Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1543/06.8TBPMS-O.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ANTÓNIO BEÇA PEREIRA
Descritores: INSOLVÊNCIA CULPOSA
Data do Acordão: 02/08/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: PORTO DE MÓS
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 186.º N.ºS 2 H) E 3 DO CÓDIGO DA INSOLVÊNCIA E DA RECUPERAÇÃO DE EMPRESAS
Sumário: I- Tendo-se provado que a insolvente não organizou, nem tratou os documentos contabilísticos, nem o suporte informático contabilístico e que a partir certo momento passou a limitar-se a uma escrituração diária baseada num conceito de “deve” e “haver”, tem que se concluir que, para os efeitos do disposto no artigo 186.º n.º 2 h) do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, aquela incumpriu em termos substanciais a obrigação de manter contabilidade organizada, na medida em que, ao agir dessa forma, comprometeu seriamente os interesses que essa obrigação visa acautelar.

II- Verificado o incumprimento de alguma das obrigações referidas no n.º 3 do artigo 186.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, para que se possa qualificar como culposa a insolvência, é ainda necessário que se demonstre que essa conduta criou ou agravou a situação de insolvência.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra


I

No incidente de qualificação da insolvência, relativo à insolvência de A... L.da, que corre termos na comarca de Porto de Mós, foi proferida decisão que considerou culposa essa insolvência.

Inconformados com tal decisão, os gerentes da insolvente B...e C... dela interpuseram recurso, que foi recebido como de apelação, com subida imediata, em separado e com efeito devolutivo, findando a respectiva motivação, com as seguintes conclusões:

1- Atendendo à matéria dada como provada a douta sentença posta em crise deveria ter considerado a insolvência como fortuita.

2- Dos factos dados como provados, não se encontra preenchida a presunção prevista no artigo 186.º, n.º 2 alínea h).

3- A douta sentença não fez uma correcta interpretação do disposto no artigo 186.º, n.º 2 alínea h).

4- Não se encontram preenchidos os requisitos previstos na alínea h) do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE, pois não se verifica o incumprimento "em termos substanciais" da obrigação de manter uma contabilidade organizada e fiel da situação patrimonial e financeira da empresa.

5- A falta da contabilidade organizada a que se reportam os autos não e imputável à insolvente ou aos seus gerentes.

6- Não é qualquer incumprimento, nem qualquer irregularidade que preenche a presunção em questão.

7- Tem de ser uma irregularidade com algum relevo, segundo as boas regras e praticas contabilísticas, e tem, simultaneamente, que ser uma Irregularidade com influência na percepção que uma contabilidade transmite sobre a situação patrimonial e financeira do contabilizado.

8- A situação em apreço não configura tal presunção, nem foi de molde a esconder/mascarar ou disfarçar a realidade financeira e patrimonial da empresa contabilizada.

9- Os factos dados como provados não caucionam ou alicerçam, no modesto entender dos recorrentes, as ilações que, em sede de discussão e apreciação jurídicas se retiram dos mesmos.

10- A falta de organização da contabilidade deveu-se a um procedimento judicial, mais propriamente um arresto, onde a Insolvente ficou privada da contabilidade, que nunca mais pode conferir ou trabalhar, passando-se apenas a gerir a escrituração do dia a dia que seguiu a esse dia l de Janeiro de 2006.

11- Tal situação impediu-a de tratar devidamente do dossier fiscal.

12- Tal facto foi do conhecimento geral, e dos próprios serviços de Finanças.

13- Não se verifica o preenchimento da 2.a parte da alínea h) do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE,

14- A insolvente nunca actuou com intenção de prejudicar a compreensão da sua situação patrimonial e financeira.

15- Quanto ao preenchimento do artigo 186.º, n.º 1 do CIRE, estabelece tal dispositivo que a actuação da insolvente para efeitos de qualificação como culposa, será avaliada pela sua actuação durante os três anos anteriores ao inicio do processo de insolvência.

16- Ora salvo o devido respeito, tendo a insolvente sido declarada insolvente em Outubro de 2006, apenas as contas de 200S não foram apresentadas,

17 - E os restantes anos isto é de 2003 e 2004, apesar de terem sido devidamente apresentadas as contas,

18- A falta de contabilidade organizada em tal período, resultante do arresto já referido, não preenche os requisitos do artigo 186.º, n.º 1 e n.º 2 alínea h) do CIRE, já que este apenas entrou em vigor em 2004.

19- O CIRE, não tem aplicação retroactiva

20- Quanto ao ano de 2006, a insolvente apenas laborou cerca de C) meses sem suporte informático contabilístico.

21- Ora os factos a que se reportam a insolvência são anteriores a Janeiro de 2006, isto é, reportam-se a 2004 e 200S, e relativamente ao ano de 2004 e 2003 a mesma encontrava-se organizada, apenas a de 200S não foi apresentada em virtude do já descrito arresto.

22- As circunstancias de facto dadas corno provadas não permitem concluir pelo preenchimento da aliena h) do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE, uma vez que não há elementos factuais no sentido de que tenha ocorrido o referido incumprimento de manter a contabilidade organizada, susceptível de accionar a presunção juris et de jure.

23- A falta de contabilidade informaticamente organizada durante 2006, não poderia nunca ser causa da insolvência, nem comprometeu o entendimento da sua situação patrimonial.

24- Tanto assim foi que o Sr. Administrador de Insolvência, teve acesso a toda a informação existente no escritório da ..., e que espelhavam todas as transacções da insolvente.

25- A contabilidade apenas não se encontrava informaticamente tratada, em virtude do mencionado arresto, embora se encontrasse à data do arresto.

26- Os recorrentes não se conformam com a fundamentação de que os recorrentes poderiam ter solicitado judicialmente a restituição da informação contabilística aos autos de arresto.

27 - A informação que poderia eventualmente ter sido devolvida, nunca seria passível de fidelidade, já que, a insolvente e os seus gerentes não poderiam garantir juntos das entidades competentes a sua fidelidade, atento o seu percurso e a sua hipotética utilização/alteração por terceiros.

28- A falta de apresentação das contas junto das finanças e a falta de organização contabilística não é de molde a imputar à insolvente e aos seus gerentes de facto,

29- Desde Janeiro de 2006, data do decretamento do arresto, até ao termo da data para apresentação das contas anuais, distaram apenas 4 meses,

30- E esse período de tempo é manifestamente insuficiente para proceder à reorganização da contabilidade da insolvente,

31- A apresentação das contas referentes ao ano de 2005, foi comprometida com as ausências dos respectivos elementos de base de que a Insolvente ficou privada com o arresto do sistema informático onde se encontravam todos os elementos da contabilidade.

32- A Insolvente tinha a escrita organizada com um TOC responsável e na convicção de que todas as formalidades legais estavam cumpridas, ainda que posteriormente se tenha demitido.

33- E não fosse o referido arresto, a contabilidade estava efectivamente organizada, já que sempre o esteve desde a sua constituição, apenas se verificando tal situação durante 9 meses, não fosse o arresto e que foram alvo,

34- E a situação em apreço deveu-se apenas e tão só à impossibilidade criada pelos sucessivos arrestos judiciais e com a paralisação total de todo o processo produtivo e administrativo da empresa.

35- Quanto ao alegado preenchimento do artigo 186.º, n.º 3 alínea b), o mesmo, no modesto entender dos recorrentes não se verifica

36- Não se vislumbrar na douta sentença a verificação do nexo de causalidade entre o incumprimento da obrigação de apresentação das contas anuais isto é do ano de 2005 e a criação ou a agravamento da situação de insolvência.

37 - A factualidade provada não reúne virtualidades para preencher a previsão do artigo 186.º, n.º 1, n.º 2, aliena h) e alínea b) n.º 3 do mesmo dispositivo do CIRE.

38- Não se pode concluir que se tenha verificado uma qualquer conduta dolosa conducente à criação ou agravamento da situação de insolvência que não poderia deixar de ser qualificada como fortuita.

39- A douta sentença viola o disposto nos artigo 186.º, n.º 1, n.º 2, alínea h, e n.º 3, alínea b) do CIRE,

40- E como tal deve ser revogada por acórdão que considere a

41- Insolvência fortuita.

Não foram apresentadas contra-alegações.

Face ao disposto nos artigos 684.º n.º 3 e 685.º-A n.os 1 e 3 do Código de Processo Civil, as conclusões das alegações de recurso delimitam os poderes de cognição deste Tribunal e, considerando a natureza jurídica da matéria versada, a questão a decidir consiste em saber se, por força do disposto no artigo 186.º n.º 2 h) e n.º 3 b) do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, a insolvência deve ser qualificada como culposa.


II

1.º


Estão provados os seguintes factos:

A) As declarações fiscais referentes ao ano de 2005 não foram entregues e fiscalizadas por Técnico Oficial de Contas, até porque o TOC que exercia o cargo apresentou demissão;

B) O computador que serviria de base à informação contabilística da empresa, em formato “Excel”, foi arrestado e removido no âmbito de processos de insolvência de outras empresas do denominado “Grupo D...”;

C) As contas da sociedade não foram depositadas na respectiva Conservatória do Registo Comercial de ...;

D) Já não existem trabalhadores ao serviço da insolvente, matéria-prima ou qualquer actividade;

E) Não foi entregue a declaração modelo 22 da insolvente;

F) Não foi requerida a insolvência da ora insolvente pelos seus gerentes;

G) Não foram aprovadas, fiscalizadas e depositadas as contas da insolvente relativamente ao exercício de 2005;

H) As contas referentes aos exercícios de 2005 e 2006 não foram entregues nas Finanças pela insolvente até à data no início do processo de insolvência;

I) A Insolvente não organizou nem tratou os documentos contabilísticos nem o suporte informático contabilístico;

J) Nos exercícios de 2005 e 2006, a insolvente alienou os equipamentos que a seguir se descriminam:

1 - Central de Betão dos X...;

2 - Viatura Mercedes 2361 de matrícula ...QQ;

3 - Modulo Pré-Fabricado com 3,60 x 2,30m;

4 - Prensa de Compressão 101 – 3000KN

5 - Prensa de Compressão 3000KN Digital;

6 - Viatura Opel Corsa de Matrícula ...QT

7 - Viatura Mitsubishi de matrícula ...BH;

8 - Gerador C3;

9 - Central de Betão Móvel;

10 - Viatura MAN de matrícula ...QM;

11 - Viatura MAN de matrícula ...TN;

K) A Insolvente dedicava-se à fabricação e comercialização de betão;

L) Sendo sócios os agora requeridos;

M) No âmbito de um arresto de um credor de B...foram removidos dos escritórios da insolvente os computadores;

N) As contas referentes ao exercício de 2006 teriam de ser apresentadas até Maio de 2007;

O) A Sociedade de E... L.da encontra-se registada na Conservatória do Registo Comercial de ... sob o n.º ...desde 17/11/1987, com o objecto social de indústria de britas para construção e extracção de rochas, sendo seus sócios F..., S.A.; C...; G... e H...;

P) A sociedade I.... L.da encontra-se registada na Conservatória do Registo Comercial de ... sob o nº ... desde 14/02/2002, com o objecto social de compra, venda, aluguer de máquinas, equipamentos industriais, peças e acessórios e serviços de intermediação conexos, sendo seus sócios H...; J...; B...e L...;

Q) A insolvente não procedeu ao pagamento de IVA relativo aos períodos de 09 a 12/2005, no valor total de € 46.340,37; IRS relativo aos períodos de 10 a 12/2005, 06/2006 e 09/2006, no valor total de € 6.361,12; IRC referente aos períodos de 10 e 11/2005, no valor total de € 375; assim como não procedeu ao pagamento de contribuições à Segurança Social no valor total de € 31.552,06, referentes aos períodos de 12/2002, 09/2003, 05, 07 e 10 a 12/2004, ano de 2005, 02 a 09/2006 (pontos 7. e 56. da base instrutória);

R) A insolvente foi constituída para complementar as restantes empresas pertencentes aos mesmos accionistas, mais precisamente para fornecimento de betão às obras adjudicadas àquelas (ponto 9. da base instrutória);

S) N... limitou-se a assinar documentos, cuja natureza não foi possível determinar, que lhe eram apresentados em casa, por um funcionário da insolvente, quando era necessária a sua assinatura, desconhecendo aquela a realidade da insolvente (pontos 10. a 15. da base instrutória);

T) G... trabalhava na sociedade M..., S.A. e assinava todo o expediente da insolvente, por serem necessárias duas assinaturas para vincular a insolvente (pontos 16. a 21. da base instrutória);

U) A sociedade M.... , S A. executou a construção civil relativa às seguintes obras:

a) Alargamento das vias na A1 no troço Aveiras Santarém;

b) Três troços na obra da A13 entre Benavente e Santarém;

c) Cruzamentos da A2 com a A6, no cruzamento da Marateca;

d) Empreitadas da construção da Etar de S. Martinho do Porto e Óbidos;

e) Parque Subterrâneo de Leiria (ponto 23. da base instrutória);

V) O betão para todas estas obras foi fornecido pela Insolvente (pontos 24. e 25. da base instrutória);

W) A partir do final do ano de 2005, a insolvente deixou de ter acesso ao programa informático contabilístico da insolvente, que se encontrava no servidor da sociedade M..., S.A., o que impossibilitou a insolvente de aceder à informação contabilística, que passou a limitar-se a uma escrituração diária baseada num conceito de “deve” e “haver” (pontos 36. a 46. da base instrutória);

X) A insolvente possuía uma central em Alcobaça, outra em Marateca e outra em Fátima, sendo que a de Serro Ventoso encontrava-se parada (pontos 48. e 4 9. da base instrutória);

Y) Foi colocada à disposição do Administrador de Insolvência toda a informação existente no escritório da ..., e que espelham todas as transacções da Insolvente (ponto 58. da base instrutória);

Z) Os bens indicados em J)-1. e 2. dos factos assentes foram transferidos para a Sociedade E... L.da para acerto de contas com os débitos já existentes e para continuar a fornecer brita à insolvente, nos termos constantes das facturas juntas a fls. 35 e 36 dos autos (pontos 61. a 66. da base instrutória);

AA) A insolvente vendeu à P..., S.A. as viaturas e equipamentos identificados a fls. 37 a 41, que não eram utilizados (pontos 67. a 72. dos autos);

BB) No decorrer do ano anterior à declaração de insolvência, a sociedade I...L.da forneceu à insolvente combustíveis e, por esse motivo, detinha um crédito sobre a mesma, tendo adquirido um gerador à insolvente (ponto 73. da base instrutória);

CC) A venda de equipamento referido nos documentos juntos a fls. 43 e 44 dos autos, que se dão por reproduzidos, consistiu na forma de realizar fundos, que foram pagos à Insolvente, com a sua venda (ponto 74. da base instrutória);

DD) Em 18/08/2003 foi celebrado entre a insolvente e O..., S.A. um escrito particular denominado de contrato de leasing, referente a uma central de betão ARCMOVMDE 3000/5IL com ArcoWin + 1 sistema de carga de 5I inertes em linha + 2 sem-fim 273/9mt + 1 balança para 2 aditivos com dois vasos (sem bombas), nos termos e condições constantes de fls. 538 a 543 dos autos e que se dão por integralmente reproduzidas (ponto 76. da base instrutória).


2.º

O artigo 186.º n.º 2 h) do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas dispõe que se considera sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham incumprido em termos substanciais a obrigação de manter contabilidade organizada.

A contabilidade, através da escrituração, revela ao comerciante a sua situação económica e financeira (…) e põe-lhe em evidência os erros da sua actuação em certos aspectos do seu comércio, permitindo-lhe modificá-la, também lhe mostra os benefícios trazidos pela sua orientação em outros aspectos, animando-o a continuá-la. (…) É também uma garantia para quem contrata com os comerciantes, pois nela muitas vezes se fundam reclamações das pessoas que se sentem lesadas, e é nos seus lançamentos que vai buscar-se a prova. É igualmente obrigatória no interesse geral do público porque demonstra a maneira de negociar do comerciante, o seu procedimento honesto ou a sua má-fé nas transacções, sobretudo nos casos de falência em que se tem que reconstituir a sua vida mercantil, para averiguar se houve negligência, fraude ou culpa[1].   

No caso dos autos provou-se que a insolvente não organizou, nem tratou os documentos contabilísticos, nem o suporte informático contabilístico e que a partir do final do ano de 2005, passou a limitar-se a uma escrituração diária baseada num conceito de “deve” e “haver”[2].

Face a esta realidade, logo se conclui que a insolvente não tinha a sua contabilidade organizada. Porém, isso, per se, não é suficiente para que se mostre preenchida a previsão da alínea h) do n.º 2 do citado artigo 186.º, pois é ainda necessário que o incumprimento de manter a contabilidade organizada se possa qualificar de substancial.

Substancial significa aquilo que é essencial ou fundamental[3]. Então, o incumprimento de manter a contabilidade organizada deve considerar-se substancial quando as omissões a esse nível atinjam um patamar que corresponde à não realização do que, em termos contabilísticos, é essencial ou fundamental.

Se a insolvente não tratou os documentos contabilísticos, nem o suporte informático contabilístico, isso significa que se limitava a guardar, de forma não organizada, a documentação que tinha relevância para efeitos contabilísticos, não lhe dando qualquer tipo de encaminhamento. E, apesar de a partir do final do ano de 2005 ter passado a limitar-se a uma escrituração diária baseada num conceito de “deve” e “haver”, não resolveu o problema de fundo, visto que a escrituração nestes termos tem um carácter rudimentar e o deve e haver corresponde apenas a uma parte das operações que têm que ser sujeitas a registo contabilístico.

A circunstância de ter sido colocada à disposição do Administrador de Insolvência toda a informação existente no escritório da ..., e que espelham todas as transacções da insolvente[4], não significa que não tenha havido uma grave falha no cumprimento das obrigações da insolvente, ao nível da sua contabilidade; isso apenas quer dizer que havia documentação, não organizada, relativa às transacções da insolvente, a que foi possível aceder.

Assim, a insolvente, ao agir da forma descrita, comprometeu seriamente os interesses que a obrigação de manter contabilidade organizada visa acautelar, pelo que não pode deixar de se entender que incumpriu em termos substanciais essa obrigação.

Porém, os gerentes da insolvente dizem que esse incumprimento não lhes pode ser imputado, na medida em que a falta de organização da contabilidade deveu-se a um procedimento judicial, mais propriamente um arresto, onde a Insolvente ficou privada da contabilidade, que nunca mais pode conferir ou trabalhar, passando-se apenas a gerir a escrituração do dia a dia que seguiu a esse dia l de Janeiro de 2006[5].

Nesta parte, provou-se que o computador que serviria de base à informação contabilística da empresa, em formato “Excel”, foi arrestado e removido no âmbito de processos de insolvência de outras empresas do denominado “Grupo D...”[6].

Face a este arresto, como bem se observa na sentença recorrida, sempre deveria a insolvente, na sequência do arresto do computador onde se encontrava a sua informação contabilística, providenciar pelo levantamento do arresto ou, pelo menos, pela autorização de obtenção da informação constante do mesmo, pelo que o aludido arresto não é suficiente para fundamentar a falta de contabilidade organizada[7]. Se esse computador continha documentos essenciais para a insolvente poder cumprir as suas obrigações relativas à contabilidade, tinha que ter suscitado essa questão junto do respectivo processo, de modo a lhe ser facultado o acesso a tal documentação.

E, ao contrário do que sustentam os gerentes da insolvente, não faz sentido defender o entendimento de que não se devia realizar essa diligência por a informação que poderia eventualmente ter sido devolvida, nunca seria passível de fidelidade, já que, a insolvente e os seus gerentes não poderiam garantir juntos das entidades competentes a sua fidelidade, atento o seu percurso e a sua hipotética utilização/alteração por terceiros[8]. Na verdade, tratando-se de um arresto judicial, é de presumir que não houve qualquer alteração ou modificação do conteúdo dos documentos guardados no computador arrestado. De qualquer modo, uma vez na posse desses documentos, caberia à insolvente averiguar se os mesmos estavam conforme se encontravam aquando do arresto.

Por outro lado, face ao que se encontra provado sob I) e W), o incumprimento em causa registou-se já após o início da vigência do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, pelo que se não coloca a questão da aplicação retroactiva desse diploma[9]. De referir também que, estabelecendo o n.º 2 do citado artigo 186.º uma presunção iuri et iure, não é relevante que a insolvente possa não ter actuado com intenção de prejudicar a compreensão da sua situação patrimonial e financeira[10], facto aliás que não se encontra provado, e está dispensada a demonstração de que a ocorrência de alguma das situações aí previstas foi, em concreto, a causa da insolvência[11]. Com efeito, verificados alguns destes factos, o juiz terá assim que decidir necessariamente no sentido da qualificação da insolvência como culposa. A lei institui consequentemente no artigo 186.º n.º 2 uma presunção iuri et iure, quer da existência de culpa grava, quer do nexo de causalidade desse comportamento para a criação ou agravamento da situação de insolvência, não admitindo a produção de prova em sentido contrário[12].

Face ao exposto, conclui-se que se mostra preenchida a previsão do artigo 186.º n.º 2 h) do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, o mesmo é dizer que há fundamento para se qualificar a insolvência como culposa.


3.º

Na decisão recorrida a Meritíssima Juíza também considerou que o caso dos autos se reconduz a uma situação de presunção de culpa grave do devedor pelo menos na agravação do estado da insolvência, por força da conjugação do disposto nos nºs. 1 e 3, alínea b), do artigo 186º do CIRE, se bem que, nesta perspectiva, presunção ilidível. E isto porque, resultou demonstrado que a insolvente não depositou na respectiva Conservatória as contas referentes ao exercício de 2005. Sendo certo que o arresto do computador já supra referido não afasta a presunção de culpa grave da insolvente, na medida em que esta poderia ter tomado medidas processuais adequadas à recuperação da informação contabilística existente no computador. Por outro lado, através dos elementos documentais em sua posse, sempre a insolvente poderia reconstituir a sua contabilidade e as suas contas. Considera-se assim que a insolvente e seus gerentes não lograram provar que a presunção prevista no artigo 183º nº 3 alínea b) do CIRE não se verificou[13].

Neste capítulo os gerentes da insolvente defendem que não se encontra na douta sentença a verificação do nexo de causalidade entre o incumprimento da obrigação de apresentação das contas anuais isto é do ano de 2005 e a criação ou a agravamento da situação de insolvência[14].

A alínea b) do n.º 3 do artigo 186.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas estabelece que se presume a existência de culpa grave quando os administradores, de direito ou de facto, do devedor que não seja uma pessoa singular tenham incumprido a obrigação de elaborar as contas anuais, no prazo legal, de submetê-las à devida fiscalização ou de as depositar na conservatória do registo comercial.

Uma vez que se provou que as contas da insolvente não foram depositadas na respectiva Conservatória do Registo Comercial de ...[15], não há dúvidas de que a insolvente não observou a obrigação a que se refere a parte final desta alínea b). Mas, isso não basta para que, imediatamente, se conclua que, também aqui, há fundamento para se qualificar como culposa a insolvência, dado que a presunção (iuris tantum) que se encontra prevista no n.º 3 do artigo 186.º abrange apenas a culpa grave dos administradores de direito e de facto, mas não o nexo de causalidade entre a actuação e a situação de insolvência (o qual terá que ser demonstrado de acordo com o artigo 186.º n.º 1)[16]. Deste modo, verificado o incumprimento de alguma das obrigações referidas neste n.º 3, para que se qualifique como culposa a insolvência, é ainda necessário que demonstre que essa conduta criou ou agravou a situação de insolvência.

Ora, não se provou qualquer facto que estabeleça um nexo causal entre o incumprimento da obrigação de depósito das contas da insolvente na respectiva conservatória do registo comercial e a criação ou agravamento da sua situação de insolvência. Logo, não se pode, por esta via, qualificar como culposa a insolvência, pelo que se torna inútil apurar se há ou não culpa no não cumprimento daquela obrigação.


III

Com fundamento no atrás exposto, julga-se improcedente o recurso, mantendo-se a decisão recorrida, pese embora com fundamentação não totalmente coincidente.

Custas pelos gerentes da insolvente, aqui requeridos.


António Beça Pereira (Relator)
Nunes Ribeiro
Hélder Almeida


[1] Pires Cardoso, Noções de Direito Comercial, 10.ª Edição, pág. 98 e 99.
[2] Cfr. factos I) e W) dos factos provados.
[3] Cândido de Figueiredo, Grande Dicionário da Língua Portuguesa, Vol. II, 15.ª Edição, pág. 1083.
[4] Cfr. facto Y) dos factos provados.
[5] Conclusão 10.ª. No mesmo sentido pode ver-se também as conclusões 5.ª, 11.ª, 18.ª, 21.ª e 33.ª.
[6] Cfr. B) dos factos provados.
[7] Cfr. folha 588 que corresponde à folha 28 deste apenso de recurso.
[8] Cfr. conclusão 27.ª.
[9] Cfr. conclusões 16.ª a 19.ª.
[10] Cfr. conclusão 14.ª.
[11] Neste sentido Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 2.ª Edição, pág. 610. Cfr. conclusão 23.ª.
[12] Menezes Leitão, Direito da Insolvência, 2.ª Edição, pág. 272.
[13] Cfr. folha 589 que corresponde à folha 29 deste apenso de recurso.
[14] Cfr. conclusão 36.ª.
[15] Cfr. C) dos factos provados.
[16] Maria do Rosário Epifânio, Manual de Direito da Insolvência pág. 123. Neste sentido pode ainda ver-se Menezes Leitão, obra citada, pág. 273 e Ac. Rel. Porto de 13-9-2007 no Proc. 0731516, Ac. Rel. Porto de 7-1-2008 no Proc. 0754886, Ac. Rel. Coimbra de 26-1-2010 no Proc. 110/08.6TBAND-D.C1 e Ac. Rel. Coimbra de 23-11-2010 no Proc. 1088/06.6TBPMS-A.C1 em www.gde.mj.pt.