Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | ALICE SANTOS | ||
Descritores: | ALTERAÇÃO SUBSTANCIAL DOS FACTOS ALTERAÇÃO NÃO SUBSTANCIAL DOS FACTOS EXAME CRÍTICO DA PROVA IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO CONCURSO DE CRIMES CONSUNÇÃO DIREITO DE QUEIXA PROMOÇÃO DA ACÇÃO PENAL | ||
Data do Acordão: | 03/22/2023 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DA GUARDA - JUÍZO LOCAL CRIMINAL DA GUARDA – JUIZ 2 | ||
Texto Integral: | N | ||
Meio Processual: | RECURSO | ||
Decisão: | CONCEDIDO PROVIMENTO PARCIAL AO RECURSO | ||
Legislação Nacional: | ARTIGOS 1.º, N.º, 1, ALÍNEA F), 48.º, 358.º, N.º 1, 359.º, N.º 1, 374.º, N.º 2, E 412.º, N.º 3, ALÍNEA B), DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL ARTIGOS 30.º, 113.º, N.º 1, 115.º E 217.º DO CÓDIGO PENAL | ||
Sumário: | I - A noção de alteração substancial dos factos pressupõe uma diferença de identidade, de grau, de tempo ou espaço, que transforme o quadro factual descrito na acusação em outro diverso, ou manifestamente diferente no que se refira aos seus elementos essenciais, ou materialmente relevantes de construção e identificação factual, e que determine a imputação de crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis.
II - Decorre do artigo 374.º, n.º 2, do Código de Processo Penal que o tribunal tem que fazer uma exposição concisa dos motivos de facto e de direito que levaram à decisão, com indicação das provas que serviram para formar a convicção do tribunal, mas não exige que em relação a cada facto se autonomize e substancie a razão de decidir, nem que em relação a cada meio de prova se explicite como tudo se processou e desenvolveu na audiência de discussão e julgamento. III - Para efeitos do disposto no artigo 412.º, n.º 3, alínea b), do Código de Processo Penal, a especificação das concretas provas exige a indicação do conteúdo específico do meio de prova ou de obtenção de prova e a explicitação da razão pela qual essas provas impõem decisão diversa da recorrida. IV - O critério operativo da distinção entre concurso real e concurso ideal, de forma a determinar se em casos de pluralidade de acções ou pluralidade de tipos realizados existe unidade ou pluralidade de crimes, reverte ao bem jurídico e à concreta definição que esteja subjacente relativamente a cada tipo de crime. V - Há consunção quando o conteúdo de injusto de uma ação típica abrange, incluindo-o, outro tipo de modo que, de um ponto de vista jurídico, expressa de forma exaustiva o desvalor | ||
Decisão Texto Integral: | * … O Ministério Público deduziu acusação, em processo comum e com intervenção do Tribunal Singular, contra AA, filho de BB e CC, nascido a .../.../1963, natural da freguesia ..., concelho ... casado, ..., residente na ..., ..., ... imputando-lhe a prática, em autoria material e na forma consumada, de: - 1 (um) crime de burla qualificada, previsto e punido pelo artigo 217.º, n.º 1 e 218.º, n.º 2, alínea a), por referência ao artigo 202.º, alínea b), todos do Código Penal, contra os ofendidos DD, EE, FF, GG e HH. Após a alteração da qualificação jurídica, comunicada, o arguido passou a ser acusado da prática de: - 2 (dois) crimes de burla qualificada, previstos e punidos pelo artigo 217.º, n.º 1 e 218.º, n.º 1, por referência ao artigo 202.º, alínea a), todos do Código Penal, um contra o ofendido DD e o outro contra os ofendidos EE e GG. Após a realização de audiência de discussão e julgamento foi proferida sentença que julgou procedente a acusação pública e em consequência decidiu: 1. Absolver o arguido AA pela prática de um crime de burla qualificada, previsto e punido pelo artigo 217.º, n.º 1 e 218.º, n.º 2, alínea a), por referência ao artigo 202.º, alínea b), todos do Código Penal, contra os ofendidos DD, EE, FF, GG e HH. 2. Condenar o arguido AA da prática, em autoria material, e na forma consumada de um crime de burla qualificada, previsto e punido pelo artigo 217.º, n.º 1 e 218.º, n.º 1, por referência ao artigo 202.º, alínea a), todos do Código Penal, contra o ofendido GG, na pena de 280 (duzentos e oitenta) dias, de multa, à taxa diária de 7,00 € (sete euros). 3. Condenar o arguido AA da prática, em autoria material, e na forma consumada de um crime de burla qualificada, previsto e punido pelo artigo 217.º, n.º 1 e 218.º, n.º 1, por referência ao artigo 202.º, alínea a), todos do Código Penal, contra os ofendidos EE e DD, na pena de 280 (duzentos e oitenta) dias, de multa, à taxa diária de 7,00 € (sete euros). 4. Operar o cúmulo jurídico das penas parcelares aplicada em 2) e 3) … 6. Julgar procedente por provado o pedido de indemnização cível deduzido por GG … * Desta sentença interpôs recurso o arguido, AA, sendo do seguinte teor as conclusões, formuladas na motivação do recurso: … 4º Produzida a prova foi reaberta a 14 de Julho de 2022 a audiência por forma a comunicar ao arguido as alterações à acusação proferida nos NUIPC 118/19.... e NUIPC 2/20...., tendo sido proferido o seguinte despacho: «Mais se comunica a seguinte alteração substancial dos factos: Em data concretamente não apurada, mas seguramente antes do dia 10 de Janeiro de 2019, HH, após se deslocar até ao stand de automóveis denominado “A... Lda”, adquiriu ao arguido AA a viatura ligeira de mercadorias, de marca ..., ... L..0 e matrícula ..-..-SV, pelo valor de €8.000 (oito mil euros). O ofendido HH procedeu ao registo da propriedade do veículo de matrícula ..-..-SV em seu nome. Posteriormente, e ainda na posse do veículo automóvel de matrícula ..-..-SV o ofendido HH detectou problemas mecânicos na referida viatura, altura em que se deslocou ao stand de automóveis denominado “A... Lda”, e procedeu à devolução da mesma ao arguido AA para que este solucionasse as avarias. No dia 10 de Janeiro de 2019, após se deslocar até ao stand de automóveis denominado “A... Lda”, o ofendido GG, adquiriu ao arguido AA a viatura ligeira de mercadorias, de marca ..., ... L..0 e matrícula ..-..-SV, pelo valor de €9.000 (nove mil euros), propriedade de HH. O ofendido HH não recebeu a viatura de matrícula ..-..-SV, por si adquirida, tal como prometido pelo arguido, nem em alternativa o pagamento efectuado para aquirição da viatura ligeira de mercadorias, de marca ..., ... L..0 e matrícula ..-..-SV, suportando o prejuízo de €8.000 (oito mil euros). O arguido nunca entregou o valor recebido pela venda do referido veículo ao seu legítimo proprietário. Pelo contrário, integrou aquele montante no seu património, sabendo que o mesmo não lhe pertencia e que a viatura que lhe havia sido entregue se destinada a ser reparada e devolvida ao seu legítimo proprietário. Agiu, pois, com o propósito de integrar o referido montante na sua esfera patrimonial, o que logrou conseguir, sem o conhecimento e consentimento do legítimo proprietário do veículo ..-..-SV, bem sabendo que aquele veículo e montante não lhes pertencia e que aquela conduta era contrária à lei e criminalmente punível. A conduta revelou-se livre, deliberada e consciente, tendo o arguido agido sempre de acordo com o plano traçado de se apropriar de uma quantia que sabia não lhe pertencer proveniente da venda do L ..0. O arguido cometeu, pelo exposto, na forma consumada e em autoria material, um crime de abuso de confiança, previsto e punível nos termos do artigo 205º, nºs 1 e 4, al. a), com referência ao artigo 202º, al. a), do Código Penal. 5º O arguido opôs-se a esta alteração substancial dos factos. 6º Os factos a que nos referimos no artº 4º das presentes conclusões, são totalmente autónomos e independentes dos demais factos julgados nos presentes autos e fundamentariam um crime diverso daqueles que foram objecto dos presentes autos, 7º Pelo que atendendo ao disposto no artº 359º do CPP, e por forma a evitar o efeito da autoridade do caso julgado, o tribunal não podia pronunciar sobre os mesmos, razão pela qual deverá ser eliminado os pontos 30 a 32 e 39 dos factos assentes na sentença recorrida. Sem conceder 8º Por ser manifesto que os factos considerados demonstrado e acolhidos nos pontos 2 a 9 e 11, 42 a 45 dos factos assentes da sentença ora recorrido são indefinidos, genéricos, abstractos, conclusivos, obscuros e imprecisos não só quanto ao tempo lugar e modo, mas também quanto ao real contexto, número, circunstâncias envolventes, etc., deverão os mesmos ser eliminados atendendo ao disposto no artº 129 nº 1 do CPP. 9º Ou deverá a sentença, nessa parte ser considerada nula nos termos do artº 374 nº 2 do CPP, nulidade que se alega para os devidos efeitos legais. … 15º … 16º Porque o número de crimes determina-se nos termos do artº 30 do CP pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente, porque os factos envolvendo o EE são distintos dos factos envolvendo o DD, quer em termos de negocio (aquele pretendia vender e este pretendia comprar), quer em termos de tempo (Aquele entregou a sua viatura em Setembro de 2017, e este comprou e foi-lhe entregue a viatura em Fevereiro de 2018), quer em termos de partes envolvidas (aquele fez negocio apenas e tão só com os B..., e este fez negocio apenas e tão só com o arguido e/ ou stand A...), quer em termos de localização, porque não foi estabelecido qualquer ligação ou nexo de causalidade entre um negocio e o outro, 17º Deve-se ter por preenchido, pelo menos em abstracto a pratica de dois crimes de burla, na sua forma simples atendendo a que o alegado prejuízo patrimonial do DD ascendia a € 5000,00 , e o prejuízo patrimonial do EE ascendia a € 3000,00 18º Ora resulta dos autos que o EE, não apresentou queixa e o DD apenas a apresentou em 6.12.2018 quando os factos reportar-se-iam a 12 de Fevereiro de 2018, estando já prescrito nessa altura o seu direito de queixa nos termos do artº 115º do CP. 19º A falta da queixa relativamente aos factos descritos na acusação pública e particular, dentro do prazo a que alude o citado artigo 115º, nº 1, do Código Penal, enquanto pressuposto de procedibilidade, obsta ao conhecimento do mérito da causa, pelo que deverão ser arquivados os processos /crimes referentes aos pseudo ofendidos EE e DD Acresce que 20º Nos termos conjugados dos artºs 218 nº 4 e 206 nº 1 ambos do CP deverá extinguir-se a responsabilidade criminal do arguido relativamente as situações envolvendo o EE e o DD por ter havido reparação integral dos seus alegados prejuízos sem dano ilegítimo de terceiro em momento anterior ao inicio da audiência de discussão e julgamento da causa, presumindo-se ter havido concordância dos ofendidos e do arguido, uma vez que estes não deduziram sequer pedido civil. 21º Contudo, caso não se entenda existir concordância tácita dos ofendidos, e caso se entenda ser necessária uma concordância expressa dos mesmos, por se entender serem efectivamente ofendidos, porque não lhes foi perguntado sobre a sua concordância quanto a extinção do procedimento criminal contra o arguido, e porque tal prejudica gravemente o arguido verifica-se nulidade do procedimento, devendo ser reenviado o processo para 1ª instância por forma a recolher, ou não a concordância dos pseudo ofendidos EE e DD, quanto à extinção do procedimento criminal … ***** O recurso foi admitido para subir imediatamente, nos próprios autos, com efeito suspensivo. Respondeu o Digno Procurador Adjunto, manifestando-se pela improcedência do recurso.
Nesta instância o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer no qual se manifesta, pela improcedência do recurso. … Da discussão da causa resultaram provados os factos seguintes constantes da decisão: 1. O arguido AA, conhecido também por “...”, é um dos sócios-gerentes da empresa denominada “A... Lda”, com sede na Av. ..., ..., ..., e dedica-se, com escopo lucrativo, à venda de veículos automóveis novos e usados. 2. O arguido AA engendrou um esquema de acordo com o qual, sob a aparência de ser o responsável por uma empresa de venda de veículos automóveis novos e usados, obteria um elevado benefício económico injustificado, alcançado com a venda fraudulenta daqueles bens junto de alguns clientes que o contactassem. 3. Assim, em execução de tal desígnio, desde pelo menos o mês de Setembro de 2017 até, pelo menos, 20 de Novembro de 2019, o arguido AA, através de promessas de venda de veículos automóveis aos respectivos proprietários, colocava à venda, sob condição, no seu stand de automóveis denominado “A... Lda”, veículos automóveis usados pertencentes a terceiros, prometendo a esses o pagamento do preço acordado pela respectiva viatura após a concretização da venda. 4. Na posse dos veículos automóveis e, após ser contactado presencialmente pelos potenciais clientes interessados na compra das viaturas usadas, o arguido AA procedia à venda dos veículos automóveis, propriedade de terceiros, recebendo dos compradores, através de transferência bancária, numerário ou cheques, os valores acordados pelos respectivos veículos, sendo que, por conseguinte, não procedia ao pagamento de tais montantes a alguns dos legítimos proprietários das viaturas. 5. Em pelo menos uma situação, o arguido solicitou ao seu funcionário de nome II, o número da sua conta bancária para um cliente efectuar o pagamento de uma viatura, através de transferência bancária, ao que este acedeu. 6. O arguido AA entregava aos compradores das viaturas uma declaração de circulação de modo a que os mesmos pudessem circular com os veículos automóveis adquiridos e informava que o próprio realizaria o pedido de transferência da propriedade junto da conservatória do registo automóvel, no intuito de manter a aparência do cumprimento do negócio celebrado. 7. Uma vez que os veículos automóveis se encontravam em nome dos legítimos proprietários, e o arguido AA não tinha o documento da declaração de venda assinado pelos mesmos, os compradores das viaturas acabavam por não conseguir proceder ao respectivo registo junto da conservatória do registo automóvel. 8. Perante o atraso na conclusão do negócio com o respectivo registo junto da conservatória do registo automóvel, o arguido, quando instado pelos compradores das viaturas, começava por desculpar-se, invocando problemas com o registo, transmitindo a ideia de que se tratava de uma empresa séria e idónea, até que deixava de ser contactável. 9. Por seu turno, cada um dos legítimos proprietários das viaturas ficava a aguardar o pagamento pelo arguido, do preço acordado, entre ambos, pelos veículos automóveis vendidos, sendo que o arguido nunca chegava a efectuar qualquer pagamento. 10. O arguido AA utilizou esse mesmo artifício enganoso pelo menos com os seguintes ofendidos: DD, EE e GG. 11. Com a sua conduta, o arguido AA beneficiou indevidamente e só relativamente aos ofendidos, da quantia total de €14.000 (catorze mil euros). Assim concretizando: NUIPC 183/18....: 12. Em data concretamente não apurada do mês de Setembro de 2017, o ofendido EE colocou o seu veículo ligeiro de passageiros, de marca ..., modelo ... e matrícula ..-EL-.., à venda, pelo valor de €3.000 (três mil euros), no stand “B...”, sito na cidade .... 13. Posteriormente, o arguido deslocou-se até ao stand “B...”, sito na cidade ... e procedeu ao levantamento do veículo automóvel identificado em 12, à condição, para ser colocado à venda no stand de automóveis de sua propriedade, denominado “A... Lda”, sito na Av. ..., ..., ..., alegando possuir um cliente interessado na compra do mesmo. 14. No dia 12 de Fevereiro de 2018, após se deslocar até ao stand de automóveis denominado “A... Lda”, o ofendido DD, adquiriu ao arguido AA a viatura ligeira de passageiros, de marca ..., modelo ... e matrícula ..-EL-.., pelo valor de €5.000 (cinco mil euros).
15. DD procedeu ao pagamento da viatura, mediante transferência bancária, efectuada a 12 de Fevereiro de 2018, para a conta titulada por um dos funcionários do arguido, de nome II, na Caixa Geral de Depósitos, tendo este procedido ao levantamento da aludida quantia e entregue a mesma ao arguido. 16. O arguido AA entregou ao ofendido DD, para além do veículo de matrícula ..-EL-.., o respectivo certificado de matrícula, as chaves do mesmo e uma cópia do “requerimento de registo automóvel”, efectuado on-line, informando DD que este receberia o novo certificado de matrícula em sua casa. 17. Volvidas cerca de duas semanas, e uma vez que DD não recebeu o novo certificado de matrícula em sua casa, deslocou-se até à conservatória do registo automóvel, tendo constatado que nunca havia sido realizado pedido de transferência de propriedade do veículo de matrícula ..-EL-.. adquirido por si ao arguido. 18. DD suportou o prejuízo no valor de €5.000 (cinco mil euros). 19. EE nunca recebeu o valor acordado para a venda da sua viatura automóvel, pelo que não procedeu à assinatura da declaração de venda, suportando EE o prejuízo de €3.000 (três mil euros). NUIPC10/19....: 20. No dia 30 de Janeiro de 2019, após se deslocar até ao stand de automóveis denominado “A... Lda”, o ofendido FF adquiriu ao arguido AA a viatura ligeira de passageiros, de marca ..., modelo ...08 e matrícula ..-VV-... NUIPC 118/19.... e NUIPC 2/20....: 30. Em data concretamente não apurada, mas seguramente antes do dia 10 de Janeiro de 2019, HH, após se deslocar até ao stand de automóveis denominado “A... Lda”, adquiriu ao arguido AA a viatura ligeira de mercadorias, de marca ..., ... L..0 e matrícula ..-..-SV, pelo valor de €8.000 (oito mil euros). 31. O ofendido HH procedeu ao registo da propriedade do veículo de matrícula ..-..-SV em seu nome. 32. Posteriormente, e ainda na posse do veículo automóvel de matrícula ..-..-SV o ofendido HH detectou problemas mecânicos na referida viatura, altura em que se deslocou ao stand de automóveis denominado “A... Lda”, e procedeu à devolução da mesma ao arguido AA para que este solucionasse as avarias.
33. No dia 10 de Janeiro de 2019, após se deslocar até ao stand de automóveis denominado “A... Lda”, o ofendido GG, adquiriu ao arguido AA a viatura ligeira de mercadorias, de marca ..., ... L..0 e matrícula ..-..-SV, pelo valor de €9.000 (nove mil euros), propriedade de HH. 34. GG, procedeu ao pagamento, do valor acordado, ao arguido AA, pela viatura de matrícula ..-..-SV, através da emissão de um cheque, no valor de €1.000 (mil euros), datado de 07-01-2019, como sinal da compra do referido veículo, e um segundo cheque no valor de €8.000 (oito mil euros), ambos associados a instituição bancária “Millennium BCP”, à ordem do arguido, comprometendo-se este a proceder ao registo do veículo em nome do ofendido GG. 35. Volvidos cerca de dois meses e porque o arguido AA não procedeu ao registo do veículo de matrícula ..-..-SV em nome do ofendido GG, este resolveu confrontá-lo a fim de apurar o motivo pelo qual tal não havia sucedido. 36. Confrontado por GG, o arguido AA disse ao ofendido que os documentos estavam atrasados e que o registo da propriedade do veículo de matrícula ..-..-SV poderia demorar cerca de um ano. 37. GG constatou que o veículo de matrícula ..-..-SV se encontrava em nome de HH. 38. GG não obteve o registo da propriedade do veículo de matrícula ..-..-SV adquirido por si ao arguido AA suportando o prejuízo de €9.000 (nove mil euros). 39. O ofendido HH não recebeu a viatura de matrícula ..-..-SV, por si adquirida, tal como prometido pelo arguido, nem em alternativa o pagamento efectuado para aquirição da viatura ligeira de mercadorias, de marca ..., ... L..0 e matrícula ..-..-SV, suportando o prejuízo de €8.000 (oito mil euros). 40. O arguido AA deixou de atender as chamadas telefónicas dos ofendidos e de responder às suas solicitações. 41. O arguido AA não desenvolve qualquer outra actividade profissional remunerada, sendo os proventos desta actividade de compra e venda fraudulenta a sua principal fonte de rendimentos. 42. O arguido AA previu e quis, agindo de acordo com um plano previamente delineado por si, publicitar no seu stand de automóveis a venda de viaturas usadas, das quais não era proprietário, e a compra, mediante condição, aos legítimos proprietários de veículos usados, ludibriando estes e os clientes interessados em tal aquisição, quanto à sua intenção, respectivamente, de compra e venda, convencendo os compradores a pagarem-lhe o preço acordado, mediante transferência bancária, emissão de cheques ou a recepção de numerário, e os vendedores a entregarem-lhe os veículos automóveis, na condição de proceder ao pagamento do valor acordado uma vez concretizado o negócio. 43. Mais agiu o arguido AA ciente de que os veículos automóveis vendidos nunca seriam registados em nome dos respectivos compradores, e que os valores acordados com os compradores, pelos veículos automóveis, nunca lhe seriam pagos, no intuito concretizado de obter um benefício ilegítimo no montante de €14.000,00 (catorze mil euros), integrando-o no seu património, gastando-o em proveito próprio, não obstante saber que o mesmo não lhe pertencia. 44. O que só conseguiu em virtude do artifício por si criado. 45. Mais previu e quis o arguido AA, no intuito de manter a confiança dos clientes compradores, informar que o registo de propriedade dos veículos automóveis seria realizado, de modo a que os mesmos acreditassem na idoneidade do negócio realizado. 46. Sabia o arguido que tais condutas lhe estavam vedadas por lei e tendo capacidade de determinação segundo as legais prescrições ainda assim não se inibiu de as realizar. Mais se provou que: 22. Que o arguido causou um prejuízo de três mil euros ao ofendido JJ, valor pela qual o mesmo estava a vender o Renault Clio, tendo causado um prejuízo total de 17.000,00€ (dezassete mil euros), aos ofendidos (três mil a JJ, nove mil a GG e cinco mil a DD). 23. O arguido foi condenado no seguinte processo: Processo Sumaríssimo n.º 740/16...., na pena de 110 dias de multa, à taxa diária de 1,00€, pela prática de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, por factos praticados em 13/6/2014; * Factos não provados: 1. Que no dia 30 de Janeiro de 2019, após se deslocar até ao stand de automóveis denominado “A... Lda”, o ofendido FF adquiriu ao arguido AA a viatura ligeira de passageiros, de marca ..., modelo ...08 e matrícula ..-VV-.., pelo valor total de €6.300 (seis mil e trezentos euros). 2. Que FF procedeu ao pagamento da viatura de matrícula ..-VV-.., mediante a entrega do valor de €3.150 (três mil cento e cinquenta euros), em numerário, e passou um cheque, no valor de €3.150 (três mil cento e cinquenta euros), associado à instituição bancária “Caixa de Crédito Agrícola”, à ordem de um terceiro, de nome KK, que depois veio a ser substituído, a pedido do arguido, pelo pagamento em numerário de € 3.150 (três mil cento e cinquenta euros). 3. Quando FF tentou proceder ao registo da viatura de matrícula ..-VV-.., foi informado de que o veículo não possuía matrícula válida, sendo que na declaração de venda o veículo automóvel constava como sendo propriedade da empresa “C... Lda.”, que por seu turno não existia. 4. Por esse motivo, FF não pôde regularizar a viatura de matrícula ..-VV-... 5. No dia 02 de Fevereiro de 2019, o arguido AA deslocou-se até à residência de FF afirmando ter um comprador para o veículo pesado de mercadorias, de marca Nissan, modelo ... e matrícula ..-..-BV, propriedade da empresa “D... Lda.”, em que FF é sócio-gerente, pelo valor de €8.000 (oito mil euros). 6. FF dando por boa a proposta de aquisição apresentada pelo arguido, entregou, de imediato, o referido veículo e respectivos documentos ao mesmo. 7. Na posse do veículo pesado de mercadorias, de marca Nissan, modelo ... e matrícula ..-..-BV, propriedade da empresa “D... Lda.”, o arguido AA procedeu à venda do mesmo à empresa “E... S.A.”, com sede em ..., em que é sócia-gerente LL, tendo esta efectuado o pagamento ao arguido, através da emissão de cheque, com o n.º ...34, associado à instituição bancária “Millennium BCP”, no valor de €5.500, 01 (cinco mil e quinhentos euros e um cêntimo). 8. O ofendido FF nunca recebeu o pagamento do valor acordado com o arguido para a venda do veículo pesado de mercadorias, de marca Nissan, modelo ... e matrícula ..-..-BV, de sua propriedade, suportando o prejuízo de €8.000 (oito mil euros). 9. O ofendido FF nunca conseguiu proceder ao registo viatura de matrícula ..-VV-.., suportando um prejuízo de €6.300 (seis mil e trezentos euros), pelo que a mesma se encontra fora de circulação até à presente data. 10. Assim, FF suportou o prejuízo global de €14.300 (catorze mil e trezentos euros). 11. Os factos praticados pelo arguido causaram angústia, estresse, aflição ao assistente.
* Motivação da decisão da matéria de facto Funda-se a convicção do Tribunal, quer positiva, quer negativa, no conjunto da prova que se produziu em audiência de julgamento e no teor da prova documental junta aos autos, analisada de forma crítica e com o auxílio de juízos de experiência comum, nos termos do art. 127.º e ainda nos termos do art. 163.º, ambos do Código de Processo Penal. Pelo que foi tomado em consideração, quanto à prova documental, o teor: ∙ Do auto de notícia, junto a fls. 3 a 5; ∙ Da proposta de venda junta a folhas 11; ∙ Da chamada “declaração de circulação”, junta a folhas 12. ∙ Da cópia da transferência bancária, junta a folhas 13; ∙ Dos documentos juntos a folhas 14 a 18; ∙ Do auto de denúncia, junto a fls. 77 a 78; ∙ Do requerimento de registo automóvel, junto a folhas 81, e documento junto a folhas 82; ∙ Da cópia do cheque, junto a folhas 83; ∙ Da cópia da DAV, junta a folhas 97 e 98; ∙ Da cópia da fatura e recibo, juntos a folhas 107 e 108; ∙Do requerimento de registo automóvel, junto a folhas 109, e documento junto a folhas 110; ∙ Da resposta dada pelo IMT, junta a folhas 112; ∙ Da certidão permanente referente à sociedade A... Lda, junta a folhas 123 a 125; ∙ Do auto de denúncia, junto a fls. 131; ∙ Da cópia junto a folha 145; ∙ Do teor do CRC do arguido, junto a folhas 163 a 164; ∙ Do teor das bases de dados, junto a folhas 167 a 170 e 173; ∙ Do auto de denúncia, junto a fls. 187 a 188; ∙ Da certidão permanente referente à sociedade F... Lda., junta a folhas 375 a 382; ∙ Da cópia da fatura, junta a folhas 397, datada de 25/1/2019. Quanto à restante prova analisada em sede de audiência: Prestando declarações, veio o arguido referir que e no que concerne ao crime que lhe é imputado relativamente ao Sr. DD, o mesmo refere que não fez nenhum negócio, ou acordo, com o ser. EE.
No que concerne ao negócio efetuado com o Sr. FF, o mesmo consistiu na venda do Peugeot, o qual teve como contrapartida a entrega de 6 mil e pouco euros e o veículo pesado de Marca Nissan. No que concerne à viatura Mitsubishi a mesma estava em nome do filho e o Sr. HH queixou-se de problemas no motor. Disse-lhe para a levar ao seu Stand, que a ia compor, contudo, não lha devolveu uma vez que tinha havido um problema com a aquisição de um BMW, que estava com uma penhora e que, por esse motivo reteve a Mitsubishi. No tocante ao negócio ocorrido com o Renault Clio, o mesmo adquiriu tal viatura ao B..., que pagou cerca de 4 mil e tal euros, por ele, e que, posteriormente o vendeu ao Sr. DD, por 5 mil euros, mas atualmente, pensa que já está tudo resolvido. No fundo nega os factos conforme lhe são apontados na acusação. Que teve problemas com a venda do BMW do filho do Sr. HH, conforma o recebimento de cerca de seis mil e tal euros, por parte do Sr. FF e do valor recebido, em cheque, por parte do Sr. GG, que se dedica há mais de 30 anos à venda e reparação de veículos, confirmando, ainda, a transferência que lhe foi feita, para a conta de um funcionário seu. Foi ouvido o assistente FF, o qual em depoimento confuso, com pouco nexo, contraditório, muitas vezes e em arrepio de alguns documentos existentes nos autos, por isso, não credível … Ora, relativamente ao que terá acontecido, o tribunal não pode afirmar, com certeza que o assistente terá adquirido por aquele valor, ou por outro superior, ou se só foi por aquele valor, e o assistente sabia em que estado se encontrava a legalização do carro e por isso o valor foi tão baixo. Foi ouvida a testemunha DD, a qual, em depoimento claro, isento e por isso credível, contou a este tribunal que em Fevereiro de 2018, foi ao stand de automóveis denominado “A... Lda”, o ofendido DD, adquiriu ao arguido AA a viatura ligeira de passageiros, de marca ..., modelo ... e matrícula ..-EL-.., pelo valor de €5.000 (cinco mil euros), que procedeu ao pagamento da viatura, mediante transferência bancária, efectuada a 12 de Fevereiro de 2018, para a conta titulada por um dos funcionários do arguido, de nome II, na Caixa Geral de Depósitos, tendo este procedido ao levantamento da aludida quantia e entregue a mesma ao arguido. O arguido AA entregou-lhe uma cópia do “requerimento de registo automóvel”, efectuado on-line, informando-o que este receberia o novo certificado de matrícula em sua casa. Passados uns tempos, foi à conservatória do registo automóvel, tendo constatado que nunca havia sido realizado pedido de transferência de propriedade do veículo de matrícula ..-EL-.. adquirido por si ao arguido, tendo sido ele, quem foi ter com a antiga proprietária, para resolver a situação. Foi ouvida a testemunha EE, a qual, em depoimento claro, isento e por isso credível, contou a este tribunal que em finais de 2017, início de 2018, comprou um BMW no stand “B...”, que o pagou na totalidade e que deixou lá o seu veículo ligeiro de passageiros, de marca ..., modelo ... e matrícula ..-EL-.., à venda à consignação, pelo valor de €3.000 (três mil euros), deixando lá a declaração de venda assinada. … Foi ouvida a testemunha II, a qual, em depoimento claro, isento e por isso credível, contou a este tribunal que foi funcionário da A... Lda., até Novembro de 2020, que recebeu o valor da venda do Renault Clio da sua conta da CGD, a pedido do arguido, que no dia seguinte levantou tal valor e entregou-o ao arguido. Passados uns tempos, do referido negócio, encontro o Sr. DD e este disse-lhe que andava à procura do Sr. AA porque tinha problemas com os documentos do carro que havia comprado ao arguido. Foi ouvida a testemunha MM, não tendo as suas declarações mostrado interesse para os presentes autos. Foi ouvida a testemunha GG, a qual, em depoimento claro, isento e por isso credível, contou a este tribunal que se deslocou, em 2019 ao stand de automóveis denominado “A... Lda”, e adquiriu ao arguido AA a viatura ligeira de mercadorias, de marca ..., ... L..0 e matrícula ..-..-SV, pelo valor de €9.000 (nove mil euros). Procedeu ao pagamento, do valor acordado, ao arguido AA, pela viatura de matrícula ..-..-SV, através da emissão de um cheque, no valor de €1.000 (mil euros), datado de 07-01-2019, como sinal da compra do referido veículo, e um segundo cheque no valor de €8.000 (oito mil euros), ambos associados a instituição bancária “Millennium BCP”, à ordem do arguido, comprometendo-se este a proceder ao registo do veículo em nome do ofendido GG, pois só lhe deu a fotocópia dos documentos do carro. Passados dois meses e porque o arguido AA não procedeu ao registo do veículo de matrícula ..-..-SV em seu nome, este resolveu confrontá-lo a fim de apurar o motivo pelo qual tal não havia sucedido, tendo-lhe dito o arguido que os documentos estavam atrasados. Nunca chegou a andar com a carrinha, pois nunca recebeu os documentos. Esta lesado em €9.000 (nove mil euros). Foi ouvida a testemunha HH, a qual, em depoimento claro, isento e por isso credível, contou a este tribunal que por volta de Setembro/Outubro de 2018 adquiriu ao arguido AA a viatura ligeira de mercadorias, de marca ..., ... L..0 e matrícula ..-..-SV, pelo valor de €8.000 (oito mil euros), tendo-a registado em seu nome. Posteriormente detectou problemas mecânicos na referida viatura, altura em que se deslocou ao stand de automóveis denominado “A... Lda”, e procedeu à devolução da mesma ao arguido AA para que este solucionasse as avarias, tendo ido a Espanha levar a carrinha para lhe ser colocado um motor. Passados uns dias, referiu ter contactado o arguido e que este lhe disse que a carrinha ainda não estava pronta. Posteriormente veio a saber que o arguido havia vendido a carrinha ao Sr. GG, foi ter com o Sr. GG e este disse-lhe: “já fui vigarizado”. Nunca disse ao arguido que podia vender a carrinha, pois precisava dela para a sua agricultura e a mesma era apta a satisfazer as suas necessidades de andar no campo. No que concerne ao negócio de um BMW, o mesmo foi com o seu filho e nada sabe. Foi ouvida a testemunha NN, filho da anterior testemunha, a qual, em depoimento claro, isento e por isso credível, contou a este tribunal e em suma, o que o pai havia já contado, conformando assim as declarações da anterior testemunha. … Foi ouvida a testemunha OO, Empresário de Comercio de Automóveis e Transportes, a qual, em depoimento claro, isento e por isso credível, contou a este tribunal e em suma que: há sensivelmente dois anos o arguido lhe disse eu tinha um cliente para o seu Peugeot 208 e se podia ir buscar o carro para o mostrar a um cliente e que se o vendesse que lhe dava 12.500,00. O arguido foi buscar a carro e até aos dias de hoje, a testemunha nem viu mais o carro, nem o dinheiro. Foi ouvida a testemunha PP, filha do assistente FF, a qual, em depoimento pouco claro e confuso, contou a este tribunal e em suma que o pai lhe havia falado da compra e venda de um carro, um Peugeot. Que sabe que o carro foi comprado por 6.500,00€, pagos em dinheiro e que não sabe se havia interação entre a venda da Nissan e a compra do Peugeot. Depois referiu que não sabe porque passou a factura da venda da Nissan, que foi o pai, que provavelmente, lhe pediu, mas que desse negócio nada sabe e que o valor que lá referiu foi o que lhe disseram para colocar, mas que o pai não assinou a declaração de venda da Nissan (então como tem uma fatura de venda???, é porque vendeu). … Foi ouvida a testemunha QQ, esposa do assistente FF e sócio-gerente da D..., a qual, em depoimento pouco claro e pouco esclarecedor, contou a este tribunal e em suma que o seu marido fez um negócio de compra e venda de um carro, um Peugeot e da venda da Nissan. Que sabe que o carro foi comprado por 6.500,00€, pagos metade em dinheiro e a outra metade por cheque. O marido anda nervoso, não consegue dormir e que até hoje anda mal e medicado. Foi ouvida a testemunha RR, sócio-gerente da E..., a qual e para o que aos autos interessa contou que recebeu no seu escritório a fatura da do camião Nissan, passada em nome da A... Lda. Foi ouvida a testemunha SS, sócio-gerente da A... Lda., desde 2004, sendo mecânico da mesma sociedade, a qual e para o que aos autos interessa e num discurso muito comprometido, sem grande convicção e com pouca precisão, foi referindo que tratou dos documentos do Renault Clio, que não sabe se o seu proprietário já recebeu o dinheiro e que o camião Nissan foi uma troca com o Peugeot e que pensa que foi dado mais dinheiro, contudo, nada sabe dos negócios, pois eram feitos pelo Sr. AA. Concatenando as declarações do arguido e das testemunhas que o tribunal considerou credíveis e ainda em confronto com os documentos supra referidos, ficou o Tribunal plenamente convencido que o arguido bem sabia que estava a agir de acordo com um plano delineado por si, publicitando no seu stand de automóveis a venda de viaturas usadas, das quais não era proprietário, e a compra, mediante condição, aos legítimos proprietários de veículos usados, ludibriando estes e os clientes interessados em tal aquisição, quanto à sua intenção, respectivamente, de compra e venda, convencendo os compradores a pagarem-lhe o preço acordado, mediante transferência bancária, emissão de cheques ou a recepção de numerário, e os vendedores a entregarem-lhe os veículos automóveis, na condição de proceder ao pagamento do valor acordado uma vez concretizado o negócio. … Estava ainda ciente de que os veículos automóveis vendidos, nomeadamente o Renault Clio de matrícula ..-EL-.. e a viatura Mitsubishi, ... L ..0, matrícula ..-..-SV, nunca seriam registados em nome dos respectivos compradores (DD e GG, respetivamente), quer, porque não iria pagar ao legítimo proprietário do Renault, o valor acordado, quer, porque, relativamente à L ..0, o mesmo, fez quer ao comprador que estava tudo vem com a documentação, quando na verdade o bem nem lhe pertencia), no intuito concretizado de obter um benefício ilegítimo no montante de 13.000,00 (treze mil euros) – (5.000,00€ referente à venda do Renault Clio e 9.000,00€ referente à venda da L ..0) - , integrando-o no seu património, gastando-o em proveito próprio, não obstante saber que o mesmo não lhe pertencia, causando, dessa forma o empobrecimento, no mesmo montante, aos compradores e ainda mais 3.000,00€, ao legitimo proprietário do Renault Clio, o Sr. DD. Mais, teremos que referir que, quanto ao Renault, modelo ... e matrícula ..-EL-.., o arguido, criou a convicção que seria um negócio sério, motivo pelo qual o stand “B...”, (TT) telefonou ao legítimo proprietário e lhe disse que tinha um potencial interessado no carro, o aqui arguido, para vender o carro a terceiros, quando o mesmo, ao ir buscar o referido Renault bem saboa eu o não ia liquidar e o ia vendar a terceiros, bem sabendo que este não o iria registar em seu nome, pois nunca o havia pago ao legítimo proprietário, considerando, o tribunal, que todos estes acontecimentos encerram uma resolução criminosa e autónoma da anterior. Quanto aos factos relativos ao Sr. HH, os mesmos integram outra qualificação jurídica, outro tipo de ilícito, contudo, dado a oposição do arguido, nesta sede, o mesmo não poderá ser condenado pela sua prática. Relativamente ao “negócio” havido com o Assistente, FF … o tribunal não poderá dar como certo e provado o que realmente se tenha passado, pois as versões de arguido e assistente, são contraditórias e os documentos junto aos autos, refletem algo bem diferente e antagónico, com o relatado pelo assistente. … * Cumpre, agora, conhecer do recurso interposto. O âmbito do recurso é dado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação. Portanto, são apenas as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas respectivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar. Questões a decidir: - Alteração substancial dos factos provados; - Fundamentação; - Impugnação; - Elementos constitutivos do crime de burla qualificado;
Sustenta o recorrente que na audiência de discussão e julgamento de 14/07/2022, o Tribunal comunicou-lhe uma alteração substancial dos factos, à qual se opôs, sendo esses factos sobre que incidiram a comunicação totalmente autónomos e independentes dos demais factos julgados nos autos, sendo um crime diverso, pelo que atendendo ao disposto no artº 359º, do CPP, e por forma a evitar o efeito do caso julgado, o tribunal não poderia pronunciar-se sobre os mesmos, razão pela qual deverão ser eliminados os pontos 30 a 32 e 39 dos factos dados provados. Vejamos: Como se sabe, a acusação fixa o objecto do processo o que decorre de uma estrutura basicamente acusatória integrada por um principio da investigação da verdade material, encontrando fundamento no artº 32º, nº 5 da Constituição da República portuguesa. “Se, como é sabido, a acusação do MP delimita o objecto do processo, não delimita o objecto da discussão (Cfr. o n.º 4 do artigo 339º. “sem prejuízo do regime aplicável à alteração dos factos, a discussão da causa tem por objecto os factos alegados pela acusação e pela defesa e os que resultarem da prova produzida em audiência, independentemente da qualificação jurídica dos factos resultante da acusação ou da pronúncia, tendo em vista as finalidades a que se referem os artigos 368º e 369º). Com efeito, o tribunal está vinculado ao objecto do processo definido pela acusação ou pela pronúncia, mas não está vinculado à acusação ou à pronúncia – sendo que este último segmento do que vem de ser dito, carece de ser entendido em termos mais complexos. É certo que o tribunal está vinculado ao objecto do processo, definido pela acusação ou pela pronúncia, e o objecto do processo pode ser definido, segundo uma concepção prevalecente na doutrina e na jurisprudência, “como o facto, o acontecimento global da vida, o acontecimento histórico, incluindo todos os acontecimentos com ele ligados, do qual deriva a acusação admitida”. (Cfr. FREDERICO ISASCA, Alteração Substancial Dos Factos E Sua Relevância No Processo Penal Português, 84) “Portanto, um facto que pode ser constituído por uma multiplicidade de factos singulares que se conjugam numa unidade de sentido, permitindo apercebê-lo como um acontecimento da vida real, dotado de individualidade e de características próprias (o tal pedaço de vida), incindível enquanto formando um todo significante do ponto de vista social e do ponto de vista jurídico, na medida em que esse complexo de elementos pode ser também relevante deste último ponto de vista e, nomeadamente, do ponto de vista jurídico-penal. Por conseguinte, o objecto do processo é a acusação, sim, mas enquanto descrevendo esse pedaço de vida, esse acontecimento da vida real e social, portador de uma unidade de sentido e, como tal, susceptível de um juízo de subsunção jurídico-penal. Esse é que é o quid que se tem de manter idêntico até à decisão final (a eadem res), não obstante as mutações que venha a sofrer. Em tal sentido, a acusação funciona como garantia para o arguido: ”(…) a garantia de que apenas do que é acusado se terá de defender, e de que só por isso será julgado, posto que a eadem res da acusação à sentença é seguramente uma fundamental garantia para uma defesa pertinente e eficaz, segura de não deparar com surpresas incriminatórias e de ter assim um julgamento leal - mas, por outro lado, no sentido também de não frustrar uma averiguação e um julgamento justos e adequados da infracção acusada”. (Cfr. Castanheira Neves, Sumários de Processo Criminal, 210). E, assim, o nosso processo penal sendo de estrutura basicamente acusatória, é, no entanto, integrado pelo princípio de investigação, admitindo-se que nem todos os factos, ou circunstâncias factuais relativas ao crime acusado, possam constar desde logo no libelo acusatório, podendo surgir em julgamento outros factos que traduzam uma alteração dos anteriormente descritos. O que nos remete para o regime estatuído nos artigos 358.º e 359.º CP Penal, consoante se trate de uma "alteração substancial" ou de uma "alteração não substancial" dos factos descritos na acusação ou pronúncia. Quanto a esta, essencial, questão é o artigo 1.º alínea f) CPPenal que define o conceito de “alteração substancial dos factos”, como sendo “aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximas das sanções aplicáveis”. E, assim, por exclusão de partes, será alteração não substancial de factos, aquela que não tiver por efeito a imputação ao arguido de crime diverso ou a agravação do limite máximo da pena aplicável. Daqui resulta que haverá alteração substancial dos factos quando da alteração resulte que a razão da qualificação como ilícitos dos factos não é a mesma da qualificação dos factos apurados. Os crimes são então diversos. Haverá ainda alteração substancial dos factos quando a razão da qualificação como ilícitos dos factos acusados e apurados for a mesma, mas da alteração resultar agravamento dos limites máximos das sanções aplicáveis, cfr. Prof. Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, Ed. Verbo, 1999, I, 361. Nos termos do artigo 359.º/1 C P Penal, a alteração substancial dos factos descritos na acusação implica sempre apuramento de factos novos, ou modificação dos descritos, que não pode ser tomada em conta pelo tribunal para o efeito de condenação. Porém, estipula o artigo 358.º/1 C P Penal que, “se no decurso da audiência se verificar uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, com relevo para a decisão da causa, o presidente, oficiosamente ou a requerimento, comunica a alteração ao arguido e concede-lhe, se ele o requerer, o tempo estritamente necessário para a preparação da defesa”. Dispõe, ainda, o n.º 3, que “o disposto no n.º 1 é correspondentemente aplicável quando o tribunal alterar a qualificação jurídica dos factos descritos na acusação”. Como se entendeu no Acórdão do STJ de 21.3.2007, consultável em www.dgsi.pt, a alteração substancial dos factos representa normalmente uma “modificação estrutural” dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, de modo a que a matéria de facto afirmada na sentença, seja diversa, com elementos essenciais de divergência que agravem a posição processual do arguido, ou a tornem não sustentável, fazendo integrar consequências que se não continham na descrição da acusação, constituindo uma surpresa com a qual o arguido não poderia contar, e relativamente às quais não pôde preparar a sua defesa. A noção legal pressupõe, deste modo, uma diferença de identidade, de grau, de tempo ou espaço, que transforme o quadro factual descrito na acusação em outro diverso, ou manifestamente diferente no que se refira aos seus elementos essenciais, ou materialmente relevantes de construção e identificação factual, e que determine a imputação de crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis. Por contraponto, a alteração não substancial dos factos, será aquela modificação da factualidade que não seja essencial, em virtude do seu substrato fundamental já se encontrar descrito na acusação ou na pronúncia, cfr. acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 6.1.2010, consultável no site da dgsi, que vimos seguindo de perto e o acórdão do mesmo Tribunal de 7/3/2018 relatado pelo Exmo desembargador Ernesto Nascimento com o nº 1697/16.5T9AVR.P1. Portanto, quando os factos novos não tenham como efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis, mas sejam relevantes para a decisão, a alteração deverá ser considerada não substancial e o seu conhecimento pressupõe, por isso, o recurso ao mecanismo previsto no artigo 358.º, n.º1, do CPP. Ora, no caso vertente temos duas situações que o Tribunal realçou devidamente e cumpriu todas as normas legais. Assim: Na audiência de discussão de discussão e julgamento de 17/04/2022 foi proferido despacho em que se salientou que o Ministério Público deduziu acusação contra AA imputando-lhe a prática de um crime de burla qualificada, p. e p. pelo artº 217º, nº 1 e 218º, nº 2 al a) do Código Penal, por referência ao artº 202º, al b) do mesmo diploma, contra os ofendidos DD, EE, FF, GG e HH. Em sede de audiência de discussão e julgamento o Ministério Público, nos termos e para efeitos do disposto no artº 358º, nº 1 e 3 do CPP, requereu a alteração não substancial dos factos (alteração da qualificação jurídica) O Tribunal deferindo ao requerido pelo Ministério Público e ao abrigo do disposto no artº 358º nº 1 e 3º do CPP comunicou a alteração não substancial dos factos (alteração da qualificação jurídica) e o arguido passou a ser acusado da prática de dois crimes de burla qualificada, p. e p. pelos arts 217º, nº 1 e 218º, nº nº 1 do Código Penal, por referência ao artº 202º, al a) do mesmo diploma, contra os ofendidos DD, EE, FF, GG. O arguido não reagiu no que respeita a este despacho conformando-se com o mesmo. Na mesma sessão de julgamento o Mmo Juiz proferiu o seguinte despacho: Mais se comunica a seguinte alteração substancial dos factos: Em data concretamente não apurada, mas seguramente antes do dia 10 de Janeiro de 2019, HH, após se deslocar até ao stand de automóveis denominado “A... Lda”, adquiriu ao arguido AA a viatura ligeira de mercadorias, de marca ..., ... L..0 e matrícula ..-..-SV, pelo valor de €8.000 (oito mil euros). O ofendido HH procedeu ao registo da propriedade do veículo de matrícula ..-..-SV em seu nome. Posteriormente, e ainda na posse do veículo automóvel de matrícula ..-..-SV o ofendido HH detectou problemas mecânicos na referida viatura, altura em que se deslocou ao stand de automóveis denominado “A... Lda”, e procedeu à devolução da mesma ao arguido AA para que este solucionasse as avarias. No dia 10 de Janeiro de 2019, após se deslocar até ao stand de automóveis denominado “A... Lda”, o ofendido GG, adquiriu ao arguido AA a viatura ligeira de mercadorias, de marca ..., ... L..0 e matrícula ..-..-SV, pelo valor de €9.000 (nove mil euros), propriedade de HH. 34. GG, procedeu ao pagamento, do valor acordado, ao arguido AA, pela viatura de matrícula ..-..-SV, através da emissão de um cheque, no valor de €1.000 (mil euros), datado de 07-01-2019, como sinal da compra do referido veículo, e um segundo cheque no valor de €8.000 (oito mil euros), ambos associados a instituição bancária “Millennium BCP”, à ordem do arguido, comprometendo-se este a proceder ao registo do veículo em nome do ofendido GG. 39. O ofendido HH não recebeu a viatura de matrícula ..-..-SV, por si adquirida, tal como prometido pelo arguido, nem em alternativa o pagamento efectuado para aquirição da viatura ligeira de mercadorias, de marca ..., ... L..0 e matrícula ..-..-SV, suportando o prejuízo de €8.000 (oito mil euros). O arguido nunca entregou o valor recebido pela venda do referido veículo ao seu legítimo proprietário. Pelo contrário, integrou aquele montante no seu património, sabendo que o mesmo não lhe pertencia e que a viatura que lhe havia sido entregue se destinava a ser reparada e devolvida ao seu legítimo proprietário. Agiu, pois, com o propósito de integrar o referido montante na sua esfera patrimonial, o que logrou conseguir, sem o conhecimento e consentimento do legítimo proprietário do veículo ..-..-SV, bem sabendo que aquele veículo e montante não lhes pertencia e que aquela conduta era contrária á lei e criminalmente punível. A conduta revelou-se livre, deliberada e consciente, tendo o arguido agido sempre de acordo com o plano traçado de se apropriar de uma quantia que sabia não lhe pertencer proveniente da venda do L..0. O arguido cometeu, pelo exposto, na forma consumada e em autoria material um crime de abuso de confiança, p. e p. pelo artº 205º, nº 1 e 4 , al a) com referência ao artº 202º al a) do CodPenal. No mesmo acto, o arguido opôs-se a tal alteração substancial, tendo o Tribunal ordenado a suspensão da audiência para proferir nova decisão. Como acima referimos e de acordo com o disposto no artº 1º, al f) do CPP a alteração substancial de factos, é aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis. Por assim ser e por o Tribunal entender que tais poderiam constituir alteração substancial na medida em estaríamos perante um crime diverso, um crime de abuso de confiança agravado (sendo ofendido HH), a cujo julgamento o arguido se opôs e da motivação resulta que “Quanto aos factos relativos ao Sr HH, os mesmos integram outra qualificação jurídica, outro tipo de ilícito, contudo, dada a oposição do arguido, nesta sede o mesmo não poderá ser condenado” e lendo a decisão final constatamos que não houve qualquer decisão sobre o mesmo, isto por o tribunal estar impedido de o julgar como referiu. O tribunal apenas pode fazer uso do disposto no artº 359º, nº 2 do CPP. Assim, não há qualquer condenação por factos diversos dos descritos na acusação, não sofrendo a decisão recorrida da arguida nulidade. Improcede, pois, esta questão. Sustenta, ainda, o recorrente que a sentença é nula nos termos do disposto nos arts 374º nº 2 e 379º nº 1 al a) do CPP “Por ser manifesto que os factos considerados demonstrados e acolhidos nos pontos 2 a 9 e 11, 42 a 45 dos factos assentes na sentença ora recorrida são indefinidos, genéricos, abstractos, conclusivos, obscuros e imprecisos, não só quanto ao tempo, lugar e modo mas também quanto ao real contexto, número, circunstâncias envolventes pelo que devem ser eliminados”. Da análise do disposto no art. 374º do CPP vemos que a sentença compõe-se de três partes: relatório, fundamentação e dispositivo. O relatório é elaborado de acordo com o nº 1, a fundamentação de acordo com o nº 2 e o dispositivo de acordo com o nº 3. Na fundamentação é agora obrigatória a indicação das provas que serviram a convicção do tribunal e do exame crítico destas. Dispõe o art. 374º, nº 2 do CPP que “ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal”. Em relação á anterior redacção deste preceito legal, a Lei 59/98 de 25/8 que procedeu á revisão do Cod. Penal aditou a exigência do “exame crítico das provas”. Ou seja, para além de se indicar as provas que serviram para formar a convicção do tribunal, este tem que proceder ao exame crítico das provas, isto é, ao processo lógico e racional que foi seguido na apreciação das provas. “A fundamentação, como resulta expressis verbis do nº 2, não se satisfaz com a enumeração dos meios de prova produzidos na audiência de julgamento e dos que serviram para fundamentar a sentença. É ainda necessário um exame crítico desses meios, que servirá para convencer os interessados e a comunidade em geral da correcta aplicação da justiça no caso concreto”. (Maia Gonçalves, em anotação ao art 374 do CPP). O objectivo dessa fundamentação e no dizer do prof. Germano Marques da Silva, no Curso de Processo Penal, pg 294, III Vol é a de permitir “a sindicância da legalidade do acto, por uma parte e serve para convencer os interessados e os cidadãos em geral acerca da sua correcção e justiça, por outra parte, mas é ainda um importante meio para obrigar a autoridade decidente a ponderar os motivos de facto e de direito da sua decisão, actuando, por isso como meio de autodisciplina”. A ratio da exigência de fundamentação é a de submeter a decisão judicial a uma maior fiscalização por parte da colectividade e é também consequência da importância que assume no novo processo o direito à prova e à contraprova, nomeadamente o direito de defender-se, probando”. Não dizendo a lei em que consiste o exame crítico das provas, esse exame tem de ser aferido com critérios de razoabilidade, sendo fundamental que permita avaliar cabalmente o porquê da decisão e o processo lógico-formal que serviu de suporte ao respectivo conteúdo (Ac STJ de 12/4/2000, proc nº 141/2000-3ª, SASTJ nº 40,48). Portanto esse exame crítico deve indicar no mínimo e não tem que ser de forma exaustiva, as razões de ciência e demais elementos que tenham na perspectiva do tribunal sido relevantes, para assim se poder conhecer o processo de formação da convicção do tribunal. Ora, se analisarmos a decisão recorrida vemos que esta está bem elaborada e da mesma constam de forma clara e explicita os factos provados e não provados e, encontra-se, ainda, “suficientemente”, fundamentada. Aliás, o Tribunal expõe sucintamente os depoimentos das testemunhas, a sua razão de ciência, e a sua credibilidade. É de notar que o tribunal na fundamentação deve expor de forma global as provas em que se baseou e as razões de ciência e elementos que foram relevantes. Não tem necessariamente que o fazer ponto por ponto, sob pena de se tornar repetitivo violando, assim, o princípio da economia processual. O art. 374º nº 2 do CPP não exige a explicitação e valoração de cada meio de prova perante cada facto provado. Apenas exige uma exposição concisa dos motivos de facto e de direito que levaram à decisão, com indicação das provas que serviram para formar a convicção do tribunal. Ou seja, não exige que em relação a cada facto se autonomize e substancie a razão de decidir, assim como, também, não exige que em relação a cada meio de prova se explicite como tudo se processou e desenvolveu na audiência de discussão e julgamento. Tendo o Sr. juiz enumerado as provas que teve ao seu dispor, indicando o essencial do seu conteúdo e, portanto, o modo como formou o juízo da sua veracidade, cumpriu com o dever de fundamentação contido no art. 374º, nº 2 do CPP. Na verdade, o Tribunal conforme se verifica dos factos apurados fez constar toda a factualidade relativa à actuação dos arguidos e que configura o crime imputado aos arguidos. Portanto, a descrição factual cumpre as exigências impostas pelo disposto no artº 374º nº 2 do CPP. Por outro lado, a decisão recorrida expôs a motivação quanto à decisão de facto, da qual consta a indicação da prova em que se baseou para formar a sua convicção, identificando as testemunhas inquiridas em audiência cujo depoimento relevaram e que foram determinantes na sua convicção, explanando a razão de ciência de cada um, o valor do depoimento e das declarações que produziram e os motivos da credibilidade que lhes foi reconhecida, assinalando ainda os esclarecimentos prestados pelas referidas testemunhas. Para além da prova pessoal, o tribunal a quo indicou ainda os documentos em que se baseou que também relevaram em sede probatória. Ao contrário do que pretende o recorrente toda a factualidade tem que ser vista no seu conjunto para dessa forma a percebermos a conduta do arguido o seu enquadramento espaço-temporal, o modo como agia, as pessoas envolvidas, as circunstâncias apuradas e os montantes em causa. No que respeita aos pontos 42 a 45 referem-se ao elemento subjectivo e este, não é susceptível de apreensão directa por pertencer ao foro intimo de cada um, pelo que só pode ser captado através de presunções legais, em conexão com o princípio da normalidade e as regras da experiência que permitam inferi-lo a partir de factos materiais comuns entre os quais avulta o preenchimento da materialidade da infracção. Portanto, a partir de determinados factos e à luz das regras da experiência podemos concluir pela intencionalidade pela forma como agiu o arguido. Portanto, a intenção com que o recorrente agiu retira-se, extrai-se, da matéria de facto. É através da realidade factual que lhe está subjacente que o Tribunal e recorrendo às regras da experiência tem de concluir pela intencionalidade ou não do agente. E dos factos apurados bem andou o tribunal ao concluir pela intencionalidade do arguido. Verificamos, pois, que o tribunal a quo, reportando-se às concretas provas consideradas, efectuou uma exposição em que deu conta de forma perceptível para quem a lê do processo lógico e racional seguido na formação da sua convicção, indicando a prova analisada, a valoração que fez da mesma, o grau de credibilidade que lhe reconheceu e a demonstração de factos que logrou alcançar através daquela. Permitindo, assim, aos destinatários da decisão, a terceiros e bem assim a este tribunal de recurso conhecer de forma bastante as provas e as razões que estiveram na base da formação da convicção quanto à sustentação probatória daquela factualidade. O que nos leva a concluir que a fundamentação que o tribunal a quo fez constar da sentença recorrida é suficiente para satisfazer as exigências e finalidades contidas na lei, nos termos acima expostos, não havendo, pois, razões que determinem a verificação da nulidade suscitada no recurso, que assim deve improceder. Entende o recorrente, AA, que outra deveria ter sido a decisão sobre a matéria de facto razão pela qual impugna os pontos 18, 19, 43 e 44 dos factos dados como provados e assim deve eliminar-se o ponto 18 e considerar-se assente uma nova alínea com a seguinte redacção: “Em data não concretamente apurada foi pago ao EE o valor de € 3000,00 correspondente à vendada sua viatura matrícula ..-EL-..” Deve eliminar-se o ponto 19 e considerar-se assente uma nova alínea com a seguinte redacção: “Foi ao B... que o EE entregou a sua viatura matrícula ..-EL-.. para venda pelo valor de € 3000,00 e foi do B... que recebeu tal valor, não conhecendo aquele o arguido, nem nunca com ele tendo tido contacto”. Pretende que perante a alteração a efectuar deverá ser rectificado o ponto 22 do “mais se provou” por forma a que aí fique apenas a constar “Que o arguido causou um prejuízo de nove mil euros ao GG”. Devendo ser eliminados os pontos 43 e 44. Vejamos: Dispõe o artigo 412º, nº 3, do Código de Processo Penal que, “quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar: a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida; c) As provas que devem ser renovadas. No caso sub judice a questão não se prende com a alínea c) mas sim com a alíneas b). A especificação dos concretos pontos de facto traduz-se na indicação dos factos individualizados que constam da sentença recorrida e que se consideram incorrectamente julgados. A especificação das concretas provas só se satisfaz com a indicação do conteúdo específico do meio de prova ou de obtenção de prova e com a explicitação da razão pela qual essas provas impõem decisão diversa da recorrida. Nos termos do nº 4 da mesma norma legal “quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no nº 3 do artigo 364º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que funda a impugnação”. Não basta, pois, a simples remissão para a totalidade de um ou vários depoimentos.(Cf AcTRC 10/19.4PEFIG.c1 de 30/3/22) O STJ, no Ac. nº 3/2012, publicado no DR, 1ª série, de 18.4.212, fixou jurisprudência no sentido de que: «Visando o recurso a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, com reapreciação da prova gravada, basta, para efeitos do disposto no artigo 412.º, n.º 3, alínea b), do CPP, a referência às concretas passagens/excertos das declarações que, no entendimento do recorrente, imponham decisão diversa da assumida, desde que transcritas, na ausência de consignação na acta do início e termo das declarações». O tribunal procede à audição ou visualização das passagens indicadas e de outras que considere relevantes para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa – nº 6 do artigo 412º do Código de Processo Penal. Por sua vez, dispõe o artigo 431º do mesmo diploma legal que, “sem prejuízo do disposto no artigo 410.º, a decisão do tribunal de 1.ª instância sobre matéria de facto pode ser modificada: a) Se do processo constarem todos os elementos de prova que lhe serviram de base; b) Se a prova tiver sido impugnada nos termos do n.º 3 do artigo 412.º; ou c) Se tiver havido renovação da prova. Respeitados os pressupostos referidos, o Tribunal da Relação deve então averiguar se, relativamente aos factos indicados pelo recorrente, o Tribunal de 1ª instância julgou bem. “A respeito da impugnação da matéria de facto, nos termos do artigo 412º, nº 3, do Código de Processo Penal, há que considerar o seguinte: Como se refere nos doutos acórdãos do S.T.J de 15.12.2005 e de 09.03.2006, Procs. nºs 2951/05 e 461/06 e AcTRC 10/19.4PEFIG.c1 de 30/3/22), respetivamente, «o recurso de facto para a Relação não é um novo julgamento em que a 2.ª instância aprecia toda a prova produzida e documentada em 1ª instância, como se o julgamento ali realizado não existisse: antes se deve afirmar que os recursos, mesmo em matéria de facto são remédios jurídicos destinados a colmatar erros de julgamento, que devem ser indicados precisamente com menção das provas que demonstram esses erros». No mesmo sentido o Ac. da RG de 6.12.2010, in www.dgsi.pt, onde se pode ler que, no caso de impugnação da matéria de facto, a que se refere o nº 3 do artigo 412º do Código de Processo Penal, “a apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos nºs 3 e 4 do art. 412.º. Nos casos de impugnação ampla, o recurso da matéria de facto não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, agora com base na audição de gravações, antes constituindo um mero remédio para obviar a eventuais erros ou incorrecções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, na perspectiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente”. Pode-se ler ainda no referido acórdão citado no AcTRC 10/19.4PEFIG.c1 de 30/3/22 que “o recurso que impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não pressupõe, por conseguinte, a reapreciação total do acervo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas antes uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do tribunal a quo quanto aos «concretos pontos de facto» que o recorrente especifique como incorrectamente julgados. Para esse efeito, deve o tribunal de recurso verificar se os pontos de facto questionados têm suporte na fundamentação da decisão recorrida, avaliando e comparando especificadamente os meios de prova indicados nessa decisão e os meios de prova indicados pelo recorrente e que este considera imporem decisão diversa (Cfr. Acórdãos do S.T.J. de 14 de Março de 2007, de 23 de Maio de 2007 e de 3 de Julho de 2008, disponíveis em www.dgsi.pt/jstj.). Justamente porque o recurso em que se impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não constitui um novo julgamento do objecto do processo, mas antes um remédio jurídico que se destina a despistar e corrigir, cirurgicamente, erros in judicando ou in procedendo, que o recorrente deve expressamente indicar, impõe-se a este o ónus de proceder a uma tríplice especificação, como estipulado no artigo 412.º, n.º 3, do Código de Processo Penal”. Revertendo ao caso concreto, vejamos se foram respeitados pela recorrente os requisitos supra mencionados do artigo 412º, nº 3, do Código de Processo Penal. O arguido indicou os pontos da matéria de facto que considera incorrectamente julgado. Porém, não indicou qualquer prova concreta que impusesse decisão diversa da recorrida, com respeito pelo disposto no artigo 412º, nºs 3 e 4, do Código de Processo Penal. O recorrente limita-se a transcrever um pequeno enxerto disperso das declarações do arguido e pequenos enxertos dispersos das testemunhas UU e DD que em nada põe em causa os factos apurados pois, as testemunhas são unânimes em afirmar “que esperaram anos para terem a situação regularizada. Que não conseguiam registar por não terem papéis”. Basta ler atentamente o recurso interposto pelo recorrente em sede de conclusões para concluirmos que o recorrente apenas pretende atacar a forma como o tribunal a quo valorou a prova produzida. O recorrente ao impugnar a matéria de facto esquece os elementos de prova nos quais o tribunal se baseou. É no conjunto de todos esses elementos que se fundamenta a convicção e não, apenas, num ou noutro dos mesmos elementos” (Rec nº 2541/2003). Ora, o pretendido pelo recorrente é que o tribunal ad quem faça um novo julgamento relativamente às questões por ele levantadas e de acordo com as suas convicções deferindo deste modo as suas pretensões. Acresce que os elementos em falta inexistem quer nas conclusões quer na motivação propriamente dita. Poder-se-ia dizer que esta Relação deveria mandar corrigir a peça recursória, de forma a respeitar os referidos ditames legais. Neste sentido temos o disposto no artigo 417º, nºs 3 e 4, do Código de Processo Penal. Dispõe o nº 3 que “se das conclusões do recurso não for possível deduzir total ou parcialmente as indicações previstas nos nºs 2 a 5 do artigo 412º, o relator convida o recorrente a completar ou esclarecer as conclusões formuladas, no prazo de 10 dias, sob pena de o recurso ser rejeitado ou não ser conhecido na parte afetada. Se a motivação do recurso não contiver as conclusões e não tiver sido formulado o convite a que se refere o nº 2 do artigo 414º, o relator convida o recorrente a apresentá-las em 10 dias, sob pena de o recurso ser rejeitado”. Por sua vez, o nº 4 estipula que “o aperfeiçoamento previsto no número anterior não permite modificar o âmbito do recurso que tiver sido fixado na motivação”. É verdade que o art. 417º nº 3 do CPP estipula que se a motivação do recurso não contiver conclusões ou destas não for possível deduzir total ou parcialmente as indicações previstas nos nºs 2 a 5 do art 412º, o relator convida o recorrente a apresentar, completar ou esclarecer as conclusões formuladas, no prazo de 10 dias, sob pena de o recurso ser rejeitado ou não ser conhecido na parte afectada. No entanto, o aperfeiçoamento não permite modificar o âmbito do recurso que tiver sido fixado na motivação (art 417 nº 4 do CPP). Ou seja, só é possível o convite para a correcção quando essa correcção se processa dentro dos termos da própria motivação e não constitua uma substituição, mesmo que parcial da motivação. Como vem referido no Ac desta Relação de 2 de Abril de 2008 no processo 604/05.5PBVIS.C1 “quando o recorrente expõe consistentemente as razões concretas da sua discordância, mas depois, por lapso, não as assinala devidamente nas conclusões existem razões que se fundamentam na proibição de excesso, no princípio da proporcionalidade constitucionalmente consagrado no art 18º nº 2 da CRP que justificam a convite e a consequente possibilidade de correcção. Porém, quando o recorrente no corpo da motivação do recurso não enunciou as especificações, o convite à correcção não se justifica porque para se obter a harmonização entre as conclusões, o corpo da motivação e a obrigação legal de especificação seria necessária uma reformulação substancial das motivações e das conclusões, o que significaria a concessão da possibilidade de um novo recurso, com novas conclusões e inovação da motivação, precludindo a peremptoriedade de prazo de apresentação do recurso. No caso vertente, nem na motivação, nem nas conclusões existe qualquer menção às provas que impõem decisão diversa pelo que não se justifica o convite ao aperfeiçoamento. Aliás e como já se referiu do recurso interposto, nomeadamente, das conclusões verifica-se que o recorrente apenas pretende atacar a forma como o tribunal a quo valorou a prova produzida. Assim, tem-se como assente a matéria de facto. Sustenta o recorrente que o Tribunal e no que se reporta á situação dos ofendidos DD e EE entendeu existir um único crime de burla permitindo, assim, atendendo aos alegados prejuízos por ele sofridos, qualifica-lo, quando devia antes ser considerado a existência de dois crimes de burla simples (artº 217º nº 1 do CodPenal) em que o 1º teria sofrido um prejuízo patrimonial de € 3.000,00 e o 2º de 5.000,00. Dispõe o artº 30º nº 1 do Código Penal que: O número de crimes determina-se pelo número de tipos de crimes efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente. Será real, o concurso de crimes, quando o agente pratica vários atos que preenchem autonomamente vários crimes ou várias vezes o mesmo crime (pluralidade de ações) e é ideal quando através de uma mesma ação se violam normas penais ou a mesma norma, repetidas vezes (unidade de ação). O critério operativo de distinção entre categorias, que permite determinar se em casos de pluralidade de ações ou pluralidade de tipos realizados existe, efetivamente, unidade ou pluralidade de crimes, reverte ao bem jurídico e à concreta definição que esteja subjacente relativamente a cada tipo de crime. Ao lado das espécies de concurso próprio (ideal ou real) há, com efeito, casos em que as leis penais concorrem só na aparência, excluindo uma as outras. A ideia fundamental comum a este grupo de situações é a de que o conteúdo do injusto de uma acção pode determinar-se exaustivamente apenas por uma das leis penais que podem entrar em consideração - concurso impróprio, aparente ou unidade de lei. A determinação dos casos de concurso aparente faz-se, de acordo com as definições maioritárias, segunda regras de especialidade, subsidiariedade ou consunção. Especialmente difícil na sua caracterização é a consunção. Há consunção quando o conteúdo de injusto de uma ação típica abrange, incluindo-o, outro tipo de modo que, de um ponto de vista jurídico, expressa de forma exaustiva o desvalor - Cfr. Ac. do STJ, 13.10.2004, Proc 04P3210, Cons. Henriques Gaspar, disponível in www.dgsi.pt. O Tribunal e no que aqui interessa deu como apurado que: 12. Em data concretamente não apurada do mês de Setembro de 2017, o ofendido EE colocou o seu veículo ligeiro de passageiros, de marca ..., modelo ... e matrícula ..-EL-.., à venda, pelo valor de €3.000 (três mil euros), no stand “B...”, sito na cidade .... 13. Posteriormente, o arguido deslocou-se até ao stand “B...”, sito na cidade ... e procedeu ao levantamento do veículo automóvel identificado em 12, à condição, para ser colocado à venda no stand de automóveis de sua propriedade, denominado “A... Lda”, sito na Av. ..., ..., ..., alegando possuir um cliente interessado na compra do mesmo. 14. No dia 12 de Fevereiro de 2018, após se deslocar até ao stand de automóveis denominado “A... Lda”, o ofendido DD, adquiriu ao arguido AA a viatura ligeira de passageiros, de marca ..., modelo ... e matrícula ..-EL-.., pelo valor de €5.000 (cinco mil euros). 15. DD procedeu ao pagamento da viatura, mediante transferência bancária, efectuada a 12 de Fevereiro de 2018, para a conta titulada por um dos funcionários do arguido, de nome II, na Caixa Geral de Depósitos, tendo este procedido ao levantamento da aludida quantia e entregue a mesma ao arguido. 16. O arguido AA entregou ao ofendido DD, para além do veículo de matrícula ..-EL-.., o respectivo certificado de matrícula, as chaves do mesmo e uma cópia do “requerimento de registo automóvel”, efectuado on-line, informando DD que este receberia o novo certificado de matrícula em sua casa. 17. Volvidas cerca de duas semanas, e uma vez que DD não recebeu o novo certificado de matrícula em sua casa, deslocou-se até à conservatória do registo automóvel, tendo constatado que nunca havia sido realizado pedido de transferência de propriedade do veículo de matrícula ..-EL-.. adquirido por si ao arguido. 18. DD suportou o prejuízo no valor de €5.000 (cinco mil euros). 19. EE nunca recebeu o valor acordado para a venda da sua viatura automóvel, pelo que não procedeu à assinatura da declaração de venda, suportando EE o prejuízo de €3.000 (três mil euros). Lendo os factos apurados não restam dúvidas que os factos que permitem integrar a pratica pelo arguido de um crime de burla e no que respeita ao lesado DD separam-se, de forma muito clara, dos factos que respeitam ao lesado EE. Estamos, assim, claramente perante dois crimes autónomos, quer em termos de resolução criminal, quer em termos de significado e sentido sociais de ilicitude, pelo que ao arguido e atendendo aos valores aqui em causa, (€5.000,00 e €3.000,00) deve ser imputada a prática de dois crimes de burla, p. e p. pelo artº 217º nº 1 do Código Penal, em concurso real ou efectivo de crimes. Como já aqui foi referido dispõe o art. 358º, nº 1 do Código Processo Penal: “Se no decurso da audiência se verificar uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, com relevo para a decisão da causa, o presidente, oficiosamente ou a requerimento, comunica a alteração ao arguido e concede-lhe, se ele o requerer, o tempo estritamente necessário para a preparação da defesa”. E o nº 3 “o disposto no nº 1 é correspondentemente aplicável quando o tribunal alterar a qualificação jurídica dos factos descritos na acusação ou na pronúncia”. As disposições do art. 358º resultam dos imperativos de garantia da defesa e do princípio do contraditório. Ora, tais princípios são plenamente respeitados quando os factos considerados provados representam um “minus” relativamente aos da acusação e nenhuns novos são introduzidos, daí resultando a desqualificação do crime. Assim sendo, quando a alteração da qualificação jurídica é para uma infracção que representa um “minus” relativamente à da acusação e essa alteração não implica uma modificação do interesse protegido com a incriminação uma vez que o crime para o qual se convola já está abrangido na previsão do anterior e, por isso, a defesa já não corre o risco de ser surpreendia com a nova qualificação jurídica, ou seja, o arguido já não tem necessidade de se defender fosse do que fosse com a alteração, não é necessária a comunicação ao arguido pois que este teve conhecimento de todos os seus elementos constitutivos e possibilidade de os contraditar. Assim sendo e do exposto convola-se o crime imputado ao arguido para um crime menos gravoso. Portanto, a alteração da qualificação jurídica é para um minus relativamente à acusação pelo que não é necessária a comunicação a que se refere o art 358 do Código Processo Penal, porque ao arguido foi dada a possibilidade de se defender desta nova qualificação De acordo com o disposto no artigo 217.º, n.º 1 do Código Penal, comete o crime de burla “quem, com a intenção de obter para si ou para terceiro um enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos, que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de actos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial, será punido com prisão até 3 anos ou com pena de multa”. Estatui, ainda, o artº 217º nº 3 do CodPenal que o procedimento criminal depende de queixa. E de acordo com o art. 113º, nº 1 do mesmo diploma dispõe: “Quando o procedimento criminal depender de queixa, tem legitimidade para apresentá-la, salvo disposição em contrário, o ofendido, considerando-se como tal o titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação”.
Ora, compulsados os autos verifica-se que em relação ao lesado, EE, este apenas foi ouvido como testemunha em fase de inquérito no dia 12 de Abril de 2019 relatou os factos por si experienciados mas não apresentou queixa (fls 63). Em relação ao lesado, DD, apurou-se que este adquiriu a viatura de marca ... de matrícula ..-EL-.. no dia 12/02/2018. Contudo, apenas no dia 5/12/2018 apresentou queixa. Dispõe o artº 115º, nº 1, do CodPenal que “o direito de queixa extingue-se no prazo de seis meses a contar da data em que o titular tiver tido conhecimento do facto e dos seus autores, (…)”. Note-se que o conhecimento do facto e dos seus autores é, manifestamente, um simples conhecimento naturalístico. O lesado, DD, pelo menos duas semanas depois de ter adquirido a viatura já sabia que o arguido não tinha realizado qualquer pedido de transferência de propriedade do veículo de matrícula ..-EL-.., nada fazendo e apresentando a queixa já fora do prazo legalmente estipulado para o efeito – 5/12/2018 Assim sendo o lesado DD ao exercer o seu direito de queixa em 5/12/2018 fê-lo extemporaneamente, ou seja, num momento em que já se havia extinguido pelo decurso do respectivo prazo de caducidade – seis meses. Decorre do artigo 48º do Código de Processo Penal que a legitimidade para promover o processo penal cabe ao MP, com as restrições dos artigos 49º a 52º, do mesmo diploma. O MP, titular da acção penal, promove-a, oficiosamente, (nos crimes públicos), mediante queixa (nos crimes semipúblicos) e constituição de assistente e dedução que acusação particular (nos crimes particulares). Havendo notícia e queixa por um crime de natureza semipública, o Ministério Público tem o poder-dever de determinar e dirigir o conjunto de diligências que visam investigar a existência desse crime e determinar os seus agentes. Terminado o inquérito, ao MP cabe, em exclusivo, a legitimidade exclusiva para tomar uma das posições previstas no artigo 276º, nº1 do Código de Processo Penal: de arquivamento (nas modalidades previstas no artigo 277º do Código de Processo Penal) ou de acusação. Ora, no caso vertente o Ministério Público não tinha legitimidade para promover o processo penal no que respeita ao “lesado” UU já que este não apresentou queixa. Já no que respeita ao lesado DD, que apresentou queixa manifestamente fora de prazo deveria ter ordenado o arquivamento do inquérito.
Nestes termos e pelos fundamentos expostos acordam os juízes do Tribunal da Relação de Coimbra em julgar parcialmente procedente o recurso e em consequência declara-se extinto o procedimento criminal instaurado nos autos contra o arguido AA e no que respeita aos lesados UU e DD, no mais mantendo-se a douta decisão recorrida. Ficam prejudicadas as restantes questões. Sem custas. Coimbra, 22 de março de 2023 Alice Santos Luís Ramos Luís Teixeira |