Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
7033/14.8T8CBR-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOÃO AREIAS
Descritores: CUMULAÇÃO DE PEDIDOS
INEPTIDÃO
INCOMPATIBILIDADE SUBSTANCIAL
CONTRADITÓRIO
CASO JULGADO
GESTÃO PROCESSUAL
Data do Acordão: 05/31/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE COIMBRA - COIMBRA - INST. CENTRAL - SECÇÃO CÍVEL - J2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 6 Nº2, 186, 590, 591 CPC
Sumário: 1. O despacho pelo qual o juiz determina o cumprimento do contraditório relativamente a alguma questão que se propõe conhecer, ainda que emita algum juízo, reveste natureza provisória, não fazendo caso julgado.

2. Para a verificação da incompatibilidade substancial dos pedidos capaz de importar a ineptidão inicial só contam os pedidos em cumulação, formulados para todos eles serem atendidos em simultâneo.

3. O Artigo 6º,nº2, do CPC, leva a que o tribunal deva convidar o autor a aperfeiçoar a petição inicial em que se tenha deduzido pedidos incompatíveis, mediante a escolha daquele que pretende que seja apreciado na ação ou a ordenação de ambos em relação de subsidiariedade.

Decisão Texto Integral:    



                                                                                            

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra (2ª Secção):

I – RELATÓRIO

P (…), Lda., intentou a presente ação declarativa sob a forma de processo comum contra F (…) e mulher, P (…),

Alegando em síntese:

no dia 16 de março de 2012, autora e réus subscreveram um “Contrato Promessa de Dação em Cumprimento com Eficácia Real”, pelo qual os réus se declararam devedores da quantia de 87.246,45 €, para cujo pagamento prometeram ceder à autora e esta prometeu receber o prédio id. no art. 2º da p.i.;

os réus prometeram ceder o descrito prédio livre de ónus e encargos;

mais declararam as partes que a escritura pública ou documento particular da dação em cumprimento seria celebrado no prazo de 2 anos, contados da assinatura do referido documento;

em momento anterior à assinatura do contrato promessa, os réus transmitiram à autora a posse do prédio, entregando-lhe as respetivas chaves;

tendo a A., por carta de 22 de julho de 2013, solicitado ao réu marido que procedesse à marcação da escritura publica, o réu respondeu que ainda não estava em falta;

por carta de 17 de outubro de 2014, a A. comunicou aos RR. que se encontrava designado o dia 18 de novembro de 2014 para a celebração da escritura, aos que os RR. responderam que, não tendo a A. diligenciado para que a escritura se marcasse dentro prazo convencionado no contrato, tal carta é extemporânea.

Em consequência, formulam os seguintes pedidos:

a) ser proferida sentença que nos termos do art.º 830º do Código Civil produza os efeitos da declaração negocial em falta dos réus de dação em pagamento da quantia de € 87.246,45 da fração autónoma designada pela letra A (correspondente ao rés do- chão direito destinado a habitação) do prédio urbano sito na Rua (...) São Martinho do Bispo, (…), e, cumulativamente, condenados os réus a obter e registar, no prazo de 15 dias após o trânsito em julgado da sentença, o distrate da hipoteca a favor do Banco (...) S.A. que onera o referido prédio;

b) subsidiariamente, caso os réus não obtenham e registem o cancelamento da hipoteca no referido prazo, deverá ser declarado resolvido o contrato promessa celebrado entre o autor e os réus em 16 de Março de 2012 e, em consequência, condenados estes últimos a pagar a quantia de € 87.246,45, acrescidos de juros de mora contabilizados à taxa definida por aviso da direção geral do tesouro para as transações comerciais desde a data de assinatura do referido contrato até ao efetivo e integral pagamento;

c) Caso se entenda que a autora não tem direito à execução especifica do contrato promessa por falta de marcação da escritura pública no prazo de 2 anos, deverá este ser declarado resolvido e, em consequência, serem os réus condenados a pagar a quantia de € 87.246,45, acrescidos de juros de mora contabilizados à taxa definida por aviso da direção geral do tesouro para as transações comerciais desde a data de assinatura do contrato promessa celebrado em 16 de Março de 2012 até ao efetivo e integral pagamento;

d) Em qualquer dos casos, deverá ser declarado que a autora goza de direito de retenção do prédio id. em 2º, nos termos do art.º 755º n.º 1 al. f) do Código Civil, pelo pagamento do seu crédito.”  

Os Réus apresentam contestação, na qual invocam a ineptidão da petição inicial por incompatibilidade entre os pedidos, defendendo-se, ainda, por impugnação, formulando pedido reconvencional.

 O juiz a quo profere despacho a designar dia para audiência prévia com vista a:

a. tentativa de conciliação, nos termos do art. 594º;

b. facultar às partes a discussão de facto e de direito da arguida ineptidão da petição inicial;

c. facultar às partes a discussão de facto e de direito quanto à arguida inadmissibilidade do pedido reconvencional/seu eventual prosseguimento caso proceda a exceção de nulidade de todo o processo.

Após a realização da audiência prévia, o juiz a quo proferiu o seguinte despacho “Ora, não cabendo ao tribunal a conformação prévia dos subpedidos deduzidos pela autora cumulados e integrantes do pedido principal propriamente dito e assim, escolher, aqueles que deverão, ou não – isoladamente prosseguir, pelo que convido a autora a tomar posição quanto aos mesmos.

Prazo: 10 dias”.

Notificado de tal despacho, a autora veio dizer que “Deverá a ação prosseguir apenas para conhecimento do pedido formulado sob a alínea a) do petitório, nos exatos termos que constam da petição inicial”.

Na sequência de tal resposta, pelo juiz a quo foi então proferido o seguinte despacho, aqui sob impugnação:

A antecedente desistência parcial do pedido é formal, objetiva e subjetivamente válida, uma vez que é feita por documento particular (art. 290o, no 1 e 3 do C.P.C. 2013), o seu objeto é disponível e a autora foi representada por mandatário dotado de especiais poderes.

A desistência do pedido não depende de aceitação da parte contrária.

Assim, declaro válida por sentença a referida desistência parcial do pedido e, de acordo com o disposto nos arts. 283o, no 1; 285o, no 1; 286o, no 2; 289o, no 1 e 290o, todos do C.P.C.2013, absolvo o/a(s) ré(u)(s)/requerido(s) do mesmo.

Custas pela desistente, fixando-se o valor deste subpedido ora declarado extinto em 50% do valor global da causa.

A ação prossegue para apreciação do sub pedido deduzido sob a alínea a) do petitório da petição inicial.

Atenta a desistência parcial do pedido, que se homologou, por legal e provinda de quem tem legitimidade, - ao abrigo considerando ainda a disponibilidade do objeto da causa, na sequência do já anteriormente vertido, fica suprida a incompatibilidade de pedidos anteriormente apontada.”


*

Não se conformando com tal decisão, os Réus dela interpõem recurso de apelação, concluindo a respetiva motivação, com as seguintes conclusões:

1. Viola caso julgado o despacho de 08/07/2015, atento o trânsito do antecedente despacho de 21/04/2015 que decidira “este vício é insuprível.

2. Aquele despacho, que se dirigiu e foi notificado apenas à Autora, e do qual os Réus só agora, na sequência do despacho recorrido, tomaram conhecimento, por consulta do sistema informático Citius, atenta contra os princípios da igualdade entre as partes e da equidistância do julgador.

3. A Autora formulou pedidos substancialmente incompatíveis. A Petição Inicial apresentada pela Autora é inepta. A ineptidão da Petição Inicial da Autora, em resultado da cumulação de pedidos substancialmente incompatíveis, foi reconhecida pelo Tribunal a quo, por despacho que transitou em julgado. O Tribunal a quo não poderia ter deixado de aplicar a lei, designadamente o disposto nos artigos 186.o no 2 al. c), 577.o al. b) e 576.o no 2 do CPC. A lei que rege o processo civil determina que a ineptidão da PI implica a nulidade de todo o processo e constitui exceção dilatória que importa a absolvição dos Réus da instância. É ilegal a decisão do Tribunal que viola o disposto em lei imperativa.

4. A um Tribunal Judicial, que se quer isento e le(g)al não cabe o convite à desistência de pedidos ilegais, cuja incompatibilidade fora já arguida e declarada a existência de vício insuprível.

5. O requerimento da Autora que se limita a dizer “deverá a ação prosseguir apenas para conhecimento do pedido formulado sob a alínea a) do petitório, nos exatos termos que constam da petição inicial, que aqui se dão por reproduzidos”, não é suscetível de ser tido como a declaração prevista no artigo 283.o CPC.

6. Inexiste, nos autos, qualquer declaração de vontade da Autora que possa ser tida ou interpretada como manifestação de renuncia aos direitos que através desta ação fez valer.

7. O despacho recorrido é incompatível com os artigos 3º, 4º e 6º do CPC e viola o nº 3 daquele artigo 3º.

Termos em que, concedendo provimento ao recurso e, consequentemente, revogando o despacho recorrido e decidindo a absolvição da instância dos Réus, atenta a exceção dilatória verificada,

Vossas Excelências farão Justiça.


*

A autora apresentou contra-alegações no sentido da improcedência do recurso.
Dispensados que foram os vistos legais, ao abrigo do disposto no nº4 do artigo 675º do CPC, cumpre decidir do objeto do recurso.
II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
Tendo em consideração que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações de recurso, sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso – cfr., artigos 635º e 639º, do Novo Código de Processo –, as questões a decidir são as seguintes:
1. Se o despacho pelo qual o juiz determinou o cumprimento do contraditório relativamente à questão da ineptidão da p.i. faz caso julgado.
2. Qualificação do vício que afeta as pretensões formuladas pela autora nas alíneas a) e b), do pedido – suscetibilidade de sanação.
3. Se a declaração da autora equivale a desistência dos demais pedidos formulados nas alíneas b) a d).
III – APRECIAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO

1. Se o despacho pelo qual o juiz determinou o cumprimento do contraditório faz caso julgado.

No despacho proferido a 21.04.2015, pelo qual designou audiência prévia, o juiz a quo, pretendendo facultar às partes a discussão de facto e de direito relativamente à arguida ineptidão da petição inicial, ao abrigo do disposto no artigo 591º, nº1, al. b), CPC, analisa aí as posições assumidas por ambas as partes, adiantando a sua opinião relativamente a tal questão: “à partida indicia-se assistir razão aos réus, quando invocam a sua incompatibilidade relativamente ao designado sob a alínea a), pois contrariamente ao designado pela autora, não está em causa um pedido subsidiário; ademais, apreciando a estrutura dos pedidos deduzidos, diremos tratar-se de pedido inconciliável com o pedido a), prevendo a hipótese de os réus não cumprirem a decisão judicial transitada em julgado”. E, continuando na análise dos conceitos de ineptidão e de incompatibilidade substancial, considera que a autora pretende a apreciação concomitante dos dois pedidos, substancialmente incompatíveis, e que em caso de ineptidão por incompatibilidade de pedidos este vício é insuprível.

Realizada audiência prévia, na qual a autora exerceu o seu contraditório relativamente à exceção da ineptidão inicial, requerendo que o tribunal absolva da instância os réus relativamente aos pedidos subsidiários, foi então proferido despacho pelo juiz a quo convidando o autor a escolher quais os pedidos relativamente aos quais a ação há de prosseguir.

Defendem os apelantes que, tendo o juiz a quo, naquele primeiro despacho, considerado que a incompatibilidade substancial de pedidos era insuprível, ao considerar posteriormente, por despacho de 25 de setembro, que tal vicio se encontrava sanado, há violação de caso julgado.

Não podemos reconhecer qualquer razão ao apelante.

Os despachos em causa inserem-se dentro dos poderes de gestão do processo concedidos ao juiz pelos artigos 590º, 591º, e nº2 do artigo 6º, do CPC, e que lhe permitem não só facultar às partes a discussão de facto e de direito, nos casos em que cumpra conhecer de alguma exceção dilatória ou quando tencione conhecer imediatamente, no todo ou em parte do mérito da causa, como ainda convidá-las a suprir irregularidades dos articulados ou a realizarem os atos necessários à regularização da instância.

Quando, antes de decidir do mérito da ação ou de apreciar qualquer exceção invocada pelo réu, o juiz decide ouvir as partes a fim de observar o princípio do contraditório, terá, de um modo mais sintético ou mais extenso, de expor a questão que se propõe apreciar e que pretende sujeitar a contraditório e as dúvidas que a mesma lhe suscitam.

Ora, ainda que em tal despacho adiante alguns argumentos num sentido ou noutro, ou que dele se possa extrair o sentido que o juiz está a dar à questão, e uma vez que tal exposição se limita a dar oportunidade às partes de se pronunciarem sobre a mesma, a posição que aí assuma sobre a questão a decidir não o pode vincular, sob pena de a audição das partes se converter num ato inútil.

Assim sendo, podia o juiz, no despacho pelo qual determina o cumprimento do contraditório, dar a entender ou expressar determinada solução para a questão a decidir e, após audição das partes, mudar de opinião. É precisamente esse o objetivo do cumprimento do contraditório: o de permitir que cada uma das partes, emitindo a sua perspetiva sobre a questão a decidir, possa influenciar a decisão a proferir pelo juiz.

O despacho pelo qual o juiz determina o cumprimento do contraditório relativamente a uma determinada questão, e ainda que nela expresse ou adiante determinada posição, tal como o que acontece com o despacho de aperfeiçoamento (nº4 do artigo 590º), reveste natureza provisória, não fazendo caso julgado o juízo nele emitido[1].

Assim sendo, ainda que do despacho que designa dia para audiência prévia se possa inferir que o juiz a quo se encontra inclinado para considerar verificada a ineptidão da p.i. por incompatibilidade substancial dos pedidos, nada obsta a que, após audição das partes, venha a decidir em sentido diverso.

Por outro lado, a considerar-se suprível a incompatibilidade existente entre os alguns dos pedidos formulados pela autora, o convite feito pelo juiz para que escolha qual ou por quais deles opta, não viola os princípios de igualdade das partes e equidistância do julgador, como defendem os apelantes nas suas alegações de recurso.

Tal convite insere-se dentro do poder/dever que lhe é atribuído pelo nº2 do artigo 6º, e do nº4 do artigo 590º, do CPC, de, por iniciativa própria e se as partes o não requererem, providenciar pelo suprimento dos pressupostos processuais suscetíveis de sanação, sem que tal possa ser qualificado como um tratamento de favor de uma das partes relativamente à outra.

2. Qualificação do vício e sua suscetibilidade de sanação mediante convite a optar por quais dos pedidos pretende ver apreciados na presente ação.

Vejamos agora se, entre os pedidos formulados pelo autor sob as alíneas a) e b) do pedido, se verifica uma incompatibilidade substancial que importe a ineptidão da petição inicial, nos termos do artigo 186º, nº2, al. c) do NCPC.

E, há que atentar em que só a verificação desta incompatibilidade substancial poderá sustentar a ineptidão da petição inicial e a nulidade do processado e já não a mera constatação de que o pedido formulado sob a alínea b) constituiu em si uma impossibilidade lógica, como é referido pelo juiz a quo no despacho de 21 de abril de 2014 (não existindo esta incompatibilidade, nada obstaria a que o processo prosseguisse unicamente para apreciação dos demais pedidos, fosse por desistência do autor relativamente ao mesmo, fosse pelo reconhecimento da sua improcedência manifesta).

Para a verificação desta incompatibilidade substancial os pedidos terão de ser formulados em cumulação, para serem todos eles atendidos, em simultâneo,[2] só interessando a contradição lógica, a incompatibilidade material entre os pedidos, e já não o enquadramento ou qualificação a fazer dos factos segundo a lei[3].

Nas palavras de Manuel de Andrade[4], terá de tratar-se de uma cumulação pura e simples ou simultânea (artigo 470º: o autor sustenta que devem ser julgados procedentes, por igual, todos os pedidos); não já quando se trate da chamada cumulação alternativa (artigo 468º: o autor põe os pedidos disjuntivamente, à escolha do réu ou de um terceiro) ou da cumulação eventual ou subordinada (o autor deduz um dos pedidos a título principal, e outro ou outros apenas in subsidium, como pedidos de recurso).

Quer no caso de pedidos alternativos (atual 553º), quer no caso de pedidos subsidiários (artigo 554º), nem sequer nos encontraremos perante uma verdadeira cumulação de pedidos: há uma pluralidade, mas é aparente ou apenas formal, visto que o autor não pretende fazer valer, simultaneamente, os vários pedidos, só se propondo obter o reconhecimento de um deles.

Segundo Manuel de Andrade[5], tratando-se da chamada cumulação sucessiva (artigo 470º, em que o autor põe um ou alguns dos pedidos a título sequencial) também não pode haver ineptidão porque há um pedido principal.

Também Anselmo de Castro[6] distingue ainda o que denomina de pedido acessório: o pedido secundário pode ser formulado para o caso de o pedido principal proceder. O pedido secundário será então um pedido acessório.

No caso em apreço, apesar de o autor fazer constar da petição inicial que formula o pedido da al. b) “subsidiariamente”, do respetivo teor constata-se que o mesmo se encontra formulado, não para ser tomado em conta apenas no caso de improcedência dos pedidos formulados na al. a) – proferir sentença que produza os efeitos da declaração negocial em falta dos réus de dação em pagamento da fração autónoma, e condenação dos réus a obter, no prazo de 15 dias, o distrate da hipoteca que onera o prédio –, mas pressupondo, ou tendo por fundamento, a procedência daqueles [ou, pelo menos, a procedência do pedido formulado cumulativamente e em 2º lugar sob a alínea a)] e o subsequente incumprimento por parte dos réus da obrigação de cancelamento da hipoteca a determinar na sentença (o que constituiu, além do mais, um verdadeiro absurdo jurídico).

A pretensão deduzida na alínea b) encontra-se formulada para ser exercida em cumulação com as por si deduzidas na alínea a), e para o caso de procedência destas (pelo menos de procedência do 2º pedido formulado sob a alínea a) [7]. E é aqui que reside a contradição substancial entre as pretensões que o autor deduz nas alíneas a) e b): por um lado, pede a execução do contrato, ou seja a celebração do contrato prometido – que seja proferida sentença que, nos termos do artigo 830º do CC produza os efeitos da declaração negocial em falta dos réus (execução especifica) e cumulativamente, a condenação dos réus a distratar a hipoteca que onera o referido prédio – e, caso os réus não obtenham e registem o cancelamento da hipoteca no prazo fixado na sentença, pede que se declare resolvido o contrato promessa celebrado entre o autor e o réu e, em consequência, condenados estes últimos no pagamento da quantia de 87.246,45 € e respetivos juros.

O pedido formulado sob a alínea b) constituiu um verdadeiro absurdo jurídico: se o contrato promessa já foi objeto de execução específica e se já foi celebrado o contrato prometido – por via da procedência dos pedidos formulados sob a alínea a) –, o contrato promessa já não poderá ser objeto de posterior resolução.

Como se afirma no despacho que determinou o cumprimento do contraditório quanto a tal questão, “a contradição parece residir essencialmente nesta impossibilidade logica: operada por sentença transitada a execução específica, como pode a autora pretender, afinal, caso os réus não expurguem a hipoteca, a resolução do contrato promessa (não esquecer que estará já decretada e operada por sentença, a transmissão do imóvel e a dação em cumprimento, pelo valor do crédito)”.

Contudo, atentar-se-á não nos encontramos perante uma verdadeira cumulação simultânea, mas perante uma cumulação sucessiva: temos uma pretensão principal – a pretensão à execução específica do contrato promessa relativamente à qual são formuladas outras pretensões, umas em cumulação [umas em simultâneo, como a condenação na obrigação de proceder ao distrate da hipoteca, outras em cumulação sucessiva, como são as formuladas sob a alínea b)] e outras a título subsidiário (como a resolução do contrato-promessa e o pagamento da quantia de 87.246,46 €, formuladas sob a alínea c)).

Assim sendo, os vícios que afetam os pedidos formulados sob a alínea b) e a sua contradição com o pedido de execução específica formulado sob a alínea a) – por não se tratarem de pedidos da mesma valência –, não acarretarão a ineptidão da petição inicial.

“A ineptidão por contradição não tem cabimento plausível, quando os pedidos não são da mesma valência, e tal contradição se ponha só entre pedidos principais e acessórios.

Se todos os pedidos forem principais ou equivalentes entre si, o tribunal terá de escolher um deles, e fazê-lo, seria sobrepor-se ao autor. Mas outro tanto não acontece se a contradição opera entre pedidos dos quais um tem carater meramente acessório. Então, pela natureza das coisas, está implícito e claro o pensamento do autor de fazer valer sempre a pretensão principal, ainda que a acessória ou secundária não possa vingar[8]”.

Como defende Manuel de Andrade[9], em qualquer um dos vícios que podem levar à ineptidão da petição inicial, não se trata de qualquer deficiência da petição, mas de, por causa de algum dos vícios referidos nas alíneas a) a c) do artigo 193º (atual 186º), de não ser possível saber por aí qual a ideia do autor quanto aos rasgos essenciais da ação, devendo trata-se de uma verdadeira ininteligibilidade do pensamento do autor.

A dedução cumulativa de pedidos entre si incompatíveis implica contradição no objeto do processo que impede a sua necessária identificação. Assim, como refere José Lebre de Freitas[10], não tem condições para a decisão de mérito pretendida o processo em que seja, por ex., pedida ao mesmo tempo, a efetivação duma prestação e a omissão de a realizar, a resolução dum contrato e a condenação do réu no seu integral cumprimento, ou o direito de propriedade do autor sobre coisa que, ao mesmo tempo, ele alegue ter adquirido por compra e venda e por transmissão sucessória[11].

No caso em apreço, tratando-se de uma incompatibilidade entre um pedido sucessivo e um pedido principal, não temos, assim, por verificada, desde logo, uma incompatibilidade substancial de pedidos capaz de importar a ineptidão da petição inicial.


*

De qualquer modo, ainda que assim se não entendesse e se desse por verificada uma incompatibilidade substancial suscetível de gerar a ineptidão da petição inicial, sempre seria de rejeitar a solução defendida pelo apelante no sentido da sua absolvição da instância.

A cumulação de causas de pedir ou de pedidos substancialmente incompatíveis integra um dos casos de ineptidão da petição inicial, vício que, por sua vez, gera a nulidade de todo o processo [artigo 186º, nº1, e nº2, al. c)].

Reconhecida essa incompatibilidade substancial, colocar-se-á a questão de saber se tal vício é ou não sanável, nomeadamente através de um convite ao autor para que opte por um dos pedidos.

Não discutimos que a solução que tem vindo a dar tradicionalmente pela nossa jurisprudência e doutrina vai no sentido de que tal vício constituir uma nulidade insanável, importando, necessária e automaticamente, a nulidade de todo o processado.

Entendemos, contudo, que tal ponderação deverá ser reavaliada face à revisão do CPC de 2013 e ao espírito que lhe subjaz ao nível de preocupações de economia processual e do reforço dos poderes processuais do juiz.

Tal questão mais força ganha se atentarmos em que, o nº3 do artigo 186º (agora e tal como o antigo 193º), apenas determina que a ineptidão da petição inicial baseada em incompatibilidade de pedidos não cessa por um deles ficar sem efeito por incompetência do tribunal ou erro na forma do processo, nada dizendo quanto às hipóteses de um deles ficar sem efeito por desistência da instância ou do pedido.

A solução do nº 3 do artigo 186º (antigo 193º), é explicada pelo facto de a petição em si continuar a ser inepta – continua sem se saber qual a verdadeira vontade do autor -, pelo que, reputá-la apta equivalia a dar ao tribunal o poder de, entre dois pedidos incompatíveis, desprezar um deles e conhecer somente do outro[12]. Ainda que um dos pedidos fique sem efeito por qualquer uma das causas aí previstas (incompetência absoluta ou erro na forma de processo), o objeto do processo não pode ter-se por automaticamente fixado no outro pedido, pois tal representaria ofensa do princípio do dispositivo[13].

Assim, José Lebre de Freitas defende que, o disposto no artigo 6º, nº2 (Dever de gestão processual)[14] leva a que o tribunal deva convidar o autor a aperfeiçoar a petição inicial em que tenha deduzido pedidos incompatíveis, mediante a escolha daquele que pretende que seja apreciado na ação ou a ordenação de ambos em relação de subsidiariedade[15]. Tal autor propõe, para a dedução de pedidos incompatíveis, a mesma solução do artigo 38º – escolha pelo autor do pedido com o qual o processo deve prosseguir em caso de coligação ilegal –, a aplicar por analogia[16].

No caso em apreço, o juiz a quo, após ouvir as partes quanto a tal questão, e entendendo não caber ao tribunal “escolher os que deverão, ou não, isoladamente prosseguir”, acabou por convidar o autor a tomar posição quanto aos mesmos.

Na sequência de tal convite, o autor veio requerer o prosseguimento da ação apenas para conhecimento do pedido formulado na al. a) do pedido.

Neste caso em especial, o vício apenas comprometia o pedido formulado sob a alínea b) (continha em si mesmo uma pretensão impossível), pelo que, desparecido este por opção do próprio autor – a petição inicial torna-se clara, nada impedindo o conhecimento do mérito.

3. Se a declaração do autor, no sentido de a ação prosseguir somente quanto aos pedidos formulados sob a alínea a), pode ser entendida como uma desistência do pedido relativamente aos demais.

Quanto à questão, suscitada pelos apelantes nas suas alegações de recurso de que a declaração feita pelo autor a requerer o prosseguimento da ação apenas para conhecimento do pedido (…) não é suscetível de ser tida como a declaração prevista no artigo 238º, não importando qualquer renúncia ao direito, em nosso entender, não assume qualquer relevância para a questão verdadeiramente em discussão – se o processo poderia prosseguir unicamente para conhecimento dos pedidos formulados sob al. a) do petitório.

Com efeito, embora o juiz a quo tenha integrado tal declaração numa desistência do pedido, a nosso ver, a mera opção do autor de prosseguimento do processo unicamente quanto a alguns ou alguns do pedido não integra qualquer desistência do pedido, mas da instância[17], o que, de modo, se nos afigura irrelevante para a validade do prosseguimento da ação unicamente contra um dos pedidos, considerando-se sanada a invocada incompatibilidade entre os pedidos formulados na al. a) e os pedidos formulados sob a alínea b).

A apelação é de improceder.

IV – DECISÃO

 Pelo exposto, acordam os juízes deste tribunal da Relação em julgar a apelação improcedente, confirmando-se a decisão recorrida.

Custas da apelação pelo apelante

                                                                          

 Coimbra, 31 de maio de 2016

Maria João Areias ( Relator )

Fernanda Ventura

 Fernando Monteiro

V – Sumário elaborado nos termos do art. 663º, nº7 do CPC.

1. O despacho pelo qual o juiz determina o cumprimento do contraditório relativamente a alguma questão que se propõe conhecer, ainda que emita algum juízo, reveste natureza provisória, não fazendo caso julgado.

2. Para a verificação da incompatibilidade substancial dos pedidos capaz de importar a ineptidão inicial só contam os pedidos em cumulação, formulados para todos eles serem atendidos em simultâneo.

3. O Artigo 6º,nº2, do CPC, leva a que o tribunal deva convidar o autor a aperfeiçoar a petição inicial em que se tenha deduzido pedidos incompatíveis, mediante a escolha daquele que pretende que seja apreciado na ação ou a ordenação de ambos em relação de subsidiariedade.


 


[1] Quanto ao que respeita ao despacho de aperfeiçoamento, cfr., José Lebre de Freitas, A. Montalvão Machado e Rui Pinto, “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. 2º, 2ª ed., Coimbra Editora, pág. 382.
[2] José Lebre de Freitas, “A Ação Declarativa Comum, à Luz do Código de Processo Civil de 2013”, Coimbra Editora, pág. 48.
[3] Artur Anselmo de Castro, “Direito Processual Civil Declaratório”, Vol. II, Almedina – 1982, pág. 226.
[4] “Noções Elementares de Processo Civil”, Coimbra Editora, 1993, reimpressão, pág. 179.
[5] Obra citada, pág. 179, nota (2).
[6] “Direito Processual Civil Declaratório”, Vol. I, Almedina – 1981, pág. 161.
[7] Como refere J. P. Remédio Marques, na cumulação de pedidos, o autor visa obter, ao mesmo tempo, todas as pretensões formuladas, ou seja, todos os efeitos jurídicos – “A Ação Declarativa à Luz do Código Revisto”, 3ª ed., pág. 444, nota (2).
[8] Anselmo de Castro, “Direito Processual Civil Declaratório”, Vol. II, pág. 230.
[9] “Noções Elementares de Processo Civil”, Coimbra Editora, 1993, reimpressão, págs. 178 e 179.
[10] “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. 1º, 2ª ed., de que são co-autores João Redinha e Rui Pinto, pág. 347.
[11] Pedidos incompatíveis para este efeito são ainda habitualmente dados como ex., o de divórcio e de anulação do casamento, o de resolução do contrato e o de prestação devida nos termos desse contrato – Manuel de Andrade, obra citada, pág. 179. Remédio Marques dá como ex. o pedido simultâneo de anulação do contrato por erro e de condenação no pagamento de todas as rendas em dívida, vencidas e vincendas, como se o contrato estivesse “vivo” – obra citada, pág. 444.
[12] José Alberto dos Reis, “Comentário ao Código de Processo Civil”, Vol. 2, Coimbra Editora - 1945, pág. 394.
[13] José Lebre de Freitas, “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. I, 3ª ed., pág. 361, nota 6 ao artigo 186º.
[14]O juiz providencia oficiosamente pelo suprimento da falta de pressupostos processuais suscetíveis de sanação, determinando a realização dos atos necessários à regularização da instância, ou, quando a sanação dependa de ato que deva ser praticado pelas partes, convidando estas a praticá-lo”.
[15] “Ação Declarativa (…)”, pág. 49. Tal autor mostra aí a sua concordância com o decidido no A. do TRP de 07.06.10, relatado por Ferreira da Costa, quando entende que o autor deve ser convidado a corrigir uma petição inicial em que deduz como principais pedidos que, por incompatíveis, deviam ter sido deduzidos em relação de subsidiariedade; e tem por errado o ac. do TRC de 14.12.201, relatado por Carlos Gil, quando entende ser insanável o vício da petição inicial consistente em se ter deduzido, lado a lado, o pedido de declaração da nulidade do negócio por simulação e o de impugnação pauliana, em vez de deduzir um como principal e outro como subsidiário (ambos os acórdãos se encontram disponíveis in www.dgsi.pt.
[16] “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. I, pág. 361.
[17] Na hipótese análoga do artigo 38º, José Lebre de Freitas defende que a indicação do autor sobre o pedido que pretende ver apreciado no processo, levará à absolvição do réu da instância relativamente aos demais pedidos – “Código de Processo Civil (…), pág. 88.