Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
313/10.3TTTMR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE LOUREIRO
Descritores: UNIÃO DE FACTO
PENSÃO POR MORTE
ACIDENTE DE TRABALHO
Data do Acordão: 09/19/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL DO TRABALHO DE TOMAR
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: ARTº 57º, Nº 3 DA LEI Nº 98/2009, DE 4/9 (LAT/09).
Sumário: I – Nos termos do artº 57º/1, al. a) da LAT/09, em caso de morte a pensão é devida, entre outros, aos seguintes familiares e equiparados do sinistrado: cônjuge ou pessoa que com ele vivia em união de facto.

II – Por seu turno, prescreve o artº 57º/3 que se considera pessoa a viver em união de facto aquela que “…preencha os requisitos do artº 2020º do C. Civil”.

III – Aquele que viveu em união de facto apenas está obrigado a alegar e provar, para obter a pensão devida por acidente de trabalho mortal, o estado civil do sinistrado falecido e a subsistência da união de facto durante um período mínimo de dois anos.

IV – Deve reconhecer-se que o regime decorrente da Lei nº 23/2010, de 30/08, pode e deve aplicar-se mesmo a situações de união de facto em que o óbito de quem assim vivia ocorreu antes da data da sua entrada em vigor e depois da entrada em vigor da Lei nº 7/2001.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

I - Relatório
Os autores propuseram a presente acção especial emergente de acidente de trabalho contra a ré peticionando a condenação desta a pagar:
I) ao autor A...:
a) uma pensão anual e temporária, no valor de € 2.100, com início em 13/7/2010;
b) a quantia de € 1.781 relativa a indemnização de despesas de funeral;
II) ao autor B...:
a) uma pensão anual e vitalícia, no valor de € 3.150, com início em 13/7/2010;
III) a ambos os autores, a quantia de € 5.533,68, a título de subsídio por morte, a dividir na proporção de metade para cada autor – € 2.766,84 para cada.
Alegaram, em resumo, que a sinistrada faleceu como resultado de um acidente de trabalho, tendo os autores, como filho e companheiro da sinistrada, direito ao pagamento das quantias peticionadas, estando a responsabilidade do seu pagamento a cargo da ré.
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A ré contestou, pugnando pela integral improcedência da acção.
Alegou, em resumo, que o acidente invocado como fundamento da pretensão dos autores se deve considerar descaracterizado, por ter emergido de negligência grosseira da sinistrada.
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Saneado e condensado o processo, procedeu-se a julgamento com observância dos legais formalismos, logo após o que foi proferida sentença de cujo dispositivo consta, designadamente, o seguinte:
“Pelos fundamentos expostos, julgo procedente a presente ação para a efetivação de direitos resultantes de acidente de trabalho e, em consequência:
a) Condeno a R. “C... – Companhia de Seguros, S.A.” a pagar ao A. A... uma pensão anual e temporária, no valor de € 2.100 (dois mil e cem euros), devida desde 13/7/2010, a ser paga em 1/14 até ao 3.º dia cada mês e ainda os subsídios de férias e de Natal, de idêntico montante, a serem pagos em junho e em novembro, sendo devida até o A. A... perfazer 18, 22 ou 25 anos, enquanto frequentar, respetivamente, o ensino secundário ou curso equiparado e curso de nível superior ou equiparado;
b) Condeno a R. “ C...– Companhia de Seguros, S.A.” a pagar ao A. A..., a título de subsídio por despesas de funeral, a quantia de € 1.781 (mil setecentos e oitenta e um euros);
c) Condeno a R. “ C...– Companhia de Seguros, S.A.” a pagar ao A. B... uma pensão anual e vitalícia no valor de € 3.150 (três mil cento e cinquenta euros), devida desde 13/7/2010, a ser paga em 1/14 até ao 3.º dia cada mês e ainda os subsídios de férias e de Natal, de idêntico montante, a serem pagos em junho e em novembro, até o A. B... perfazer a idade de reforma por velhice, sendo a pensão calculada com base em 40 % da retribuição da Sinistrada a partir daquela idade ou da verificação de deficiência ou doença crónica que afete sensivelmente a sua capacidade para o trabalho;
d) Condeno a R. “ C...– Companhia de Seguros, S.A.” a pagar aos AA. A... e B..., a título de subsídio por morte, a quantia global de € 5.533,68 (cinco mil quinhentos e trinta e três euros e sessenta e oito cêntimos), a pagar na proporção de ½ para cada A., no valor de € 2.766,84 (dois mil setecentos e sessenta e seis euros e oitenta e quatro cêntimos) para cada um dos AA. A... e B...;
e) Condeno a R. “ C...– Companhia de Seguros, S.A.” a pagar aos AA. A... e B... juros de mora sobre as prestações pecuniárias supra atribuídas e em atraso, vencidos e vincendos à taxa legal, até integral pagamento;”.
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Do assim decidido recorreu a ré, sustentando que “…DEVE SER CONCEDIDO PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO, REVOGANDO-SE A SENTENÇA PROFERIDA, …”.
Apresentou, para tanto, as conclusões a seguir transcritas:
[…]
O autor B... contra-alegou, sustentando que o recurso deve improceder.
Recebido o recurso e colhidos os vistos legais, nada obsta ao conhecimento do mérito.
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II – Questões a resolver
Sendo pelas conclusões que se delimita o objecto do recurso, as questões a resolver e a decidir são as seguintes:
1ª) se deve ou não considerar-se que o autor B... vivia em união de facto com a sinistrada nos termos e para os efeitos do art. 57º/3 da Lei n.º 98/2009, de 4/9 (LAT/09);
2ª) se o autor B... está ou não sujeito à limitação indemnizatória prevista no art. 59º/3 da LAT/09.
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III – Fundamentação

A) De facto

Os factos provados são os seguidamente se transcrevem:
[…]
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B) De direito

Primeira questão: se deve ou não considerar-se que o autor B... vivia em união de facto com a sinistrada nos termos e para os efeitos do art. 57º/3 da Lei n.º 98/2009, de 4/9 (LAT/09).
Em primeiro lugar importa referir que, atenta a data da ocorrência do acidente, encontra aqui aplicação a LAT/09.
Nos termos do art. 57º/1/a da LAT/09, em caso de morte, a pensão é devida, entre outros, aos seguintes familiares e equiparados do sinistrado: cônjuge ou pessoa que com ele vivia em união de facto.
Por seu turno, prescreve o art. 57º/3 da LAT/09 que se considera pessoa a viver em união de facto aquela que “… preencha os requisitos do artigo 2020º do Código Civil.”.
Nos termos do art. 2020º/1 do Código Civil, na redacção vigente à data em que ocorreu o acidente a que os autos se reportam, “Aquele que, no momento da morte de pessoa não casada ou separada judicialmente de pessoas e bens, vivia com ela há mais de dois anos em condições análogas às dos cônjuges, tem direito a exigir alimentos da herança do falecido, se os não puder obter nos termos das alíneas a) a d) do artigo 2009.º.”.
Tudo está em saber, assim, se por força da remissão operada pelo art. 57º/3 da LAT/09, a demonstração da vivência em união de facto implica ou não a prova, para lá dos demais requisitos enunciados no citado art. 2020º/1, da impossibilidade da obtenção de alimentos nos termos previstos nas alíneas a) a d) do art. 2009º do CC.
Pelo que nos toca, consideramos que pretendendo a LAT conferir protecção infortunística, entre outros, a quem viva em união de facto, o que verdadeiramente se pretendeu exigir por via da remissão do citado art. 57º/3 da LAT/09 foi a demonstração, de entre os enunciados no art. 2020º/1 do CC, apenas daqueles requisitos de que depende o reconhecimento legal de uma relevante situação de união de facto: ser o falecido pessoa não casada ou separada judicialmente de pessoas e bens; existir entre o falecido e o sobrevivo uma relação de comunhão de cama, mesa e habitação que perdure há mais de dois anos.
Na verdade, para efeitos desse reconhecimento legal de uma relevante situação de união de facto de nada devem relevar, a nosso ver, requisitos como o da necessidade de alimentos (art. 2004º do CC) e o da impossibilidade para os pagar por parte da herança ou dos familiares indicados nas alíneas a) a d) do art 2009º do CC, por se tratar de requisitos de todo em todo estranhos à realidade material e sociológica em que se traduz a dita união: uma relação entre duas pessoas ligadas por sentimentos de afectividade e disponíveis para se darem uma à outra pessoal, física e economicamente, assente numa continuada e duradoura relação de respeito e ajuda recíprocos, bem como numa comunhão de interesses e projectos.
Cumpre recordar, aliás, que nos termos do art. 3º/1/f da Lei 7/01, de 11/5, em vigor à data do acidente em causa nestes autos, as pessoas que vivem em união de facto nas condições previstas nessa lei têm direito a prestação por morte resultante de acidente de trabalho ou doença profissional.
Por outro lado, nos termos do art. 6º dessa mesma Lei 7/01, beneficia dos direitos estipulados na alínea f) do artigo 3.º, no caso de uniões de facto previstas na lei, quem reunir as condições constantes no artigo 2020.º do Código Civil.
No mesmo sentido dispunham os arts. 3º/1/f e 6º da Lei 135/99, de 28/8.
Ora, é sabido que essas duas leis prosseguiram um propósito de equiparação entre as situações de união de facto e as do casamento, designadamente em situações de protecção devida por causa de acidente de trabalho de que resulte a morte do sinistrado.
Por isso mesmo, se o cônjuge do sinistrado falecido não está obrigado à demonstração do requisito da necessidade dos alimentos, nem ao da impossibilidade de os cobrar aos familiares do falecido, então não se vislumbra fundamento substantivo para que leis que prosseguiram aquele propósito de equiparação obrigassem aqueles que viveram em união de facto à alegação e prova daqueles dois requisitos que os cônjuges estariam dispensados de alegar e provar.
No sentido de que aquele que viveu em união de facto apenas está obrigado a alegar e provar, para obter a pensão devida por acidente de trabalho mortal, o estado civil do sinistrado falecido e a subsistência daquela união durante um período mínimo de dois anos, pronunciou-se alguma doutrina e jurisprudência no âmbito de vigência da anterior LAT/97 e respectivo regulamento (arts. 20º/1/a da LAT e 49º/ 2 do RLAT, correspondentes ao art. 57º/1/a/3 da LAT/09), designadamente, Carlos Alegre, Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, 2.ª edição, pág. 111, a Relação de Lisboa, no acórdão de 27/2/08 proferido no âmbito da apelação 292/2008-4, e esta a Relação de Coimbra, no acórdão de 4/11/04 proferido no âmbito da apelação 2351/04.
De resto, a propósito do problema idêntico ao que aqui está a ser equacionado, do reconhecimento do direito a pensão de sobrevivência por parte daquele que sobreviveu a uma situação de facto que perdurou por mais de dois anos, a jurisprudência dividiu-se entre uma corrente minoritária que dispensava o sobrevivo de alegar e provar os requisitos da necessidade de alimentos e da impossibilidade de a herança ou os outros familiares previstos no art. 2009º, alíneas a) a d), do CC os poderem prestar (v.g. acórdão do STJ de 20/4/04, proferido no âmbito da revista 57/04-6, publicado na CJ do STJ, ano XII, tomo II, pág. 30, acórdãos da Relação de Évora de 22/1/04, proferido no âmbito da apelação 2077/03-2,   de 27/1/2005, proferido no âmbito da apelação 1646/04-3, e de 2/2/06, proferido no âmbito da apelação 1823/05-2; acórdão da Relação de Coimbra de 9/5/06, proferido no âmbito da apelação 648/06), e uma outra corrente maioritária no STJ (v.g. acórdãos do STJ de 8/9/09, proferido no âmbito da revista 3573/07.3TVLSB.S1, e de 19/3/09, proferido no âmbito da revista 09B0202) que exigia aquelas demonstrações.
Perante essa querela jurisprudencial, o legislador tomou partido na mesma e nas alterações que pela Lei 23/2010, de 30/8, introduziu à Lei 7/2001, de 11/5, excluiu expressamente a necessidade de alegação e prova do requisito na necessidade dos alimentos por parte de sobrevivente da união de facto que requeira a pensão de sobrevivência (art. 6º/1: “…independentemente da necessidade de alimentos.”), para lá de ter excluído a referência contida no art. 2020º/1 do CC à impossibilidade de cobrança que dele constava (cfr. art. 3º, por força do qual o art. 2020º/1 do CC passou a estatuir que “O membro sobrevivo da união de facto tem o direito de exigir alimentos da herança do falecido.”), de tudo resultando, conjugadamente, que definitivamente o requerente da pensão de sobrevivência não tinha que alegar e provar os requisitos da necessidade e da impossibilidade supra aludidos.
Como assim, deve reconhecer-se que o regime decorrente da Lei 23/2010 pode e deve aplicar-se mesmo a situações de facto em que o óbito de quem vivia em união de facto ocorreu antes da data da sua entrada em vigor e depois da entrada em vigor da Lei 7/2001, como sucede no caso dos autos, em que à data do óbito da sinistrada o ora autor vivia com ela em união de facto há mais de dois anos (pontos 1º, 3º, 6º e 9º  dos factos provados) – Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 3/2013, DR, I-A, de 15/1/2013.
Ora, se na situação paralela da pensão de sobrevivência não é exigível a prova daqueles requisitos de necessidade e de impossibilidade acima aludidos, o entendimento deve ser idêntico para a situação dos autos em que está em causa uma pensão devida por acidente de trabalho mortal, caso em que, igualmente, aquele que sobreviveu à situação de união de facto não tem aquele ónus de alegação e prova.
Tudo a significar, assim, que o recurso não merece nesta parte provimento.
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Segunda questão: se o autor B... está sujeito à limitação indemnizatória prevista no art. 59º/3 da NLAT.
Resulta dos autos que o autor B... casou civilmente com D..., em 11 de Maio de 2012, na Conservatória do Registo Civil de Santarém – fls. 149 vº.
Nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 59.º da LAT/09, “Qualquer das pessoas referidas no n.º 1   que contraia casamento ou passe a viver em união de facto recebe, por uma só vez, o triplo do valor da pensão anual, excepto se já tiver ocorrido a remição total da pensão.”.
Consequentemente, o autor está inequivocamente sujeito a esta limitação indemnizatória.
O valor da pensão anual do autor B... foi fixado, na sentença recorrida, com trânsito em julgado, no montante de € 3.150.
Essa pensão é devida ao autor B... entre 13 de Julho de 2010 e 10 de Maio de 2012.
Para lá da pensão assim devida, o autor B... tem direito a receber da ré, de uma só vez, com efeitos reportados a 11/5/2012, o valor de € 9.450.
Procede, nessa parte, o recurso.
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IV – Decisão

Termos em que deliberam os juízes que compõem esta secção social do Tribunal da Relação de Coimbra no sentido julgar parcialmente procedente o recurso, substituindo-se a condenação da ré a pagar ao autor B... uma pensão anual e vitalícia, actualizável, de € 3.150 euros, pela condenação da mesma ré a pagar a esse autor, de uma só vez, o montante de € 9.450, com efeitos reportados a 11/5/2012, acrescendo a esse montante o correspondente à pensão anual de € 3.150 euros devida pela ré ao mesmo autor entre 13 de Julho de 2010 e 10 de Maio de 2012.
No mais, confirma-se a sentença recorrida.
A ré suportará as custas correspondentes a ½; as demais seriam da responsabilidade do autor B..., que delas está isento.
Coimbra, 19/9/2013.

 (Jorge Manuel Loureiro - Relator)
 (Ramalho Pinto)
 (Azevedo Mendes)