Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
238/17.1YRCBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUÍS TEIXEIRA
Descritores: ESCUSA DE JUIZ
Data do Acordão: 11/08/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA (JC GENÉRICA DA LOUSÃ)
Texto Integral: S
Meio Processual: ESCUSA DE JUIZ
Decisão: INDEFERIDO O PEDIDO
Legislação Nacional: ART. 43.º DO CPP
Sumário: Não constitui nem reclama fundamento ou motivo sério e grave que gere desconfiança sobre a imparcialidade da requerente o facto de ser casada com advogado que esporadicamente presta serviços à sociedade defensora do arguido.
Decisão Texto Integral:






            Acordam em conferência na 4ª Secção (Criminal) do Tribunal da Relação de Coimbra:

I

            1. No processo supra identificado, vem a Srª Juíza A..., a exercer funções no Juízo de Competência Genérica da Lousã, Juiz 2, da Comarca de Coimbra,

suscitar o incidente de escusa para intervir/proceder ao julgamento nos presentes autos, invocando para o efeito os seguintes fundamentos:

“O Processo Comum Singular n.º 25/1 7.7GBLSA, em que foi pronunciado o arguido J... e foi requerida a constituição como assistente por L... , a qual deduziu pedido de indemnização civil e constituiu advogada nos autos, foi distribuído à ora requerente.

O arguido juntou procuração a favor da sociedade de advogados C... e Associados — Sociedade de Advogado, RL, representada pelos sócios Srs. Drs. D... , C... , E... e F... , e dos Srs. Drs. G... , H... e I... , todos com escritório na Rua J (...) Coimbra.

Os referidos Senhores Advogados exercem actividade profissional no âmbito da referida sociedade de advogados, à qual o cônjuge da ora requerente, também advogado, presta serviços de advocacia.

Ora, entende a requerente que as decisões que sejam proferidas nos autos supra identificados podem reflectir-se na confiança que os destinatários e os demais cidadãos têm na administração da justiça.

Efectivamente, a requerente considera que não lhe basta ser e saber que é séria e imparcial, tendo também que objectivamente o parecer perante a comunidade em nome da qual tem o poder de julgar.

No caso, não está em questão a imparcialidade na sua vertente subjectiva, pois não tem a requerente qualquer dúvida em sublinhar que, a improceder o presente requerimento, lidará com a situação nos termos habituais, isto é, com total imparcialidade e com a máxima objectividade que estiver ao seu alcance. Está em questão, sim, a imparcialidade na sua vertente objectiva, pois aos olhos da comunidade pode parecer estranho que a juiz que tramita e julga o presente pleito seja casada com um advogado que presta serviços de advocacia à sociedade a que pertencem os Mandatários do arguido e no âmbito da qual exercem a sua actividade profissional.

Termos em que,

Requer a V.s Ex.as se dignem escusá-la de intervir no processo, com as legais consequências”.

2. Pela Srª Juíza foi junta certidão do seu assento de nascimento onde se encontra averbado o seu casamento com B... – doc. De fls. 12 e 13.

Juntou ainda declaração da sociedade de advogados C... e Associados — Sociedade de Advogado, RL, com o seguinte teor:

“Para os efeitos tidos por convenientes C... e Associados, Sociedade de Advogados, SP, RL, registada na Ordem dos Advogados sob o n° (...) , com sede na Rua (...) , em Coimbra, vem declarar que o Sr. Dr. B... , com a cédula profissional n° (...) presta serviços de advocacia a esta sociedade”.

3. Por despacho de 18.10.2017 – v. fls. 16 -, decidiu-se notificar C... e Associados Sociedade de Advogados, SP, RL para esclarecer:

            - Se o Sr. Dr. B... também é sócio/associado da Sociedade de Advogados.

 - E caso não o fosse, a que título são prestados os serviços pelo Sr. Dr. B... à Sociedade de Advogados nomeadamente se existe algum vínculo laboral ou prestação de serviços regular e em que circunstâncias.

4. Na sequência da notificação, por C... e Associados Sociedade de Advogados foi informado o seguinte:

“O Dr. B... , que usa o nome profissional de BB... , mantém com esta Sociedade uma prestação de serviços com carácter regular, exercendo na mesma a função de advogado e jurisconsulto que, potencialmente, se pode efetivar em toda a atividade forense objeto desta mesma sociedade, podendo, assim, e casuisticamente, ter intervenção na qualidade e/ou papel sobreditos, em qualquer processo judicial em que a mesma seja mandatada a participar.

Mais informa que o mesmo advogado tem domicílio profissional nas instalações desta sociedade, como melhor resulta da sua ficha constante nos registos da Ordem dos Advogados, de que se junta cópia”.

5. Colhidos os vistos, teve lugar a conferência.

II

Apreciando

Considerações gerais:

1. Sobre o pedido de escusa de juiz regula o artigo 43º do Código de Processo Penal, que diz o seguinte:

1. A intervenção de um juiz no processo pode ser recusada quando correr o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.

( ... )

3. A recusa pode ser requerida pelo Ministério Público, pelo arguido, pelo assistente ou pelas partes civis.

4.O juiz não pode declarar-se voluntariamente suspeito mas pode pedir ao tribunal competente que o escuse de intervir quando se verifiquem as condições dos nºs 1 e 2”.


2. O incidente processual de escusa (bem como o de recusa) de juiz tem por base princípios e direitos fundamentais das pessoas, próprios de um Estado de Direito Democrático e visa assegurar a imparcialidade dos tribunais, o que se traduz numa exigência de independência e garantia de imparcialidade dos próprios juízes, titulares daqueles.

Uma das regras basilares dessa mesma garantia é o princípio do juiz natural consagrado no art. 32º, nº 9, da mesma CRP, sendo uma das garantias de defesa em processo penal, com o alcance de proibir a designação arbitrária de um juiz ou tribunal para decidir um caso submetido a juízo, em ordem a assegurar uma decisão imparcial e isenta.

Luís Osório, no Comentário do Código de Processo Penal Português, II, Coimbra, 1932, pág. 225, afirmava:

“Quanto às pessoas, que intervêm no processo, se exige um comportamento imparcial e independente, a capacidade em concreto pode faltar pela presença duma circunstância especial da causa que ameaça aquela imparcialidade e independência.

Chegamos assim aos impedimentos e suspeições.

Nestes casos falta a capacidade específica por existir motivo especial que inibe a pessoa de exercer a função num determinado caso.

Os impedimentos distinguem-se das suspeições porque naqueles como causas se englobam as circunstâncias que segundo o legislador, afectam sempre a imparcialidade ou a independência do julgador e que, por isso, devem ser denunciadas pelos impedidos; já as causas de suspeições são aquelas que podem afectar essa imparcialidade ou independência e só pelas partes devem ser arguidas, só elas sendo juízes para determinarem se aquela possibilidade se pode tornar ou não em realidade”.

Manuel Cavaleiro de Ferreira, in Curso de Processo Penal, I, Lisboa, 1955, a págs. 234/5, afirmava:

"A organização judiciária é toda vertida no sentido de obter as máximas garantias de objectiva imparcialidade da jurisdição. Mas não basta a existência efectiva de imparcialidade. Importa que tenha lugar a confiança geral na objectividade da jurisdição.

Por isso naqueles casos em que a imparcialidade do juiz ou a confiança do público nessa imparcialidade é, fundadamente, periclitante, o juiz não pode funcionar no respectivo processo. O juiz pessoalmente, e não o tribunal, estará, então, impedido (judex inhabilis) de funcionar, ou pode ser considerado suspeito (judex suspectus). O juiz está impedido ou é inábil, por força da lei; e é suspeito, por decisão própria ou por recusa das partes, baseada na existência dos factos que fundamentam suspeição”.

Por sua vez, Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, I, Verbo, 1996, pág. 199 (e na 5.ª edição, 2008, pág. 215), escreve:

"A organização judiciária está estruturada na busca da independência dos juízes e tutela do direito de defesa em ordem a assegurar as máximas garantias de objectiva imparcialidade da jurisdição.

Quando a imparcialidade da jurisdição possa ser posta em causa, em razão da ligação do juiz com o processo ou porque nele já teve intervenção noutra qualidade ou porque tem qualquer relação com os intervenientes que faça legitimamente suspeitar da sua imparcialidade, há necessidade de o afastar do processo."

Do acórdão do Tribunal Constitucional n.º 135/88, de 16 de Junho de 1988, proferido no processo n.º 137/87 - 2.ª Secção, Diário da República, II Série, n.º 208, de 8-09-1988 e BMJ n.º 378, pág. 176, extrai-se o seguinte:

"A independência dos juízes é, acima de tudo, um dever - um dever ético social.

A "independência vocacional", ou seja, a decisão de cada juiz de, ao "dizer o direito", o fazer sempre esforçando-se por se manter alheio - e acima - de influências exteriores, é, assim, o seu punctum saliens. A independência, nesta perspectiva, é, sobretudo, uma responsabilidade que terá a "dimensão" ou a "densidade" da fortaleza de ânimo, do carácter e da personalidade moral de cada juiz.

Com sublinhar estes pontos, não pode, porém, esquecer-se a necessidade de existir um quadro legal que "promova" e facilite aquela "independência vocacional".

Assim, necessário é, inter alia, que o desempenho do cargo de juiz seja rodeado de cautelas legais destinadas a garantir a sua imparcialidade e a assegurar a confiança geral na objectividade da jurisdição.

É que, quando a imparcialidade do juiz ou a confiança do público nessa imparcialidade é justificadamente posta em causa, o juiz não está em condições de "administrar a justiça". Nesse caso, não deve poder intervir no processo, antes deve ser pela lei impedido de funcionar - deve, numa palavra, poder ser declarado iudex inhabilis".

Henriques Gaspar, in Código de Processo Penal Comentado, Almedina, 2.ª edição revista, 2016, pág. 129, afirma:

 "A recusa e a escusa constituem outros meios processuais, instrumentais da garantia da imparcialidade que completam a função dos impedimentos. Os impedimentos são fundamentos objectivos e típicos; a recusa e a escusa são fundamentos enunciados por meio de uma cláusula geral que exige integração em concreto, e por isso não típica".

E a fls. 130:

"Os motivos que sejam fundamento de recusa podem constituir igualmente fundamento para o juiz pedir escusa, quando considerar que existem razões para gerar nos interessados o risco de a sua intervenção poder ser considerada suspeita.

O juízo prudencial do tribunal na decisão do pedido será da mesma natureza do que decida um pedido de recusa nos caos em que os fundamentos respeitem à imparcialidade objectiva. Mas o juízo será diverso, e por natureza aproximado do pedido do juiz, se nas razões do pedido de escusa estiverem motivos de natureza pessoal e que sejam susceptíveis de por em causa as condições de afirmação da imparcialidade subjectiva".

Afirma-se no ac. do STJ de 25.1.2017, in CJ, Acórdãos do STJ, Ano XXV, Tomo I, 2017, fls. 159 e ss:

“No âmbito da jurisdição penal, o legislador, escrupuloso no respeito pelos direitos dos arguidos, consagrou como princípio sagrado e inalienável o do juiz natural, - pressupõe tal princípio que intervirá na causa o juiz que o deva ser segundo as regras de competência legalmente estabelecidas para o efeito.

O mesmo princípio só é de remover em situações-limite[1], ou seja, unicamente e apenas quando outros princípios ou regras, porventura de maior dignidade, o ponham em causa, como sucede por exemplo, quando o juiz natural não oferece garantias de imparcialidade e isenção no exercício do seu múnus. (Assim no acórdão do STJ de 5 de Abril de 2000, proferido no processo n.º 156/2000-3.ª Secção, CJSTJ, 2000, tomo I, pág. 244 e SASTJ, n.º 40, pág. 44).

Extrai-se do acórdão de 10-10-2002, processo n.º 1237/02-5.ª, SASTJ, n.º 64, pág. 108, o seguinte:

"Importa usar de uma certa flexibilidade, ou de um menor rigorismo, sempre que se pondere sobre a razoabilidade de um pedido de escusa, uma vez que o juízo a respeito dessa flexibilidade - ao invés do que sucede na recusa - implica forçosa e fundamentalmente, com as inerentes dificuldades e delicadeza, a valorização de uma atitude subjectiva assumida pelo magistrado escusante, atitude essa cuja razão de ser é de custosa sindicância por parte de quem tenha de fazer aquela ponderação e emitir aquele juízo. Assim sendo, torna-se óbvio que os elementos objectivos probatórios da sentida necessidade do que se pede hajam apenas de conter ou possuir um mínimo de relevância, o mínimo que baste à concessão da escusa.

O que nesta perspectiva se torna importante realçar é evitar-se que uma não concessão de escusa venha a gerar uma futura e eventual recusa, com todos os inconvenientes que daí possam advir, quer para a imagem da justiça, quer para o prestígio dos Tribunais".

E ainda que:

“Retira-se do acórdão de 20-02-2008, processo n.º 310/08-3.ª - Segundo Paulo Albuquerque, a imparcialidade deve ser avaliada de acordo com um duplo teste: subjectivo e objectivo. O subjectivo visa apurar se o juiz deu mostras de ter interesse na causa ou estar imbuído de algum preconceito sobre o mérito da mesma. O teste objectivo reporta-se, por sua vez, ao ponto de vista da opinião pública, visando determinar se a intervenção do juiz pode suscitar dúvidas sobre a imparcialidade junto dos cidadãos (cf. Comentário do CPP, págs. 127/8”).

Com efeito, este jurista (Paulo Pinto de Albuquerque), na obra citada, a fls. 127, cita alguns exemplos:

“A existência de relações pessoais do juiz com os sujeitos processuais não constitui necessariamente motivo de suspeição. Assim, a relação de amizade entre o juiz titular do processo e o ofendido, também ele juiz, resultante de terem trabalhado juntos no mesmo tribunal, não é motivo para tanto (ac. do STJ de 5.4.2000, in CJ, acs STJ, VIII, 1, 254). Como também não o é a circunstância de a assistente ser educadora na escola que o filho do juiz frequenta (ac. do TRC de 13.6.2001, in CJ, XXVI, 3, 57).

3. Sobre a finalidade do incidente de recusa de juiz[2], escreve-se também no ac. da Relação do Porto de 23.05.07[3], processo 0712825, nomeadamente:

“ Pretende-se «assegurar a confiança geral na objectividade da jurisdição. É que, quando a imparcialidade do juiz ou a confiança do público nessa imparcialidade é justificadamente posta em causa, o juiz não está em condições de “administrar a justiça”. (…) Importa, pois, que o juiz que julga o faça com independência. E importa, bem assim, que o seu julgamento surja aos olhos do público como um julgamento objectivo e imparcial. É que a confiança da comunidade nas decisões dos seus magistrados é essencial para que os tribunais ao “administrar a justiça”, actuem, de facto, “em nome do povo” (cf. art. 205 nº1 da Constituição)».

É “o dever de imparcialidade” que determina o pedido de escusa do juiz, imparcialidade essa que impõe o exercício de facto das suas funções com “total transparência (…). Não basta ser é preciso parecer. Assim o exige o princípio da confiança dos cidadãos na justiça”.

Para sustentar a escusa ou recusa do juiz, atento o disposto no citado art. 43 nºs 1 e 4 do CPP, é necessário verificar:

- se a intervenção do juiz no processo em causa corre “o risco de ser considerada suspeita”;

- e, se essa suspeita ocorre “por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade”.

Mas, se é certo que a lei não define o que se deve entender por «motivo sério e grave adequado a gerar desconfiança sobre a imparcialidade» do juiz, cuja recusa ou escusa é requerida ou pedida respectivamente, a verdade é que, para tanto, deverão ser indicados factos objectivos susceptíveis de preencher tais requisitos.

Em nome da transparência da administração da justiça e tendo presente a natureza do processo equitativo, ainda “será a partir do [bom] senso e da experiência ”comum “que tais circunstâncias deverão ser ajuizadas” caso a caso.           

Como diz Ireneu Barreto, comentando o art. 6 nº 1 da CEDH, «a imparcialidade do juiz pode ser vista de dois modos, numa aproximação subjectiva ou objectiva. Na perspectiva subjectiva, importa conhecer o que o juiz pensava no seu foro íntimo em determinada circunstância; esta imparcialidade presume-se até prova em contrário. Mas esta garantia é insuficiente; necessita-se de uma imparcialidade objectiva que dissipe todas as dúvidas ou reservas, porquanto, mesmo as aparências podem ter importância de acordo com o adágio do direito inglês Justice must not only be done; it must also be seen to be done. Deve ser recusado todo o juiz de quem se possa temer uma falta de imparcialidade, para preservar a confiança que, numa sociedade democrática, os tribunais devem oferecer aos cidadãos».
            Por isso, bem se compreende que só seja lícito recorrer aos mecanismos processuais das recusas e escusas em “situações limite” em que se verifiquem os respectivos pressupostos”.                              

4. Também no ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 14.06.2006, proferido no processo nº 06P1286, consultável em http:/www.dgsi.pt/jstj.nsf/, se afirma a propósito da escusa:

“ I - No incidente de escusa de juiz não relevam as meras impressões individuais, ainda que fundadas em situações ou incidentes que tenham ocorrido entre o peticionante da escusa e um interveniente ou sujeito processual, num processo ou fora dele, desde que não sejam de molde a fazer perigar, objectivamente, por forma séria e grave, a confiança pública na administração da justiça e, particularmente, a imparcialidade do tribunal. De outro modo, poder-se-ia estar a dar caução, com o pedido de escusa, a situações que podiam relevar de motivos mesquinhos ou de formas hábeis para um qualquer juiz se libertar de um qualquer processo por razões de complexidade, de incomodidade ou de maior perturbação da sua sensibilidade[4].

II - O motivo de escusa apresentado tem de ser sério e grave, objectivamente considerado, isto é, do ponto de vista do cidadão médio, que olha a justiça como uma instituição que tem de merecer confiança.

III - A regra do juiz natural ou legal, com assento na Constituição - art. 32.º, n.º 9 -, só em casos excepcionais pode ser derrogada e isso para dar satisfação adequada a outros princípios constitucionais, como o da imparcialidade, contido no n.º 1 do mesmo normativo. Mas, para isso, é preciso que essa imparcialidade esteja realmente mesmo em causa, em termos de um risco sério e grave, encarado da forma sobredita “.

5. E como refere F. Dias, in Direito Processual Penal, Coimbra Editora, 1974, vol. I, fls. 315[5], “ …são várias …as razões que, perante um caso concreto, podem levar a pôr em dúvida a capacidade de um juiz para se revelar imparcial no julgamento; e o que aqui interessa - convém acentuar -, não é tanto o facto de, a final, o juiz ter conseguido ou não manter a imparcialidade, mas sim defendê-lo da suspeita de a não ter conservado, não dar azo a qualquer dúvida, por esta via reforçando a confiança da comunidade nas decisões dos seus magistrados”.

Por sua vez, refere o Ac do T.C. nº 135/88 in DR II Série de 08/09/88, que pretende-se «assegurar a confiança geral na objectividade da jurisdição. É que, quando a imparcialidade do juiz ou a confiança do público nessa imparcialidade é justificadamente posta em causa, o juiz não está em condições de “administrar a justiça”. (…) Importa, pois, que o juiz que julga o faça com independência. E importa, bem assim, que o seu julgamento surja aos olhos do público como um julgamento objectivo e imparcial. É que a confiança da comunidade nas decisões dos seus magistrados é essencial para que os tribunais ao “administrar a justiça”, actuem, de facto, “em nome do povo” (cf. art. 205 nº 1 da Constituição)»

6. Trazendo de novo à colação o teor do ac. do STJ de 25.1.2017, in CJ, Acórdãos do STJ, Ano XXV, Tomo I, 2017, fls. 159 e ss, supra mencionado, aí mais se acrescenta com relevo para a situação:

“A lei não define nem caracteriza a seriedade e a gravidade dos motivos, pelo que será a partir do senso e da experiência comuns que tais circunstâncias deverão ser ajuizadas; em todo o caso, o art. 43.º, n.º 1, do CPP não se contenta com um "qualquer motivo"; ao invés, exige que o motivo seja duplamente qualificado, o que não pode deixar de significar que a suspeição só se deve ter por verificada perante circunstâncias concretas e precisas, consistentes, tidas por sérias e graves, irrefutavelmente reveladoras de que o juiz deixou de oferecer garantias de imparcialidade e isenção".

Como se extrai do acórdão de 15-09-2010, proferido no processo n.º 133/10.5YFLSB - 3.ª Secção "A recusa de juiz terá lugar sempre que concorra a cláusula geral de existência de risco de a sua intervenção ser reputada suspeita, por verificação de motivo sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade, não bastando, como é pacífica a jurisprudência do STJ, uma convicção mais ou menos subjectiva ou intimista de um dos sujeitos processuais, que, levando, sem mais, ao afastamento do juiz introduziria uma perigosa violação do princípio do juiz natural ou legal, previamente definido em função das regras de competência, uma das garantias fundamentais para o cidadão, sobretudo para o arguido, com tradução no art. 32.º, n.º 9, da CRP (Ref. 7/1976).

Daí que, na concordância prática, entre os interesses em jogo, se deva ser particularmente exigente na recusa, em ordem à constatação de uma especial gravidade da suspeita, ancorada em factos objectivos e objectivados, que não leve ao afastamento do juiz por qualquer motivo fútil.

A imparcialidade há-de, por isso mesmo, ser testada num plano de rigorosa casuística, em função do concretismo da situação e da posição ante ela, actuada processualmente pelo juiz.

Por isso, o motivo sério e grave com virtualidade para abalar a credibilidade do juiz, que, em princípio, se presume, não resulta tanto do convencimento subjectivo dos sujeitos processuais, mas antes de um puro derivado da ponderada valoração do caso concreto, fazendo intervir as regras da experiência comum, id quod plerumque accidit, procurando a resposta no homo medius, representativo do pulsar da sociedade, que nela colhe, sem esforço, a resposta positiva ou negativa.

A imparcialidade ou parcialidade subjectiva do julgador é de muito difícil alcance ou demonstração, mas porque se pretende pôr a salvo de suspeições na sua actividade de julgar, lapidarmente o Prof. Cavaleiro Ferreira, afirmou que, na realidade das coisas, o juiz permanece imparcial, por isso interessa sobretudo considerar se em relação ao processo poderá ser imparcial, objectivamente equidistante do conflito.

A imparcialidade há-de ser submetida a um teste subjectivo, como ainda objectivo, comenta o Prof. Paulo Pinto de Albuquerque, para quem o teste subjectivo visa apurar se o juiz deu mostras de um interesse pessoal no destino da causa ou evidenciou preconceito sobre o seu mérito; o teste objectivo visa apreciar se, de um ponto de vista do cidadão comum, podem suscitar-se sérias dúvidas sobre a imparcialidade; a perspectiva do queixoso releva, mas não é decisiva (Comentário do Código de Processo Penal, pág. 128).

A estrutura da sociedade reclama cada vez mais rigor e transparência, exigindo exteriorização subjectiva e demonstração objectiva de probidade funcional, que é dever da administração pública e, por maioria de razão, da Magistratura judicial (Ac. do STJ de 07-04-2010, Proc. n.º 1257/09).

Segundo o acórdão de 11-11-2010, processo n.º 49/00.3JABRG.G1.S1-5.ª, "Para afastar o juiz natural não é suficiente um qualquer motivo que alguém possa considerar como gerador de desconfiança sobre a imparcialidade do juiz. É preciso que o motivo seja sério e grave, pois, o juiz natural só pode ser arredado se isso for exigido pela salvaguarda dos valores que a sua consagração visou garantir: imparcialidade e isenção".

Como acentua o acórdão de 9-11-2011, processo n.º 99/11-3.ª "A imparcialidade afasta-se quando as razões ditadas pela razão objectiva são substituídas pelas empatias contidas na emoção resultante da proximidade".

Concretizando.

Até que ponto o facto de um filho da requerente[6] fazer estágio de advocacia num escritório pertença de uma sociedade integrada, i. a, pelo respectivo Patrono e por um outro Advogado que representa o arguido recorrente no recurso a apreciar pela invocante, pode constituir motivo sério e grave adequado a gerar desconfiança sobre imparcialidade da relatora?

Para o efeito de apresentação do pedido de escusa, o que importa é determinar se um cidadão médio, representativo da comunidade, pode, fundadamente, suspeitar que o juiz, influenciado pelos factos invocados, deixe de ser imparcial.

Os motivos sérios e graves, adequados a gerar desconfiança sobre a imparcialidade do julgador, hão-de resultar de objectiva justificação, avaliando-se as circunstâncias invocadas pelo requerente não pelo convencimento subjectivo deste, mas pela valoração objectiva das mesmas circunstâncias a partir do senso e experiência comuns, conforme juízo do cidadão de formação média da comunidade em que se insere o julgador”.

7. Desta anotação jurisprudencial e doutrinal, podemos resumir os contornos essenciais da escusa (ou recusa) de juiz num Estado de Direito em que o Juiz Administra a Justiça em Nome do Povo, a um único objetivo ou finalidade:

Garantir a Imparcialidade do Juiz na Decisão.

Beneficiando o Juiz da presunção da sua imparcialidade, só nas referidas situações limite, por motivo sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade, conforme é exigência legal[7], deve o mesmo ser retirado de intervir num processo.

III

O concreto caso em análise:

  1. A requerente, Sr. Juíza, a quem foi distribuído o processo em causa para julgamento, exerce funções no Juízo de Competência genérica da Lousã – Juiz 2.

O arguido deste processo juntou procuração a favor da sociedade de advogados C... e Associados — Sociedade de Advogado, RL, representada pelos sócios Srs. Drs. D... , C... , E... e F... , e dos Srs. Drs. G... , H... e I... , todos com escritório na Rua (...) Coimbra.

Como refere a própria requerente, os referidos Senhores Advogados exercem a atividade profissional no âmbito da referida sociedade de advogados.

E, juridicamente, será um destes ou estes advogados identificados na procuração, que exercerá ou exercerão o mandato no processo em causa.

O cônjuge da requerente, sendo também advogado, presta serviços de advocacia àquela sociedade.

Serviços que a sociedade em causa qualifica como prestação de serviços com carácter regular, exercendo na mesma a função de advogado e jurisconsulto.

E se é certo que, conforme refere ainda a sociedade, “pode, casuisticamente, ter intervenção na qualidade e/ou papel sobreditos, em qualquer processo judicial em que a mesma seja mandatada a participar”, a verdade é que não tem a qualidade de sócio desta mesma sociedade nem está mandatado para intervir neste concreto processo.

Perante estes factos invocados como fundamento da escusa, será de questionar se é de admitir a suscetibilidade, do ponto de vista do cidadão médio da comunidade onde se insere o julgador, se ocorre desconfiança sobre a imparcialidade da ora requerente.

Na sua intervenção, não basta ao juiz ser imparcial; é também necessário que o pareça.

Como refere Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, I, 2000 e 2008, pág. 233,

"A imparcialidade é essencialmente de natureza cultural e pode apreciar-se de maneira subjectiva e objectiva. Naquela perspectiva, significa que o juiz deve actuar com serenidade, sem paixão, pré-juízo ou interesse pessoal; nesta, na perspectiva objectiva, que nenhuma suspeita legítima exista no espírito dos que estão sujeitos ao poder judicial. À imparcialidade íntima das pessoas deve juntar-se a imparcialidade aparente do sistema".

Citando mais uma vez o ac. do STJ de 25.1.2017:

“Os motivos sérios e graves, adequados a gerar desconfiança sobre a imparcialidade do julgador, hão-de pois resultar de objectiva justificação, avaliando-se as circunstâncias invocadas pelo Requerente não pelo convencimento subjectivo deste, mas pela valoração objectiva das mesmas circunstâncias a partir do senso e experiência comuns, conforme juízo do cidadão de formação média da comunidade em que se insere o julgador”.

Quanto à perspetiva subjetiva, a própria requerente adianta:

No caso, não está em questão a imparcialidade na sua vertente subjectiva, pois não tem a requerente qualquer dúvida em sublinhar que, a improceder o presente requerimento, lidará com a situação nos termos habituais, isto é, com total imparcialidade e com a máxima objectividade que estiver ao seu alcance”.

Quanto à perspetiva objetiva, entende-se que a valoração das concretas circunstâncias,  o senso e experiência comuns, segundo um juízo do cidadão de formação média da comunidade em que se insere o julgado, não constitui nem reclama fundamento ou motivo sério e grave que gere desconfiança sobre a imparcialidade da requerente.

Ademais, o concreto caso ou processo é de todo alheio ou mesmo desconhecido do cônjuge da requerente Srª Juíza. Como o é para a própria requerente.

IV

Decisão

Por todo o exposto, decide-se indeferir o pedido de escusa da Srª. Juíza requerente A... para intervir no processo em causa - Processo Comum Singular nº 25/1 7.7GBLSA.

Sem tributação.

Coimbra, 8.11.2017

(Luís Teixeira – relator)

(Vasques Osório – adjunto)


[1] Sublinhado nosso.
[2] Mas que tem aplicação para o caso de escusa.
[3] In http:/www.dgsi.pt/jtrp.nsf/.
[4] Aplicando este raciocínio a uma já situação de recusa e não de escusa, poder-se-ia abrir a porta para o afastamento hábil e fácil de determinado juiz de um determinado processo ou julgamento, por outros motivos que não aqueles de “sérios e graves”.
[5] Oportunamente citado pelo Exmº Exmº Sr. Procurador-geral Adjunto no seu parecer.
[6] Juíza Desembargadora.
[7] Citado artigo 43º, nº 1, do Código de Processo Penal.