Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
908/11.8TATMR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUÍS RAMOS
Descritores: SANEAMENTO
PROCESSO
REJEIÇÃO
ACUSAÇÃO MANIFESTAMENTE INFUNDADA
Data do Acordão: 09/11/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE TOMAR – 3º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGO 311º NºS 1, 2 E 3 CPP
Sumário: 1.- Se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido de rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada, o que ocorre quando os factos, de forma inequívoca, não constituem crime, ou seja, o juiz não pode rejeitar a acusação com base neste normativo se a questão da subsunção dos factos a norma jurídico-criminal for controversa.

2.- Assim se perante os factos em causa há diversas soluções de direito possíveis, a acusação não deve ser considerada manifestamente infundada.

Decisão Texto Integral: Acordam em conferência na 4ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

Por despacho proferido nos autos supra identificados, decidiu o Meritíssimo Juiz que “o comportamento do arguido [A...], actualmente, não encerra a prática de um crime de desobediência simples ou qualificada, razão pela qual, nos termos do inserto no artigo 311.º, al. d) do CPP, não recebo a acusação deduzida pelo MP.”

Inconformada com o decidido, o Ministério Público interpôs recurso no qual apresentou as seguintes conclusões (transcrição):

1. Nos autos de Execução n° 276/05.7TTTMR-A do Tribunal do Trabalho de Tomar, em que era Executada "B..., Lda.", foi penhorado o veículo de matrícula XD....

2. A 13.07.2011 a GNR efectuou a apreensão do veículo tendo sido lavrado auto que o arguido, assinou.

3. Na ocasião, o arguido legal representante, foi nomeado fiel depositário, a entidade policial deu-lhe a conhecer a ordem emitida no âmbito do processo pela entidade competente para tanto, para apresentação dos documentos do veículo, no prazo de 10 dias e fez-lhe a cominação de que incorria em crime de desobediência, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 348°, nº 2 (a forma qualificada) do CP e 16°, n° 2 do DL 54/75.

4. O arguido nada fez no prazo, nem até à acusação proferida a 13.06.12 e que lhe imputava a prática do aludido crime.

5. A revisão do artigo 851°, nº 2 CPC, em vigor após 31.03.09, fez cessar a aplicação das disposições do artigo 16° nº 2 do DL 54/75.

6. O executado ao faltar à entrega dos documentos sabendo que desobedece a uma ordem legítima, que lhe fora regularmente comunicada e cujo teor entendera, incorre na prática do crime de desobediência, simples, p.p. pelo artigo 348°, nº 1, al. b) CP, já não com referência ao disposto no artigo 16°, nº 2 do DL 54/75.

7. Pelo que não ser recebida a acusação que imputa ao arguido o mesmo crime, mas na forma qualificada, p.p, pelo artigo 348°, nº 2 CP, foram violadas as disposições" dos artigos 348°, nº 1, aº. b) CP, 311°, nº 1 e 312°, nº 1 CP.

8. Após julgamento, apreciada a prova e provada a mesma será de ponderar a alteração da qualificação jurídica, para a forma simples, p.p. pelo artigo 348°, nº 1, al. b) CP.

9. Pelo que se entende que o Tribunal aplicou indevidamente o Direito devendo, com o suprimento desse Tribunal Superior ser declarada a nulidade do despacho de rejeição da acusação, determinando-se a sua substituição por outro que a receba e determine o prosseguimento para julgamento.

Não houve resposta.

O recurso foi admitido para subir imediatamente, nos próprios autos, com efeito devolutivo.

Nesta instância o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer no qual se manifesta pela rocedência do recurso.

No âmbito do art.º 417.º, n.º 2 do Código Penal o arguido nada disse.

Os autos tiveram os legais vistos após o que se realizou a conferência.

Cumpre conhecer do recurso

Constitui entendimento pacífico que é pelas conclusões das alegações dos recursos que se afere e delimita o objecto e o âmbito dos mesmos, excepto quanto àqueles casos que sejam de conhecimento oficioso.

É dentro de tal âmbito que o tribunal deve resolver as questões que lhe sejam submetidas a apreciação (excepto aquelas cuja decisão tenha ficado prejudicada pela solução dada a outras).

Cumpre ainda referir que é também entendimento pacífico que o termo “questões” a quer se refere o artº 379º, nº 1, alínea c., do Código de Processo Penal, não abrange os argumentos, motivos ou razões jurídicas invocadas pelas partes, antes se reportando às pretensões deduzidas ou aos elementos integradores do pedido e da causa de pedir, ou seja, entende-se por “questões” a resolver, as concretas controvérsias centrais a dirimir[[1]].

Questão a decidir: rejeição da acusação com fundamento no art.º 311.º, n.ºs 2, alínea a. e 3, alínea d. do Código de Processo Penal

O despacho recorrido tem o seguinte teor (transcrição):

“Questão Prévia:

Os factos imputados ao arguido, de acordo com o descrito na acusação, traduziram-se em o mesmo não ter entregue no posto policial ou no Tribunal de Trabalho de Tomar os documentos do veículo penhorado, tendo sido nomeado fiel depositário desse, em 13/07/2011.

Com base nesses factos foi-lhe imputada a prática de um crime de desobediência qualificada, pp pelo artigo 348.º, n.º 2 do CP por referência ao artigo 16.º, n.º 2 do DL n.º 54/75.

Porquanto, face à factualidade descrita na acusação, no âmbito de uma execução a correr termos no Tribunal de Trabalho de Tomar, foi penhorado um veículo de uma sociedade e “apreendido” o mesmo, tendo o legal representante da mesma, o aqui arguido, sido nomeado fiel depositário desse veículo e notificado para em 10 dias apresentar os documentos do veículo sob pena de incorrer na pratica de uma crime de desobediência qualificada, nos termos do artigo 16.º, n.º 2 do DL n.º 54/75.

Assim, a notificação ao fiel depositário foi feita no âmbito de um processo de execução. Sucede que, a cominação que lhe foi feita de que não entregando os documentos incorria na pratica de um crime de desobediência qualificada, nos termos do artigo 16.º, n.º 2 do DL 54/75, de 12/02, actualmente é indevida uma vez que esse normativo apenas é aplicável ao procedimento cautelar específico previsto no artigo 15.º desse diploma e isto em face da nova redacção do artigo 851.º do CPC, que deixou de remeter para a legislação especial para a apreensão de veículo automóvel requerida por credor hipotecário, apenas remetendo actualmente para os artigos 161.º e 164.º, n.ºs 3 a 8 do CEstrada que já nada dispõe quanto a cominação igual ou sequer semelhante.

Destarte, e face ao factualismo descrito na acusação, o comportamento do arguido não ocorreu no âmbito de um procedimento cautelar específico previsto no DL 54/75, de 12/02 pelo que não lhe poderia ser feita a advertência de que a não entrega dos documentos se subsumia à prática de um crime de desobediência qualificada, nos termos do artigo 16.º, n.º 2 do DL citado.

Por outro lado, os artigos 161.º e 164.º, n.ºs 3 a 8 do CEstrada nada dispõem quanto à notificação para entrega de documentos de identificação do veículo apreendido, sob pena de o agente incorrer na prática de um crime de desobediência.

Porquanto, é de afastar, a subsunção do comportamento do arguido no disposto no artigo 348.º, n.º 1, al. a) e n.º 2 do CP, ou tão só na desobediência simples, prevista na al. a) do referido preceito.

No entanto, há que indagar-se se o seu comportamento se pode subsumir à prática de um crime de desobediência simples, pp pelo artigo 348.º, n.º 1, al. b) do CP.

Para o seu preenchimento parece bastar que exista a emissão de um ordem pela autoridade ou funcionário com a correspondente cominação, o seu incumprimento pelo obrigado, e a inexistência de uma disposição legal que o comine.

No entanto, na apreciação da questão suscitada, há que convocar-se o princípio nullum crimen, nulla poena sine lege, consagrados nos artigos 1.º, n.º 1 do CP e 29.º, n.º 1 da CRP, do qual decorre que só é crime o facto descrito e declarado passível de pena por lei anterior ao momento da sua pratica que tem por consequência que “não possa haver crime, nem pena, que não resultem de uma lei prévia, escrita, estrita e certa (…) importa que a descrição da matéria proibida e de todos os outros requisitos de que dependa em concreto uma punição seja levada até a um ponto em que se tornem objectivamente determináveis os comportamentos proibidos e sancionados e, consequentemente, se torne objectivamente motivável e dirigível a conduta dos cidadãos” – cfr. Jorge Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, Questões Fundamentais, A Doutrina Geral do Crime, págs. 177 e 186, citado no ac. do TRP de 25/05/2011, acessível em www.dgsi.pt. Por outro lado, há também que ter-se em conta o princípio da subsidiariedade do direito penal que impõe a sua intervenção como última ratio.

Da conjugação dos citados princípios tem-se entendido que o comportamento do arguido não se subsume ao artigo 348.º, n.º 1, al. b) do CP, uma vez que “na ausência de qualquer disposição legal cominativa só é possível punir a conduta desobediente em «matérias que, pelo seu recente aparecimento ou aquisição de importância aos olhos da comunidade, não foram ainda objecto de oportuna intervenção legiferante», o que não é o caso” – cfr. Cristina Líbano Monteiro, Comentário Conimbricense, Tomo III, pág. 354 e ac. TRP de 25/05/2011, acessível em www.dgsi.pt.

E indo ainda mais longe, tem-se entendido também que nunca as autoridades administrativas podem fazer a advertência e a cominação de que a violação das suas ordens fazem incorrer o agente na pratica de um crime de desobediência, pp pelo artigo 348.º, n.º 1, al. b) do CP uma vez que tal violaria o princípio da legalidade por permitir que uma simples autoridade administrativa introduzisse na ordem jurídica um novo tipo incriminador quando essa tarefa é reservada pela CRP à Assembleia da República, que a pode delegar, cumprindo determinados requisitos, no Governo (cfr. Francisco Borges, “O Crime de Desobediência à luz da Constituição”, pág. 83.

De tudo o exposto, resulta que se entende também que o comportamento do arguido não se subsume à pratica de um crime de desobediência simples, pp pelo artigo 348.º, n.1, al. b) do CP, por as autoridades policiais não poderem, por si só, fazer a advertência e a cominação de que a violação das suas ordens fazem incorrer o agente na pratica de um crime de desobediência, tendo existo a opção legislativa de descriminalizar a conduta do agente que não entrega os documentos do veículo apreendido, face à alteração operada ao artigo 851.º do CPC, maxime no seu n.º 2 que deixou de remeter para o DL 54/75, de 12/02, que permitia o uso do artigo 16.º, n.º 2, passando agora a remeter tão só para os artigos161.º e 164.º, n.ºs 3 a 8 do CEstrada que já nada dispõe quanto à notificação do fiel depositário para a entrega dos documentos do veículo apreendido sob pena de incorrer na prática de um crime de desobediência.

Ante o que se deixa dito, entende-se que o comportamento do arguido, actualmente, não encerra a pratica de um crime de desobediência simples ou qualificada, razão pela qual, nos termos do inserto no artigo 311.º, al. d) do CPP, não recebo a acusação deduzida pelo MP.

Notifique.”


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Diz-nos o art.º 311.º, n.ºs 2, alínea a. e 3, alínea d., do Código de Processo Penal[[2]] que se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido de rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada, o que ocorre quando os factos, de forma inequívoca, não constituem crime, ou seja, o juiz não pode rejeitar a acusação com base neste normativo se a questão da subsunção dos factos a norma jurídico-criminal for controversa[[3]] (se assim não fosse, ou seja, se bastasse a mera discordância, haveria violação do princípio do acusatório na vertente em que é imposta a separação entre a entidade que acusa e a entidade que julga).

Podemos dizer que o legislador só permite que a acusação seja rejeitada ao abrigo das disposições legais acima citadas, quando o teor fáctico da mesma conduzir, de forma inequívoca, ao entendimento de que o processo é inviável porque nunca poderia vir a ser outra a solução jurídica.

No caso “sub judice”, o tribunal “a quo” considera que a conduta descrita na acusação não constitui “crime de desobediência simples ou qualificada” previsto e punido pelo art.º 348º do Código Penal porquanto, e em termos gerais, considera “que nunca as autoridades administrativas podem fazer a advertência e a cominação de que a violação das suas ordens fazem incorrer o agente na pratica de um crime de desobediência, pp pelo artigo 348.º, n.º 1, al. b) do CP uma vez que tal violaria o princípio da legalidade por permitir que uma simples autoridade administrativa introduzisse na ordem jurídica um novo tipo incriminador quando essa tarefa é reservada pela CRP à Assembleia da República”.

Independentemente do maior ou menor acerto desta posição[[4]], o certo é que a jurisprudência se vem manifestando claramente em sentido contrário, nomeadamente no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 23 de Maio de 2012[[5]], posição que é acolhida sem qualquer censura em muitos outros arestos[[6]].

Em suma, a solução jurídica caucionada pelo tribunal “a quo” é tudo menos pacífica.

Ainda que fosse sustentável a argumentação do tribunal “a quo” quanto à integração jurídico-criminal dos factos descritos na acusação, o certo é que a jurisprudência vem [podemos mesmo dizer que de forma unânime!] considerando que a cominação da alínea b., do nº 1, do artº 348º do Código Penal não viola qualquer princípio constitucional.

Por isso, havendo [basta] jurisprudência em sentido contrário ao sustentado no despacho recorrido, ou seja, havendo diversas as soluções de direito possíveis, deveria o Meritíssimo Juiz recorrido ter-se abstido de proferir um drástico despacho de arquivamento, uma vez que como acima dissemos a acusação só pode ser rejeitada quando for inequívoco que os factos nela descritos não preenchem qualquer tipo legal de crime.

Assim sendo, temos que considerar que mal andou o tribunal “a quo” ao não a receber com fundamento no art.º 311.º, n.ºs 2, alínea a. e 3, alínea d..

Na sequência do que ficou dito, entendemos que os factos descritos na acusação são, pelo menos no entendimento de parte significativa da jurisprudência, passíveis de integrar a prática pelo arguido de um crime de desobediência previsto e punido pelo artº 348º, nº 1, alínea b., do Código Penal.

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Nesta conformidade, acorda-se em julgar procedente o recurso e consequentemente, revogando-se o despacho recorrido, determina-se que seja proferido um novo onde se considere que os factos descritos na acusação são passíveis de integrar um crime de desobediência previsto e punido pelo artº 348º, nº 1, alínea b., do Código Penal.

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Sem tributação

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Luís Ramos (Relator)

Olga Maurício


[1] “(…) quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se, a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista. O que importa é que o tribunal decida a questão posta, não lhe incumbindo apreciar todos os fundamentos ou razões em que as partes se apoiam para sustentar a sua pretensão” (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 5 de Maio de 2011, acessível in www.dgsi.pt, tal como todos os demais arestos citados neste acórdão cuja acessibilidade não esteja localmente indicada)
[2] Diploma a que pertencerão, doravante, todos os normativos sem indicação da sua origem
[3] Neste sentido e por toda uma jurisprudência que se vem mostrando unânime, v.g., Acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra de 25 de Março de 2010 e de 26 de Outubro de 2011 e Acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 2 de Dezembro de 2009 e de 7 de Dezembro de 2012 e Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 29 de Maio de 2012.
[4] Acerto que nos abstemos de apreciar, visto não ser esse o objecto do recurso
[5] Aresto citado no recurso
[6] Entre muitos outros, citam-se neste último sentido, os Acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra de 19 de Dezembro de 2012, de 28 de Março de 2012, de 28 de Abril de 2009 e de 29 de Janeiro de 2003, do Tribunal da Relação do Porto de 4 de Maio de 2011, de 27 de Outubro de 2010 e de 17 de Março de 2010, do Tribunal da Relação de Lisboa de 5 de Dezembro de 2007, do Tribunal da Relação de Évora de 29 de Janeiro de 2013 e de 29 de Maio de 2012 e do Tribunal da Relação de Guimarães de 29 de Novembro de 2010 e de 12 de Janeiro de 2009


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