dúvida, a questão é decidida contra si – artºs 342º e 346º do CC.

Nesta conformidade não basta que o demandante, invocando como causa petendi da sua pretensão, um mutuo ou empréstimo, prove apenas a entrega.

Incumbe-lhe ainda convencer da obrigação de restituição.

Pois que só assim se delineia e consubstancia e perfecciona tal contrato.

Sendo que outros fundamentos ou fitos podem estar subjacentes à efectivação da simples entrega, a saber: animus donandi, pagamento, compensação, etc – neste sentido, cfr., entre muitos outros, os Acs. do STJ de 07.04.2005 dgsi.pt., p.  05B612; de 20.9.07 07B2156;  de 13.03.2008, p. 07A4139;  de 16.09.2008, p. 08A2005; de 27.11.2008, p. 07B3546  e de  19.02.2009, p. 07B4794.

Querendo-se estabelecer uma certa analogia com outra figura jurídica, pode dizer-se que ocorre em sede de mutuo o que se verifica no âmbito do enriquecimento sem causa.

Pois que, neste particular, não basta, negativamente, que não se prove que o réu tem causa justificativa para o enriquecimento.

 Devendo ainda, in dubio, considerar-se que a deslocação patrimonial verificada teve justa causa.

Sendo, assim, ainda e sempre, necessário que o autor, positivamente, prove a efectiva ausência de causa justificativa.

 Se tal não lograr, outrossim, nesta sede, não obterá o impetrante ganho de causa – cfr., entre outros, o Ac. do STJ de  02.07.2009, dgsi.pt., p. 123/07.5TJVNF.S1.

6.2.

O caso vertente.

 O autor expressamente alegou que emprestou a quantia em causa aos réus.

Este facto foi levado à BI. Mas, conforme se alcança da resposta dada ao artº 1º, ele não foi dado como provado.

Certo é que também não foi dado como provada a alegação dos réus que o autor nunca  lhes emprestou qualquer quantia em dinheiro.

Mas tal é irrelevante ou, no mínimo, inócuo, pois que, como se disse, o ónus probandi impende sobre aquele e não sobre estes.

Note-se que os réus nunca disseram que não receberam o dinheiro, apenas negaram que ele lhes tivesse sido emprestado.

Nem a mais eram obrigados na economia da acção tal como ela foi delineada pelo autor e considerando as regras gerais de distribuição do ónus da prova, rectius no que ao contrato de mutuo, enquanto alicerçante de uma pretensão, concerne.

Defenderam-se por mera impugnação directa, que é quanto basta e, ademais, não acarreta encargos probatórios advenientes do que, porventura, acrescidamente alegassem.

Consequentemente,  a questão  fáctica essencial decidenda que perpassou todo o processo, o simples e singelo quid decisório, era, unicamente, saber se o autor emprestou  aos réus a quantia em causa.

Se provasse o empréstimo, a acção procederia, se não provasse, naufragaria.

Constituindo um salto lógico  inadmissível ou arriscado e colocando a decisão fora dos limites de uma certa álea aceitável na decisão judicial, a conclusão de que, em face dos factos apurados, estamos perante um empréstimo, pois que para tal conclusão emergir implicaria saber se  os réus se vincularam à restituição da quantia recebida.

Até porque, in casu, a questão ganha foros de alguma complexidade, na medida em que autor e réus estão ligados por relações familiares e comerciais – sócios em sociedades e pai-filho: A./R. R (…) –, no domínio das quais muitas hipóteses quanto à origem e finalidade da entrega, são congemináveis e possíveis, verificando-se assim, neste particular, uma dúvida acrescida.

De igual sorte não vem ao caso sub Júdice indagar sobre questões de integração da declaração negocial que permitam chamar à colação, como pretende o recorrente, o disposto no artº 239º do CC.

 Efectivamente não há qualquer declaração negocial a apreciar ou a interpretar e/ou qualquer omissão ou lacuna a ela atinente.

Tudo se coloca a montante, ou seja, em sede da de ónus da prova dos factos constitutivos do direito invocado e dos elementos constitutivos da figura jurídica que consubstancia tal direito.

6.3.

Finalmente, falece meridianamente razão ao recorrente quando invoca a nulidade da sentença por omissão de pronúncia ao abrigo do disposto no artº 688º nº1 al.d) do CPC.

Na verdade sabe-se que constituem doutrina e jurisprudência pacíficas que não se devem confundir «questões» a decidir, com considerações, argumentos, motivos, razões ou juízos de valor produzidos pelas partes.

A estes não tem o tribunal que dar resposta especificada ou individualizada, mas apenas às pretensões formuladas e aos elementos inerentes ao pedido e à causa de pedir –cfr. Rodrigues Bastos, in Notas ao CPC, 2005, p.228; Antunes Varela in RLJ, 122º,112 e, entre outros, Acs. do STJ de 24.02.99, BMJ, 484º,371 e de 19.02.04, dgsi.pt.

Ora é mais que evidente que, à única questão essencial decidenda em causa, saber se, perante os factos apurados, ao autor assistia, ou não, jus à restituição da quantia entregue aos réus, no âmbito de um contrato de mútuo, o tribunal deu resposta. E curialmente, como se viu.

É que, versus o defendido pelo recorrente, o tribunal não podia “repristinar” aquele montante, “fosse a que título fosse” o seu recebimento pelos réus.

Pois que, sendo o mútuo a única causa de pedir por ele invocada, vedado estava ao tribunal convolá-la para outra qualquer, vg. a respeitante ao enriquecimento sem causa -cfr. artº 264º nº2 do CPC e o cit. Ac. do STJ de 19.02.2009, dgsi.pt, p. 07B4794.

6.3.

Sumariando.

I –Invocando o autor, como causa de pedir da pretensão de  restituição de quantia que diz ter emprestado, um contrato de mútuo, sobre ele impende o ónus de provar, não apenas o recebimento da quantia pelo réu, como, outrossim, a obrigação de este lha restituir – artº 342º nº1 do CC.

II – Provando apenas o recebimento e defendendo-se o réu somente por impugnação directa, a acção naufraga, pois que daquela entrega, pelo menos por via de regra, não pode concluir-se a obrigação de restituição, já que para a mesma outros fitos ou desideratos são possíveis, e vedado está ao tribunal operar a convolação para outra causa petendi.

7.

Deliberação.

Termos em que se acorda negar provimento ao recurso e, consequentemente, confirmar a sentença.

Custas pelo autor.